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Religião Razão e Fé

O Humano e o Divino: o Papel da Religião e da Fé nesta Relação


A palavra religião significa literalmente ligação, ou melhor, religação entre o
humano e o divino.
Entende-se o significado da expressão, se tivermos presente o episódio
bíblico de Adão e Eva. Inicialmente, Adão e Eva, os primeiros seres humanos a existir,
viviam no paraíso em comunhão com Deus. Entretanto aconteceu o pecado e a sua
consequente expulsão do paraíso. Pelo pecado, portanto, o homem rompeu a sua
ligação originária com Deus, separando-se deste. Agora, arrependido, sofredor, o
homem, procura, através da religião, pela fé, a oração e os diferentes rituais das
várias religiões, regressar a Deus e refazer a comunhão originária que, ao pecar,
perdeu.
A procura religiosa de Deus não tem lugar através dos instrumentos e
métodos utilizados nas ciências (a via empírica da experimentação), e na filosofia (a
via da racionalidade argumentativa), mas especialmente através da fé.
Não é fácil definir o conceito religioso de fé, uma vez que, envolvendo a
crença profunda na existência de Deus (sem, porém, se reduzir a essa crença,
porquanto ao implicar também um compromisso existencial com Deus, comporta
aspetos atitudinais como confiança, amor, esperança e entrega) ela é algo que se situa
mais do lado do sentido e do vivido do que do pensado, mais do lado do coração, do
sentimento e da emoção do que da razão, motivo pelo qual não é fácil nem, talvez,
possível, explicar o que é a fé a quem a não tem, não a sente e não a vive. Em todo o
caso, vinda de nós ou dádiva de Deus, a fé não é necessariamente o oposto da razão,
não é o domínio do irracional, mas o que transcende e ultrapassa os limites da razão.
No fundo, a ideia é que a razão e a experiência permitem-nos conhecer o mundo
natural até um determinado limite. A partir desse limite entra-se no domínio do
sobrenatural e do divino, inacessível à razão, mas não necessariamente à fé.
Portanto, sem ser necessariamente do domínio do irracional, a fé diz respeito ao
conhecimento daquilo que está para lá dos limites da razão. Neste sentido, sem
necessitar de provas racionais, a fé é o instrumento adequado para o conhecimento
de Deus.

Origem e Natureza da Religião


A religião é um fenómeno humano, profundamente humano, e universal, no
sentido em que até hoje não foi encontrado, nem se conhece e existência de
nenhuma sociedade humana, por pequena que seja, que não conheça, de uma
forma ou de outra, a experiência religiosa, isto é a experiência de relação do
humano ao sagrado e ao divino.
Na base da experiência religiosa, talvez esteja a experiência que a
determinada altura o homem faz de si, da sua finitude, da sua pequenez e da sua
dependência. Na verdade, sentindo-se perdido, esmagado, face à magnitude do

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universo, do mundo desconhecido e ameaçador que o cerca (rodeado de perigos,
como animais ferozes, doenças e cataclismos), o homem necessita de uma
explicação e de um sentido para a realidade caótica em que se insere. Ora, no
recurso ao sagrado e ao divino, inicialmente na forma das divindades animistas,
depois, no politeísmo das grandes civilizações da antiguidade, até ao Deus teísta das
grandes religiões monoteístas, o homem encontra a explicação, o sentido e a
segurança que procura e lhe permitem uma existência mais tranquila e
organizada.
Pela religião, o homem abre-se para Deus, entidade que dá corpo aos ideais
de infinito e absoluto a que aspira. Este desejo profundo de absoluto é bem vivível
naquele que é um dos conceitos centrais das grandes religiões: o conceito de
imortalidade. Este conceito, se, por um lado, traduz a consciência que o homem,
porque conhece a experiência da morte, tem da sua temporalidade e finitude,
expressa, por outro lado, a sua aspiração a uma vida intemporal e eterna. Na
verdade, a certeza da existência de Deus e de outra vida sem fim, no além, oferece
ao homem o conforto e o sentido necessários à precaridade de uma existência que
é, muitas vezes, de injustiça, sofrimento e dor.
Podendo a atitude religiosa revestir-se de aspetos muito diversos, desde as
formas mais elementares de superstição e magia, passando pela experiência mística
(experiência interior intensa, de elevação e união da alma com Deus), a visão comercial
e contratual da religião (reza-se para obter um favor, dá-se esmola para ganhar o Céu),
até atitudes de fé esclarecida e de vivência autêntica, é possível encontrar um
conjunto de caraterísticas comuns a toda a experiência religiosa, nomeadamente as
que são expressas nas seguintes dualidades:

 Humano/divino
Em toda a religião se verifica a relação do homem a um Outro, superior,
grandioso, que dá sentido à vida e ao mundo e que, por vezes, se dá a
conhecer e se revela em hierofanias (aparições do sagrado);

 Sagrado/profano
Separação entre os domínios da existência quotidiana, do espaço e do tempo
comuns em que a vida do dia a dia decorre, e o domínio do sagrado, dos
lugares santos e do tempo sagrado das festividades;

 Imanência/transcendência
A vida humana decorre (é imanente) neste mundo, mas é em Deus e no além
transcendentes (superiores, separados) que o sentido e a razão de ser da vida
presente reside;

 Fascinante/tremendo
Formas diferentes, mas complementares de experienciar o sagrado, que
tanto é vivido como polo de atração, confiança e alegria (Deus benevolente,
que compreende e perdoa), como de temor (Deus justiceiro, implacável e
severo, que tanto salva como condena);
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 Revelação/mistério
Toda a religião se apresenta como um conjunto de dogmas, isto é, de
verdades reveladas e aceites em virtude do seu fundamento sagrado. Se parte
dessas verdades são inteligíveis (racionais), há outras que, enquanto
mistérios incompreensíveis à luz da razão, apenas são acessíveis à fé.

A Religião como Projeto de Salvação


A necessidade humana de ultrapassar a sua finitude, temporalidade e
dependência face ao mundo envolvente, associada ao facto e à consciência do
pecado, levou a que religiões como o cristianismo se assumissem também como
projeto de salvação, na medida em que apontam, apelam e preparam para a
felicidade eterna de uma vida em comunhão com Deus.
Significando o pecado, o primeiro pecado em Adão e Eva, o ato de
emancipação do homem, que se descobre com o poder e a liberdade de optar pelo
bem ou pelo mal, a salvação decorre, não apenas mas também, do modo como o
homem souber – pela forma mais ou menos responsável como utilizar a sua liberdade –
gerir as suas escolhas e o seu destino. Apesar de Deus o assistir com a sua graça, há
quem acentue a ideia de que o homem é, apesar de tudo, pela autenticidade e verdade
com que viver a sua vida, um agente ativo no projeto da sua salvação.

O Fenómeno do Ateísmo
Quanto ao problema da existência de Deus, há basicamente três perspetivas:
 Teísmo, que é a expressão que traduz a opinião daqueles que acreditam e
afirmam a existência de Deus ou deuses;
 Ateísmo, que é a expressão que traduz a opinião daqueles que não creem e
negam a existência de Deus ou deuses;
 Agnosticismo, termo que traduz a opinião daqueles que não afirmam nem
negam a existência de Deus ou deuses, mas antes suspendem o juízo, uma vez
que não têm provas nem de que Deus ou os deuses existem nem de que não
existem.
Relativamente ao ateísmo, há que dizer que manifestações deste fenómeno
sempre têm existido ao longo da história. Porém, enquanto fenómeno social
significativo, a sua origem remonta à modernidade (séc. XVII) e à progressiva
implantação da mentalidade científica e tecnológica que, sobretudo no contexto da
revolução industrial, veio a traduzir-se em profundas alterações nas condições de
vida dos indivíduos e das sociedades. Na verdade, o afluxo de massas de camponeses
às cidades (urbanismo) e o trabalho nas fábricas, ao abrigo dos fenómenos
atmosféricos, dos quais o camponês depende em absoluto, conferem ao homem
uma maior autonomia face ao poder e à inclemência das intempéries da natureza.
Por outro lado, as condições absolutamente degradantes de vida e de trabalho
(exploração, miséria, doenças …) dos operários, conduziu aglomerados humanos

