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CCHLA MON ) tek prineipal deste livro, "© fu ro da naturera fuming’, eborda 4 Giscussao desencaceada pela ica genética: pede a Filosofia Se permiitir a mesma moderacio mbém om questbes rela Gtica da espécie? O Futuro da Natureza Humana Adoto a perspectiva de um pr sente vindouro, a partir do qual um «lia possivelmente lanceremos win olliar fetrospectivo As pratt 1s, hoje contestadas, conside 1s como precutsoras de ‘eugenia liberal, segulads pe e pela procura NNo texio ‘Fé e saber — que com: pleta este ligro—abordo uma ques ao qllé ganha uma nova « idade no cia 12 de setembre ue a secularizacto, que perdun nas sociedades pés-seculares sige dos cidadios de um Fsadc constitucional democritica © que exige igualente dos Fels € Jos 10 figis? Jiirgen Habermas nesceu em Diisseldorf, Alemanha, em 1929. Com doutorado em Marburg, foi professor de filosofia cem Heidelberg de filosofia e sociologia em Frankfurt. Es- ereveu, entre outros livros, O diseurso filossfico da: modern publicado por esta Faitora, Jiirgen Habermas O Futuro da Natureza Humana A.caminho de uma eugenia liberal? © Futuro da Natureza Humana: AM 2409/10 = CCHLA_MON Tradugio KARINA JANNINI Revisio da eadusdo EURIDES AVANCE DE SOUZA Martins Fontes a0 Paulo 2004 Caps BE0N Liv re Re he Lvrrte rns Ponts Eater Late ‘ou Corscicr ath 330 0195-090 St Rade SP Bist (1) 2412677 Bas) 308 807 mai ifoiardefentscime lipo aarihnacicomy SUMARIO. Preftcto.. Maderagio justificada. Existem respostas pés-me tafisicas para a questo sobre a “vida correta”? .caminho de uma eugenia liberal? A discusséo em tomo da autocompreensao ética da espécie wun |. O que significa moralizagao da natureza mana?.. U. Dignidade humana es. dignidade da vida hu- mana IIA insergéo da moral numa ética da espécie humana.. IV. Crescimento natural e fabricagao... V, Proibigao de instrumentalizagio, natalidade e poder ser si mesmo. VI. Limites morais da eugenia VIL Precursores de uma auto-instrumentalizagio AR esp CE ese FPosfécio: (final de 2001 inicio de 2002) Fé e saber... A seculatizagao na sociedade pés-secular. O senso comuth eaclarecido pela ciéneia w.nnm ‘Tradugao cooperativa de contexidos religiosos. O conflito hereditério entre filosofia e religiéo O exemplo da técnica genética Indice onoméstico. PREFACIO Por ocasio do recebimento do prémio Dr, Margrit- Egnér 2000, apresentei no dia 9 de setembro do mesmo ano, na Universidade de Zurique, uma conferéncia, que teve como base o texto “Moderacio justificada’. Parto da distingao entre a teoria kantiana da justiga e a ética do ser simesmo, de Kierkegaard, e defendo a idéia de que o pen- samento pos-metafisico deve impor asi proprio uma mo- deragao, quando se trata de tomar posigdes definitivas em relaggo a questdes substanciais sobre a vida boa ou nao- fracassada, Isso nos confere um pano de fundo que con- trasta com uma outra questdo, Jevantada perante a discus- shio desencadeada pela técnica genética: pode a filesofia se permitir a mesma moderagao também em questoes relativas i ética da espécie? Sem abandonar as premissas do pensamento pos: metafisico, o texto principal se imiscui nessa discussao, Trata-se de uma versio redigida da conferéncia Christian Wolff, que apresentei no dia 28 de junho de 2001, na Uni versidade de Marbungo, Até agora, a d'scussao sobre o tra tamento que se deve dar 8 pesquisa e a técnica genética 2 (FUTURO DA NATUREZA HUMANA cicculou em tomo da questo do status moral da vide humana pré-pessoal sem trazer resultados. Por essa ta- 280, adoto a perspectiva de um presente vindouro, a par- tir do qual um dia possivelmente langaremos um olhar retrospectivo as praticas, hoje contestadas, considerando- as como precursoras de uma eugenia liberal, regulada pela oferta e pela procura. Com efeito, a pesquisa com embrides ¢.0 DGPI (diagnéstico genético de pré-implantacao) acir ram 08 animos sobretudo porque so 0 exemplo de um perigo que se vincula & metdfora da “ctiagao de humanos”. ‘Tememos, no sem razao, que surja uma densa corrente de ages entre as geragées, pela qual ninguém podera ser responsabilizado, j& que ela transpassa de forma tnilate ral e na direcao vertical as redes de interacao contempo- raneas. Em contrapartida a isto, 05 objetivos terapéuticos, nos quais também todas as intervengoes da técnica gené- tica deveriam se pautar, impdem limites estreitos a toda interferéncia. Um terapeuta tem que considerar a segunda pessoa e precisa poder contar com seu consentimento. O “Posfécio” ao texto principal, redigido no final de 2001/inicio de 2002, responde as primeiras objegdes. To- davia, trata-se