You are on page 1of 67

BRASILEIROS

ESTUDAM AS
ORIGENS DA
INTOLERÂNCIA
RELIGIOSA

A CERIMÔNIA DE
POVOS INDÍGENAS
DO XINGU QUE
HOMENAGEIA OS
A CIÊNCIA AJUDA VOCÊ A MUDAR O MUNDO ED.363 JUNHO DE 2022 MORTOS

À ESPREITA
SARAMPO, MENINGITE,
POLIOMIELITE: DOENÇAS
IMUNOPREVENÍVEIS
AMEAÇAM VOLTAR COM
TUDO DEVIDO ÀS BAIXAS
TAXAS DE VACINAÇÃO.
O QUE DEU ERRADO?
COMPOSIÇÃO
JUNHO DE 2022

03
CAPA
OS RISCOS DA
BAIXA COBERTURA
VACINAL NO BRASIL
E NO MUNDO

“Se Mozart estivesse vivo, talvez não


tivesse tempo para escrever concertos”
22 Entrevista com James Suzman

37
SOCIEDADE 52
PRECONCEITO CULTURA

RELIGIOSO FOTÓGRAFO VENCE


VIRA ALVO CONCURSO COM ENSAIO
DE ESTUDOS DE RITUAL INDÍGENA

62 QUER QUE EU DESENHE? SÉCULOS DE GENIALIDADE


CAPA
TEXTO Marília Marasciulo EDIÇÃO Luiza Monteiro ILUSTRAÇÃO Daniel Almeida DESIGN Flavia Hashimoto

À ESPREITA

QUEDA NA COBERTURA VACINAL FAZ DOENÇAS


CONSIDERADAS CONTROLADAS AMEAÇAREM
GERAR NOVOS SURTOS. ESPECIALISTAS
ANALISAM COMO CONTORNAR A SITUAÇÃO
U
Um vírus altamente contagioso, transmitido por
gotículas de saliva e secreções, que causa uma
doença potencialmente letal entre não vacina-
dos. Não estamos falando do Sars-CoV-2, res-
ponsável pela pandemia que já se estende por
mais de dois anos. Trata-se do Measles morbilli-
virus, o vírus do sarampo, que tem um potencial
ainda mais destrutivo do que o coronavírus de-
vido a sua alta transmissibilidade. Se um infec-
tado transmite o microrganismo causador da
Covid-19 para até cinco pessoas, alguém com
sarampo pode espalhar a doença para outros
14 indivíduos — ou até mais.

Antes da introdução da vacina, em 1963, e da


imunização em massa, a cada três anos eram
registradas epidemias de sarampo que chega-
ram a causar 2,6 milhões de mortes, segundo a
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
Uma das prioridades do Programa Nacional de
Imunizações (PNI), criado em 1973, era vacinar
crianças e adolescentes de 9 meses a 14 anos
para alcançar uma ampla cobertura. A doença
era tão perigosa que, em 1992, o Brasil iniciou
o Plano de Eliminação do Sarampo. Em 2016,
o objetivo finalmente foi alcançado: o país re-
cebeu da OPAS o certificado de erradicação da
5

transmissão endêmica da doença, e passou os dois anos seguintes


sem registro de casos. Mas a cobertura vacinal já vinha em que-
da — no ano em que recebemos o certificado, somente 58,9% dos
municípios haviam alcançado a meta de vacinar mais de 95% das
crianças (em 2013, o índice chegou a 75%). Resultado: em 2018, fo-
ram confirmados 10.346 novos casos da doença; no ano seguinte,
o número saltou para 20.901.

A situação piorou desde então. Em 2020, mesmo com as medi-


das de restrição de circulação para tentar conter o avanço da Co-
vid-19 (e que, consequentemente, diminuíram os surtos de outras
doenças infecciosas), o país registrou 8.448 casos e dez óbitos por
sarampo, segundo o Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigi-
lância em Saúde, do Ministério da Saúde. Em paralelo, a cobertura
vacinal seguiu em queda: foi de 93,1% em 2019 para 71,49% no
ano passado. “Ter pessoas morrendo de sarampo chega a beirar o
absurdo, pois existe uma vacina segura e eficaz contra a doença”,
afirma a pediatra e infectologista Cristiana Meirelles, coordenado-
ra médica da healthtech Beep Saúde. “Mas a doença não foi erra-
dicada, porque no mundo inteiro continuava circulando. E desde
2015 fomos tendo cada vez menos pessoas vacinadas, até em 2018
voltar a ter casos. Para quem não tinha nada, um ou dois casos já é
considerado surto. E começa a nos preocupar cada vez mais.”

O problema é global. Entre janeiro e fevereiro de 2022, mais de 17


mil casos de sarampo foram relatados no mundo, um aumento de
79% em relação ao ano anterior. Embora seja a enfermidade com a
6

situação mais crítica, essa não é a única doença


imunoprevenível que vem preocupando espe-
cialistas. O sinal de alerta foi aceso para, entre
outras, meningite, febre amarela e mesmo polio-
mielite — depois de 30 anos sem casos, no iní-
cio deste ano, Israel identificou um paciente com
pólio, que foi considerada erradicada das Amé-
ricas em 1994. “A possibilidade de um caso des-
ses se deslocar para outro país é alta. A gente
tem avião, a circulação é muito grande. E se ti-
ver crianças suscetíveis, pode provocar uma epi-
demia”, destaca a médica e historiadora Dilene
Raimundo do Nascimento, docente do programa
de Pós-Graduação em História das Ciências e da
Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Entre janeiro e fevereiro de


2022, mais de 17 mil casos de
sarampo foram relatados no
mundo, um aumento de 79%
em relação ao ano anterior
OMS e Unicef
7

Recentemente, a confirmação de mais de 250 casos de varíola dos


macacos em países da Europa, nos Estados Unidos e na América do
Sul acendeu mais um alerta entre autoridades de saúde no mundo
todo. A doença viral, que é endêmica em partes da África, tem sinto-
mas parecidos com os da varíola humana: febre, dores musculares
e de cabeça, além de bolhas na pele. “É preocupante e demanda
vigilância, mas não estamos diante de uma doença nova e com po-
tencial de espalhamento como a Covid-19”, analisa o epidemiologis-
ta Diego Ricardo Xavier, pesquisador do Instituto de Comunicação e
Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT) da Fiocruz.
8

Segundo o epidemiologista, existem alguns recursos de contenção


que podem ser adotados caso necessário. Um deles é a aplicação
da vacina contra a varíola nos grupos mais expostos. A eficácia con-
tra a doença dos macacos é estimada em 85%, segundo os Centros
para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos.
“A vacinação contra a varíola parou na década de 1980, quando
a doença foi erradicada no mundo, mas caso a gente tenha que
enfrentar algo mais grave, temos como responder”, afirma Xavier.

O mesmo vale para várias outras infecções — que sequer precisa-


riam ser uma preocupação se as taxas de imunização fossem cum-
pridas. No dia 27 de abril, a Organização Mundial da Saúde (OMS)
e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) oficializaram
a preocupação: estamos diante de sinais alarmantes de que doen-
ças evitáveis pela vacinação podem voltar com tudo.

PROTEÇÃO EM QUEDA
A história das vacinas remonta ao século 18, quando o médico bri-
tânico Edward Jenner desenvolveu um imunizante contra a varíola.
Altamente contagiosa, a doença viral que provoca febre, vômitos
e lesões cutâneas assolou a humanidade em diferentes períodos.
Especula-se que essa tenha sido a causa de uma epidemia miste-
riosa que matou um terço da população de Atenas em 430 a.C., e
há registros da doença em múmias egípcias do século 3. Na Ingla-
terra de três séculos atrás, era a responsável por 10% das mortes
— até o início do experimento de Jenner.
9

Ao perceber que moradores de áreas rurais infectados com varíola


bovina pareciam ser imunes à varíola humana, o médico aplicou
em um garoto de 8 anos o pus coletado de uma lesão bovina. Após
o menino se recuperar, Jenner então aplicou nele o pus de um pa-
ciente com varíola humana — e o pequeno não ficou doente. Sur-
gia a primeira vacina. Quase dois séculos mais tarde, depois de um
esforço global para imunizar a população, a varíola foi a primeira
— e até hoje única — doença erradicada graças à vacinação.

A lógica por trás das vacinas é conhecida: o objetivo é apresentar


uma versão atenuada ou inativada de um patógeno para treinar
as defesas do organismo. “É como se fosse um spoiler de um filme,
você conta o que vai acontecer para o seu sistema imunológico e
ele se prepara para aquilo”, compara o epidemiologista da Fiocruz.
“Quando falamos em doenças virais, a vacinação é a única forma
de prevenir, não tem pílula mágica.”

Nos séculos seguintes ao experimento com a varíola, a invenção


de Jenner foi aprimorada e mais doenças passaram a ser evitáveis
graças às vacinas. Da cólera à tuberculose, do tétano à poliomieli-
te, até chegar aos recentes imunizantes contra a Covid-19 elabora-
dos em tempo recorde graças aos avanços tecnológicos, hoje esse
é o método mais eficaz para prevenir males causados por vírus ou
bactérias. Segundo estimativas da OMS, as vacinas evitam até 5
milhões de mortes a cada ano no mundo.
10

O Brasil abraçou a causa. Com exceção de um


famoso episódio que ficou conhecido como Re-
volta da Vacina — quando em 1904 a popula-
ção se recusou a aderir à campanha de vacina-
ção contra a varíola promovida pelo sanitarista
Oswaldo Cruz —, o país se tornou exemplo de
imunização. Isso graças ao PNI, que hoje ofe-
rece gratuitamente 20 vacinas para diferentes
doenças. “Com isso, criou-se uma cultura de va-
cinação na população brasileira, a cada ano eles
acrescentavam mais vacinas ao calendário”,
aponta Dilene do Nascimento.

