You are on page 1of 19
Cad.Est.Ling., Campinas, (24):131-149, Jan./Jun. 1993 PROPOSIGOES PARA UMA ESCRITURA DA HISTORIA LINGUISTICA SOVIETICA: A NOCAO DE "DISCURSO SOBRE A LINGUA" PATRICK SERIOT UNIVERSIDADE DE LAUSANNE "Os discursos dever ser tratados como praticas descontinuas, que se cruzam, muitas vezes se ajustam, ‘mas também se ignoram ou se excluem" (M. Foucault, Lordre du discours, Paris, Gallimard, 1971, p.54) Se lemos a imprensa soviética atual, ao menos a que é favordvel & perestroika, encontramos uma dessas tertiveis quest6es que voltam regularmente desde ‘que se trate de fazer o balango da hist6ria da URSS: "como é que se passou de uma via inicialmente justa a resultados to tragicos, quando € que isto comecou a ir mal, quando 6 que tudo se abalou, quando € que se comecou a sait do caminho certo?” Da resposta a estas questdes depende em grande parte o tipo de solucto 2 propor para a profunda crise de identidade ideolégica e nacional que sacode o pafs alualmente Esta interrogacao sobre a histéria e sua ‘eescrita nao parece ainda, no ‘momento, ter atingido 0 dominio da hist6ria da ciéncia, em particular a das ciéncias humanas que, ainda mais que a sociologia, tem, na URSS, tentado apreendet 0 que faz © liame social: a lingii(stica, ou ciéncia da linguagem. Ora, da historia da ciéncia & historia simplesmente é s6 um passo quando um Estado declara assentar sua legitimidade sobre uma concepgdo cientifica de historia. Se nio € certo que a historia das mateméticas na Gra Brewanha tenha grande coisa a nos dizer que ja nfo saibamos da histéria da Gra Bretanha, no entanto dever-se-ia esperar da historia da lingiistica soviética um esclarecimento pouco conhecido da hisiéria da Unio Soviética ela propria. Uma questo se coloca: pode-se fazer, da hist6ria da lingUfstica soviética, um relato, produzir uma narrativa? Pode-se alinhar uma sucessd0 de textos, sabiamente arranjados por ordem cronol6gica, que representariam, a escalha dos pesquisadores, 0 * Tradugio de Eni de Lourdes Pulcinelli Orlandi e José Horta Neto progresso do saber, ou, a0 contrdrio, 0 deslizamento progressivo da ciéncia lingiifstica no obscuro delirio estalinista? Pode-se fazer 0 relato desses textos, que se tornariam documentos de uma historia das idéias? Pode-se fazer uma antologia de pedagos escolhidos de autores lingilistas, estégios do progresso de uma ciéncia tnica? Mas ja se procurou fazer a triagem, a separar 0 que, nos escritos sobre a lingua, deriva da lingiifstica e 0 que permanece no exterior? Para evitar de ter de fazer essa separacio a priori, proporei inicialmente a nocdo de “discurso sobre a lingua” Ha, na URSS dos anos 20-30, produgio de "discursos sobre a Jingua” em varios lugares. Mesmo no fim dos anos 30, nio encontramos uma monofonia estrita, um puro ¢ simples dominio, um dogma estabelecido uma vez por todas, assim como também nZo encontramos uma fonte tinica de discursos sobre a lingua, um poder politico, por exemplo, que seria o grande ordenador, 0 homem orquestra ditando aos cientistas 0 que eles tem a dizer € a fazer. B, de outro lado, no trabalho sobre a lingua respondendo a um comando diretamente politico (jazykovoe stroitel’stvo, likbez jazykovaja politika, soznatel’noe vmeSatel'stvo v jazyk...: edificagao lingifst liquidagao do analfabetismo, politica lingiistica, intervengéo consciente na lingua) nao se pode falar de pura derisdo sob pretexto que haveria intrusao da ideologia no trabalho cientifico, ou vontade politica de encontrar uma resposta cientifica a quest6es politicas Para além da experiéncia pratica que cada um de nds pode fazer do fato de que ha linguas, é mais do que necessério observar como sio numerosas e mesmo comtraditérias as definigdes do que é a lingua. O exemplo da URSS, este pais a0 mesmo tempo tdo famitiarmente préximo € tdo profundamente distante, pode nos persuadir que a questo da definicao seja uma coisa muito diferente da discussio sobre 0 sexo dos anjos. Nao h4 no mundo um outro pais em que o problema da definicao de lingua tenha tido (ou tenha ainda) tal forga politica. Foio pafs da vanguarda da modernidade na reflexao sobre a linguagem e suas manifestagdes. Basta que se pense em Jakobson, em Troubetzkoy, em Baudoin de Courtenay. E também 0 pais que fuzilou seus lingilistas nos campos de concentracao precisamente por sua definigao de lingua, quer se pense em Polivanov, em Voloshinov, em Drezen, € a tantos outros ainda. Esta definiggo de um objeto da ciéncia, definigéo capaz de fazer morrer, de obrigar ao exilio como de fazer subir as mais altas honras, que tem ela de 140 terrivel, de tio singular, que a diferencia dos outros objetos de ciéncia? Para estabelecer a hip6tese que faco de que h4 uma relagdo particular & lingua € a represeniagzo em geral na URSS, proponho apresentar um tema proprio da epistemologia lingdistica soviética dos anos trinta, uma questo que marcou profundamente este pafs na primeira metade de sua existéncia, qual seja: 132 "Porque as linguas mudam?", questo que logo se transformou em "pode-se mudar a lingua?", com seu corolario teérico: "o que é necessério que seja a lingua, para que possamos modificd-a?” E esta questo de teoria lingifstica torna-se rapidamente uma questao politica: qual € a relagdo da lingua com a sociedade, com a nagio? Comegarei minha tentativa de narragdo em 1922, no momento do fim da guerra civil e da proclamagio da Federagao das Repiblicas soviéticas.' Nos anos que seguiram a Revolugdo de 1917, 2 criagdo de uma lingiiistica marxista era bem a Gina coisa que tinham na cabeca os dirigentes bolcheviques, ocupados como estavam no comunisme de pés-guerra, com a instauragao da NEP, com questdes de simples sobrevida. Nesta época os lingilistas continuam os trabalhos anteriores sem que se manifeste uma ligagdo muito clara entre suas atividades cientificas € 05 acontecimentos politicos, diferentemente do que se passa, por exemplo, em literatura, A escola formalista russa prossegue sua ascensdo. Sergio Karcevskij volta de Genebra em 1919 ¢ traz consigo as idéias estruturalistas saussurianas que encontram na Russia um terreno eminentemente favoravel, preparado pela escola dita de Kazan (1 Baudoin de Courtenay, N.V. Krugevskij). Esses anos terriveis sio também os mais férteis na atividade do circulo lingiiistico de Moscou, com Jakobson, Troubetskoy, Porzezinskij, que participarao da elaboracao do funcionalismo e da fonologia. Acontece ‘© mesmo com Petrogrado para a OPOJAZ, sociedade de estudo da linguagem