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REFLEXÕES SOBRE A HERMENÊUTICA MÉDICA

REFLECTIONS ON MEDICAL HERMENEUTICS


Thiago Abrahão Soares*

RESUMO
Este artigo tem por objetivo refletir sobre os três níveis do julgamento médico
intrínsecos à relação interpessoal estabelecida entre médico e paciente. O
primeiro nível de julgamento possui uma dimensão prudencial. A partir do
momento em que é estabelecido um “pacto de confiança” entre as partes, tanto
o médico quanto o paciente devem levar em conta a virtude da prudência nas
situações singulares onde ambos devem tomar uma decisão. O segundo nível
de julgamento representa a transição do plano prudencial para o plano
deontológico. A fragilidade do pacto de confiança exprime a necessidade de se
normatizar o julgamento médico, isto é estabelecer preceitos éticos legais que
devem orientar a clínica e a pesquisa médica. O terceiro nível é constituído pela
bioética, que é definida com um julgamento reflexivo que busca legitimar a duas
dimensões anteriores – prudencial e deontológica.

Palavras-chave: Ética, Bioética, Clínica médica, Filosofia da linguagem.

ABSTRACT

This article has the aim to reflect upon three levels of medical judgement intrinsic
to the interpersonal relation established between doctors and patients. The first
level of judgement has a prudential dimension. From the moment a “trust
agreement” between the parties is established, not only the doctor but also the
patient should take into consideration the virtue of prudence in singular situations
when both have to make decisions. The second level of judgement represents
the transition from the prudential plan to the deontological plan. The fragility of
the trust agreement shows the need to follow patterns in medical judgements,
which means to establish ethical legal norms that should guide the clinic and
medical research. The third level is made of Bioethics, which is defined with a
reflexive judgement that searches to authorize the two prior dimensions –
prudential and deontological.

Keywords: Ethics, Bioethics, Medic Clinical and Philosophy of language

_______________________________
*
Bacharel em Direito pela Pontíficia Universidade Católica de MG e Pós graduado em
Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
2

1.INTRODUÇÃO – (Conceitos Gerais)

A atividade médica tanto em sua dimensão clínica quanto no ramo da


pesquisa representa intervenções deliberadas no processo da vida humana. O
resultado desta constatação está na vinculação necessária da prática das
ciências biológicas à uma reflexão bioética. O que é próprio à dimensão
teraupêtica (cliníca) é que esta se dá numa relação interpessoal constítuida por
3 atos de julgamentos em diferentes níveis. Estas diferentes formas de julgar
são estabelecidas a partir da relação social firmada entre médico - paciente
mediada por instituições sociais. É a partir deste contexto, que se faz imperativo
uma reflexão ética. Para compreender essa reflexão temos que definir cada uma
destas formas de julgar que integram a esfera de legitimação da ação médica.

1.1. A Dimensão Prudencial

O nível prudencial é constítuido pelo momento de pensar a natureza das


situações às quais se aplica a virtude da prudência. Nossa primeira tarefa é
determinar a dimensão semântica do termo “prudência”, e sua relação coerente
com a cliníca médica. Preservamos a definição aristótelica deste termo
(phrônesis). Segundo Aristóteles no Livro VI da Ética a Nicômaco, a prudência
(phrônesis) representa uma virtude intelectual sem a qual nenhuma virtude de
caráter moral pode ser exercida.
Com efeito, a indagação aristotélica sobre qual seria o melhor modo de
agir para se alcançar a felicidade está condicionada a uma outra questão
expressa pela busca da melhor forma de governo e instituições sociais capazes
de assegurar a dimensão racional e virtuosa do agir humano. A primeira
indagação leva ao estudo do ethos que é objeto da “Ética a Nicômago”; a última
conduz ao estudo comparativo das diversas constituições e formas de governo
que é o objeto da obra “Política”. Uma vez que o aperfeiçoamento moral do
homem depende da comunidade política na qual ele está inserido 1, a ética
aristotélica é de caráter eminentemente social e a sua política é essencialmente
_________________________
1
Diz Aristóteles: “Isto é confirmado pelo que acontece aos Estados: os legisladores tornam bons
os cidadãos por meio de hábitos que lhes incutem. Esse é o propósito de todo legislador, e quem
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não logratal desiderato falha no desempenho da sua missão. Nisso, precisamente, reside a
diferença entre as boas e as más constituições”. (Aristóteles,1103b, p 67, 1984).
ética. Isto significa dizer que para Aristóteles a virtude da comunidade social é a
medida da virtude de seus cidadãos. Segundo Aristóteles a finalidade (télos) da
vida humana é alcançar a felicidade (eudaimonía). No entanto, a aquisição da
felicidade não é algo que se obtém senão por meio do uso da racionalidade no
exercício habitual das virtudes. Sendo a felicidade a finalidade da dimensão
prática do agir ético, segundo Aristóteles, ela pode ser entendida racionalmente
a partir da compreensão de duas espécies de virtudes; as virtudes intelectuais e
as virtudes morais. Segundo Aristóteles:
A primeira via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino – por isso
requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em
resultado do hábito, donde ter-se formado o seu nome ἦθος por uma
pequena modificação da palavra ἔθος (hábito). Por tudo isso,
evidencia-se também que nenhuma das virtudes morais surge em nós
por natureza. (Aristóteles,1103b, p 67, 1984)