O resultado não poderia ser outro. “Controla-


mos a difteria, o tétano neonatal, a coquelu-
che. Quem trabalha com saúde pública, princi-
palmente quem se formou na década de 1970,
viu a melhoria dos indicadores das doenças in-
fecciosas imunopreveníveis”, completa a epide-
miologista Maria da Glória Teixeira, professora

“A vacina tem esse grande desafio,


que é continuar motivando as
pessoas a se vacinarem a despeito
das doenças controladas”
Renato Kfouri, pediatra e infectologista
11

de epidemiologia de doenças infecciosas no Instituto de Saúde


Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-UFBA). “O PNI
é considerado um dos melhores programas do mundo, senão o
melhor, por manter elevadas coberturas vacinais e relativamente
homogêneas, pelo menos até 2016.”

A taxa de crianças vacinadas contra a poliomielite, por exemplo, que


se manteve acima de 95% até 2015, caiu para 84,43% no ano se-
guinte, chegando a preocupantes 69,41% em 2021. A proteção con-
tra a tuberculose, fornecida pela vacina BCG, foi de mais de 100%
até sete anos atrás (explicado por doses de reforço) para 68,63% no
ano passado. As hepatites A e B, que nunca chegaram a alcançar os
níveis desejados de imunização, estão hoje em 66,48% e 69,88%,
respectivamente. E o percentual de crianças vacinadas com as duas
doses da tríplice viral, que protege contra sarampo, caxumba e ru-
béola, caiu de 79,94% em 2015 para 51,36% em 2021. Segundo o
Unicef, atualmente três a cada 10 crianças brasileiras ainda não re-
ceberam vacinas do calendário oficial. O que deu errado?

SEQUÊNCIA DE ERROS
O primeiro ponto que explica os atuais índices vacinais é a de-
sinformação. Tal qual os rebeldes de 1904, que se recusaram a
tomar a vacina simplesmente por não entenderem como ela fun-
cionava, o ano 2000 viu ressurgir movimentos que espalham in-
formações incorretas sobre os imunizantes. O caso mais emble-
mático foi o do médico britânico Andrew Wakefield, que em 1998
publicou um artigo usando dados falsos para associar a tríplice
12

viral ao desenvolvimento de autismo em crianças — em 2010,


Wakefield foi proibido de praticar medicina no Reino Unido. Mas
isso não significou o fim do movimento hoje conhecido como an-
tivax. Cada vez mais pessoas disseminam teorias da conspiração
sobre as vacinas ou buscam deslegitimar as conquistas trazidas
por elas. “A internet trouxe esse grande problema, hoje qualquer
pessoa com um canal ou engajamento pode disseminar esse tipo
de informação [falsa sobre vacinas]”, analisa Xavier. “O dano que
isso traz para a sociedade como um todo é muito grande, e des-
fazer essas mensagens leva tempo e esforço.”

Aqui, porém, o movimento antivax ainda não ganhou tanta força


— vide a alta adesão da população brasileira à vacina contra a Co-
vid-19, fazendo o país alcançar uma ampla cobertura mesmo com
atrasos na compra de imunizantes e falta de estímulo por parte
de autoridades governamentais. “No Brasil, o que mais atrapalha
é a falta de informação, não é todo mundo que está ouvindo fa-
lar de vacina, a informação não chega a determinados locais. E há
adultos que acham que não precisam se vacinar, que é só coisa de
criança”, observa Meirelles.

Somado a isso, há ainda um conjunto de fatores que têm contribu-


ído para a queda na cobertura vacinal. Um deles é a percepção de
risco em relação às doenças controladas pelas vacinas. “A vacina é
vítima do próprio sucesso. Como eliminou a circulação de muitas
doenças, as pessoas deixam de ter medo do que não veem”, conti-
nua a infectologista da Beep Saúde. Ela relata que, mesmo sendo
13

especialista em sarampo, nunca tinha atendido


um paciente com a doença até um ano atrás. O
pediatra e infectologista Renato Kfouri, da So-
ciedade Brasileira de Imunizações (SBIm), com-
pleta: “a vacina tem esse grande desafio, que é
continuar motivando as pessoas a se vacinarem
a despeito das doenças controladas. Antes as
pessoas conviviam com casos da doença, co-
nheciam vítimas de sequelas da poliomielite,
do sarampo. Com o sucesso das vacinas, elas
não se sentem mais tão motivadas a se vacinar
como no passado.”

Outro motivo que explica as quedas vacinais é lo-


gístico. Embora conte com uma ampla estrutura
de 38 mil salas de vacinação espalhadas por todo
o Brasil, a maioria das unidades só atende em

“É possível tirar o atraso


[da vacinação], nós temos
capacidade técnica e operacional
para isso, só precisamos de
gestão e de ações coordenadas”
Maria da Glória Teixeira, epidemiologista e professora da UFBA
14

horário comercial. “Nem sempre é fácil faltar ao trabalho para ir à


sala de vacinação, e o calendário da criança exige ir mais de 10 vezes
em um ano. Isso precisa ser corrigido”, opina a professora da UFBA.
Com a pandemia de Covid-19, o problema se agravou. “As pessoas
ficaram com receio de ir até os postos, por questões de locomoção,
por não poder se aglomerar”, continua Teixeira, que lembra, no en-
tanto, que a queda já acontecia antes mesmo da pandemia.

O último fator é político. Pela primeira vez desde sua criação, o


PNI enfrentou oposição do próprio presidente da República, Jair
Bolsonaro, e de integrantes do governo que adotaram o discur-
so antivacina. Até um dos principais símbolos das campanhas de
vacinação, o Zé Gotinha, criado em 1986, teve sua imagem de-
turpada pelos filhos do presidente e apareceu armado. A crise se
agravou quando, em junho de 2021, a coordenadora do progra-
ma pediu exoneração do cargo, que ficou sem um novo ocupante
pelos cinco meses seguintes.

Para piorar, em 2022 houve redução de 20% no orçamento do


Ministério da Saúde, responsável por distribuir recursos para o
Sistema Único de Saúde (SUS) e o PNI. “Muitos problemas de saú-
de ficaram para trás durante a pandemia, temos 1,7 milhão de ci-
rurgias eletivas atrasadas. O SUS já tem tudo isso para tratar, não
tem folga. Se não conseguirmos evitar também as doenças para
as quais já existe vacina, teremos um problema grande”, alerta
Diego Xavier, da Fiocruz.
15

NUNCA É TARDE PARA SE VACINAR


A boa notícia, destacam os especialistas, é que a situação pode ser
revertida. “É possível tirar o atraso, nós temos capacidade técnica
e operacional para isso, só precisamos de gestão e de ações coor-
denadas”, aponta Teixeira. Segundo a epidemiologista, em um ou
dois anos seria possível recuperar a cobertura — mas isso depen-
deria de campanhas e, principalmente, da sociedade.

Em nota enviada à reportagem, o Ministério da Saúde assegurou


que tem realizado o monitoramento da situação epidemiológica
das doenças imunopreveníveis que integram o PNI, assim como
o diagnóstico das quedas dos índices de cobertura a fim de me-
lhorar os indicadores. “O PNI reforça que a vacinação foi e é uma
das maiores intervenções em saúde pública já implementadas,
com forte impacto no controle das doenças imunopreveníveis,
16

reduzindo significativamente a morbidade e mortalidade dessas


doenças, principalmente entre as crianças, salvando incontáveis
vidas”, diz a pasta no comunicado.

Em dezembro de 2021, o Ministério lançou, em parceria com o Insti-


tuto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz),
o projeto Reconquistas das Altas Coberturas Vacinais. Os objetivos
são identificar as causas das baixas coberturas em 16 municípios
do Amapá e 25 da Paraíba (segundo a Fiocruz, estados com mais
casos de sarampo e maior facilidade logística, respectivamente),
além de elaborar um plano de ação para cada município até 2025,
promover soluções para desafios locais e fortalecer o sistema de
integração de dados das coordenações nacional, estadual e mu-
nicipal de imunizações. A partir disso, a metodologia deverá ser
aplicada em todo o país. “Se esse plano for mesmo executado, ra-
pidamente recuperamos a cobertura vacinal”, destaca Dilene Rai-
mundo do Nascimento.

Se tem algo que a Covid-19 nos ensinou é a importância da imuniza-


ção para a saúde pública: enquanto houver pessoas não vacinadas,
todos correm risco. “Quando tínhamos a Europa com altos índices
[de Covid-19], na África seguia muito baixo. Aí apareceu a ômicron e
em poucos dias chegou ao mundo todo”, lembra Xavier. Agora, pre-
cisamos colocar a lição em prática para não arriscar retroceder e ver
a volta de cada vez mais doenças que poderiam ser evitadas.
17

PANORAMA DA VACINAÇÃO
CONHEÇA AS DOENÇAS PARA AS QUAIS O PLANO NACIONAL DE IMUNZAÇÕES (PNI) PREVÊ
VACINAS E A SITUAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA DE CADA UMA DELAS NO BRASIL

TUBERCULOSE HEPATITE B ROTAVÍRUS


Causada pela bactéria Ataca as células do fígado e Doença diarreica aguda cau-
Mycobacterium tuberculosis, é transmitida pelo vírus VHB, sada pelo rotavírus, um vírus
conhecida como bacilo de presente no sangue, na sali- de RNA. Pessoas de todas as
Koch, afeta principalmente va, no sêmen e em secreções idades são suscetíveis, mas
os pulmões e é transmitida vaginais. Também pode ser crianças menores de 5 anos
por aerossóis . repassada por via perinatal, são as que mais manifestam
durante ou após o parto. a gastroenterite típica do
PREVALÊNCIA: foram regis- quadro. A transmissão é via
trados 66.271 casos novos PREVALÊNCIA: estimam-se fecal-oral: eliminado nas fe-
em 2020, ou 32 por 100 mil 27.355 casos entre 1999 e zes, o vírus contamina água
habitantes. 2020, ano em que apresen- ou alimentos consumidos.
tou uma taxa de 2,9 casos a
VACINAÇÃO: a vacina BCG cada 100 mil habitantes. PREVALÊNCIA: entre 2010
(Bacillus Calmette-Guérin) é e 2019, 2.103 casos foram
aplicada no SUS em recém- VACINAÇÃO: crianças recebem confirmados em crianças
nascidos ou até os 5 anos de quatro doses: ao nascer, aos 2, menores de 5 anos.
idade em dose única. Não é 4 e 6 meses de vida. Adultos
recomendada a vacinação não vacinados devem tomar VACINAÇÃO: deve ser ad-
para adultos que não tenham três doses. ministrada em duas doses,
tomado na infância. preferencialmente aos 2 e 4
↓ A cobertura vacinal vem meses de vida, por via oral.
↓ Taxa de cobertura vacinal caindo desde 2018, quando
em queda. Até 2018, estava estava em 88,4% para crian- ↓ A taxa de cobertura vaci-
acima de 95%; em 2021, ficou ças de até 30 dias. O ano de nal chegou a 91,33% em 2018
em 68,63%. 2021 terminou em 61,57%. e caiu para 70,08% em 2021.
18