poética em que encontramos os nomes de Polivanov, Tynjanov, Sklovskij, Jakubinskij, etc. Malgrado o entusiasmo que a teoria da lingua suscitava nos circulos formalistas, os estudos hist6rico-comparativos se mantinham fortes nas Universidades ¢ a "velha guarda" continuava a praticar a gramética comparada como antes da Revoluco no campo da eslavistica e dos estudos russos. Curiosamente, é em um outro discurso sobre a lingua, a saber a literatura, que a idéia de mudar a lingua, ¢ mesmo de criar uma lingua inteiramente nova vai aparecer rapidamente, por exemplo nos poetas futuristas Entretanto, numerosos sinais chegavam regularmente do poder politico, ¢ que iam ter repercuss6es nao negligenciveis sobre a propria pratica da lingiiistica Em 1922 a Unido Soviética tinha de particular o fato de que devia ser a primeira sociedade inteiramente consciente de si mesma, uma sociedade que tinha seu destino em suas maos, que dominava seu provir. Mas era também uma sociedade que herdava do Império Russo uma situagdo inextricével do ponto de vista etnico lingiiistico. Basta se representar 0 que era querer colocar as massas em movimento, como se dizia entao, quando se tem que lidar com mais de uma centena de linguas, de comortos freqiientemente mal delimitados, cuja maioria na tinha escrita e ainda nao havia jamais sido estudada nem descrita " Numerosos esclarecimentos histéricos foram romados dt obra de SAMUELIAN-81 Em 1922 é adotado 0 decreto sobre o analfabetismo que proclama que: "todos os habitantes da Repiiblica de 8 a 50 anos que ndo sabem ler nem escrever devem aprender a ler e escrever em uma lingua materna ou em russo, segundo a escolha.” Nunca se falou como nesses primérdios dos anos 20 de pritica e de eficdcia pratica. Um dos temas centrais da revolugao cultural reclamada pelo poder é a "unidade da teoria e da pratica". Como para Trotsky a arte necessariamente sempre utilitaria, ‘© mesmo acontecia com a ciéncia, que nao devia se acantoar em uma erudigao fechada. O poder politico tinha necessidade de especialistas em lingua. Com efeito, como as massas podiam participar da edificagao da sociedade em construgao se elas nao sabem er? Como podiam ser educadas eficazmente sem a palavra escrita? Mas sem alfabetos, sem gramaticas, sem diciondrios multilingties e monolingiies, como podia haver palavra escrita? Seria falso ver nessa demanda do poder enderecada aos lingilistas s6 consideragdes priticas e conjunturais. A cria¢do de um alfabeto supde uma abordagem fonolégica dos sons da lingua. A fonologia coloca delicados problemas de ontologia das unidades da lingua. E onde entre em jogo a ontologia, o materialismo dialético esta diretamente concernido (cf. sobre este ponto, Samuelian-81, p.234) A Revolugao, desfazendo o tecido social anterior, tinha sem duvida destruido bastante das relagdes simbélicas. Mas ela tinha deixado intacto um sistema simbélico: a lingua, 0 mais carregado de sentidos para a manuten¢ao da identidade nacional. Para tentar fazer se manter coesa a fragil federacao das nacionalidades em condigdes materiais extremamente precirias, destruindo um dos mais fortes lagos simbélicos da identidade, a saber, a religiao, € preciso concentrar 0 trabalho pratico sobre a identidade nacional e fazer disto uma chave para a planificagio racional da construgdo da futura sociedade socialista. Segundo Marx e Engels, a revolucao deveria ser mundial e as nacionalidades deviam desaparecer. Quando ficou claro que este dia nao era iminente, foi preciso estabelecer pactos em todas as frentes, exterior, interior, social e nacional. Os pactos tocavam no mais fundo da doutrina. Porque, de um lado, por exemplo, quando da proclamagao da Federacao, em 30 de dezembro de 1922, Stalin declara a0 Congreso dos Soviets que esta Federagio, primeira etapa da fusio das nacionalidades, sera "um passo decisivo na fusdo dos trabalhadores do mundo inteiro em uma s6 Republica soviética mundial". Por outro Jado, Lénin, como os outros bolcheviques, reclama a igualdade completa para todas as linguas e todas as nagdes. O que tem por conseqiiéncia que a URSS é, ainda hoje, em principio um estado sem lingua de estado tinica, sendo que o russo € apenas uma entre as outras. Entretanto Lénin tinha, muito cedo (no 16 de maio de 1917 em sua *Resolugdo sobre a questi nacional"), expresso seus temores a respeito dos fatores de divisio que podiam constituir segundo ele "lagos nacionais fortes entre as culturas burguesas e proletaria das nagées individuais". A finalidade do POSDR em 1917 era fazer se desenvolver "uma cultura internacional do proletariado mundial" (ib.). 134 De qualquer modo, depois do abastecimento, € 0 problema da comunicagao que reclamava uma solucio prioritéria. Parece-me importante lembrar que a lingua é uma maneira particular de fazer © liame social, um fundamento da identidade supra-individual, 0 que faz que se possa dizer “eles sao eles, nds somos nds” Ora, esse lago nao s6 tem contornos imprecisos e cambiantes (hd dominios iransitétios em que € dificil dizer se se esta além ou aquém da lingua), mas também esse lago evolui no tempo. s lingiiistas eram chamados nao mais a observar as Singuas mas a dirigir a evolugao delas?, Como iriam fazer? Chegado onde estou, vou ter necessidade, para continuar, de uma nogdo provisbria, que me permita nao ter de me dividir ente a epistemologia dos paradigmas de Kuhn, as epistemes de Foucault, as condigdes de producdo do discurso de Pécheux, ou a aceitabilidade de J.P, Faye. Este conceito provisério eu o chamarei, de modo voluntariamente sitnplificador de "ar dos tempos", e o definirei rapidamente como o “conjunto de coisas que se diz e que se pode dizer em um momento dado & propésito de um dado dominio", um discurso aceitével, uma posi¢ao sustentavel. Quando digo “ar dos tempos", é preciso ver quanto este ar é proprio de um espaco geo-ideol6gico. Em 1922 na URSS este espago estava longe de estar constituido. Até ai a lingilistica Russa nao tinha fixado nenhum valor primordial a Tinguagem enquanto fato social. E do lado dos lingiiistas de concepgdes diametralmente opostas as dos marxistas que 0 kagos da linguas com a sociedade que a fala tinham sido explicitamente evocados. “E provavel, a priori, escrevia A. Meillet em sua Conferéncia de abertura do curso de gramatica comparada no Collége de France em 1906, que toda modificacao da estrutura social se traduza por uma mudanga das condigdes nas quais se desenvolve a linguagem.... Se é verdade que a estrutura