Para Aristóteles o fato de sermos destinados à felicidade, isto é, da


própria felicidade representar o estado de aperfeiçoamento final da dimensão do
agir humano, não garante que necessariamente teremos uma vida feliz. As
virtudes intelectuais se adquirem e se aperfeiçoam por meio dos ensinamentos,
e as virtudes morais, por sua vez, assim se denominam porque procedem do
ethos como comunicação dos costumes sintetizados pela tradição que tendem a
se preservar no fluxo contínuo do tempo, pelo exercício constante (ethike
pragmateía) que lhe fortalece. Portanto, nenhuma das virtudes surgem de modo
necessário ou natural no homem. A expressão “por natureza” pode ser
entendida como um princípio de necessidade que nos diz que nada do que
existe naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza. Ora, o fato
de nenhuma das espécies de virtudes serem dadas por natureza não implica
que elas sejam algo contra a natureza. Pelo contrário, segundo Aristóteles
somos adaptados por natureza a recebê-las e a desenvolvê-las no reino da
práxis, na dimensão da ação. O valor da justiça, por exemplo, está condicionado
ao ato justo, ao agir justo, e não meramente à sua dimensão teórica conceitual.
O único modo de sermos justos é agindo de tal maneira. Assim diz o estagirita:
“Não é, pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se
geram em nós. Diga-se, antes,que somos adaptados por natureza a recê-las e
nos tornamos perfeitos pelo hábito”. (Aristóteles,1103b, p 67, 1984).
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Segundo Aristóteles no Livro VI da Ética a Nicômaco, a prudência


(phrônesis) representa uma virtude intelectual sem a qual nenhuma virtude de
caráter (moral) pode ser exercida. Trata-se de compreender que a virtude moral
e a prudência são duas virtudes e virtudes de diferentes partes do intelecto;
porém, elas necessariamente existem e dependem uma da outra em um mesmo
sujeito e podem, assim, funcionar como critério uma da outra. A virtude moral
aperfeiçoa a nossa capacidade de desejar e os nossos sentimentos; a prudência
aperfeiçoa a nossa capacidade deliberativa, nossa capacidade de escolher em
vista da eudaimonia. A boa deliberação é a excelência da razão prática, daquela
que, em conjunção com o desejo, visa a um fim e busca a ação. Com efeito, não
é qualquer ação que é buscada pela razão prática, mas a boa ação, a qual só
pode ser determinada por uma razão prática excelente, caso em que o agente é
prudente. Assim, por ter a sua razão prática aperfeiçoada, por ser capaz de
determinar por deliberação o que fazer nas situações particulares, dizemos que
o prudente sabe o que deve ser feito. Uma ação deliberada como a melhor a ser
feita agora pode não ser a melhor a ser feita numa situação e momento
diferentes: aquilo que é bom na ação prudente não é universal no sentido
teórico, a saber, o de valer sempre para todos os casos e em todas as situações,
mas é adequado sempre à situação na qual ele se encontra, o prudente é
aquele capaz de realizar, com correção a deliberação.
Se uma das questões principais da ética aristotélica é descobrir o
comportamento moral adequado ao justo meio entre o excesso e a falta, então a
ação correta será condicionada pela sabedoria prática que é a capacidade
deliberativa (de escolha) do agir com respeito aos bens humanos. Nenhum
homem pode agir de forma justa, sem antes dominar a capacidade de julgar e
escolher a melhor decisão a tomar diante das inúmeras situações singulares da
vida. A justiça como virtude prática depende da prudência - virtude intelectual..
Neste sentido nos diz Aristotéles:
Ainda que os atos que estão de acordo com as virtudes tenham
determinado caráter, não se segue que sejam praticados de maneira
justa ou temperante. Também é necessário que o agente se encontre
em determinada condição ao praticá-los: em primeiro lugar deve ter
conhecimento do que faz; em segundo, deve escolher os atos, escolhê-
los por eles mesmos. (Aristóteles, 1984, p.70)
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1.1.1. Julgamentos prudenciais e a prática médica

