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Sentiu a pétala se dissolvendo sob o instrumento metálico, triturando a carne da natureza,

comprimindo o escarlate broto. O pouco sumo escorria por uma estreita abertura lateral, enchendo
um pequeno vidro opaco quase até a metade, cada gota essencial. Cheiro era tão forte que
atravessava a máscara, enjoaria alguém não acostumado. Cheiro de carne, de sangue e de morte;
não de flores. Apodrecido, doente, de alguma deturparda forma, ainda monstruosamente natural.
A singular vela à sua esquerda ameaçava se extinguir, pouca cera restando, sua luz apenas
em pouco clareando o escuro porão, não ousando revelar os cantos onde grande parte de sujeira e do
pó se reunia, lá esquecidos. Era melhor se ninguém visse, possibilitava que fingisse que não existia.
Exatamente como Lysandro. Enquanto não o encontrassem, preferissem não o ver, podia não existir
em paz, podia apenas esperar as memórias se dissiparem.
Suor escorria pela testa do homem, melando seu rosto, as horas de trabalho combinadas com
o quente verão de Argenia já o desgastava em demasia. Eram só três flores, e ainda assim gastavam
horas para serem preparadas corretamente. Ainda teria de secar a carne, torrar no característico pó
negro, refinar em busca da essência arcana ali contida. Mas o leitoso líquido daria por enquanto,
extraira o suficiente para um ou dois pequenos milagres.
As pancadas na porta interromperam o alquímico trabalho. Não esperava visitas.
– Ocupado.
– Abre a porra da porta.
Familiar, a voz não era de todo inesperada, só não supora que fosse ser tão cedo. O suspiro
foi alto, cansado, exasperado. Empurrou o banco de madeira ao se levantar, sentiu o estalo dolorido
da coluna se desdobrando com o movimento, subiu as pequenas escadas que levavam para a baixa
porta de seu laboratório. Desprendeu as correntes, seus dedos ágeis, levemente enegrecidos pela
sugeira trabalhando com a agilidade deles esperada. – Entra rápido, não quero luz aqui dentro. Faz
mal pras flores.
A figura teve que se curvar para conseguir ali adentrar, sua forma alta e musculosa
contrastando com a figura baixa e esguia que esperava para reposicionar as trancas. Puxou a
máscara pra baixo, cruzando os braços e se virando para o visitante inesperado. – Não gosto de
surpresas, Guesh. O que você quer?
– Negócios, amigo, negócios.
– Meus negócios estão me esperando ali em cima da mesa.
– Podem continuar a esperar, arranjei uma oportunidade de ouro.
– Suas oportunidades de ouro costumam acabar com um de nós quase morto.
– Mas nunca realmente mortos!
Observou com mais atenção, agora que ele já puxara o único banquinho e sentara-se sem
nem mesmo pensar em pedir por permissão. O assento de maderia parecia deploravelmente
inadequado para tal homem de enormes proporções. A luz moribunda da vela contornava o rosto
angular, mas estranhamente liso, sem barba, sem cabelos. Sorria, um amplo, radiante, atemorizador
sorriso.
Podia mandá-lo embora, ignorar aquilo, ordenar que o dono da estalagem nunca mais
deixasse aquele imbecil entrar. Nunca devia ter contado seu endereço temporário para o amigo, pra
começar. Manteve suas costas coladas contra a porta, como se numa tentativa fútil de impedir mais
problemas de entrar. Encarou os brilhantes e estranhamente miúdos olhos negros que exibiam tão
infantil empolgação. E em desistência, abaixou a cabeça, e apenas suspirou. – Espero que seja bom.
Parecia impossível, mas o sorriso se abriu ainda mais. – Sabe o Saleminia? Chegou ontem
no porto, quase sem carga. Aparentemente estão transportando contrabando valioso, bem debaixo
do nariz das Prometidas. Encomenda pra algum nobre local, artefatos que valem uma forma. Coisa
pré-Queda.
– Alguma ideia do que é? Do valor? Suficiente pra pagar a Brigada?