menos de uma revisio da minha intengao original do que de seu esclacecimento. O texto “Fé e saber” serviu de base ao discurso que apresentei no dia 14 de outubro, quando recebi o Prémio da Paz dos Editores Alemaes. Nele, abordo uma questo que ganhou uma nova atualidade no dia 11 de setembro: ‘© que a “secularizacio”, que perdurou nas sociedades pas-seculares, exige dos cidadiaos de um Estado constitu- ional democratico, e o que exige igualmente dos figis ¢ dos ndo-ficis? JonceN HaBermas Starnberg, 31 de dezembro de 2001 MODERAGAQ JIISTIFICADA. | EXISTEM RESPOSTAS POS-METAFISICAS PARA A QUESTAO SOBRE A “VIDA CORREIA’? No romance Stiller, Max Frisch faz o promotor pti- blico perguntar: “O que o homem faz.com o tempo de sua vida? Uma questao da qual eu mal tinha consciéncia, ela simplesmente me intitava’. Frisch faz a pergunta no indi 'vo. O leitor reflexivo, inquictando-se consigo mesmo, confere-lhe uma versio ética: “O que devo fazer com 0 tempo de minha vida?” Durante muito tempo, 0s fildso- fos acharam que dispunham de conselhos adequados para fal pergunta. No entanto, hoje, apds a metafisica, a filosofia jé nao se julga capaz de dar respostas definitivas a perguntas sobre a conduta de vida pessoal ou até coleti- va. As Minima moralia comegam com um refréo melan élico sobre a gaia ciéncia de Nietzsche — com a confissa0 cle uma incapacidade: “A ciéncia triste, da qual ofereco a meus amigos alguns fragmentos, refere-se a um campo que, durante muito tempo, foi considerado como o proprio. a filesofia|.., a doutrina da vica correta."* Entrementes, a ética rogreditt A ciéncia triste, conforme pensa Adorno, 1-T.W, Adotno, Mininna moratia, Fankfuct am Main, 1951, p. 7. 4 O FUTURO DA NATUREZA HUMANA pois, quando sinuity, ela penmite “reflexdes” disperses, retidas na forma aforistica e “originadas a partir da vida Prejudicada’’ I Enquanto a filosofia ainda acreditava que podia se assegurar da totalidade da natureza e da histéria, ela dis- punha de uma posicao supostamente consolidada, na qual a vida humana dos indivicuos e das comunidades devia se inserir. A estrutura do cosmo e a natureza humana, as fa ses da historia universal e da histéria sagrada forneciam elementos impregnados de normas, que aparentemente também ofececiam elucidagio sobre a vida correta. “Cor reto” tinha aqui o sentido exemplar de wn modelo digno de imitagdo para a vida, seja pelo individuo, seja pela co- munidace politica. Do mesmo modo como as grandes re ligides apresentavam a vida dos seus fundadores como 0 caminho da salvacéo, a metaffsica também oferecia seus modelos de vida ~ pata a minoria, certamente um cami- nho diferente daquele da maioria. As doutrinas da boa Vida e da sociedade justa, como a ética ¢ a politica, eram ainda doutrinas com uma base tnica, que formavam wm todo. Todavia, com a aceleracao da transformacao social, também os periodos de declinio desses modelos da vida ética se tomaram cada vez mais curtos ~ independente- mente de sua orientacio, que podia ser para a polis gre- 2, para as classes da Sacietas civilis medieval, para o indi- viduo universal do Renascimento urbano ou, conforme Hegel, para a estrutura da familia, da sociedade civil e da ‘monarquia constitucional O liberalismo politico de alguém como John Rawls ‘marca o ponto final dessa evolueao, Ele reage ao pluralis- MODERAGAO [uSTIFICADA mo {deolbgico @ & indvidvaltzagao crescente cios estilos Ge vida. Tira suas conclusdes a partir do fracasso das ten- tativas fllos6ficas de designar determinadas modos de vida como exemplares ou universalmente decisivos. A “socie- Gade justa” deixa ao critério de todas as pessoas aquilo que elas querem “iniciar com 0 tempo de suas vidas”. Ela garante a todos a mesma liberdade para desenvol- ver uma autocompreensao ética, a fim de formar uma ncepcio pessoal ca “boa vida” segundo capacidades & critérios proprios. Naturalmente, 05 projetos individuais de vida nao se foram independentemente dos contextos partilhados intersubjetivamente. No entanto, dentro de uma socieda- Ge complexa, uma cultura 56 consegue se afirmar perante as outras convencenclo suas novas geracéees, que também podem dizer “ndo”, das vantagens de sua semantica que Viabiliza o mundo e de sua forca orientada para a aga. Nao pode nem deve haver uma protegao cultural das es- pécies. De modo semelhante, num Estado constitucional democritico, a maioria ndo pode preserever &s minorias, a propria forma de vida cultural ~ na medida em que estas se distanciam da cultura politica comum do pais—como. uma suposta cultura de referéncia, Conforme nos mostra o exemplo, ainda