A base dos julgamentos prudenciais se encontra na estrutura relacional


do ato médico. Mas, como esta estrutura relacional é constituída? A relação
entre médico e paciente é uma relação singular, o modelo relacional evoluiu de
um sistema paternalista biomédico para um modelo de autonomia psicossocial
do paciente. A aproximação centrada sobre o paciente substituiu
progressivamente a orientação centrada na doença. A comunicação é um
elemento central nesta estrutura relacional, ela traz à tona a informação e
estabelece a qualidade da relação. Ela é uma forma particular de comunicação
interpessoal. No domínio médico, a comunicação comporta essencialmente duas
funções: a troca de informações e o desenvolvimento de uma relação social.
Focaremos nossa atenção na segunda função.
A medicina é uma prática baseada em uma relação social onde o
sofrimento é sua motivação fundamental. O sofrimento é o elemento que
individualiza a ética médica, que a torna única dentro do quadro de uma ética
geral. Esta relação social se estabelece primeiramente de modo assimétrico. De
um lado temos aquele com a esperança de ser ajudado e curado, e do outro
lado aquele que detém o saber e representa uma possibilidade de cura.
Portanto, há um vazio inicial entre os dois protagonistas que só poderá ser
preenchido com a fala - descritiva e narrativa - do paciente juntamente com o
diagnóstico e a prescrição do médico. Uma vez preenchido este vazio temos um
pacto de confiança instaurado entre partes iguais. Médico e paciente são aliados
contra um inimigo comum; a doença. Este pacto de confiança possui um caráter
moral que advém da promessa tácita partilhada pelos dois protagonistas de
cumprir fielmente seus respectivos compromissos. Esta promessa tácita é
constitutiva do statuto prudencial de um julgamento moral. No entanto, este
pacto de confiança possui algumas fragilidades e conflitos internos.
Sabemos que o médico tem também um compromisso tácito, de natureza
coletiva, com a saúde pública. A própria noção de saúde, já contém a
possiblidade de um conflito entre sua esfera individual e coletiva. O segredo
médico, por exemplo, pode ser rompido por uma questão de saúde pública,
assim como o confiança do paciente pode em algum momento torna-se
desconfiança, abalando novamente a estrutura deste pacto de confiança.
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Podemos nos perguntar se existem preceitos prudenciais cuja função é


preservar o pacto de confiança firmado entre médico e paciente? Ambas as
partes julgam de forma prudente quando são capazes de reconhecer a
singularidade, a indivisibilidade e a dignidade (estima de si mesmo) do indivíduo
a sua frente. Neste sentido, diz Ricoeur:

O preceito primeiro da sabedoria prática exercida no plano médico é o


reconhecimento do caráter singular do paciente. Está singularidade
implica o cárater não substituível de uma pessoa (....) Da diversidade
de pessoas resulta a constatação de que não é a espécie que nós
tratamos, mas sim um exemplar único do gênero humano”
(RICOEUR.P, 1996, p 32).

Vale ressaltar que na atualidade, a prática médica dispõe de meios mais


pragmáticos que auxiliam a tomada de decisão (prudência) do médico em
relação aos cuidados da saúde de um paciente individual. A medicina baseada
em evidências (MBE) representa um importante instrumento a partir do qual a
ciência contribui efetivamente com o exercício e aprimoramento ético do ser
humano. As evidências cientificas partilhadas pela MBE visam intervir de modo
objetivo na intervenção médica, sendo uma grande aliada na obtenção do
melhor resultado clínico possível. Como bem mostra Rui Nunes a MBE é “um
instrumento de grande utilidade para médicos e doentes, cuja definição insere-se
em uma nova dinâmica da relação médico-doente, isto é, na procura incessante
do melhor interesse do paciente e de sua qualidade de vida” (NUNES, 2017,
p.24). Em sua obra “Ensaios em Bioética”, Rui Nunes aponta os diversos
benefícios que é possível alcançar com esta nova perspectiva da prática médica,
benefícios estes que vão além da relação interpessoal entre médico e paciente
para alcançarem a coletividade e as instituições político-sociais. Segundo Rui
Nunes:
A MBE pode também ser perspectivada como fator de afetação de
recursos e, eventualmente, instrumento de natureza política. Isso
porque o racionamento dos escassos recursos destinados à saúde
implica que estes sejam aplicados em intervenções de efetividade
comprovada. (NUNES, 2017, p.28)