– Não sei exatamente, dei uma sondada no porto, mas é difícil de conseguir algo sólido. Mas
a coisa é grande, Kalliope me passou a dica, ela viu claro, como se estivesse acordada. Uma
oportunidade única. Milhares de dracmas, talvez mais. Limpa seu nome e sobra.
– Kalliope é uma charlatã.
– Ela realmente vê o futuro. Não é tão diferente do que você fica fazendo com seus
cogumelos.
– Isso é alquimia, ciência, conhecimento. Arte. Se ela realmente fosse uma profeta, estaria
com os reais Oráculos, emtumbada no topo da Acrópole.
– Ela é uma Orácula de verdade, fora do controle da monarquia! Uma Orácula do Rochedo!
– Você é um idiota. Quanto prometeu pra mentirosa?
– Muito menos do que vamos lucrar!
A empolgação óbvia de Guesh colidia com seu bom senso. Demorou seu olhar sobre as
pétalas meio esmagadas que ainda demandavam do tratamento adequado. Tinha ao menos mais um
dia de trabalho lhe esperando ali. Poderia se esconder, poderia se proteger, poderia habitar em um
porão escuro por quanto tempo fosse necessário até a poeira abaixar. Poderia ser inteligente e
covarde. Mas se mantér escondido naquele buraco não lhe renderia redenção nenhuma. Sabia que
tinha de abraçar as oportunidades, antes de morrer naquele chiqueiro.
– Não parece ter muita defesa, nada que nós dois não possamos passar por cima.
– Vou sozinho. Se der pra me esgueirar pra dentro, eu o faço. Não quero chamar atenção,
tampouco começar uma briga com o cais todo. Fica aqui e guarda meu laboratório.
– Tu nunca me decepciona, Lys.
Pegou o frasco do sumo peneirado, um manto para cobrir o corpo, um par de adagas
dolorosamente afiadas, levemente enferrujadas. Se realmente fosse um artefato heróico, talvez ele
encontrasse respostas ali. Talvez pudesse sonhar com uma saída. Abriu pela segunda vez as
correntes que trancavam seu santuário subterrâneo, e se preparou para a tortura de confrontar mais
uma vez a cegante luz solar.
Cobriu o rosto antes de pisar na rua. Andava mais curvado do que o de costume, fingindo
fitar unicamente aos próprios pés, enquanto olhares de soslaio tentavam manter constante atenção
em tudo que o cercava. A sombra das muralhas Argenianas cobria grande parte do Rochedo, local
onde viviam apenas os que não possuiam escolhas melhores. Bem, eles e a Brigada. Lys mantinha a
atenção em busca de qualquer tom vermelho nas roupas, qualquer peitoral pavoneante
orgulhosamente estufado, qualquer risada empolgada demais. Acreditava ser capaz de lidar com um
punhado deles se tivesse, mas preferia poupar sua saúde, seus recursos, seu tempo. Tão pouco
tempo. Precisava se poupar ou terminaria em pó, como as flores. Como os deuses.
Seus olhos doíam. O céu era cintilante demais, desgosto para quem sobrevivera por dias à
luz bruxuleante da quase morta vela. Ao mesmo tempo agradecia a amaldiçoava a distância, tinha
de cruzar a cidade inteira antes de chegar na costa, tempo o suficiente para acostumar-se; para
cansar seus pés nas botas puídas; para ser parado por Brigada ou por Prometida; para inventar dez
mil motivos de reclamar. Gostava de reclamar. O mundo parecia errado se estivesse perfeitamente
feliz. Felicidade trazia lembranças, e essas de nada serviam. Âncoras.
Lys era baixo, esguio, magro. Outrora não fora tão magro, mas hoje a carne estava marcada
pela fome e pela arcana, usado e cansado; tão jovem e tão velho. Os cabelos castanhos caíam sobre
o rosto, uma máscara imunda para os olhos mortos enterrados na cova de seu rosto.
As construções se acumulavam ao seu redor, sem o distanciamento adequado das regiões
mais ricas, casebre colado em casebre, em um incompreensível labirinto lutando por um mínimo de
distância das paredes ancestrais de pedra, por um mínimo de luz. Quando mais próximo do chão,
mais próximo do fim.