social € condicionada pela hist6ria, néo so jamais os fatos historicos em si que determinam diretamente as mudancas lingiiisticas, sio mudangas de estrutura da sociedade que, elas apenas, podem modificar as condigdes de existéncia da linguagem. E preciso determinar a que estrutura social responde uma estrutura lingilistica dada e como, de uma maneira geral, as mudangas de estrutura social se traduzem por mudangas de estrutura lingiistica." Em 1926 ainda é Saussure que ¢ dado como sepresentante da escola sociol6gica francesa (SOR-26, p.3), modelo sociol6gico a ser introduzido na lingiiistica soviética, Alguns anos mais tarde Saussure se torna, como Polivanov, um representante da lingiifstica burguesa, modelo a set extirpado definitivamente da lingilistica soviética (Zolotov-32). Estamos na primeira metade dos anos 20. Nesta €poca em que se elaboram os grandes principios da gestao politica das sociedades, 0 marxismo-leninismo, se * como os fitosofos na 11* tese sobre Feuerbach... 135 distinguindo da ideologia nazista em formacdo na mesma época, se opde explicitamente a qualquer modo de raciocinio genético, No hé nem natureza humana nem transmissdo biol6gica de gens, 0 homem é um produto das suas condigdes socio-econdmico- ideol6gicas de existéncia, é um animal educdvel. Quanto A sociedade, se ela pode € quer tomar em suas mos seu destino, ela deve também forjar seu proprio sistema de ‘comunicago, o que pode se retraduzir de duas maneiras no dominio que nos concerne: seja "para mudar a sociedade é preciso mudar a lingua", seja, "mudar a sociedade é modar a lingua". Encontrou-se, para responder a essa demanda politica, um lingiiista, jé idoso no momento da revolugao, Nicolas Marr. Sua teoria, 4 qual ele chegou por vias independentes do marxismo, correspondia quase perfeitamente a0 novo ar dos tempos que soprava na Unido soviética, Pode-se resumi-la assim: - A lingua é uma superestrutura que repousa sobre a base econdmica, da mesma forma que a arte ou os sistemas juridicos. Da nogio de fingua como superestrutura se segue toda uma série de conseqiléncias: ~ Os estados de lingua se sucedem como reflexo de mudangas de formacio socio-econdmicas; - Nao hé familias de finguas, mas estados sucessivos pelos quais passat necessariamente todas as linguas. - No interior de um mesmo estado, as Iinguas evoltiem por cruzamento, por hibridaggo umas com as outras. - Na medida em que toda superestrutura tem um cardter de classe, a lingua também tem um carter de classe. Por isso, ndo hd, propriamente dita, correspondéncia entre lingua e nacido, a nogio de lingua e tipo nacional é um engano, ¢ as relagdes fundamentais so entre lingua e tipo de sociedade em um momento dado de sua evolugao. Em um certo sentido (mas em um s6), as linhas gerais do marrismo convinham bem 2 URSS dos anos 20 por seu cardter internacionalista, sua adaptacao a.m Estado multinacional em que devem ser superados os conflitos de tipo lingifstico e, enfim, por sua compatibilidade com 0 objetivo final de uma sociedade sem classes e sem diferencas de linguas. Nesta época este discurso sobre a lingua, que correspondia a visdo marxista da felicidade futura da humanidade enfim unida encontrou bastante simpatia, também no estrangeiro. Foi af que o que estou chamando ar dos tempos toma toda sua importancia: €0 que torna epistemologicamente licito um tipo de quest4o que em outro lugar ou em outra configura¢do ou outro momento ¢ epistemolégicamente jlicito. E quando digo um discurso licito, seria preciso dizer mais exatamente a Gnica posigdo sustentdvel, um discurso obrigatério, um discurso aceito, um discurso que funciona, com efeito materiais concretos, tal como a-eriagéo de institutos de pesquisa. Eis uma ilustragao imediata. Em 1866 a Sociedade de Lingiiistica de Paris foi criada. Bla inscreve em seus 136 estatutos de fundacdo duas interdigdes, isto é, dois temas de pesquisa que ndo tem estatuto cientifico: as pesquisas sobre a origem das Iinguas ¢ as sobre a lingua universal. Sessenta anos mais tarde, em um outro lugar, a aceitabilidade desses temas é tal que eles fazem parte do programa principal do Instituto da Linguagem e do Pensamento, criado em Petrogrado em 1920. Marr estuda ai a “paleontologia da linguagem", em relagdo direta com a etnogénese, No fim dos anos 20 cle trabalha em uma tarefa pratica: a elaborago de novos tipos de lingua por hibridagao das linguas existentes, Ele reencontra este tipo de hibridagao, por exemplo, no russo, que ndo se pode analisar corretamente, segundo ele, sem levar em conta a contribuigéo heterogénea do turco, de finés e do citio do Norte do Caucaso. E sé bem depois dos poetas futuristas que os lingiistas atacam a propria matéria da lingua querendo modifica-la. Durante este tempo, no nivel administrativo, se estabelece o que chamamos em Trusso a edificago lingiistica do pafs (jazykovoe stroitel’stvo). A constituigdo soviética de 1924 garante que todos os documentos oficiais serdo publicados em linguas oficiais das Repdblicas. Mas, de novo, aparece diante de nés um obstéculo de natureza definitoria. © que é a lingua de uma Republica Soviética? E a lingua falada pela etnia majoritéria vivendo sobre o territério da Reptiblica. No caso de certa Iinguas, foi preciso fabricé-las inteiras. Assim, 0 continuo dialetal entre os turcofones da Asia central era tal que se poderia ter visado a cria¢o de uma koiné, ou lingua comum repousando sobre uma variedade dialetal média, aceitavel e compreensivel por todos os locutores turcofones. Uma outra via € que foi seguida, pois o antigo Turquestao foi dividido em cinco repiblicas, e o kirguez, o usbek, o kazac e o turquemen se tornaram linguas oficiais cujas caracterfsticas repousavam sobre variantes as mais centrifugas em telacdo ao continuum. Certas linguas eram faladas por locutores infinitamente mais numerosos que aqueles de uma lingua que tinha estatuto republicano. Era 0 caso dos tértaros do Volga. Mas a Tartaria era uma republica auténoma, ndo uma repblica federada, € os tartaros nao tem direito a totalidade de um ensino em sua lingua, diferentemente dos kirquezes menos numerosos que eles. Um outro problema é colocado pela linguas das minorias sem estatuto territorial como o yiddish. Nos anos 20 havia um teatro yiddish, uma imprensa ¢ uma Titeratua yiddish, mas 0 yiddish nao era uma lingua oficial. Enfim, ha a delicada separagao da parte e do todo em todo tugar. A Constituigdo georgiana proclama que 0 georgiano é uma lingua oficial da