1.2. A Dimensão Deontológica

Por que é necessário passar do nivel prudencial ao nivel deontológico do


julgamento no quadro de uma bioética orientada pela clínica e a terapêutica ?.
Obviamente porque o pacto de confiança possui fragilidades que devem também
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ser corrigidas normativamente. Veremos a seguir que, segundo Ricoeur, esta


necessidade está relacionada com as múltiplas funções do julgamento
deontológico. A função mais importante deste tipo de julgamento é a tarefa de
universalizar os preceitos originários do pacto de confiança estabelecido entre
médico e paciente. Estes preceitos de prudência aplicados à uma situação
particular devem ser elevados à categoria de imperativos, isto é, de normas
gerais. Diz Ricoeur:
Se o pacto de confiança e a promessa deste pacto constituem o núcleo
ético da relação que liga o médico ao paciente, é, então, a passagem
deste pacto de confiança para uma categoria normativa que constitui o
momento deontológico. (RICOEUR.P, 1996, p 29)

A partir do século XX e XXI a dimensão comportamental dentro dos


diversos setores profissionais passa a ser organizada segundo estatutos
normativos específicos cuja finalidade é definir os deveres e direitos dos
profissionais. A questão levantada por Ricoeur no âmbito da deontologia médica
se refere à necessidade do conteúdo das normas jurídicas serem
fundamentados a partir de preceitos éticos que orienta tanto a clínica quanto a
pesquisa médica. De fato, como bem observa Rui Nunes, “em alguns países que
seguem a tradição jurídica romano-gêrmanica, como a França, a deontologia
profissional foi incorporada em normas jurídicas, isto é, de um código moral de
regras de profissão, de um processo de autoregulação, a deontologia deu
origem a uma norma jurídica” (NUNES, 2017, p16) .
A deontologia profissional se estrutura então a partir do reconhecimento
de que determinados preceitos éticos devem elevar-se à categoria normativa,
tendo também a qualidade de regulamentação. Se bem observarmos o mesmo
fenômeno ocorre no Brasil. O código de ética médica brasileiro estabelece 118
normas de caratér deontológico, isto é, normas de caráter obrigatório cuja
transgressão pelo corpo médico é passível de ser punida. O artigo 23 deste
código é um exemplo de como certos princípios éticos assumem um caratér
prudencial e deontógico normativo. Segundo este artigo é vetado ao médico
“tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade
ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto”. Nota-se que este
artigo é fundamentado a partir do príncipio essencial, támbem expresso no
código de ética médica brasileiro, que diz “a Medicina é uma profissão a serviço
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da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de


nenhuma natureza”. A esta altura não estamos tratando mais de um simples
pacto de confiança entre médico e paciente, agora esta relação adquiri as
características de um acordo tácito e passa a ser regulamentada tanto por um
código de ética médica quanto por normas jurídicas.
Como bem observa Guiliod, durante séculos os códigos de ética têm sido
expressos na antiguidade sob a forma de orações, juramentos, credos, e no
mundo contemporâneo sob a forma de normas institucionais. Qualquer que seja
a forma adotada – juramentos, credos ou normas institucionais - isto implica um
imperativo moral a ser aceito tanto pelo profissional, individualmente, quanto por
suas organizações profissionais, pela comunidade religiosa ou pelo corpo
governamental. Com o progresso científico o caráter punitivo das legislações
fora se solidificando de modo cada vez mais específico. A intervenção legal
aparece com o intuito de estabelecer os limites da atuação médica enquanto
prática social, é também de sua competência fiscalizar e punir casos de
imprudência, imperícia e negligência no exercício da profissão.