MENINGITE DOENÇAS DOENÇA


(HAEMOPHILUS PNEUMOCÓCICAS MENINGOCÓCICA
INFLUENZAE B) Grupo de infecções causadas Tipo de meningite bacte-
Inflamação nas meninges, pela bactéria Streptococcus riana causada pelo menin-
membranas que envolvem o pneumoniae, ou pneumo- gococo (Neisseria meningi-
cérebro e a medula espinhal. coco. Inclui doenças como tidis). É uma doença grave,
Pode ser causada por vírus, pneumonia, meningite,
que em alguns casos pode
fungos, protozoários, vermes sepse, artrite, sinusite, otite,
conjuntivite e bronquite. A
levar à morte entre 24 e 48
e bactérias — o tipo mais
bactéria é disseminada por horas a partir dos primei-
grave. Uma das bactérias
que causam a doença é a Ha- gotículas de saliva ou muco ros sintomas.
emophilus influenzae b (Hib), quando pessoas infectadas
transmitida via secreções tossem ou espirram. Atingem PREVALÊNCIA: segundo o
nasais e que se instala no todas as idades Ministério da Saúde, dos
aparelho respiratório. Afeta 265.644 casos confirmados
principalmente crianças de PREVALÊNCIA: estima-se de meningite entre 2007
até 5 anos. que ocorram, em média, 272 e 2020, 26.436 foram de
mil internações e 71 mil mor- doença meningocócica.
PREVALÊNCIA: a meningite tes por ano de pessoas com
Com a introdução da vacina
por Hib é o tipo menos co- mais de 60 anos por doenças
meningocócica C a partir
mum: no Brasil, foram 1.708 pneumocócicas.
de 2010, a incidência caiu
casos registrados entre 2007
VACINAÇÃO: a vacina 10-va- de 1,5 caso para 0,4 caso a
e 2020.
lente, que combate dez tipos cada 100 mil habitantes de
VACINAÇÃO: a pentavalente de bactérias pneumocócicas, 2017 a 2020.
precisa ser aplicada em três é aplicada em duas doses, aos
doses aos 2, 4 e 6 meses de 2 e 4 meses de idade, mais um VACINAÇÃO: a vacina me-
idade. Crianças com mais de reforço aos 12 meses. ningocócica C (conjugada)
5 anos geralmente não pre- Idosos com comorbidades protege contra o tipo mais
cisam ser vacinadas contra a contam com duas doses, comum de meningococo no
Hib. uma da 13-valente e outra da
Brasil. É aplicada em duas
23-valente. Quem não apre-
doses, aos 3 e 5 meses de
↓ Cobertura vacinal em que- senta doenças crônicas pode
vida, com um reforço aos
da: de 88,49% em 2018 para tomar a vacina em clínicas
69,88% em 2021. privadas. 12 meses.

↓ A taxa de vacinação vem ↓ Cobertura vacinal em


caindo desde 2018: passou queda desde 2018: foi de
de 95,25% para 73,05% no 88,49% para 70,49% em
ano passado. 2021.
19

FEBRE AMARELA POLIOMIELITE HEPATITE A


Doença viral infecciosa Também conhecida como Infecção que ataca o fígado
transmitida por mosqui- paralisia infantil, embora causada pelo vírus VHA. É
tos vetores, sendo o mais possa afetar adultos, é uma transmitida via oral-fecal,
comum o Aedes aegypti. doença contagiosa causada quando se tem contato
pelo poliovírus que atinge
Entre 20% e 50% dos que com pessoas, água ou
o sistema nervoso. A trans-
desenvolvem febre amare- missão é pelo contato com
alimentos contaminados,
la grave podem morrer. fezes ou secreções bucais de principalmente em locais
pessoas infectadas. Pode ou com saneamento básico
PREVALÊNCIA: embora não provocar paralisia. deficiente.
tenha sido registrado um
processo de reemergência PREVALÊNCIA: atualmente, a PREVALÊNCIA: é o segundo
do vírus a partir de 2014, doença é considerada erra- tipo mais comum de hepa-
ampliando as áreas de dicada no Brasil e nas Améri- tite, representando 24,4%
recomendação de vacina- cas. Permanece endêmica no (168.579) dos casos con-
ção, a febre amarela ainda Afeganistão e no Paquistão. firmados no Brasil entre
tem baixa incidência. Entre 1999 e 2020. No último
VACINAÇÃO: a Vacina Oral
junho de 2020 e abril de levantamento da série,
Poliomielite (VOP), ou “vacina
2021, foram notificados 287 da gotinha”, deve ser aplicada alcançou uma prevalência
casos suspeitos, dos quais em quatro doses, aos 2, 4, 6 de 0,2 caso a cada 100 mil
235 foram descartados e e 15 meses de idade. Injeções habitantes.
cinco confirmados. de reforço devem ser aplica-
das anualmente até a criança VACINAÇÃO: a vacina é um
VACINAÇÃO: a vacina é completar 5 anos. Pessoas em antígeno do vírus inativa-
feita com o vírus atenua- viagem para os países onde a do. Deve ser administrada
do, aplicada em uma dose. pólio ainda não foi erradicada em duas doses a partir dos
Toda pessoa que reside em devem considerar reforçar a 12 meses ou até os 5 anos.
vacinação.
áreas de risco deve se imu- Adultos que não foram va-
nizar a partir dos 9 meses cinados durante a infância
de idade. É recomendado
↓ Taxa de cobertura vacinal só têm acesso à imunização
em queda: de 89,54% em
o reforço aos 12 meses. 2018 para 69,41% em 2021. na rede privada, e devem
Adultos que vão viajar para tomar duas doses com seis
regiões endêmicas também meses de intervalo.
precisam se imunizar.
↓ Segundo o SUS, a cober-
Por ter aplicação restrita, tura vacinal em 2021 foi de
a cobertura vacinal no ano 66,48%. O ápice da série
passado foi de 57,33%, histórica foi em 2015, com
com uma média de 50,93% 97,07% da população-alvo
entre 2010 e 2021. imunizada.
20

SARAMPO CAXUMBA RUBÉOLA


Doença viral grave sobre- Infecção causada por É transmitida pelo Rubi-
tudo para crianças meno- um vírus da família virus, e seu maior risco é
res de 5 anos. Pode deixar Paramyxovirus. Provoca a Síndrome da Rubéola
sequelas e até levar à inflamações em glândulas, Congênita (SRC), que atin-
morte. A transmissão ocor- principalmente nas ge fetos ou recém-nascidos
re por secreções expelidas parótidas, localizadas cujas mães se infectaram
por tosse, fala, espirros, próximas às bochechas. Daí durante a gravidez.
respiração ou aerossóis em o aspecto de inchaço que
ambientes fechados. faz a doença também ser PREVALÊNCIA: o Brasil não
conhecida como “papeira”. apresenta casos confir-
PREVALÊNCIA: em 2016, o A transmissão ocorre por mados de rubéola desde
Brasil recebeu a certifica- vias aéreas, gotículas de 2015, ano em que recebeu
ção da eliminação do vírus. saliva ou contato direto o certificado de eliminação
Até que voltou a ter novos com infectados. da doença.
surtos, chegando a 20.901
casos em 2019. Nas 12 pri- PREVALÊNCIA: o Ministério VACINAÇÃO: o esquema é o
meiras semanas de 2022, 13 da Saúde não tem mesmo que para sarampo
episódios foram confirma- dados consolidados e caxumba.
dos e 98 permanecem sob sobre a doença, já que
investigação. sua notificação não é TÉTANO
compulsória. Infecção grave, não con-
VACINAÇÃO: única forma de tagiosa, causada por uma
prevenção, a primeira dose VACINAÇÃO: a vacinação toxina produzida pela bac-
é com a vacina tríplice (que, contra a caxumba segue o téria Clostridium tetani.
além de sarampo, imuniza mesmo esquema para o sa-
contra caxumba e rubéola), rampo: primeira dose com PREVALÊNCIA: entre 2012
aos 12 meses. A segunda é a tríplice aos 12 meses e a e 2021, foram registrados
com a tetraviral (que tam- segunda dose com a tetra- 2.381 casos de tétano no
bém previne a catapora), valente aos 15 meses. Brasil. No ano passado,
aos 15 meses. Adultos que foram 0,07 caso para 100
não tomaram na infância, É recomendada a adultos mil habitantes.
não completaram o esque- que não tomaram e tam-
ma ou têm dúvidas quan- pouco foram infectados na VACINAÇÃO: o esquema
to ao seu status vacinal infância ou adolescência, vacinal contra o tétano é
também devem receber o com exceção de gestantes o mesmo da difteria: três
imunizante. e imunodeprimidos graves. doses da pentavalente aos
2, aos 4 e aos 6 meses de
↓ Em 2021, a cobertura va- vida; dois reforços com a
cinal com a primeira dose DTP aos 15 meses e 4 anos
da tríplice ficou em 73,05%, de idade. Adultos devem
e a segunda dose, com a tomar um reforço da dT a
tetraviral, em 5,71%. cada 10 anos.
21

DIFTERIA VARICELA HPV


Doença respiratória cau- Mais conhecida como cata- O papilomavirus humano
sada pela bactéria Coryne- pora, é causada pelo vírus infecta pele ou mucosa
bacterium diphtheriae. É Varicela-Zoster. O contágio oral, genital e anal, em
transmitida por contato di- que ocorre por meio do mulheres e homens. A
reto com pessoas doentes contato com o líquido das transmissão ocorre prin-
ou portadores assintomá- bolhas na pele, além de cipalmente por via sexual,
ticos através de gotículas tosse, espirro, saliva ou mas também de mãe para
expelidas ou por contato objetos contaminados. filho na gravidez, por saliva
com as lesões cutâneas ou objetos contaminados.
provocadas pela infecção. PREVALÊNCIA: não há
dados precisos, uma vez PREVALÊNCIA: o último
PREVALÊNCIA: segundo o que somente casos graves estudo completo sobre
SUS, no ano de 2020 ocor- de internação ou mortes a prevalência do HPV foi
reram dois casos confirma- são registrados de forma divulgado em 2018 pelo
dos de difteria no Brasil. compulsória. A estimativa Ministério da Saúde. A pes-
Entre 2008 e 2019, dez do Ministério da Saúde é quisa apontou que 53,6%
pessoas morreram pela de cerca de 3 milhões de da população entre 16 e 25
doença. casos por ano. anos é portadora do vírus.