Deixou o Rochedo, mas não largou o disfarçe da invisibilidade mendigante. Escorregava
pelos cantos, evitava a luz, olhava pra baixo. Igual à sujeira, todos preferiam ignorar o acúmulo de
problemas, o desconforto deixado à margem. Se tornara tão bom em desaparecer, que aprendeu a
temer a possibilidade de não se encontrar novamente.
Tropeçou até costa, encontrando o oceano, os barcos, a lua tão mais agradável no céu. Ouvia
os barulhos ecoantes de música e de festa vindo da praça central, taverna ao ar livre, onde bebidas
rolavam e as línguas se acumulavam; dialetos provenientes do mundo inteiro no porto convergidos.
Finalmente abaixou o capuz, sabendo-se seguro, e sentiu o vento ainda morno batendo contra seu
rosto. Via o Saleminia, aportado orgulhoso entre um trirreme delasiano e um ypovrychio vatílico.
As velas balançavam com o vento, e apenas uma lamparina solitária dava sinais de vida.
Sabia que a tripulação era formada de mercenários, uma trupe potencialmente perigosa. Mas
Kalliope vira que aquele era o momento de lhes passar a perna, certo? Não confiava na bruxa, mas,
caso verdade, não podia deixar a oportunidade escapar. Não novamente. Trilhou seu caminho para
longe da festa e do riso, mesclando-se às sombras noturnas, cada vez mais atraído pelo som das
ondas. Haviam trovões distantes, sobre o mar, quase chegando. Se pegasse uma tempestade poderia
ficar seriamente doente, os pensamentos vagaram. Mais um motivo para ser rápido.
Havia um guarda em frente à embarcação, não era capaz de ver feições àquela distância.
Nem mesmo conseguia saber se era guarda geral argeniana ou trabalhador contratado do navio. Não
realmente importava. Deu a volta, se afastando do alvo, demorando para chegar à água de forma
que não levantasse suspeita. Entre os pequenos pesqueiros, viu o oceano negro. Odiava se molhar.
Sua mão entrou fundo em seu bolso, sentindo o frasco pesado contendo o suco das flores de carne.
Fora difícil importar de Laodyros, e não sabia quando conseguiria outra remessa. Suas botas
ficariam úmidas por dias, suspirou. Arrancou a rolha, e bebeu em um gole só. A textura oleosa
quase entalava em sua garganta, seu estômago se revirava em repúdio. Saltou no mar antes que as
dores lhe apagassem.
Submergido no éter, temia desaparecer. Os espasmos se espalhavam por seu corpo, a carne
parecia derreter e fundir-se com a água morna, ouvia sua mente urrar em dor, rebelando-se contra a
natureza. Queria culpar a qualidade duvidosa da flor pela reação especialmente forte, queria culpar
a si mesmo por continuar mergulhando na magia, queria culpar ao mundo por ser tão quebrado.
Queria culpar qualquer coisa. Gritou bolhas. A pele se expandia, pulsando e florescendo, seus dedos
pareciam raízes, sua cabeça pulsava com a dor, o gosto salgado do mar e do sangue inundava seu
paladar, indiferenciáveis. Culpou aos deuses mortos por escreverem a tapeçaria.
Abriu os olhos celestiais, encontrou seu corpo novamente. Passara a dor, e restara o
potencial, a fagulha apodrecida que cintilava dentro de si. As braçadas foram rápidas, fortes, cheias
de energia, revitalizadas. Estava vivo, verdadeiramente vivo, vivo como ninguém realmente estava.
Seus olhos quase saltavam do resto, empolgados e avermelhados, pulsantes, liberando lágrimas de
sangue. Alcançou o casco do Saleminia, e era como se alcançasse a si mesmo. Entendia a madeira,
mesmo tecido da vida, matéria esperando o eventual apodrecer. Propagou a doença, sentiu o vibrar
rubro saindo de sua palma, corroendo tão firme casco, alimentando-se da vida inanimada. Com um
riso mudo, enfiou as mãos no agora fraco e enegrecido casco, rasgando-o sem dificuldades,
rompendo-o aberto para si e para a água.