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inteiros a situações imensas de miséria, sofrimento, desespero e revolta. Face a
tanto mal, na angústia e no desespero que então se vive, muitas pessoas começam a
duvidar da existência de Deus.
Enquanto fenómeno socialmente significativo, o ateísmo aparece, assim, ligado
ao urbanismo à massificação e ao materialismo próprios das sociedades cientifico-
industriais.
Contudo, a dimensão espiritual e religiosa do homem, dado que preenche
uma sua componente essencial, continua viva, reaparece e manifesta-se sob novas
formas de que são exemplo: a proliferação de seitas e novas religiões alternativas, o
interesse crescente por temas como a parapsicologia, o ocultismo, a astrologia, a
ficção científica, o espiritismo e a meditação transcendental, para não falar das
múltiplas e trágicas situações de manipulação da religião, colocando-a ao serviço do
terrorismo e de interesses inconfessados de natureza política, económica e militar.

A Existência do Deus Teísta. Discussão em Torno do Problema


Será que Deus, o pilar fundamental das religiões e nomeadamente aquele em
que assentam as grandes religiões monoteístas, existe efetivamente?
É importante que se tenha presente que o conceito de Deus aqui presente não
é:
a) O Deus das religiões animistas, porquanto Deus não é um elemento ou uma
força da natureza;
b) O Deus do deísmo, isto é um deus que é criador, mas que não se importa nem
intervém na criação;
c) O Deus do panteísmo, conceção que identifica Deus com a natureza e o mundo
(tudo é Deus).
O Deus de que aqui se fala é o Deus teísta, o Deus das grandes religiões
monoteístas, um Deus que, com diferentes nomes, possui os seguintes predicados:

a) Omnipotência, na medida em que pode fazer tudo;


b) Omnisciência, na medida em que sabe tudo;
c) Suma bondade, na medida em que é moralmente perfeito;
d) Criador, na medida em que é criador do universo;
e) Pessoa, na medida em que não é uma força da natureza, mas um pai que é
bondade e amor;

Ver-se-ão duas perspetivas de abordagem e de resposta ao problema da


existência de Deus:

 Uma perspetiva racionalista que, sem excluir a fé, mas tentando


complementá-la, procura, fazendo uso da capacidade racional do homem,
evidências, provas ou argumentos racionais que sustentem a crença na
existência de Deus ou, no caso de quem defende a tese contrária, que
demonstrem a não existência de Deus.

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 Uma perspetiva fideísta, para a qual o acesso à certeza na existência de Deus
tem lugar exclusivamente através da fé, sendo dispensáveis e de nulo valor
quaisquer evidencias racionais que a esse respeito se possam verificar;

Perspetiva Racionalista
Situando-nos numa perspetiva racionalista, abordaremos três dos principais
argumentos mais comummente utilizados para provar racionalmente a existência de
Deus. Ocupar-nos-emos, de seguida, do problema do mal, uma vez que esse constitui
o principal argumento utilizado por quem pretende pôr em causa a existência de
Deus.

Prova do desígnio
Versão da Semelhança

A versão da semelhança do argumento do desígnio consiste em, a partir da


constatação da complexidade, organização e ordem verificadas no universo,
concluir que só Deus poderá explicar a sua existência.
O argumento baseia-se no estabelecimento de uma analogia entre a
complexidade dos artefactos humanos e a complexidade do universo, considerando
que se aqueles só podem ter sido criados por seres humanos inteligentes, também o
universo (muito mais complexo do que os artefactos humanos), só poderá ter sido
criado pelo ser inteligente que é Deus.
Objeção
Há quem considere que este não é um bom argumento, uma vez que há uma
diferença muito clara entre os artefactos humanos e o universo. É que
relativamente aos artefactos humanos, já vimos vários e sabemos que todos eles
foram produzidos por seres inteligentes. Quanto ao universo, só conhecemos um,
pelo que não podemos saber se ele foi ou não feito por seres inteligentes,
nomeadamente por Deus.