VACINAÇÃO: para combater VACINAÇÃO: em 2013 o VACINAÇÃO: a vacina con-


a difteria, as crianças de- Ministério da Saúde intro- tra o HPV é oferecida pelo
vem tomar as três doses da duziu a imunização contra SUS em duas doses com
vacina pentavalente: aos a varicela na vacina tetra- intervalo de seis meses
2, aos 4 e aos 6 meses de viral, que também protege para meninas de 9 a 14
vida; e ainda dois reforços contra sarampo, caxumba e anos e meninos entre 11 e
com a vacina DTP (difteria, rubéola. Deve ser adminis- 14 anos. Também é reco-
tétano e coqueluche): aos trada para crianças entre mendada para pessoas
15 meses e 4 anos de idade. 15 meses e 2 anos como se- com HIV e transplantados
Já os adultos devem tomar gunda dose da tríplice viral. na faixa de 9 a 26 anos.
um reforço da dT (difteria e Já a vacina específica para
tétano) a cada 10 anos. varicela não é aplicada de ↓ Em 2020 apenas 55%
forma universal pelo SUS. das meninas de 9 a 14 anos
↓ Nos anos de 2019, 2020 tomaram as duas doses
e 2021, a cobertura da ↓ A cobertura da tetraviral da vacina. Já a cobertura
penta foi de 70,76%, 77,13 e caiu de 79,04%, em 2015, vacinal para meninos foi de
64,38%, respectivamente. para 5,71%, em 2021. apenas 36,4%.
22

ENTREVISTA

“Se Mozart
estivesse vivo,
talvez não
tivesse tempo
para escrever
concertos”

COM James Suzman POR Marília Marasciulo


Em livro recém-lançado no Brasil,
antropólogo sul-africano traça
abordagem histórica sobre a complexa
relação humana com o trabalho e
analisa por que precisamos repensá-la

A
A humanidade nunca alcançou tamanho nível de ri-
queza. Ao mesmo tempo, temos a impressão de que
trabalhamos cada vez mais e que estamos sempre
estressados. Entender esse dilema sob uma perspectiva
histórica foi o que levou o antropólogo sul-africano James
Suzman a escrever Trabalho: uma história de como utiliza-
mos nosso tempo. Publicado em 2020, o livro foi lançado no
Brasil em maio pela editora Vestígio.

Segundo suas pesquisas, a noção de trabalho que ainda car-


regamos nos dias de hoje remete ao início da Era Agrícola,
quando a espécie humana deixou de ser caçadora-coletora
para se assentar em comunidades rurais — que depois evo-
luíram para as grandes civilizações. “Havia uma espécie de
equivalência natural entre trabalho e recompensa. E isso
moldou todas as instituições contemporâneas”, diz o autor,
em entrevista a GALILEU.

Nascido em Joanesburgo, na África do Sul, Suzman atualmen-


te é pesquisador na Universidade de Cambridge, na Inglater-
ra. Dedicou sua carreira a estudar os povos Sãs, constituídos
24

por um conjunto de etnias autóctones de caçadores-coleto-


res em territórios que abrangem Botsuana, Namíbia, Angola,
Zâmbia, Zimbábue e África do Sul. Essas pesquisas o ajuda-
ram a entender como nossos ancestrais lidavam com o traba-
lho e de que forma essa relação evoluiu ao longo de milênios.

“Estamos em um dos únicos momentos da história em que


podemos ver as consequências das nossas ações futuras e
enfrentar a provação de fazer as mudanças antes que o de-
sastre ocorra”, afirma. Além da perspectiva histórica, Suz-
man fala sobre os legados da mentalidade agrícola na eco-
nomia e na sociedade, a importância das leis trabalhistas e
o que podemos fazer para repensar e mudar nossa relação
com o trabalho. Leia a entrevista a seguir.

QUANDO E COMO O TRABALHO SE TORNOU TÃO IMPORTANTE PARA


OS HUMANOS?

Acho que começou a se tornar importante depois da


invenção da agricultura. Pensemos na longa jornada
histórica da humanidade. Sabemos que o Homo sa-
piens moderno surgiu há aproximadamente 340 mil
anos. E hoje a maioria de nós [cientistas] reconhece
que os primeiros ancestrais dos Homo sapiens eram
provavelmente tão inteligentes e capazes como somos
atualmente. Então, nesse período da história humana,
em 95% do tempo fomos caçadores-coletores.
25

Em estudos recentes que fizemos com sociedades


caçadoras-coletoras atuais, percebemos que elas
tendem a focar todo o trabalho nas necessidades
do presente. Evidências de armazenamento de co-
mida, por exemplo, estão ausentes dos registros
históricos daquela época. Até o início da agricultu- JAMES SUZMAN
ra, eles tinham o que chamamos de economia de PhD, o antropólogo
sul-africano é
retorno imediato. E isso, claro, é fundamentalmen- especializado nos
te diferente do que a maioria de nós faz hoje, em povos khoisan, que
vivem em países
que a maior parte do nosso trabalho é para reali- do sul da África.
zar algum desejo do futuro. Atualmente, é
pesquisador em
Estudos Africanos
COMO A MENTALIDADE DO TRABALHO DURO MOLDOU NOSSAS na Universidade de
SOCIEDADES? Cambridge e diretor
da Anthropos Ltd.,
think tank que
Escrever este livro, em parte, foi para tentar en- aplica métodos
tender isso como um fenômeno histórico. Por que, antropológicos para
resolver problemas
quando nossas necessidades básicas se encon- sociais e econômicos
tram atendidas, continuamos a trabalhar duro? contemporâneos.

Isso ocorre porque somos criaturas culturais. So-


mos criados pelo nosso contexto, pelo que conhe-
cemos, pelas moralidades que herdamos, pelas
maneiras antigas de fazer coisas. Tivemos cerca
de 10 mil anos de expansão agrícola crescente e,
durante esse período, todas essas ideias e nor-
mas foram se tornando profundamente enraiza-
das no tecido social e cultural. E isso continuou a
26

ser amplificado até o início da Era Industrial. Até


então, havia uma clara correspondência entre o
quão duro você trabalhava e o quanto você ga-
nhava. Havia uma espécie de equivalência natural
entre trabalho e recompensa, e isso moldou to-
das as instituições contemporâneas.

E COMO TODO ESSE PROCESSO NOS AFETA HOJE?

A dificuldade é que essas normas culturais evolu-


íram em um ritmo diferente, e para responder a
um conjunto de problemas diferentes. Atualmente,
estamos em um mundo onde a energia produzida
pelo trabalho é desproporcional. Não há mais equi-
valência, embora a gente ainda esteja organizando
nosso trabalho como se fôssemos agricultores. Ain-
da temos essa ideia de que a preguiça é um pecado
terrível. Consideramos positiva a resposta instinti-
va de nos sentirmos culpados por não trabalhar. E,
ao mesmo tempo, continuamos dizendo para nós
mesmos, apesar de todas as evidências contrárias,
que o trabalho duro gera recompensas, que pesso-
as ricas construíram suas fortunas com trabalho. E
na verdade é o contrário disso.

Estamos numa era em que o capital gera novas


fortunas e que pessoas que trabalham mais e mais
27

duro tendem a ser, na verdade, as mais pobres.


Então, estamos nesta situação: temos instituições,
ideias, jeitos de pensar, crenças e normas que her-
damos do passado, mas que não funcionam mais
tão bem. Ainda assim, estamos agarrados a elas
e continuamos a mantê-las como a base do nosso
sistema político e econômico.

ENTÃO, ESSA NOSSA RELAÇÃO DESEQUILIBRADA COM O TRA-


BALHO PODERIA SER CONSIDERADA TAMBÉM UMA DAS CAUSAS
DAS TENSÕES SOCIAIS?

Se olharmos para as grandes civilizações, como


o Egito ou os Maias, a maior parte das pessoas
vivia em áreas rurais, onde havia essa simples re-
lação entre energia, prosperidade e trabalho. Mas
isso mudou depois da revolução dos combustí-
veis fósseis. Desde o início da Revolução Indus-
trial, e conforme fomos ficando mais industriali-
zados e mecanizados a cada avanço tecnológico,
até chegarmos à revolução digital, acabamos por
dar muito mais valor a quem é dono dos recursos,
ou das máquinas, porque são elas que realizam a
maior parte do trabalho. O trabalho deixou de ser
a causa primária da criação de riquezas, e a pro-
priedade dos ativos tornou-se o principal motor
da criação dos próprios ativos.
28

Desde então, principalmente a partir da revolução


digital, vemos essa crescente desigualdade glo-
bal. Essa desigualdade que não é baseada no quão
duro você trabalha, mas em quem possui os ativos
e quem não os possui. O conjunto desses ativos
cria mais valor, rendimentos, dividendos e assim
por diante. E essa economia baseada em ativos,
aliada a uma grande desigualdade, produz muita
tensão social. O que, do meu ponto de vista, pa-
rece ser o motivo oculto por trás de muita dessa
destruição política que vem ocorrendo na última
década. Isso é parte do legado de ter um sistema
econômico e de recompensa laboral baseado na
mentalidade agrícola em uma era tecnológica. Não
funciona. É como tentar ligar o motor de um carro
abastecido com leite.