repiblica da Ge6rgia. Ora, a Geérgia ela propria tem suas minorias nacionais, tais como a Abkazia, Mas o estatuto da lingua abkaze é inferior ao zeorgiano, porque a Abkazia nao tem 0 mesmo nivel territorial que a Geérgia Este pensamento por categorias discretas, descontinuas, nao deriva da pura ¢ simples l6gica administrativa. Ele decorre da definicao stalinista da nagdo como uma “comunidade humana estavel historicamente constituida, nascida na base de uma 137 comunidade da lingua, territ6rio, vida econémica e de formagao psiquica que se traduz em uma comunidade de cultura". Esta citacdo é de 1913. Lembremos que Stalin ia se tornar comissario do povo para as nacionalidades. Este conjunto de tragos, colocada de lado a dimenséo econémica, lembra fortemente a visio romantica da naco ou mais exatamente do povo tal como se pode encontré-la, por exemplo, em Herder no fim do século XVIII. © povo-nagdo é uma categoria fundamentalmente fechada. Mas esta categoria fechada é dificil de conciliar com a teoria da fusio das linguas e das nagdes na sociedade futura. Esta contradigdo, no entanto, nfo é ainda, nos anos vinte, um grande obstdculo ao trabalho sobre a lingua. Qual é a parte dos especialistas da lingua nesta "edificacdo lingUfstica"? Como os escritores, um pouco mais tarde, serio chamados os "engenheiros da almas", Vinokur em 1923 compara os lingilistas aos "engenheiros da lingua’. Em um artigo cujo titulo vai fazer sucesso nas empresas normativas ndo somente na URSS mas em todos os pafses socialistas em seguida’, "Kul’tura jazyka", ou "cultura da lingua”, ele defende a idéia que a lingifstica, ou a "tecnologia da lingua” tem um dever primordial que é 0 de intervir conscientemente na evolucdo da lingua. Vinokur rejeita a concep¢ao que prevalece nos neo-graméticos do século XIX da lingua como organismo com leis imanentes, mas ele ndo admite tampouco a definicdo de lingua de Saussure como um sistema inacessivel a qualquer mudanca deliberadamente provocada do exterior. Para ele todo processo de fala é um proceso social ¢ como tal pode e deve ser organizado racionalmente. A lingua é uma maquina que deve ser melhorada ¢ consertada. Eis um ponto em que eu gostaria de mostrar a relagdo entre uma definigao da lingua ¢ um tipo de trabalho em lingiifstica. O ar dos tempos na URSS dos anos 20 esté mais para a mAquina, a tecnologia, a transformacdo cientifica da natureza do homem, em resumo, para a domesticagdo (0 dominio). O que é a lingua nesse ar dos tempos? Nao é um organismo auténomo, nio é o reflexo da alma de um povo; é uma criagdo artificial, no sentido de objeto fabricado e que, como tal, pode ser considerada do exterior, para ser modificada 4 vontade. E este ar dos tempos que faz Maximo Gorki dizer, em 192 “Parece-me que nds, os homens, estamos no direito de dizer: tudo 0 que chamamos cultura, essa segunda natureza que ¢ criada pela nossa ciéncia, nossa técnica, € nossa arte, em uma palavra, tudo o que nos diferencia dos animais, tudo isto é artificial. E natural a0 homem, porquanto ele é um animal, de lamber, ou beber na mio, de viver nu, de dar rugidos, mas néo é natural inventar Prometeu, Fausto ou Don Quixote. Vivemos todos em casas, cidades, entre objetos fabricados pela forga de nossa razo, de nossa imaginagao e de nossa vontade para que a vida nos seja mais facil e > Diz-se (ou dizia-se...) Sprachkultur na RDA, por exemplo. cf BRESSON-79 Cahiers de linguistique, dorientalisme et de slavistique, N° 13, oct 79. 138 mais agradavel. Se os homens tomam consciéncia que Ihes é necessério falar todos a mesma lingua, também isso se fara. (...) € tempo que 0 homem se ponha na cabeca que ele pode tudo.” ar dos tempos € esse discurso receptivel que permite a Jakovlev em 1928 propor uma férmula matematica de construcao de uma alfabeto para toda lingua, ou ao sébio Ciolkovskij, 0 futuro pai da cosmonautica russa, de inventar em 1928 uma maquina de escrever funcionando com um alfabeto universal que permita transcrever todas as linguas do mundo. Mas na segunda metade dos anos vinte a demanda do poder politico face aos cientistas se torna mais precisa. A sociedade nova em vias de se construir deve ter uma ciéncia marxista. Esta ciéncia deve ser hist6rica e unificada. No fim dos anos vinte a teoria de N, Marr toma uma posiggo dominante na lingiiistica soviética. Rejeitando 0s raciocinios que poderiam repousar sobre uma nocao de pureza étnica, ele coloca um ensino que deve impedir qualquer manifestagio de chauvinismo russo-grande na URSS. Pasa ele a pureza etnica dos eslavos como a origem comum das linguas eslavas é um mito, pois nao pode haver base genética para as formagdes sociais assim como ndo pode para os sistemas de linguas. No entanto ainda ai a definigao é pesada de conseqiléncia para o futuro Nos fins dos anos 20 é claro que a ciéncia, na URSS, deve, antes de tudo, ter uma aplicagao pratica € imediata: 0 objeto proprio da ciéncia na nova sociedade soviética é 0 proprio futuro dessa sociedade. Assim, uma das questdes cruciais que se colocam em 1925 é esta: a sociedade futura seria qualitativamente diferente da de agora do ponto de vista nacional? As opinides divergem, alguns pensam que a finalidade urgente do comunismo € realizar uma cultura universal Unica e indiferenciada. Stalin a define de forma pragmética em 18 de maio de 1925 com sua célebre formula: "proletario pelo contetido, nacional pela forma, eis a cultura humana universal para a qual marcha o socialismo". Ele admite uma assimilago a longo prazo pelo enriquecimento recfproco das linguas, mas no imediato reafirma o florecimento das culturas nacionais. Vemos assim pouco a pouco se formar um feixe de contradigdes na politica da Yingua, que repousa, a meu ver, na coexisténcia de duas posigdes implicitas inconcilidveis: as inguas, como as nag6es, sio categorias discretas, isto é, descontinuas, ou entio elas sdo categorias nao discretas, ou seja, pode haver gradual de uma a outra Ou as Iinguas podem se misturar, ou entdo elas podem se combater € se dominar sem se assimilar. O ar dos tempos nao era suficientemente coercitivo, ou suficientemente estabelecide para resolver neste momento a contradicao que ia se aprofundar em seguida. Mas 0 ar dos tempos sopra em uma diregio cada vez mais diferente dos outros ares do mesmo tempo: os lingilistas no estrangeiro comegam a se inquietar com 6 abismo que se faz entre eles ¢ seus colegas soviéticos. A. Meillet, em uma resenha feita em 1928 de uma obra de N. Marr, mesmo disposto