Versão da Ordem (estudo opcional)

Imagine-se que um belo dia, elevando o olhar, verificamos que no céu as nuvens
se estão a organizar e a formar letras, palavras e frases com sentido.
Suponha-se que essas frases correspondem exatamente aos versos e às estrofes de
Os Lusíadas de Luís de Camões. Suponha-se ainda que todo o poema épico do grande
poeta é, assim, escrito no céu.
Acreditaremos que este tão extraordinário fenómeno é fruto do acaso? Não parece
que tal crença seja provável. Contudo o universo e nós próprios, o nosso próprio
organismo é dotado de uma complexidade e de uma ordem bastante maior do que a de
Os Lusíadas, razão pela qual a probabilidade de ter sido fruto do acaso é ainda menor
do que a de o poema de luís de Camões aparecer escrito nas nuvens.

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Assim, partindo da constatação da ordem existente no universo, a versão da ordem
do argumento do desígnio é basicamente a seguinte:
 Se Deus não existe, a ordem que verificamos existir no universo é fruto do
acaso.
 O acaso (como o exemplo das nuvens ilustra) não pode ser a causa de tal
ordem, mas apenas um ser, Deus, sumamente poderoso e omnisciente.
 Logo, Deus existe.
Objeção
Na objeção a este argumento é frequentemente invocada a teoria da evolução
natural de Charles Darwin, que mostra que no processo lento e longo da evolução
biológica das espécies, fenómenos puramente naturais e fruto do acaso, como, por
exemplo, as mutações, dão origem à ordem.
Ao evidenciar que o acaso pode originar a ordem, o evolucionismo de Darwin,
põe em causa a segunda premissa do argumento, abalando assim a sua solidez.

Prova do Cosmológica
Versão da Causa Primeira
A versão da causa primeira da prova cosmológica, que tem na sua base a
distinção entre os conceitos de ser necessário (não pode não existir, uma vez que a
existência faz parte da sua essência, ex.: a existência faz parte da essência de ser
perfeito, uma vez que este se não existisse não seria perfeito. Seria contraditório pensar
um ser perfeito a quem faltasse a perfeição de existir) e ser contingente (ser que existe,
mas poderia não existir. Não há qualquer contradição em pensar a não existência de um
ser que contingentemente existe, mas poderia não existir, por exemplo, esta mesa, ou o
mundo no seu conjunto) consiste em partir do princípio de que tudo o que existe tem
uma causa. Depois, recuando na cadeia das causas chegaremos à causa primeira,
que só pode ser Deus, o ser necessário, ser cuja existência decorre da sua essência,
pelo que existe necessariamente, sendo impossível a sua não existência.
Há quem defenda que descendo na cadeia das causas chegaremos não a
Deus, mas ao Big-Bang, que seria a causa de tudo. Mas dada a natureza de ser
contingente da Grande Explosão (a sua existência não decorre da sua essência, pelo
que aconteceu, mas poderia não ter acontecido), o Big-Bang tem ele próprio de ter
uma causa, e essa só pode ter sido o ser necessário que é Deus.

Objeção
Há quem objete a este argumento, considerando não há razão para parar o
raciocínio causal em Deus, devendo, pelo contrário, ser continuado perguntando
pela causa de Deus.
Caso se responda que Deus não tem causa, contradiz-se a premissa que diz
que “tudo o que existe tem uma causa”; se se responde dizendo que Deus é causa de si
mesmo, pode perguntar-se, por que razão não pode também o universo ser causa de si
mesmo?

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Versão da Sequência de Causas (estudo opcional)
A versão da sequência de causas do argumento do desígnio baseia-se na ideia de
que tudo o que existe tem uma causa, causa essa que é, por sua vez, efeito de uma causa
anterior e assim sucessivamente. Agora, ou se considera que a sequência de causas para
num dado ponto, ou prossegue infinitamente.
Se a sequência causal para num dado ponto, por exemplo, no Big-Bang, temos
de supor, dado ser este um acontecimento contingente, que foi Deus, o ser necessário
quem criou o Big-Bang, que está na origem de tudo o resto;
Se a sequência causal é infinita, também ela, dada a sua natureza contingente,
supõe, como seu criador, a existência do ser necessário que é Deus.
Esquematicamente, o argumento é o seguinte:
 A sequência causal para no Big-Bang ou prossegue para sempre.
 Se para no Big-Bang, temos de supor que foi Deus o seu criador.
 Se prossegue para sempre, temos de supor que foi Deus o criador dessa
sequência infinita.