A MENTALIDADE DE ABUNDÂNCIA E ACÚMULO TRAZ TAMBÉM


CONSEQUÊNCIAS AMBIENTAIS. QUAL O TAMANHO DO IMPACTO
DISSO PARA O PLANETA?

Nós vivemos em uma era de extraordinária vul-


nerabilidade ambiental, e mesmo assim os go-
vernos estão cegos pelo crescimento econômico.
Tudo diz respeito a crescer e crescer ano a ano,
um ciclo perpétuo de crescimento e consumo.
29

Mas quando paramos para realmente ver, quais


são os benefícios do crescimento eterno? Porque
a única coisa que me parece particularmente cla-
ra é que criar esse foco em crescimento perpétuo
é também criar uma cultura baseada em coisas
descartáveis, em consumo excessivo de energia.
Nada é feito para durar, tudo agora é descartável.
Parte disso é porque queremos que as pessoas
fiquem comprando coisas melhores e substituin-
do-as, em vez de reciclar ou reutilizar.

NO LIVRO, VOCÊ CITA A FAMOSA TESE DO ECONOMISTA JOHN


KEYNES DE QUE EM 2030 AS PESSOAS TRABALHARIAM MENOS.
HOJE, TEMOS MUITA ABUNDÂNCIA, MAS TAMBÉM ESTAMOS TRA-
BALHANDO MAIS DO QUE NUNCA. O QUE DEU ERRADO?

Gostamos de pensar em nós mesmos como pessoas


de criatividade infinita e no controle. Não acredito
nisso. Acho que somos seres culturais muito foca-
dos em hábitos. Criamos essas instituições um tanto
complicadas, que uma vez criadas se tornam muito
difíceis de desemaranhar. Acredito que a maioria
das pessoas reconhece que essas coisas que cria-
mos para organizar nossa vida, a política e a eco-
nomia, não servem mais. Mas o desafio de desfazer
isso é assustador. Acho que os humanos foram pro-
jetados e evoluíram para gostar da continuidade.
30

“Continuamos dizendo a nós


mesmos, apesar de todas as
evidências, que o trabalho
duro gera recompensas”
Suzman critica a mentalidade de que trabalhar muito nos levará ao sucesso

E há um bom motivo histórico e cultural para o


fato de sermos adaptados a desenvolver siste-
mas, buscar a repetição e temer a insegurança.
Em muitos pontos da história, as pessoas ficaram
teimosamente agarradas a ideias simplesmen-
te por terem medo das alternativas. Isso explica
por que as grandes mudanças normalmente só
ocorrem quando algo terrível está para aconte-
cer, quando todo o sistema está em vias de co-
lapsar. E eu acho que o grande desafio que temos
pela frente é que agora estamos em um dos úni-
cos momentos da história em que podemos ver
as consequências das nossas ações futuras e en-
frentar a provação de fazer as mudanças antes
que o desastre ocorra.
31

NA SUA VISÃO, O QUE DEVEMOS FAZER PARA ROMPER COM ESSES


HÁBITOS E, TALVEZ, TRABALHAR MENOS?

O objetivo não necessariamente é esse. Alcançar


isso é um subproduto de fazermos as coisas direi-
to. Mas a verdade é que eu não sei qual é a res-
posta. E acho que ninguém sabe, porque estamos
em um mundo que muda rápido e constantemen-
te, com novas tecnologias surgindo. Sabemos que
os sistemas antigos não servem mais para seus
propósitos. Isso é bem óbvio, porque não conse-
guimos mais resolver nossos problemas com eles.
Os custos ambientais, a desigualdade emergente:
nós não sabemos como substituir isso, porque não
tentamos coisas diferentes.

Para mim, a chave é desenvolvermos o que chamo


de uma mentalidade experimental. Uma aborda-
gem como a de um engenheiro quando se depa-
ra com um novo desafio e precisa experimentar
novas tecnologias e ferramentas, e estar prepa-
rado para falhar. É ter humildade de reconhecer
que não temos as respostas em uma bandeja. Eu
gostaria que tivéssemos mais líderes políticos que
propusessem nas eleições: “O que nós vamos fa-
zer é experimentar tal coisa, vamos tentar isso e
ver se funciona.”
32

MAS VOCÊ ACHA QUE O MUNDO ESTARIA PREPARADO PARA ESSE


TIPO DE MUDANÇA?

Impressionantemente, quando a mudança nos é


imposta, acabamos por nos tornar muito bons nela.
Sabe, se há três anos você dissesse para mim que
eu passaria a maior parte de 2020 na minha casa,
somente com meus filhos e minha esposa, sem ver
mais ninguém, e a maior parte do país também o
faria, e que isso aconteceria de forma razoavelmen-
te eficaz, eu não acreditaria. Mas somos incrivel-
mente adaptáveis quando forçados, quando reco-
nhecemos a virtude de fazer algo. Então, o ponto é
como nos fazer ficar preparados. De novo, eu não
sei se estamos prontos, mas essas coisas costumam
acontecer em resposta a algum desastre externo.

“Mais pessoas trabalham


mais e mais, enquanto o
valor real [do trabalho] é
criado pelas máquinas”
James Suzman analisa o papel das leis trabalhistas no cenário econômico atual
33

E eu acho que, em termos de hábitos de trabalho,


nós vimos uma mudança gigantesca em como os
funcionários de escritórios trabalham após o surgi-
mento da Covid-19. Ela causou uma mudança funda-
mental e abriu uma linha de diálogo sobre o futuro
do trabalho de uma maneira que nós não acháva-
mos que fosse possível há dois ou três anos.

NOSÚLTIMOSANOS,VIMOSMUITOSDIREITOSTRABALHISTASSEN-
DO DESMANTELADOS NO BRASIL, LEVANDO AS PESSOAS À ECONO-
MIA INFORMAL. E ISSO TAMBÉM ACONTECEU DE FORMA ACENTUA-
DA COM A PANDEMIA, EM QUE MUITOS FICARAM DESEMPREGADOS
E OS TRABALHOS TRADICIONAIS FORAM PERDIDOS. QUAL A IM-
PORTÂNCIA DOS DIREITOS TRABALHISTAS PARA MANTERMOS UMA
ABORDAGEM SAUDÁVEL EM RELAÇÃO AO TRABALHO?

No curto prazo, são essenciais. Mas não acho que


eles são tão importantes quanto foram no passado.
No último século, ao mesmo tempo em que houve
sindicalização, tivemos uma diminuição no valor do
trabalho humano. Mais pessoas trabalham mais e
mais, enquanto o valor real é criado pelas máquinas.
Hoje existem muitas empresas e não é mais possível
ameaçá-las com greves, porque elas não dependem
de pessoas. Então, como o trabalho perdeu valor, as
proteções trabalhistas se tornaram menos efetivas.
34

Nós precisamos pensar que não se trata mais ape-


nas de salário. Eu gostaria de ver, por exemplo,
os sindicatos realmente advogando para que os
trabalhadores tenham participação societária nas
empresas. Nós vivemos em uma economia basea-
da em ativos, em riqueza e valor em vez de traba-
lho duro e salário. Então acho que o mais eficaz é
encontrar mecanismos para garantir que todos te-
nham algum tipo de acesso ao valor que é gerado.
Embora as proteções trabalhistas sejam absoluta-
mente vitais, temos que reconhecer que a econo-
mia está mudando e pensar em outras maneiras
de não apenas proteger, mas capacitar os mais po-
bres e marginalizados em nossa sociedade.

E COMO VOCÊ VÊ O FUTURO DO TRABALHO?

Vou falar minha ideia caso resolvêssemos todas as


questões econômicas. Para mim, os humanos são
criaturas estranhas que desejam trabalhar. Somos
criaturas com propósito. Quando não temos trabalho
para fazer, ficamos perdidos e entediados. E costu-
mamos usar a palavra “trabalho” para descrever nos-
sas tarefas. Eu, por exemplo, no final do dia cozinho.
Mas para um monte de gente isso é uma chateação,
algo que elas costumam pagar para alguém fazer ou
reclamam quando precisam fazer para os outros.
35

Quando olhamos para o mundo ao nosso redor,


neste momento muitos estão trabalhando em coi-
sas realmente chatas, mas recompensadoras. Eu
gostaria de ver um mundo no qual maximizamos o
valor do potencial humano. E isso envolve deixar as
pessoas fazerem coisas que lhes dão prazer real. Em
vez disso, vivemos em um mundo onde, por causa
desse sistema econômico arcaico, desencorajamos
as pessoas realmente talentosas de fazerem aqui-
lo que elas deveriam estar fazendo de melhor. Se
Mozart estivesse vivo hoje, provavelmente ele não
teria tempo para escrever concertos, porque esta-
ria dirigindo uma van da Amazon.

VOLTANDO AO QUE VOCÊ ESCREVE NO LIVRO, O QUE PODEMOS


APRENDER COM OS NOSSOS ANCESTRAIS PARA CHEGAR A ESSE
PONTO IDEAL?

Por séculos, os economistas falaram como é da


natureza humana sempre querer mais do que po-
demos ter. Mas uma lição fundamental dos nos-
sos ancestrais é que isso não é verdade. Na maior
parte da história humana, as pessoas foram ex-
tremamente boas em estar satisfeitas com ape-
nas o suficiente. Acho que a lição fundamental é
que a felicidade e o contentamento não necessa-
riamente vêm do ter.
36

VOCÊ DIRIA QUE, PARA ENFRENTARMOS TODAS ESSAS CRISES


QUE ESTÃO DIANTE DE NÓS, PRECISAMOS COMEÇAR A REPENSAR
NOSSA RELAÇÃO COM O TRABALHO?