a segui-lo em suas posigdes 139 sociolégicas, escreve isto: "a ciéncia esta fora da politica, e quem ai mistura politica e nacionalismo, comete uma falta imperdodvel, quaisquer que sejam as circunstancias” Na época da morte de Marr, em 1934, pode-se dizer que a lingiiistica ocupa © primeiro lugar das ciéncias humanas na URSS. No entanto seria erréneo ver ai uma analogia com o papel de "ciéncia piloto” que a lingiifstica pode desempenhar nos anos 50 € 60 no Ocidente. Na URSS, nos anos 30, a lingiifstica nio € 0 modelo epistemol6gico cuja metodologia propria era para ser imitada e aplicada a outros dominios diferentes daqueles inicialmente previstos, este papel nao podendo ser desempenhado sendo pelo materialismo hist6rico. A lingiifstica € um exemplo privilegiado de aplicagao da teoria marxista do estudo hist6rico do desenvolvimento das sociedades, e esta posigio permanece dominante até 0 meio dos anos trinta. Mas a lingiistica tinha além disso uma responsabilidade terrivel, porque se esperava dela uma funcdo pratica de predigio do futuro da sociedade soviética. Em meados dos anos crinta, um certo nimero de pontos parecem adquiridos € obrigat6rios para a lingiifstica soviética: - a lingua € a matéria do pensamento e da consciéncia; - a consciéncia, como a lingua, so categorias da superestrulura; - enfim as mudangas lingiiisticas sio uma resposta as mudangas sociais tal como elas so refletidas pelo pensamento através da estrutura da lingua. Mas permanece uma tensfo entre a idéia de lingua como reflexo secundario de um estado de sociedade ou de uma mentalidade ligada a um estado de sociedade, de um lado, a idéia de que a lingua, com produto artificial da atividade, pode ¢ deve ser submetida a uma interven¢&o consciente da parte dos lingilistas, da comunidade falante em seu conjunto, ou ainda do poder politico em nome da dominacao, do controle e da previsio da mudanca em lingua. Venho agora a segunda parte de minha narrago, onde vamos ver 0 que se passou logo a tensdo se tornou forte demais. Stalin chamou 1929 o ano da grande virada. Isto é certamente verdadeiro do ponto de vista da organizagdo da economia e do poder politico. Mas no dominio que nos concerne aqui, eu colocaria a grande virada de preferéncia em 1937, no centro desses anos negros que foram 1936-37-38. Nos anos 30 40 os lingiiistas no Ocidente se ocupam essencialmente de problemas de morfologia e de sintaxe. £0 caso na URSS igualmente, com a excegao de que, partinde da concep¢ao estadual da historia das Iinguas como reflexo do pensamento, 0s lingilistas soviéticos trabalham na construgdo de uma tipologia histérica da morfologia das linguas ¢ da estrutura das frases, procurando confirmar a tese fundamental de que ha uma ligacdo direta entre a estrutura sécio-econdmica e a estrutura lingilistica. 140, Um exemplo particularmente esclarecedor é MeSéaninov, um discipulo de Marr, que estuda o reflexo do desenvolvimento do pensamento na hist6ria dos tipos de proposigdo e das categorias gramaticais. Trés estados principais vao assim se suceder obrigatoriamente na transformagao de toda lingua. (MeSéaninov-40). ‘Ao primeiro estado, 0 mais arcaico, corresponde a construgdo passiva. Nesse estado nio ha diferenciagio entre a palavra e a frase, ou entre 0 sujeito ¢ 0 predicado, pois © mundo é percebido como uma poténcia mitica que atravessa o homem e seu ambiente. E assim que a passiva é dominante nas linguas incorporantes (p.ex. dos indios da América do Norte). Vé-se que a lingilistica soviética, a partir de bases tedricas totalmente opostas, alcanga o tipo de trabalho da etnolingiiistica americana da mesma época, o que chamou a hipotese Sapir e Whorf, a saber, que o pensamento esta em relagdo direta com a lingua na qual ele se exprime.* O segundo estado é caracterizado pela construgao dita ergativa: 0 sujeito de um verbo intransitivo est4 no mesmo caso que 0 objeto de um verbo transitivo, diferente daqueles do sujeito de um verbo transitivo, Para esse tipo de linguas 0 sujeito, ainda que nao totalmente no controle de sua acdo, comeca justamente a se ver enquanto ator Encontra-se esta constru¢ao no basco e essencialmente nas linguas de Caucaso, linguas que Marr conhecia particularmente bem. Q terceira estado € 0 estado dito ativo, tal como o conhecemos em francés ‘ou em russo: 0 sujeito de um verbo transitivo est4 no mesmo caso que o sujeito de um verbo intransitivo, diferente do objeto de um verbo transitivo, Teriamos ai a plena expressio reconhecida de um Agente, esse terceiro estado seria 0 resultado atual da evolucao das linguas. Ble € encontrado nas linguas indo-européias € semiticas. ‘A teria dos estados repousa sobre o postulado fundamental de que a estrutura sintatica da proposigao é o reflexo de um tipo de pensamento, ele mesmo reflexo da estrutura s6cio-econémica. MeSaninov, no entanto & medida que avanga seu trabalho de tipologia, observa a coexisténcia dos diferentes tipos de construgéo na majoria das linguas que estuda. E, por volta dos anos 40, comega a ser posta em diivida no trabalho mesmo dos lingiistas a idéia de relagdo direta de reflexo, de condicionamento sécio-econémico das esiruturas sintéticas. Me8Caninov trabalha para descobrir “categorias conceituais universais, que, exprimidas diferentemente nas diferentes linguas, refletem a unidade * E precisamente sobre Sapir que se apdia MeSaninoy quando tenta demonstrar, por exemplo, que # palavra ndo existe fora da proposiglo, ef Me8aninov-40, em ZVEGINCEV-65, p.359-360, Esta questio foi cextremamente pouco estudada. De fato o discurso soviético sobre a lingua se inscreve em uma aceitabilidade que ultrapassa de bem longe as fronteiras da URS. E que sho questdes, nas anos 20-30, que se colocain também em outros lugares, em formagoes sociais totalmente diferentes, com sistemas politicos opostos, dentro de probleméticas epistemolbgicas que parecem no ter nada em comum. Ocorre assim nas relagdes ‘entre lingua e pensamento (de Sapir e Whorf a Lévy-Bruhl), mas também nas interrogagdes sobre a preciso, até a higiene da lingua (0 Cfrculo de Viena) 141 da consciéncia humana”. Mas ele tem necessidade de justificar seu trabalho, o que faz dizendo que este pode servir de quadro teérico para as graméticas contrastivas, as quais eram muito necessérias na segunda fase da campanha de alfabetizagio, aquela que se referia a uma extensio geral do bilingilismo russo-nacional Como 0 trabalho dos lingiiistas sobre a lingua se inscreve no ar dos tempos do fim dos