Objeção

Uma maneira de objetar a cada uma das possibilidades enunciadas no argumente


consiste em:

a) Pôr em causa a segunda premissa do argumento, que diz que temos de supor ter
sido Deus o criador do Big-Bang.

Por que razão temos de supor tal coisa? Não poderá o Big-Bang ter
surgido do nada? Não poderá ser um acontecimento necessário? Em qualquer
dos casos, uma vez que há outras maneiras possíveis de explicar o Big-Bang, a
premissa é, no mínimo, duvidosa.

b) Pôr em causa terceira premissa do argumento, segundo a qual temos de supor ter
sido Deus o criador da sequência causal infinita.
Não poderá essa sequência causal ter surgido do nada? Não poderá ser
necessária? Dado que há outras maneiras de explicar a infinitude daquela
sequência causal, a terceira premissa do argumento é também, como a anterior,
no mínimo, duvidosa.

Prova do Ontológica
A prova ontológica da existência de Deus é uma prova a priori, que consiste
em afirmar a existência de Deus com base na simples consideração do seu conceito.
 Com efeito, pensar Deus equivale a pensar num ser perfeito (no ser “mais
grandiosa do que o qual nada pode ser pensado”, como diria Santo
Anselmo);
 Ora, a existência é uma perfeição;
 Portanto, Deus, o ser perfeito, existe.

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Objeção
Pode objetar-se a este argumento mostrando que, caso ele fosse um bom
argumento, poderíamos provar a existência do que quer que fosse. Por exemplo,
do jogador de futebol perfeito. Bastaria, para tal, definir o jogador de futebol
perfeito como “o jogador mais grandioso do que o qual nada poderia ser
pensado”. Esse jogador, para ser efetivamente o mais grandioso, teria de existir não
apenas no pensamento, mas também na realidade (se existisse apenas no
pensamento, não seria o mais grandioso, uma vez que poderia pensar-se um para além
de existir no pensamento, existisse, também, na realidade). Acontece, porém, que,
como a experiência o mostra, definir uma coisa como a mais grandiosa do que a
qual nada pode ser pensado, não basta para a fazer existir. Portanto, definir Deus
desse modo não prova a sua existência.

O Problema do Mal
O Ónus da Prova
Deus existe ou não? A quem pertence o ónus da prova, isto é, quem tem de
apresentar provas? É o crente que tem de provar que Deus existe ou é o não
crente que tem de provar que Deus não existe?
Se o ónus da prova pertencer ao não crente, não basta a este mostrar que as
provas da existência de Deus não são boas. Ele terá de apresentar boas razões para
se crer que Deus não existe.
Se bem que em princípio, no que respeita à existência ou não existência de
Deus, o ónus da prova caiba ao crente, o não crente também pode argumentar
contra a existência de Deus. Um argumento frequentemente utilizado baseia-se na
invocação do problema do mal.

O Argumento/Problema do Mal
O problema do mal é o argumento utilizado pelos críticos da religião para
justificar a incompatibilidade entre a existência de Deus e a existência do mal, isto
é, das injustiças, do sofrimento e da dor que se verifica no mundo.
Dentro do mal, é usual distinguir-se entre mal moral e mal natural,
considerando-se que o mal moral é o mal provocado pelo homem, isto é, o mal
resultante do agir humano como, por exemplo, a mentira, o homicídio, a tortura, o
roubo, etc., enquanto o mal natural é, aquele que resulta de fenómenos naturais
como doenças, terramotos, inundações, etc.
Ora, será possível compatibilizar a existência do mal, seja do mal moral, seja
do mal natural com a existência de Deus, do Deus teísta.
Para que este problema se compreenda é preciso que se tenham presentes
três atributos essenciais de Deus: a omnisciência (Deus sabe tudo), a omnipotência
(Deus pode tudo aquilo que é logica e ontologicamente possível) e a absoluta
bondade (Deus é sumamente bom).