1.3. A Dimensão Bioética

Chegamos ao momento onde a ética se torna bioética. Agora a discussão


alvança o nível da legitimação da própria dimensão deontológica do julgamento
médico. A bioética é um julgamento reflexivo de natureza humanista que visa
conduzir a ética a um nível onde suas dimensões teleológicas e deontológica se
encontram legitimamente integradas. Neste sentido, cabe à dimensão bioética
do julgamento estabelecer as condições de legitimidade tanto para as normas
deontólogicas quanto para as normas jurídicas. Esta discussão representa
“aquilo que não é dito nos códigos e em seu processo de codificação”
(RICOEUR.P, 1996, p 30). O que não é dito é que todas estas normas são
criadas a partir de uma fonte moral. Portanto, as normas jurídicas e normas
deontológicas devem retirar sua legitimidade de uma reflexão bioética de
natureza humanista.
A deontologia médica é fundamentada por um julgamento que se
estrutura no nível bioético. Autores como Rui Nunes reconhece que “foi essa,
talvez, a grande transformação cultural do conceito de deontologia médica: sua
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evolução para uma bioética centrada na dignidade da pessoa e em seu direito à


autoderminação” (NUNES, 2017, p,23). É o sofrimento humano e o desejo de se
livrar dele que motiva a atividade médica e sua ética terapêutica de base. Toda
prática médica possui uma dimensão social que não pode ser substimada. A
finalidade da medicina é socializar a saúde em nome da solidariedade e do bem-
estar. Neste sentido, a saúde é a modalidade própria do viver bem nos limites de
uma reflexão moral.
A estrutura base de toda ética pode ser formulada a partir do seguinte
canône: “Anseie viver bem, com e para o outro em instituições justas”
(RICOEUR.P, 1996, p 27). Este canône postulado por Ricoeur se bem
observarmos, estabelece uma rede conceitual articulada em 3 pressupostos da
“intenção ética”; a aspiração de uma vida boa, o reconhecimento da alteridade e
a mediação entre o eu e o outro pelas instituições sociais. Examinemos, pois,
cada um destes pressupostos com intuito de ao final compreendê-los como
elementos substanciais daquilo que Ricoeur designa como “ETHOS” da pessoa
humana.
O primeiro pressuposto estrutural da intenção ética é o anseio a uma vida
boa que pode ser entendido como uma espécie de “estima de si mesmo”.
Segundo Ricoeur a “estima de si” é a capacidade que nós temos de escolher
por razões refletidas tendo como referência a categoria dos valores e, assim,
iniciar no mundo, uma série nova de eventos – exercer a liberdade propriamente
dita. Portanto, “estima de si” em nada se assemelha com qualquer forma de
egoísmo ou auto-imagem positiva em sentido psicológico. Segundo Ricoeur
citado por Alino Lorenzon
Duas coisas são fundamentalmente estimáveis em si mesmas:
primeiro, a capacidade de escolher por razões, de preferir isso àquilo,
em poucas palavras, a capacidade de agir internamente; em seguida, a
capacidade de introduzir mudanças no curso das coisas, de começar
alguma coisa no mundo, em poucas palavras, a capacidade de
iniciativa. (RICOEUR, p 162, 1995)

A reflexão ética é de fato necessária somente porque temos a capacidade


intencional de fazer escolhas, sendo assim, a “estima de si” é uma condição
mesma para qualquer intenção ética. Como já vimos no inicio deste artigo
Ricoeur preserva em sua concepção ética o sentido aristótelico dos termos
“sabedoria prática” e “vida boa”. Assim, o que ele entende por “vida boa” está
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associado á prática de deliberar corretamente a respeito do que é bom e