anos trinta? Em 1936 é promulgada uma nova constituigio, que poe a frente a nocdo de Estado do povo todo inteiro, de comunidade homogénea. No mesmo momento, os lingitistas prosseguem suas pesquisas em sociologia da linguagem e produzem um discurso sobre a lingua que parece pouco compativel com a nova definigao da nacao como 0 povo todo inteiro. ‘Assim, Zirmunskij no mesmo ano explora o problema da estratificagdo social das linguas, e continua colocando em causa a idéia de lingua nacional empreendida por Nicolas Marr. Desde a morte de Marr o papel dominante da lingiiistica nas ciéncias humanas na URSS decresce: por exemplo, as ligagdes da lingua ¢ do pensamento nao sio mais do monopélio dos lingiistas € s40 estudadas por psicélogos como Vygotskij, que reivindicam a seu turno o papel de ciéncia piloto para a psicologia, levada a ser a ciéncia sobre a base da qual se criaria uma nova personalidade humana, Em torno de 1937 se realizam um certo numero de mudancas fundamentzis na politica internacional, nas demandas praticas da campanha de alfabetizagio, nas estruturas € na hierarquia das instituigdes, que criam um clima mais favordvel para a lingiiistica tradicional e favorecem a deterioracao da posigao privilegiada da lingitistica marrista. Um indice das mudangas € a publicago das obras maiores dos linglistas ocidentais: Saussure € publicado em 1933, Sapir em 1934, Vendryés em 1937, Meillet em 1938, Mas © problema chave deste periodo para o dominio que nos ocupa € a politica das nacionalidades e suas justificagdes ideologicas. £m 1937 0 vento jé mudou na questéo nacional. A Alemanha hidferiana é vista ndo somente como uma ameaga para 0 mundo, mas sobretudo para a propria Unido Soviética, descartando por ai mesmo todo sonho de comunismo internacional. No lugar do cosmopolitismo, ao qual Marr devia muito de sua poténcia, a ameaga exterior reforga a solidariedade soviética ‘A tendéncia a solidariedade coincide com a segunda fase da campanha de alfabetizago. As maiores linguas nao escritas das Republicas da Unido tinham sido providas de alfabetos latinos no fim dos anos vinte, e 0 primeiro passo em direcao a0 alfabetismo generalizado tinha sido dado. A segunda fase devia ser 0 bilingilismo russo- nacional e a extensio do ensino do russo. Este torna-se obrigatério em todas as escolas ndo-russas em 1938, E nesta mesma época que as linguas que tinham um alfabeto latino mudam seu sistema de escrita sobre a base do alfabeto cirilico 142 Durante os anos de guerra aparecem novas instituigdes que se concentfam nos estudos russos, A ameaga exterior ¢ um grande fator de unificagao ¢ a identidade por tris da qual os povos da Unido Soviética se unificavam era Tussa pela forma. E em 1942 que & criado o Instituto da lingua russa na Academia de Ciéncias, independente do Instituto de Lingiifstica, a Universidade de Moscou abre uma cadeira de estudos tussos e eslavos em 1943 (que nao existia enquanto tal antes). Volta a ser licito, nao epistemologicamente mas ideologicamente, estudar a tradigéo cultural rassa pré-revoluciondria; é a época em que se pie a frente 0 papel primordial da ciéncia russa dentro da ciéncia mundial. Volta a ser legitimo estudar e publicar a tradigao lingtiistica russa. Entretanto, o discurso sobre a lingua dentro da lingilistica “oficial”, aquela da teoria marrista, permanece sem mudanga. Esse discurso fica cada vez mais deslocado em relacao a um outro discurso, aquele de escritores como Gorky, que j4 em 1929, no primeiro Congreso das escritores camponeses, declarava (GORKY-29, citado em LAPITE-83, p.434): "0 inesgotdvel resouro da lingua popular russa deveria permitir aos escritores dar ao que constitui a matéria de seus livros uma expressao brilhante, forte, precisa. Pode-se certamente aprender a lingua russa no cldssicos, mas pode-se ser mais bem sucedido nisto buscando-se naguele que é sua fonte primeira, 0 povo..." Neste texto se anuncia a imensa ambigilidade do termo povo, que pode se entender sob sua interpretagao socialista ou sua interpretago romantica, unanimista Esta ambigiidade fundamental vai se resolver com a vit6ria sobre a Alemanha 0 nacionalismo selvagem, por vezes fandtico que a segue, alimentado pelo sentimento de estar envolto por um mundo hostit. Vejamos por exemplo a histéria da palavra “cosmopolitismo”, Na Grande Enciclopédia soviética publicada em 1937 0 cosmopolitismo é "um termo politico de origem grega que denota a aspiragao da revolucdo proletéria a transformar 0 mundo inteiro em uma patria para a classe trabalhadora’. Na edig’o de 1952 da mesma enciclopédia, 0 cosmopolitismo € "uma ideologia burguesa reacionaria que rejeita as tradigGes nacionais ¢ a soberania nacional, prega a indiferenga para com a patria e a cultura nacional, e reclanta o estabelecimento de um governo e de uma cidadania mundial", No fim dos anos quatenta, a tensdo que se manifestara desde hé dez anos entre os diferentes discursos sobre a lingua atinge seu paroxismo. Assim como a biologia soviética rejeita a genética como teoria racista, a lingiistica soviética nega toda relacdo genética entre as tinguas ¢ se agarra a idéia de determinismo estrito da lingua pela estrutura social, Os Jingiiistas marristas nao s4o mais capazes de responder 4 demanda pratica, que € agora um programa de ensino do russo em grande escala que o regime do pés- 143 guerra estimava ideologicamente valido e necessario. A teoria marrista, ideologicamente itil no passado, tornava-se inteiramente inadaptada para a nova tarefa que consistia em unificar os Soviéticos por detrés da ciéncia russa e da lingua russa. Em julho de 1950 Stalin mesmo is intervir no debate lingiifstico através de uma série de retificagdes aparecidas no proprio Pravda. Por uma ironia da controvérsia de 1950, Stalin mantém exatamente a posicao que havia provocado perseguicdes de lingilistas como Polivanov vinte anos antes, a saber, que a lingua nao sofre mudanca revolucionaria, A teoria sobre a homogeneidade da massa falante que ele desenvolve esté de acordo com o texto da Constituigao de 1936 sobre a homogeneidade social da sociedade soviética. Suas teses podem ser recolocadas nisto: - a lingua ndo é uma superestrutura; - a lingua ndo é um fenémeno de classe, visto que ela pode tanto “servir" @ burguesia como ao proletariado; - a lingua ndo sofre transformacdo revolucionéria apés uma revolucdo social. Paul Lafarque ndo tem razdo ao dizer que @ tingua francesa mudou subitamente apés a revolugdo francesa; - a lingua é um