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De acordo com o argumento, é impossível conciliar a existência de um Deus
dotado destes três atributos com a existência do mal. Com efeito:

 Deus ou sabe da existência do mal ou não sabe.


 Se não sabe, não é omnisciente;
 Se sabe:
a) Ou quer impedir a existência do mal e não pode (neste caso
não é omnipotente),
b) Ou pode impedir a existência do mal, mas não quer (neste
caso não seria sumamente bom, mas malévolo).

Em qualquer dos casos, parece que a existência do mal é incompatível com


a existência de Deus. Ora, como o mal existe (a sua existência é uma evidência), Deus
não pode existir.
De uma forma mais clara, o argumento é o seguinte:
 Se Deus existe, não existe o mal.
 O mal existe.
 Logo, Deus não existe.

Objeções ao Problema do Mal


Posicionando-se face ao problema do mal, os defensores da religião objetam
através da construção de teodiceias (justificações racionais de Deus) em que
mostram que, sem o desejar, Deus permite a existência do mal, uma vez que esta
torna possível a existência de coisas boas (livre-arbítrio, coragem, heroísmo,
solidariedade, etc.) que de outra forma não poderiam existir, tornando o saldo final
francamente favorável a favor do bem.

Objeção ao Problema do Mal Moral: Possibilitação do Livre-arbítrio


Este argumento, a favor da compatibilidade entre a existência do mal e a
existência de Deus, baseado na existência do livre-arbítrio, aplica-se ao mal moral e
apoia-se na ideia de que criar seres livres e programá-los para fazerem o bem, são
proposições incompatíveis, pelo que a criação de seres dotados de liberdade implica
logicamente conceder-lhes a possibilidade de poderem escolher entre fazer o bem e
praticar o mal.

O livre-arbítrio é um elemento essencial da natureza e da dignidade


humana. Sem a existência do livre-arbítrio as nossas escolhas não seriam
significativas, uma vez que não teriam verdadeiro significado moral. Com efeito,
por maior que fosse o bem que fizéssemos, sem o livre-arbítrio este não teria
qualquer valor moral nem seria digno de qualquer louvor.
Para que o livre-arbítrio fosse real e as nossas escolhas pudessem ser
moralmente significativas, Deus teria de permitir a possibilidade da existência do
mal moral. Na verdade, os defensores desta tese consideram que um mundo com

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livre-arbítrio e mal moral (ou, pelo menos, a possibilidade de este existir) é melhor
do que um mundo onde não houvesse livre-arbítrio nem mal moral.
Assim, portanto, a possibilidade do mal moral existe e Deus permite essa
existência, para que os homens possam ter livre-arbítrio e as suas escolhas possam
ser moralmente significativas. Ora, descobrindo-se com livre-arbítrio, o homem
pode escolher entre o bem e o mal. Infelizmente muitas pessoas, sem que Deus o
deseje, optam pela escolha do mal.
Assim, de acordo com esta perspetiva, se bem que possibilite a existência do
mal moral, Deus não o deseja, não é o seu autor nem o responsável pela sua
existência, mas sim o homem, através das más escolhas ou do mau uso que faz do
seu livre-arbítrio.

A este argumento e à ideia de que a existência do livre-arbítrio implica que o


mal moral tenha necessariamente de existir, os adversários da religião respondem que
é duvidoso que tal tenha de acontecer. Com efeito, argumentam que Deus poderia
ter-nos criado com a capacidade de optar entre diferentes possibilidades (portanto,
com livre arbítrio) sem que a escolha de qualquer delas originasse o mal.
Nomeadamente, poderia ter feito com que pudéssemos escolher entre ações boas e
ações neutras, mantendo-se assim o livre-arbítrio e, simultaneamente, a ausência
do mal.