vantajoso numa pespectiva geral. Contudo, seria apressado concluir que a ética
sob esta pespectiva estaria reduzida apenas ao plano individual, pessoal do
sujeito. O fato é que somente adentramos efetivamente no plano ético quando
pressupomos o outro, e este é o sentido da proposição “Anseie viver bem, com e
para o outro (...)” . O viver bem é correlato da “estima de si” que, por sua vez, só
adentra efetivamente ao campo da ética quando se integra à solicitude, isto é, ao
reconhecimento da reciprocidade que funda o outro como meu semelhante e
vice-versa.
A intenção ética se funda propriamente nesta reciprocidade, o ser torna-
se ético a partir deste reconhecimento de semelhança com o outro. Este é o
fundamento do princípio ético que se refere à dignidade humana. Na estima de
si a pessoa humana se aprova existir e exprime a necessidade de se saber
apreciada no seu existir pelos outros. Este é o fundo ético do que chamamos
frequentemente dignidade. O último elemento conceitual integrante do canône
ético de Ricoeur são as instituições sociais, lembremos; “Anseie viver bem, com
e para o outro em instituições justas”. Ressaltamos que o “viver bem” não é
restringido apenas ao “eu”em sua interpessoalidade, mas deve ser capaz de
estender-se ao outro , ao terceiro que está fora da relação interpessoal, que é
anônimo, mas, no entanto, é parte interessada. Cabe, então, à complexa rede
institucional mediar a relação entre aquele que estima a si e o outro que é sua
condição de existência. Neste sentido diz Lorenzon:
E, portanto, a relação anônima é impessoal até certo ponto que pode
nos ligar ao outro. Assim é que a vida boa, isto é, de acordo com os
grandes princípios e normas éticas e morais, bem como a prática ou a
efetivação da justiça se realizam e se cristalizam nas instituições. Se o
homem vivesse isolado em qualquer lugar, a discussão ética seria
perfeitamente dispensável ou sem fundamento. A própria palavra ética
supõe, em sua origem etimológica, comportamento, sendo
originariamente interligada com a política. (LORENZON , p.7, 2012)

O termo “instituição” é polissêmico tendo um amplo horizonte de


significados, em seu sentido sociológico e jurídico, por exemplo, este termo
remete à uma estrutura normativa cuja finalidade é regular as práticas sociais.
Neste horizonte significativo, as instituições e seu efeito normativo são a garantia
de estabilidade do sistema complexo gerado pelo convívio social. No entanto,
Ricoeur não compartilha totalmente desta definição de instituição; eis todo o
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mérito de sua reflexão. O termo “instituição” está vinculado à ideia de justiça


distributiva, sua função em relação ao convivio social ultrapassa a esfera
meramente normativa. Segundo Ricoeur :
Por instituição entenderemos aqui a estrutura do viver junto de uma
comunidade histórica — povo, nação, religião, etc. —, estrutura
irredutível às relações interpessoais e, no entanto, religada a elas num
sentido notável, que a noção de distribuição permitirá daqui a pouco
esclarecer. E por costumes comuns e não por regras constrangedoras
que a idéia de instituição se caracteriza fundamentalmente. Somos por
esse meio levados ao ethos de onde a ética tira seu nome‛ (RICOEUR,
1991, p. 227).

Há , aqui, uma inegável influência da reflexão de J.Rawls acerca do papel


das instituições na concretização do justo, isto é, na distribuição igualitária das
oportunidades de acesso aos bens sociais primários que identificam o ser social
dentro do espaço democrático. Sobre este ponto, vale mencionar o mérito das
reflexões de Rui Nunes em seu “Ensaios em bioética”. Na segunda parte dos
ensaios, Rui mostra a importância em compreender o acesso à saude como uma
garantia jurídica primária do sujeito que deve ser efetivada pela mediação
institucional. Diz Nunes: “A existência de um direito à proteção e à promoção da
saúde é determinante para o exercício de efetiva igualdade de oportunidades,
em uma sociedade livre e inclusiva” ( NUNES, p 105, 2017).

CONCLUSÃO

Desde a antiguidade há um certo paralelismo entre a medicina e a


prudência (sabedoria prática), quanto ao exercício do julgamento, isto é, passar
das normas, das regras gerais a casos particulares e, portanto, exercer o
julgamento em situações de incerteza. Dentro da tradição hipócratica o médico é
o homem que sabe aplicar corretamente a medida adequada a cada caso
concreto. A ética aristótelica se estrutura por analogia ao raciocinio médico
ligado à ideia de adequação (justa medida) na dieta física saudável. A escola
hipocrática suscitou a mais elevada reflexão sobre a projeção de um saber
capaz de conciliar a técnica empírica com a dimensão ética intrínseca à
atividade médica.
Vimos que as dimensões prudenciais, deontológicas e reflexiva da ação
ética se apresentam como referencial para melhor compreendermos a estrutura
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complexa do juízo médico, bem como as vulnerabilidades presentes em diversos


momentos da relação entre o médico e o paciente. Esta discussão aberta pelo
presente artigo nos convita a pensar uma bioética não somente aplicada à
terapêutica e à clínica, mas também como uma disciplina de natureza
multidisciplinar onde diversas aréas do saber como a medicina, a filosofia, o
direito, a sociologia entre outras, possam contribuir para o avanço dos estudos
em bioética.

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