meio de comunicagao para a comunidade inteira, € ndo para uma s6 classe; - a tarefa da lingiiéstica é estudar as leis internas de evolugdo da lingua. Stalin faz. distingdo entre as regras conservadoras da gramitica e 0 léxico, mais flexivel, e mais permedvel as influéncias da realidade extralingiifstica, 0 que permite dar conta das mudangas sobrevindas na lingua russa, ainda que esta nao tenha realizado um salto revoluciondrio, assim como justificar 0 afluxo de palavras russas nas Iinguas nacionais da URSS sem risco para a identidade dessas Iinguas. Um novo tipo de raciocinio sobre a lingua é atribuido 4 politica lingiifstica: Stalin, recusando a idéia de mistura das linguas, fala da vit6ria de uma lingua sobre as outras. Uma moldura é atribufda para justificar a supremacia do russo na URSS. Essa moldura, que se torna obrigatéria para a lingilistica soviética até fogo apés a destalinizagdo comegada em 1956, nao tinha aparecida como um trovao no céu azul. A intervencéo era eminentemente politica. Mas do ponto de vista que nos imeressa, a saber, o discurso sobre a lingua, é preciso notar que era uma maneira de reduzir @ (ensio entre dois discursos incompativeis, Incompativeis por exemplo eram a idéia que prevalecia na lingéjistica marrista de que a \ingua era dividida em classes € a idéia da lingua da nacdo toda inteira, idéia que podemos ver avancada desde o fim dos anos vinte em escritores como Gorky ou desde 1945 em lingilistas nio marristas como Vinogradov, que escreve no ano do fim da guerra: "A criagaa de uma lingua nacional comum & uma etapa ‘fundamental na historia de cada povo. E somente com tal lingua que a nagao recebe os meios do desabrochar total de suas forgas espirituais para participar plenamente no movimento cultural mundial, S6 uma lingua nacional pode se tornar a base de uma ciéncia e de uma literatura nacional. Ela assegura a unido de todas as forcas do povo, ela contribui para consolidar a poténcia politica de uma nagiio e para o aumento de sua influéncia entre os outros Estados. E natural que a lingua nacional, como bem coletivo do povo todo inteiro, |...) Seja objeto do orgutho do povo e de seus cuidados mais atentos*. (VINIGRADOV-1945, P.9) (citagiio que nao teria desmentido, penso, lingiistas romanticos como August Schlegel ou Franz Bopp). m A. Meillet disse: "Cada século tem a gramatica de sua filosofia", 0 que foi retraduzido por L.-J. Caivet pela formula: "Cada sociedade tem a lingiifstica de suas relagdes de produgdo". Quanto a mim, quis propor uma interpretacdo das ligagdes entre uma sociedade ¢ sua lingifstica dizendo: "Cada sociedade tem 0 discurso sobre a lingua que corresponde ao ar dos tempos" ‘Tentei entdo narrar uma hist6ria, uma historia de acontecimentos de produgao lingiifstica na URSS. Mas encontrei dificuldades para construir uma linearidade. Pode-se narrar as agitacées institucionais, a luta dos centros de pesquisa pelo poder. Pode-se avaliar as exclusdes € as promogdes administrativas, Pode-se fazer também a histéria da tentativa ov da tentacao do dominio politico do signo e da representacd0. Mas isso nao nos faz avancar no conhecimento de abjeto da lingilistica na URSS. E que a historia de uma ciéncia, ou a histéria de um conceito, ndo se narra. Nao pode ser uma narragdo, Isto tem a ver com a histria estrita, mas nao acompanha, nao a redobra. Ou de preferéncia se sobrepde a ela. que me impediu de produzir uma narragio? Sao as idas ¢ vindas constantes nas datas, nas definigdes, nos conceitos. $6 uma constante, talvez, nessas inversdes sucessivas é uma filosofia da hisidria que afirma © sentido tinico do futuro humano sob a categoria do progresso riunfante, aquela mesma que no Ocideme esté hd décadas em plena ruina: mais que uma filosofia hegeliana, é uma filosofia positivista ¢ cientista. Mas mesmo ai, nao ha continuidade verdadeira, pois 0 lugar concedido as formas de evolugdo das linguas difere totalmente conforme os periodos, entre Marr e Stalin, por exemplo, ou no interior das diferentes declaragdes de Stalin sobre lingua. E que na URSS, nos anos trinta, a lingifstica esté em “porte & faux" 145 Estranhamente, nao ocorre o mesmo nas outras ciéncias, que deveriam a priori ter conseqiiéncias bem mais diretas sobre o real. E 0 caso da biologia: os delirios antigenéticos de Lyssenko, que declarava poder criar variedades hibridas de trigo e de milho que poderiam produzir na Sibéria, nao impediram que sua teoria fosse dominante a tinica reconhecida na URSS até o fim do periodo khrouchtchéviano. Seria a biologia menos perigosa para o poder que a problemética da lingua? Tentei fazer funcionar o discurso soviético sobre a lingua em torno de uma questo: "por que as linguas mudam e pode-se mudar a lingua?” e mostrar quanto discurso sobre a lingua é constrangido de todos os lados por um "ar dos tempos” propriamente soviético: seria preciso ir as tltimas conseqiiéncias do quadro epistemol6gico no interior do qual se iria pensar a lingua. Mas a nogio de ar dos tempos que introduzi marcou seus limites ¢ sua insuficiéneias, pois nunca se viu um ar dos tempos to estratificado, cheio de tantos deslocamentos, de encaixes ¢ de recortes heterogéneos. ‘Assim por exemplo, a nogao de unanimismo em uma comunidade lingiiistica homogénea nao tem a mesma historia nos escritos de lingiiistica, nos textos literarios € nos documentos oficiais (nés 0 vimos com a constituicao de 1936). Do mesmo modo, a teoria da lingua nacional nao tem a mesma hist6ria conforme os tipos de discursos aos quais a relacionamos. O discurso sobre a lingua sustentado pelos lingiiistas tem mesmo isto de altamente singular, que ele s¢ encontra no fim dos anos trinta indo em dire¢do inversa as outras séries discursivas sobre a lingua! E af que se colocam os problemas especificos da analise do discurso sobre a lingua na URSS: as periodizagdes estdo a se construir, as sincronias a delimitar. Do ponto de vista epistemolégico, varias sincronias podem no ser contempordneas, no sentido estritamente cronolégico: pode haver af deslocamento entre as séries (os discursos sobre a lingua nos textos literdrios, nos textos administrativos ou nas reflexdes politicas sobre a politica da lingua podem divergir, se recortar, estar em contradigao parcial). ‘A historia de uma ciéncia nao € uma linha continua, a historia das etapas na via retilinea que leva do erro a verdade, da ignorancia ao saber. Ea historia das rupturas, das descontinuidades, das retomadas, das mudangas de perspectiva ¢ de pontos de vista, e até das mudancas de objeto. Todas essas séries discursivas podem coexistir, paralelamente, se afrontar ou se ignorar. Por exemplo, ha um modelo tnico ou modelos incompativeis por tras das séries disparatadas de discurso sobre a lingua da URSS dos anos trinta? Como se articulam essas séries dispersas, descontinuas e irregulares? Tomemos a Linguistica romantica inspirada em Herder e Humboldt, por exemplo, Como ela é reinterpretada, retraduzida em uma outra problemética nos anos 30? 