Tinha de ser rápido, mas era guiado por sabedoria celestial. Acompanhou o mar, com a
mesma fome, correndo pelo deque de armazém, embrigado pelo cheiro. Aromas de comida, aromas
de metal e madeira, aromas de homens; todos lentamente se corroendo. Quase todos. Aquilo
brilhava distante, no extremo oposto, escondido sob o ferro e o pano. Cheirava como um sonho,
infinito e saudável. Correu para ele.
Sentiu sem ver duas figuras descendo as escadas, atraídas pelo influxo oceânico, ainda no
torpor do sono interrompido. Saboreou os gritos de língua desconhecida, mas significado óbvio.
Arremessou uma faca, atingiu escudo; arremessou outra faca, perfeito na panturrilha. O homem
desabou, gritando. Não morreria, não ali. Mas se o fizesse, não seria motivo de lágrimas. Todos
eram adubo para Hedilleia. Sua mente pensou aquilo, mesmo não sendo os seus próprios
pensamentos.
O segundo homem lhe alcançou, gingando o machado. Parou o golpe com a palma da mão,
para a surpresa do corsário. Sua carne se protegera por uma crosta de flores e cascos, endurecida,
rubra, mas não forte o suficiente. Parte de seu sangue já escorria pelo braço, melando a cruel
lâmina. Sentiu o estômago revirar, e cuspiu no rosto do corsário; mistura de saliva, de bile, de
sangue.
Oponente cambaleou pra trás, gritando, sua carne corroendo com o impacto, fumaço subindo
de seu rosto. Lys cambaleou pra trás, tropeçando, levando pela corrente, se jogando até o aroma
pulsante que lhe atraía, a possível carta para comprar a salvação. Sentia o efeito das flores se
dissipando rápido. Chutou o baú com mais força do que realmente tinha, e o viu se fragmentar.
O que surgiu era redondo, cabia em uma palma, brilhava no meio das trevas, e cheirava
como nada mais fazia. Quebrava a podridão e a doença, a morte e a decomposição; e apenas existia,
eterna e indubitavelmente. Era a única coisa que Lys podia ter certeza que existia. Não a água, não a
embarcação, não os pobres mercenários lamuriantes, não si mesmo. Apenas a esfera. Apenas o
sonho cristilizado. Não sabia o que era um sonho cristalizado, mas sabia que era. Pegou o artefato.
Ouviu os gritos. Os seus próprios, que subjagavam qualquer outro som. Seu nariz lentamente parava
de funcionar, coagulado com sangue. Fugiu por onde entrou, já ouvindo os gongos de alerta que
vinham de tão, tão longe. Nadou sem saber que nadava, hipnotizado pela luz celestial presa dentro
do vidro.
Encalhou na costa, distante do porto. Primeiro vomitou, seu sangue escapando agora quase
roxo. Tremia de frio e de dor, o surto arcano já deixando seu corpo, a magia já não mais alcançável.
Perdera uma bota no meu do oceano. Sentia frio, mesmo o ar estando ainda quente. Cuspiu, tirando
os cabelos que entravam em sua boca, tentando limpar o rosto, arrancando algumas das pequenas
flores que nasceram em sua carne. Viu a orbe. Já não sentia a mesma conexão, já perdera todo o
portal para com o arcano. Mas ainda havia luz, um reluzir dourado, um carga magnética latente. As
palavras que evocara não sabia de onde se mantinham pulsantes em sua cabeça. Sonho cristalizado.
Levantou o rosto.
A acrópole ardia, as chamas lambendo os céus, os gritos se espalhando pela cidade. Ouviu
os primeiros trovões que se aproximavam. Não fazia sentido. Não via uma alma viva além de si na
costa, mas os sons do conflito tomavam a cidade, distante, temerosos, ecoantes. Tentou se levantar,
e falhou. Vomitou novamente, sobre a esfera.
Culpou os deuses mortos.
Culpou a Brigada Carmesim, Guesh, Kalliope.
Tudo para não culpar a si mesmo.

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