Sim, tudo isso é parte de um sistema integrado.


Nossa relação com o trabalho está emaranhada
nas nossas relações com o meio ambiente, com o
consumo, com a produção e com a maneira que
organizamos nossa economia. Eu acho que isso
é como o nó górdio que Alexandre, o Grande, não TRABALHO:
UMA HISTÓRIA
conseguia desfazer. Então, ele pegou uma espada DE COMO
e cortou tudo de uma vez. UTILIZAMOS O
NOSSO TEMPO
James Suzman
Acho, lamentavelmente, que podemos estar em (Vestígio, 368
uma posição em que pode ser muito difícil dese- páginas, R$ 74,90)

maranhar cada um desses elementos individuais.


Nossa relação com o trabalho é um símbolo e um
produto de um maior e mais complexo conjunto de
questões institucionais que precisamos mudar. E
parte da dificuldade de fazer isso sozinho é o jeito
como nossa economia é organizada. Algumas pes-
soas estão simplesmente ocupadas demais ten-
tando fazer as coisas somente para colocar comida
na mesa. Acho que, de certa forma, uma das coisas
que isso requer é uma grande liderança. Alguém
preparado para cortar o nó.
SOCIEDADE
TEXTO Roger Marzochi EDIÇÃO Luiza Monteiro DESIGN Flavia Hashimoto

O ator Demerson
D’alvaro representou
Exu no desfile da
Acadêmicos do Grande
Rio, no Carnaval de

HISTÓRIA DE
2022 no Rio de Janeiro.
A escola venceu no
grupo especial.
(Fotos: Getty Images)

INTOLERÂNCIA

PESQUISADORES BRASILEIROS SE
DEDICAM A ENTENDER AS RAÍZES
DO PRECONCEITO RELIGIOSO, QUE
PERSEGUE E AMEAÇA HÁ SÉCULOS
SOBRETUDO CRENÇAS NÃO CRISTÃS
E
Era uma vez um bebê que, de tão faminto ao nascer,
sugou todo o leite de sua mãe até secá-lo. Ainda com
fome, o menino devorou a mulher que o trouxe ao
mundo. Como castigo, foi sentenciado a viver eterna-
mente esfomeado. Essa é uma das várias mitologias
sobre Exu, orixá iorubá cultuado no Brasil por religi-
ões de matriz africana como Candomblé, Tambor de
Mina e Batuque Gaúcho. A fome do filho de Iemanjá,
irmão de Ogum e Oxóssi, também é explicada em ou-
tro mito, no qual ele é expulso pelo rei devido a sua
índole de causar confusão. Esquecido pelo reino, ele
prega toda sorte de estripulias até ser reverenciado
com comidas e bebidas.

Essa figura é uma espécie de correio celeste, respon-


sável pela comunicação entre os vivos e os outros ori-
xás, assim como foi Hermes para os gregos e Mercú-
rio para os romanos. Mas Exu só leva a mensagem se
receber primeiro oferendas. Embora seja o orixá da
fertilidade masculina, ele aceita outros pedidos e tam-
bém transmite as preces dos fiéis a outras divindades.
Quer conhecer um amor ou engravidar? Peça ajuda a
Oxum; quer justiça? Peça a Ogum; quer se curar de
uma doença? Recorra a Obaluaê. Mas, em todos esses
casos, o mensageiro será Exu, o orixá do movimento.
39

A homenagem a Exu e a vitória com o enredo foram consideradas


históricas e um sinal de esperança contra a intolerância religiosa.

E foi com muito movimento que ele foi reverenciado no Carnaval de


2022. Em abril, a Sapucaí abriu alas para Exu: com o enredo Fala,
Majeté! Sete chaves de Exu, a Acadêmicos do Grande Rio desfilou
no Rio de Janeiro e conquistou a vitória inédita no grupo especial.
O objetivo dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora era
desmistificar o espírito como uma entidade do mal.

Há muito tempo a representação de Exu é deturpada em socie-


dades cristãs. “Ele fazia coisas muito proibidas para os católicos.
Eles achavam que era o diabo”, conta o sociólogo Reginaldo Pran-
di, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e autor
40

de mais de 30 livros, como Mitologia dos Orixás (Companhia das


Letras, 2000). Entre os aspectos considerados pecaminosos pela
Igreja estava o fato de que Exu precisa receber oferendas para
atender a preces, além de ser responsável pela ereção masculina
na relação sexual. “Desde os séculos 13 e 14, Exu começou a ser
comparado com o diabo judaico-cristão e manteve essa fama até
hoje”, explica Prandi.

Com a vitória da Grande Rio, há quem veja esperança no combate


a essas ideias. “Diversos personagens ligados à afro-religiosidade
são narrados ano a ano, mas Exu é o mais vilanizado, nunca foi
protagonista de um grande desfile. No discurso da intolerância,
Exu é a encarnação do mal. E, sem dúvida, esse enredo foi o mais
corajoso e ousado”, avalia Gabriel Henrique Pinheiro, coordenador
da LUPA Carnaval, Liga Universitária de Pesquisadores e Artistas
de Carnaval da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Um afronte à intolerância é também o fato de que quem representou


a entidade foi o ator Demerson D’alvaro, que tem mãe evangélica,
avó candomblecista, prima budista e afilhado e sobrinho testemu-
nhas de jeová. “Oito escolas de samba no Rio trataram da questão
racial ou indígena. E quem ganha é quem traz o Exu. É alguma coisa
nos anunciando novas eras”, diz o babalaô Ivanir dos Santos, um
dos criadores da Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, que
ocorreu em 2008 no Rio para unir líderes de várias religiões contra
a intolerância. A realidade, porém, é outra: o preconceito contra di-
versas crenças segue vivo, e crescendo, no Brasil.
41

Religiões afro-
-brasileiras, como
Candomblé e Umbanda,
estão entre as que mais
sofrem violência no país.

PRECONCEITO EM ALTA
“Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de dis-
criminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedên-
cia nacional.” Eis o que diz o artigo 1º da Lei 9.459, de 13 de maio
de 1997. Quem executar, induzir ou incitar essas práticas pode ser
condenado a pena de um a três anos de prisão, além de multa. Ain-
da assim, esses crimes acontecem no país.

No primeiro semestre de 2019, o Ministério da Mulher, da Família


e dos Direitos Humanos (MDH) registrou um crescimento de 56%
nas denúncias de intolerância religiosa — a maioria contra crenças
de matriz africana e espíritas. De acordo com o Painel de Dados
42

da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do MDH, só em 2021


ocorreram 682 violações à liberdade religiosa, um crescimento de
15% em relação a 2020. De janeiro a maio de 2022, já foram identi-
ficados 311 episódios. No ano passado, os principais estados onde
houve denúncias foram Rio de Janeiro (162), São Paulo (127), Rio
Grande do Sul (56), Minas Gerais (53) e Bahia (51).

O Observatório de Liberdade Religiosa, do Centro de Articulações


de Populações Marginalizadas (Ceap), no Rio de Janeiro, organi-
zou em um pré-relatório denúncias de casos de intolerância no
estado em 2021. Os relatos chegam à Comissão de Combate à In-
tolerância Religiosa por meio de relatos na internet, notícias das
agências dos movimentos sociais, lideranças religiosas ou das
próprias vítimas. Os episódios vão de injúria e ameaças a depre-
dação de terreiros, por exemplo. Em mais da metade dos casos,
os agressores se identificaram como evangélicos.

As crenças indígenas também sofrem com a violência religiosa,


que foi denunciada em março por Tatiane Sanches, do povo Gua-
rani Kaiowá, na 49ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas (ONU). Pelo menos sete casas de
reza foram incendiadas em 2021 no Mato Grosso do Sul, conforme
relatado na Aty Guasu, a Grande Assembleia dos povos Kaiowá
e Guarani. “A cada dia, igrejas evangélicas fundamentalistas inva-
dem nossos territórios, deixando um rastro de extermínio cultu-
ral”, acusou Sanches. “Queimar uma casa de reza representa uma
violência tão profunda que atinge nosso corpo, mente e alma.”
43

Muçulmanos são outras vítimas do preconceito. O Grupo de An-


tropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (Gracias), do campus
de Ribeirão Preto da USP, está preparando o primeiro relatório
sobre islamofobia no Brasil, mostrando violações graves à liber-
dade religiosa no país. “Os casos de ataques ocorrem, na maioria
das vezes, contra mulheres, relatando episódios de violência e
intolerância”, destaca o pedagogo Felipe Freitas de Souza, mem-
bro do Gracias que estuda em seu doutorado a islamofobia na
internet. “Judeus e negros não são os únicos que sofrem racis-
mo. A intolerância religiosa contra muçulmanos também tem um
componente racista.” Mas, afinal, de onde vem tanto ódio? É o
que pesquisadores buscam entender.

Intolerância contra
crenças indígenas
e muçulmanos
também é parte da
realidade no Brasil.
44

CIÊNCIA CONTRA O
FUNDAMENTALISMO
O crescimento do fundamentalismo religioso e da intolerância, que
são dois fenômenos sociais interconectados, está atraindo cada vez
mais a atenção de estudiosos das áreas de ciências sociais. “É um
banho de água fria. O que está em jogo são conquistas democráti-
cas, o que está sendo tensionado é a própria democracia”, lamenta
o historiador André Chevitarese, coordenador do Laboratório de
História das Experiências Religiosas da UFRJ e autor do livro Fun-
damentalismo religioso cristão (Klíne, 2021). “Quando uma criança,
um adolescente, homem ou mulher são atacados por estarem de
branco, ou quando uma casa religiosa é incendiada ou tem bens
sagrados vilipendiados, é uma questão contra a democracia.”