146 Nao € certamente uma pura repetico do mesmo, pois sos anos trinta as condigdes de produgao de um discurso romantico sobre a lingua nao tm mais nada a ver com aquelas do primeiro tergo do século XIX! Entretanto a questo da lingua na URSS nos anos trinta tem a ver com a inversao dos valores que acontecea na Europa no fim do século XVIN entee 0 universalismo racionalista ¢ o romantismo dos valores nacionais, a época das agitagdes que levam a Revolucdo francesa, a época em que a problematica de Adam Smith, Turgot ou J.J.Rousseau sucede aquela da Gramatica de Port-Royal. Oposicao por sua vez deslocada, retrabalhada em um outro terreno. Esta perspectiva ndo continuista, certamente, deve muito a Michel Foucault. Mas, aplicada ao terreno do discurso sobre a lingua na URSS, terreno do qual Foucault nunca disse nada, ela me parece prometer numerosos desenvolvimentos. © interesse desta historia e de suas intrincagdes é que os antagonismos que se mostram na lingiiistica soviética dos anos (rinta tormam a se encontrar de uma maneira ou de outra, mas no interior de outras séries, eventualmente e em outro lugar, se pensarmos, por exemplo, na maneira como wm sociélogo como P. Bourdieu encara © problema da lingua quando ele fala de "lingua legitima”, o1 no debate sobre a lingua nacional reaberto nos anos 70 por pesquisadores tdo diversos como Marcellesi, ou Balibar. Um imenso trabalho resta a fazer na exploracao desse territ6rio ou quase tudo resta a descobrir para fazer conhecer esta problemdtica ido curiosa que é 0 estudo das relagdes de um pais com sua lingua. Assim, como isolar as unidades com as quais s¢ ocupar: todos os discursos te6ricos que falaram da lingua formam uma mesma ciéncia? Todas as definigdes do objeto da lingiistica sao a busca e o afinamento progressivo de um mesmo conceito, ou deve-se reconhecer nelas uma incompatibilidade tal que tratar-se de ciéncias diferentes? Poderemos estudar os discursos sobre a lingua nos nao lingilistas (na literatura, nos textos administrativos, politicos, filos6ficos, etnolégicos) tentando articular essas s¢ries divergentes. E questionando a gramatica russae as idéias gramaticais sobre a lingua russa, poderemos tentar sair de uma positividade empirica mas também da racionalidade confortadora das arborescéncias sintaticas. Posso voltar agora a questdo que coloquei no inicio deste trabalho: "Quando nds saimos do caminho certo? Quando houve bifurcagao?” Parece-me que as coisas se estragaram a partir do momento em que o poder politico comegou a impor um comando utilitério aos intelectuais. Isto ndo é uma revelacdo, ¢ faz apenas arrombar uma porta aberta. Em compensacao, cteio que aprendemos a colocar questdes ao mesmo tempo sobre a URSS ¢ sobre a lingua: Marr 147 e Stalin tém em comum uma cegueira A ordem prépria da lingua, um desejo de contornar a todo preco a materialidade propria da lingua que se opde ao scu dominio. Podemos nos perguntar igualmente sobre a URSS atual ¢ ver que uma grande parte dos conflitos nacionais atuais vém da definigao da nagio e da lingua por Stalin. Se a lingua era apenas uma forma, nao teriamos visto, na primavera de 1989, milhares de manifestantes moldavios nas ruas de KiSinev (que se tornou desde entéo Chisinau) reclamarem o retorno de sua lingua ao alfabeto latino. Entretanto foi preciso reconhecer também que a defini¢ao staliniana da lingua e da na¢do nao era obra de um s6 homem, que ela tinha ela mesma uma histéria, que devia nos fazer remeter ao nascimento da lingiifstica romantica e da teoria herderiana da equacao povo/lingua. Por isso a andlise do discurso sobre a lingua na Unido Soviética é lugar privilegiado de encontro de especialistas da URSS ¢ lingilistas, terreno quase inexplorado por uma disciplina ainda 4 procura de seus conceitos fundamentais BIBLIOGRAFIA BRESSON D.. 1979: “Societé, communications et linguistique en RDA", Cahiers de linguistique, dorientalisme et de slavistique, n° 13, oct 1979, Aix-en-Provence. CIOLKOVSKU K.., 1927: Obséeéefoveteskaja azbuka, pravopisanie i jazyk, [Um alphabet commum a toute Vhumanité, arthographe et langue], Kaluga FOUCAULT M., 1971: L’ordre du discours, Gallimard GORKI M., 1928: ‘Ob iskusstvennosti jazyka (pis’mo betorusskim esperantistam” {De 'artificialité de la langue (lettre aus espérantistes bigionusses)), Izvestfa CK SESR, n° 3/4. _ 1929: intervention au ler Congrés des écrivains-paysans, Pravda, 7 juin 1929. JAKOVLEV N.P., 1928: "Matematideskaja formula postroenije alfavita", |Formule mathématique de construction d'alphabet}, Kultura i pis'mennost’ vostoka, vyp. 1. M. LAFITE, B., 1983: Le discours sur la linérarure et les arts dans la Pravda de 1929 (th. de 3e cycle), Univ de Paris-VIIL MEILLET A., 1928: c.r, de MARR; Po etapam razvitija jafetiteskoj eorii, BSLP, n° 28, p. 226-27 MESCANINOV L.1., 1940: Obstee jazykoznanie. K probleme stadial’nosti v razvitii slova i predlodenija, {Linguistique générale, Le probleme de la stadialité dans lévolution du mot et de la proposition), Leningrad, SAMUELIAN T.J., 1981: The Search for a Marxist Linguistics in the Soviet Union, 1917-3950, PhD of Philosophy, Univ. of Pennsylvania. STALIN I., 1913: Marksigm i nacional’nyj vopros, Petrograd. (6d. en Frangais: Le marxisme et fa question nationale, Paris, Ed. du Centenaire, 19782 SOR R., 1926: Jazyk é obstesivo, M. 148 VINOGRADOV V.V., 1945: Veliki russkif jazyk, [La grande langue russel, M VINOKUR G.0., 1923: "Kultura jazyka", dans Pedat' revoluciia, n° $, p. 102-111 VYGOTSKU LS., 1936: Myilente i reé {La pensée et la langue], Moscou-Leningrad le et les dialectes ZARMUNSKU V.M., 1936: Nacional’nyj jazyk é sovialnye dialekry, (La langue mati sociaux], Leningrad ZOLOTOV N, Ja., 1932: "Protiv burauaznoj kontrabandy v_jazykoznanii", dans Protiv.burguaznoj Kontraband) v jazyko2nanii, Leningrad, p. 7-27 [Contre la contrebande bourgeoise dans la linguistique] INCEV V.A., 1965: Istoriia jazykoznanija, (Histoire de la linguistiquel, east” 1, M 149

You might also like