Objeção ao Problema do Mal Natural: Possibilitação de Qualidades Morais

Se é possível, através do livre-arbítrio, compatibilizar a existência de Deus


com a existência do mal moral, o mesmo acontece, se bem que, talvez, de forma não
tão convincente, com o mal natural, cuja existência, considera-se, possibilita a
emergência no homem de qualidades morais que de outro modo não chegariam a
manifestar-se. Assim, por exemplo, sem a existência do mal natural não existiriam
qualidades morais como a coragem para enfrentar a morte e as doenças, ou o
heroísmo daqueles que arriscam a vida para salvar gente de cataclismos como
tempestades, terramotos, etc.
Portanto, mais uma vez, não há necessariamente incompatibilidade entre a
existência de Deus e do mal natural, considerando até, os defensores desta tese que na
sua omnipotência e suma bondade, Deus criou este mundo porque este é o melhor
mundo possível. Qualquer outro que fosse criado teria ou a mesma quantidade de
mal que ou uma quantidade ainda maior.

A este argumento, os adversários da religião contrapõem com a pergunta:


como poderemos saber se este é efetivamente o melhor mundo possível? É que, se a
resposta for a que foi enunciada, isto é, a de que este é o melhor mundo possível,
porque Deus é bom e omnipotente, acabamos por cair num círculo vicioso (Deus é
bom e omnipotente porque criou o melhor mundo possível e criou o melhor mundo
possível porque é bom e omnipotente). Para que esta falácia pudesse ser evitada

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seria necessário provar, por razões próprias e independentes que este é o melhor
mundo possível.

Perspetiva Fideísta
Para o fideísmo, tentar aceder a Deus pela via da razão é o mesmo que
procurar conhecer as cores através do sentido da audição. Num e noutro caso, a
metodologia utilizada não é a adequada ao fim que se pretende. Na verdade, se as
metodologias utilizadas nas ciências e na filosofia (a razão e as experiências) são
boas para o conhecimento dos fenómenos do mundo natural, são inadequadas para
o conhecimento do mundo sobrenatural. Esta é a perspetiva defendida pelo fideísmo,
para quem só a fé, e não a razão, permite o acesso a Deus.

Dentro da perspetiva do fideísmo, podem destacar-se as posições de


Kierkegaard e Pascal.

A Perspetiva de Kierkegaard
Fideísta, Kierkegaard, para quem faz parte da natureza da fé crer sem
provas, não só distingue e separa os domínios da razão e da fé, como considera que
são entidades incompatíveis que, como tal, se excluem. Não faz sentido exigir provas
ou procurar argumentos a favor da existência de Deus, uma vez que ao fazer isso
perde-se aquilo que há de especial, aquilo que há de singular na vida religiosa e que
se prende com o sentimento, a experiência profunda, vivida e sentida, da fé.
Se houver boas razões, bons argumentos ou boas evidências a provar que
Deus existe, a fé não só é desnecessária como é impossível. É que, pela sua própria
natureza, a fé envolve sempre risco, o risco de acreditar numa divindade, quando
não há boas razões para pensar que ela existe.
Objeção
Há quem objete a esta perspetiva, que defende que ter fé implica acreditar
sem provas, porque é essa é a natureza da fé, dizendo que ela assenta numa falácia
(petição de princípio), uma vez que na sua base está o raciocínio circular seguinte:

 É correto ter fé, porque é correto crer sem provas. Mas é correto
crer sem provas, porque é correto ter fé.
No fundo explica-se a premissa (é correto ter fé) pela conclusão (é correto crer
sem provas) e esta (é correto crer sem provas) por aquela (é correto ter fé).
A saída deste círculo vicioso implicaria mostrar de forma independente
porque é que “crer sem provas é em si mesmo correto”, uma vez que se ficasse
provado que o não é, então também não seria correto ter fé.

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A Aposta de Pascal
Fideísta, Pascal considera que numa situação de empate da razão quanto à
existência de Deus, é de todo conveniente acreditar que aquele existe. Com efeito,
tomando como referência o nosso destino após a morte:

 Se acreditarmos e Deus existir, temos tudo a ganhar/ganho infinito (vida eterna,


o céu);
 Se acreditarmos e Deus não existir, nada de significativo temos a perder/perda
finita (o esforço vão que durante a vida a religião exige, prazeres de que se
abdicou);
 Se não acreditarmos e Deus existir, temos tudo a perder/perda infinita (punição,
inferno);
 Se não acreditarmos e Deus não existir, nada de significativo temos a
ganhar/ganho finito (os prazeres da vida de que não é preciso abdicar).