O laboratório liderado por Chevitarese busca entender, a partir


de pesquisas, as raízes da intolerância religiosa, que remonta há
séculos. E há outros especialistas brasileiros intrigados com essa
história. É o caso da historiadora Vanicleia Silva-Santos, curado-
ra associada da Coleção de Arte Africana do Penn Museum, da
Universidade da Pensilvânia (EUA), e orientadora de mestrado e
doutorado em História na Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Pesquisadora em História da África e suas diásporas, Sil-
va-Santos já publicou diversos livros dedicados ao tema. Em O
Marfim Africano como Insígnia de Poder, com previsão de lança-
mento para junho, ela encontrou 40 mil processos nos tribunais da
Inquisição em Portugal entre 1636 até 1822, com acusações contra
45

judeus, além de muçulmanos de Portugal, da África e do Brasil que


realizavam cultos contrários à Igreja Católica.

Sua pesquisa mostra também que o sincretismo religioso dos es-


cravos brasileiros, com frequência retratado de forma romântica,
foi alvo de muita violência. Quando os padres contaram aos ne-
gros a história na qual Santo Antônio conversou com um morto
para inocentar seu pai, que fora acusado de matar o homem, os
escravizados fizeram uma relação com os orixás, pois o santo po-
deria se comunicar com o outro mundo. Muitos foram presos ou
mortos quando a Igreja descobriu que utilizavam a imagem cristã
em suas cerimônias. “Aquilo era uma maneira que encontraram
de se comunicar com os espíritos na África Central na diáspora. O
Santo Antônio era uma forma de ressignificar o aprendizado da
colonização”, analisa a docente da UFMG.

E assim como a ciência era uma ameaça à Igreja na Idade Média,


no início do século 20 a história se repetiu. A também historia-
dora Tayná Louise de Maria, do programa de pós-graduação em
História Comparada da UFRJ e integrante do Laboratório de Ex-
periências Religiosas, estuda desde a graduação o fenômeno do
fundamentalismo. Em projeto de iniciação científica, ela investigou
o Monkey Trial, ou Julgamento do Macaco, como ficou conhecido o
processo ocorrido em 1925 no estado do Tennessee, nos Estados
Unidos, contra o professor John Thomas Scopes.
46

Ele foi acusado de infringir a Lei Butler, daquele


mesmo ano, que proibia escolas públicas de ne-
garem o criacionismo e ensinarem a teoria evo-
lucionista de Charles Darwin. “Esse julgamento
marca a primeira fase do movimento funda-
mentalista”, pontua de Maria.

A historiadora analisou, em 36 jornais brasi-


leiros, as notícias do julgamento — o primeiro
transmitido pelo rádio e com destaque na im-
prensa nacional estadunidense — e o conse-
quente indiciamento do professor. Para sua sur-
presa, todos os veículos do Brasil considerados
na pesquisa foram favoráveis a Scopes. Influen-
ciada pela separação entre Igreja e Estado, que
marcou a primeira Constituição da República, a
imprensa do país tinha orientação positivista.

“Quando uma casa religiosa é


incendiada ou tem bens sagrados
vilipendiados, é uma questão
contra a democracia”
André Chevitarese, historiador e coordenador do Laboratório de História das
Experiências Religiosas da UFRJ
47

No mestrado, Tayná continuou investigando o fundamentalismo reli-


gioso. Seu foco, porém, foram a Assembleia Geral Presbiteriana, ocor-
rida em 1910 nos Estados Unidos, e a série de livros lançados a partir
de 1905 com artigos combatendo a ciência. Essas obras ficaram co-
nhecidas como The Fundamentals (“Os Fundamentos”, em tradução
livre) e deram origem à denominação “fundamentalista religioso”. Já
a Assembleia estabeleceu crenças que todo cristão deveria seguir: a
Bíblia não contém erros, Jesus nasceu de uma mulher virgem, Jesus
era alguém sem pecado, Jesus ressuscitou e Jesus vai voltar.

A pesquisadora avaliou a influência desses eventos na Igreja Ca-


tólica brasileira na década de 1920. Ela encontrou ecos na figura
do arcebispo do Rio de Janeiro Dom Leme — que era contra a lai-
cidade do Estado e a favor de que a Igreja retomasse o poder que
havia antes da República — e no deputado Plínio Marques. O polí-
tico defendia que o governo adotasse o catolicismo como religião
oficial, além do ensino religioso nas escolas. “Eu concluí que, além
do movimento fundamentalista ir contra qualquer ideia moderna,
ciência, teoria do conhecimento, liberdade religiosa, ele é também
camaleônico”, relata Tayná. A referência ao réptil que muda de cor
se refere ao fato de que os fundamentalistas não lutam contra um
único inimigo. “Ao mesmo tempo que em alguns lugares [o funda-
mentalismo] foi contra a ciência, no Brasil foi contra a laicidade”,
explica a historiadora, que no doutorado está estudando a ação
fundamentalista de evangélicos e católicos da Segunda Guerra
Mundial até os anos 2000. “[Nesse período,] O principal inimigo
passa a ser o comunismo e o humanismo secular.”
48

Mesmo com a distinção entre Estado e religião e a aceitação da li-


berdade de culto, as religiões afro-brasileiras continuaram a ser per-
seguidas. Em sua tese Marchar não é caminhar, defendida no dou-
torado em História Comparada pela UFRJ, Ivanir dos Santos aponta
que o reconhecimento pelo Estado brasileiro começou ocorrer no
fim da década de 1970, sobretudo pela atuação do “Papa Negro da
Umbanda”, como ficou conhecido o escritor e pai-de-santo Tancredo
da Silva Pinto. Com grande habilidade política, o líder fundou con-
federações umbandistas em diversos estados e atuou, durante a
ditadura militar, para que os cultos afro-brasileiros fossem regula-
mentados. Mas foi só em 1988, com a nova Constituição, que essas
religiões foram plenamente aceitas em termos constitucionais.

Só em 1988 as religiões afro-brasileiras foram


plenamente aceitas em termos constitucionais.
49

A LUTA CONTINUA
Na segunda metade do século passado, as igrejas pentecostais e ne-
opentecostais ganharam força por aqui e tomaram as religiões de
matriz africana como inimigas. Exu era o maior dos vilões, com fre-
quência comparado ao diabo. “No catolicismo, o diabo é sempre ven-
cido. Mas os evangélicos dão muita atenção ao diabo: todo mal que
acontece eles acham que é obra dele. Ninguém é pecador, mas sim
vítima do diabo. E esse diabo não é genérico, etéreo, distante, como
é para os católicos; é um diabo que pode ser visto na sua frente, nas
entidades da Umbanda e do Candomblé”, opina Reginaldo Prandi.

Na visão do historiador Rogério Souza, que está estudando em seu


doutorado também na UFRJ a identidade do negro dentro de co-
munidades evangélicas, a identificação das entidades de religiões
afro-brasileiras com o diabo, principalmente o Exu, ocorre tanto
por questões históricas quanto pela característica do espírito na
Umbanda. No Candomblé, Exu é orixá; na Umbanda, ele é expres-
so em espíritos de indivíduos que tiveram uma vida marginaliza-
da, como prostitutas, ladrões e pessoas que vivem nas ruas, e que
após a morte buscam ajudar a humanidade.

Com autorização dos líderes religiosos, Souza conduz seu estudo


na igreja batista Nossa Igreja Brasileira, no centro do Rio, e na As-
sembleia de Deus Rubens Vaz, no Complexo da Maré. Nesta, nota-
se um forte discurso de demonização das religiões afro-brasilei-
ras; já no centro batista, o pastor tem vínculos com o movimento
50

negro, mas refuta suas raízes históricas, apesar


de respeitar as religiões de origem africana.

Buscando mudar a visão marginalizada dessas


religiões, o babalorixá Erisvaldo Santos, doutor
em história pela UFMG e professor da Universi-
dade Federal de Ouro Preto (UFOP), pesquisa a
participação de profissionais de alta formação
e acadêmicos em cargos de sacerdotes no Can-
domblé. “Ao contrário do que esperavam os ra-
cistas, o acesso aos altos níveis de escolaridade
não afastou negros e negras do Candomblé. Há
muitos brancos dentro do Candomblé com altos
níveis de escolaridade e exercendo liderança,
porque é uma tradição aberta, não é uma tra-
dição para negros, é de negros para o mundo”,
afirma Santos, que é membro do Núcleo de Es-
tudos Afro-brasileiros e Indígenas da UFOP.

“A intolerância é fruto da ignorância


do outro. Quando você desconhece
o outro e não se identifica com
ele, essa ignorância acaba se
transformando em medo e temor”
Reginaldo Prandi, sociólogo e professor emérito da USP
51

E assim, aos poucos, mitos e preconceitos vão sendo desbancados


pela academia. O título da Grande Rio trouxe mais visibilidade a
essas discussões, mas ainda há imensos desafios à frente. “A in-
tolerância é fruto da ignorância do outro. Quando você desconhe-
ce o outro e não se identifica com ele, essa ignorância acaba se
transformando em medo e temor. E com isso desenvolve grande
preconceito, que pode ser usado politicamente”, comenta Reginal-
do Prandi. Que o destaque de Exu no Carnaval seja a expressão de
uma mensagem de tolerância às mais diferentes formas de religio-
sidade — e à democracia.

Praticar, induzir ou incitar o


preconceito religioso é um crime
previsto por lei no país.
CULTURA
TEXTO Larissa Lopes EDIÇÃO Luiza Monteiro FOTOS Ricardo Teles DESIGN Flavia Hashimoto

A LUTA
DO LUTO
FOTÓGRAFO GAÚCHO VENCEU
O SONY WORLD PHOTOGRAPHY
AWARDS COM REGISTROS DO
HUKA-HUKA, ARTE MARCIAL
DE POVOS INDÍGENAS DO
XINGU PRATICADA EM RITUAL
QUE HOMENAGEIA OS MORTOS

Pinturas corporais fazem parte do ritual


de preparação para as lutas de huka-
-huka. Em geral, os indígenas do Xingu
usam o jenipapo para produzir a cor
preta, e o urucum origina o vermelho.
A
Agachados no chão de terra batida no centro da aldeia Afukuri,
da etnia Kuikuro, duplas de adversários se enfrentam diante do
público reunido ao entorno, formado principalmente por povos de
diversas etnias que vivem no Parque Indígena do Xingu, no Mato
Grosso. Alguns turistas também observam, admirados, a luta tra-
dicional da região. Concentrados, encarando um ao outro, cada lu-
tador tem o objetivo de levantar o opositor e derrubá-lo com as
costas no chão ou, então, tocar na parte inferior de seu joelho para
vencer a luta e ganhar o reconhecimento das tribos convidadas
para a partida. Antes do confronto, todos os competidores passam
por um processo de purificação por meio da ingestão de chás, er-
vas, jejum e privação de sono. Esse é o huka-huka, uma arte mar-
cial genuinamente brasileira praticada no Alto do Xingu.

Em julho de 2021, o encontro anual dos povos indígenas para a


competição foi registrado pelas lentes de Ricardo Teles, fotógrafo
54

gaúcho que estava visitando o Xingu a convite Os povos indígenas do Xingu


convidam comunidades vizinhas
de uma amiga, a jornalista Ana Augusta Rocha, de outras etnias para participar
dos rituais do Kuarup e prestar
que desenvolve atividades de apoio às comuni- homenagens aos membros
falecidos no ano anterior
dades da região. Os cliques formaram uma ga- ao evento.

leria de imagens potentes, que mostram a bele-


za, a intensidade e a espiritualidade envolvidas
na luta, um ritual de encerramento do Kuarup,
evento de três dias dedicado aos mortos das
aldeias xinguanas. “Registrar essa cerimônia
foi um desafio tanto pela responsabilidade de
mostrar um ritual tão rico e solene quanto esse
quanto por ter de dar um novo olhar ao Xingu,
55

tão retratado por grandes nomes da fotografia


brasileira, como Maureen Bisilliat e José Medei-
ros”, afirma Teles, a GALILEU. “Mas o resultado
foi recompensador e acompanhar essa festa sa-
grada foi uma experiência incrível.”

Não à toa, os registros emocionaram os jura-


dos do Sony World Photography Awards 2022,
prêmio anual realizado pela Organização Mun-
dial de Fotografia. Com seu ensaio, batizado de
Kuarup, Ricardo Teles venceu na categoria Es-
porte. Considerando que 2021 foi marcado pe-
los Jogos Olímpicos de Tóquio, a concorrência
não foi fácil. Em segundo lugar ficou o austra-
liano Adam Pretty, com fotos em preto e bran-
co das Olimpíadas e Paralimpíadas no Japão; e,
em terceiro, o tcheco Roman Vondrouš, com cli-
ques que retratam o fanatismo de torcedores
de um time de futebol de seu país.

“O RESULTADO FOI RECOMPENSADOR E


ACOMPANHAR ESSA FESTA SAGRADA FOI
UMA EXPERIÊNCIA INCRÍVEL”
Rodrigo Teles, fotógrafo gaúcho vencedor do Sony World Photography Awards 2022
56

Na noite que antecede o huka-


-huka, nenhum dos lutadores
ANO DE DESPEDIDAS pode comer nem dormir. Para
os povos indígenas do Xingu,
Assim como as Olimpíadas, o Kuarup também foi aqueles que adormecem e
sonham irão perder.
cancelado em 2020 por consenso entre os líde-
res indígenas do Xingu, como medida preventi-
va contra a pandemia de Covid-19. O adiamento
para o ano seguinte não deixou de provocar frus-
tração e tristeza entre aqueles que perderam
entes e amigos queridos durante a crise sanitá-
ria. Afinal, o Kuarup é uma cerimônia importante
para os indígenas enlutados do Xingu: perante
toda a comunidade, eles se despedem pela últi-
ma vez do membro falecido, que finalmente faz
sua passagem para o mundo dos espíritos.
57

Após as disputas entre adultos,


os adolescentes também
Os dois primeiros dias da celebração, que é lutam pela vitória, enquanto
as crianças participam dos
encerrada com as lutas de huka-huka, são de- preparativos para o ritual.
É uma forma de passar os
dicados à recepção dos povos vizinhos convi- costumes da aldeia de geração
em geração.
dados e às homenagens aos mortos. Familia-
res enlutados passam uma madrugada inteira
chorando e rezando pelos parentes falecidos,
que são representados por troncos pintados e
adornados, dispostos no centro da aldeia. As
pessoas se abraçam e, ao final do ritual, esses
totens são lançados no Rio Xingu e seus afluen-
tes como despedida final.
58

No ano passado, cinco pessoas da aldeia Afuku- As lutas de huka-huka


também envolvem outros
ri foram homenageadas no evento — quatro rituais, como danças e cantos
tradicionais, anteriores
delas haviam morrido de Covid-19. Os Kuikuros aos jogos que encerram a
cerimônia do Kuarup.
são um dos 162 povos originários do país que
registraram infecções pelo Sars-CoV-2 desde o
início da pandemia. Até o dia 30 de maio, mais
de 71,5 mil indígenas foram diagnosticados com
a doença e 1.310 faleceram em decorrência da
infecção, segundo o levantamento Covid-19 e
os Povos Indígenas, produzido pela Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
59

Por serem um grupo prioritário na fila de va-


cinação, boa parte dos adultos da aldeia já
estava completamente imunizada durante o
Kuarup em 2021. Para garantir a segurança de
todos, os turistas também tiveram que apre-
sentar comprovante de vacinação e testaram
para a doença quando chegaram ao parque No centro da aldeia e
mediados por um juiz, os
do Xingu. “Tomamos todos os cuidados para adversários lutam para
derrubar um ao outro com as
nos certificar de que ninguém passaria o vírus costas viradas para o chão
ou tocar na parte inferior
para as comunidades da região”, conta Teles. do joelho do oponente. As
vestimentas típicas de cada
Na ocasião, ele estava visitando os povos indí- povo são adaptadas para
proteger os lutadores do
genas da reserva pela terceira vez. atrito com o solo.
60

BRASIL PROFUNDO
Teles conheceu o Xingu em 2016, quando foi
acompanhar o trabalho desenvolvido por médi-
cos voluntários nas tribos locais. Em sua primei-
ra visita, o fotógrafo conheceu o cacique Kotok
Kamayurá, que o convidou para a acompanhar Indígenas Kuikuro e de
a cerimônia do Kuarup, que ocorreria dali al- etnias convidadas praticam
o huka-huka no
guns dias. “Naquela época, eu não pude ficar encerramento do Kuarup,
exibindo a força dos melhores
até a data, mas foi daí que surgiu a vontade de lutadores para todos. Abaixo,
os lutadores treinam para
conhecer de perto esse ritual”, confessa. os combates oficiais.
61

No mesmo ano, ele retornou ao parque nacional com a missão de


fazer uma reportagem fotográfica para a edição brasileira da re-
vista National Geographic. A espera para acompanhar a cerimônia
foi longa por conta dos desafios financeiros e logísticos que a via-
gem envolve. Para chegar ao Xingu, o fotógrafo viajou de avião de
São Paulo até Goiânia e encarou oito horas de trajeto de ônibus
até a cidade de Canarana (MT), além de cinco horas de carro para
chegar à aldeia Afukuri. Uma vez lá, ele passou uma semana com o
povo Kuikuro para se integrar à comunidade e entender a cultura
local. “Estabelecer uma amizade e confiança é algo superimpor-
tante para documentar uma festa como essa”, diz Teles.

Para o gaúcho, ter esse trabalho reconhecido por um dos prê-


mios internacionais de fotografia mais relevantes é uma forma
de realizar seu sonho de apresentar o país para o mundo. “Eu
me orgulho muito disso, de mostrar às pessoas a beleza do Bra-
sil profundo, de aldeias, quilombos, comunidades tradicionais e
de imigrantes”, comemora Teles, que teve suas fotos expostas no
palácio Somerset House, em Londres, na Inglaterra, entre abril e
maio deste ano. O profissional espera que, por meio da fotogra-
fia, as pessoas passem a valorizar mais a diversidade de povos
e culturas do país e, quem sabe, aprender novas formas de lidar
com as próprias dores deixadas pela pandemia.
62

QUER QUE EU DESENHE?


POR BERNARDO FRANÇA

AUTODIDATA E POLÍMATA, LEONARDO DA VINCI SE


DESTACOU EM ÁREAS COMO ANATOMIA, MECÂNICA,
FÍSICA E BALÍSTICA. CONHEÇA SUA HISTÓRIA
TEXTO Maria Clara Vaiano
63

Este ano marcou 570 anos da chegada ao


mundo de uma das pessoas mais geniais da
história da humanidade. Em 15 de abril de 1452
nasceu em Anchiano, na Itália, Leonardo di ser
Piero da Vinci, mais conhecido como Da Vinci.
64

Autodidata, o italiano entrou para a história


como símbolo renascentista. Ele criou e
aperfeiçoou técnicas de pinturas nunca
antes vistas no Renascimento. Entre suas
obras artísticas mais famosas estão
A Última Ceia (1498) e Mona Lisa (1503).
Mas Da Vinci fez muito mais.
65

Como um bom polímata, ele se destacou


também em anatomia, mecânica, arquitetura,
física e outras áreas. Em seus cadernos
há esboços de invenções como bicicleta,
avião, submarino e helicóptero. Interessado
também em balística, rascunhou armas e
apetrechos de guerras que só mais tarde
seriam realidade.
66

Mas a vida de Da Vinci não foi marcada só por


criações geniais. Ele era filho ilegítimo de um
homem notável na época, Piero da Vinci, que
conquistou sua guarda. Em 1476, Leonardo foi
acusado de ter relações homossexuais com
um de seus modelos, mas acabou absolvido
por falta de provas.
67

Ao longo de sua trajetória, Da Vinci viveu


principalmente entre Florença e Milão, na
Itália. Seus últimos anos, porém, foram no
Château du Clos Lucé, na França. A mansão no
Vale do Loire, onde o renascentista morou até
2 de maio de 1519, quando morreu, ainda pode
ser visitada.

You might also like