Verifica-se, portanto, que se Deus não existir, sejamos ou não sejamos crentes,
nada de significativo temos a ganhar ou a perder. Por outro lado, se Deus existir e
não formos crentes, teremos tudo a perder, uma vez que Deus nos castigará pela
nossa incredulidade; mas se Deus existir e formos crentes, teremos tudo a ganhar,
uma vez que Deus nos haverá de recompensar pela nossa crença.
Assim, pesando os prós e os contras e numa análise de custo-benefício, Pascal
conclui que, independentemente existir ou não, o mais razoável é acreditar, pela via
da fé, que Deus existe.
Objeção
Há quem objete a este argumento refutando a ideia de que temos tudo a
perder caso não sejamos crentes e Deus exista. Esta ideia baseia-se na conceção de
um Deus justiceiro, implacável e vingativo, que castigará aqueles que não
acreditaram na sua existência, mesmo que tenham sido pessoas honestas bondosas, e
justas. Esta crença, acentuam, contradiz o princípio da absoluta bondade divina.
Alem disso, o que é que nos garante que Deus, ao contrário do que a aposta de
Pascal pretende, não castiga antes os crédulos, que acreditam de forma precipitada e
sem provas, e recompensa as pessoas cautelosas e sensatas que, na ausência de
provas e fazendo uso da sua capacidade racional, não acreditam?

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O Paradoxo da Pedra
(apresentado a título de curiosidade)
Pelo facto de ser frequentemente enunciado pelos alunos, com o pedido de que o
professor de filosofia se pronuncie sobre ele, faz sentido que, a título de curiosidade
se apresente o argumento da pedra, acompanhado de uma possível via de
abordagem crítica do mesmo. Deve dizer-se que o essencial desta apresentação tem
como base informação disponibilizada num Curso de Filosofia da Religião, ministrado
por Domingos Faria e Luís Veríssimo.
O paradoxo da pedra, que tem na sua base o atributo divino da omnipotência,
pode ser apresentado da seguinte maneira:

 Ou Deus pode ou não pode criar uma pedra de tal modo pesada que
ele próprio não a consegue levantar.
 Se Deus pode criar tal pedra, não é omnipotente (uma vez que não
pode levantar essa pedra).
 Se Deus não pode criar tal pedra, não é omnipotente (uma vez que
não pode criar essa pedra).
Uma via de abordagem e de resposta a este argumento passa, como foi
sugerido por São Tomás de Aquino, pela revisão do conceito de omnipotência,
considerando-se que:

 Omnipotência não significa fazer tudo/todas as coisas, mas todas as


coisas que são logica e ontológica ou metafisicamente possíveis.
Assim, de acordo com Edward Wierenga, o conceito de omnipotência deverá
comportar três exceções:
a) Omnipotência não implica fazer aquilo que é logicamente impossível (por
exemplo, criar um triângulo de quatro lados).
b) Omnipotência não implica fazer coisas incompatíveis com a essência de
ser omnipotente (por exemplo, cansar-se, errar, criar alguém mais poderoso
do que ele, deixar de existir).
c) Omnipotência não implica fazer coisas incompatíveis com o que já
aconteceu no passado (por exemplo, alterar o passado, fazer coisas
possíveis, mas que já é tarde para fazer, como trazer agora Camões pela
primeira vez à vida).
Assim, tendo por base o conceito revisto de omnipotência, pode concluir-se
que criar uma pedra que ninguém, nem o ser omnipotente, possa levantar,
implicaria, da parte do ser omnipotente, fazer algo que é incompatível com a sua
essência de ser omnipotente. Dessa maneira, o argumento de resposta ao paradoxo
da pedra poderia ser formulado da seguinte maneira:

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 O ser omnipotente não pode fazer nada que o faça perder a sua
omnipotência.
 Criar uma pedra que ele próprio, ser omnipotente não possa levantar,
fá-lo perder a sua omnipotência.
 Logo, o ser omnipotente, pelo facto de ser omnipotente, não pode criar
uma pedra que ele próprio não possa levantar.

Viseu, 1 de Março de 2018


Fernando Saldanha

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