hoje a filoso- fa pratica no renuncia totalmente a reflexdes normati- vas. Todavia, na sua totalidade, ela se limita a questdes sobre a justiga. Ela se esforga especialmente para eluci- dar o ponto de vista moral que adotamos pata julgar nor- mas e aces sempre que se trata de estabelecer 0 que é de igual interesse de cada um e igual mente bom para todo: A primeira vista, a teoria moral e a ética parecem se deixar guiar pela mesma pergunta: “O que eu devo fazer, 0 que nds devemos fazer?” No entanto, o “dever” recebe um outro significado quando deixamos de perguntar, a partir 6 (OFUTURO DA NATUREZA HUMANA de uma perspectiva inclusiva do “nés”, pelos direitos & deveres que todos atribuem uns aos outrcs ¢ passamos a nos preocupar com nossa prdpria vida a partir da pers pectiva da primeira pessoa e a quostionar qual a melhor coisa a fazer “por mim” ou “por nés” a longo prazo, ob servando-se 0 todo, Com efeito,tais questées éticas sobre 4 propria sorte se estabelecem no contexto de uma deter- ‘minada histéria de vida ou cle uma forma de vida espe- ial. Elas se identificam com questies sobre a identidade: como devemos nos compreender, quem somos e quem qucremos ser. Para essas perguntas nao hé, evidentemen- te, nenhuma resposta que nao dependa do respectivo contento e, portanto, que seja universal cigualmente def nitiva para todas as pessoas, Poressa razio, as teorias atuais da justiga e da moral tvilham caminhos préprios, de todo modo diferentes dos da “ética”, se a tomarmos no sentido cléssico de uma doutrina da vida conreta, Do ponto de vista moral, senti- mo-nos obrigados a abstrair daquelas imagens exem- plares, que nos sio transmitidas nas grandes narrativas metafisicas e religiosas, uma vida bem ou mal sucedida Nossa autocompreensdo existencial poce até se alimentar da substancia dessas transmissies, mas a filosofia néo Pode mais intervir no debate desses poderes de fé, fun- dada em seu dircito proprio. Justamente nas questées que, para nés, sa0 de maior relevancia, a filosofia se des toca para um plano superior e passa a analisar apenas as propriedades formais dos processos de autocompreen do, sem adotar ela mesma uma posicio a respeito dos contedidos. Iéso pode ser insatisfat6rio, mas o que pode ser alegado contra uma moderagio bem fundamentada? Certamente,a teoria moral paga um preco muito alto por dividir seu trabalho com uma ética especializada nas MODERAGAO RUSTIICADA 7 formas da autocompreensao exstencial. Desse modo, ela desfaz a conexéo, que é a tinica a garantir aos julgamen- tos morais a motivagio para agir conretamente. As con- viegdes morais s6 condicionam efetivamente a vontade quando se encontram inseridas numa autocompreenséo ética, que coloca a preocupagao com o proprio bem-estar a servico do interesse pela justiga. Teorias deontoligicas apés Kant ainda poderiam explicar muito bem como as hormas morais devem ser fundamentadas e aplicadas; no mntanto, clas nao sto capazes de responder por que deve mos efetioamente ser morais. Tarmpouco podem as teorias politicas responder por que os cidadaos de uma comuni dade democratica, na discussao sobre os principios da vida em comum, devem orientar-se pelo bem-estar comum em. vex de se contentarem com um modus vivend! negociado de acordo com os prinefpios da racionalidade voltada para ins especificos (Zzoeckrationalitit), As teorias da justica, desatreladas da ética, s6 podem espemar pela “transigéncia” de processos de socializaco e formas poltticas de vida inda mais inquietante 6 querer saber por que a éti~ 2 filoséfica debxou o campo livre Squelas psicoterapias, jue, com a eliminagao de perturbac&es psiquices, se en- carregam da clissica tarefa de orientar a vida sem grandes escrdpulos. O nticleo filosdfico da psicandlise, por exern- plo, distingue-se claramente em Alexandet Mitscherlich, que entende a doenca psiquica como uma lesdo a um. modo de existéncia especificamente humano. Ela signif caria uma perda de liberciade causada pelo proprio doen- te, pois este apenas compensa com seus sintomes um $9- frimento produzido inconscientemente — sofrimento esse do qual ele escapa pela autodissimulagao. O objetivo da terapia seria um autoconhecimento, que “freqiientemen= te ndo passa da transformaggo da doenga em sofrimento, 8 CO FUTURO DA NATUREZA HUMANA porém num sofiimento que eleva o grau do Homo sa- Piens, pois nao aniquila sua liberdade”? Deve-se o conceito de “doenga” psiquica a uma cons- truco anallgica com doenga somética. Mas até que pon- to chega essa analogia, se ainda faltam, na étea psiquica, pardmetros de observacao e de julgamento precisos para determinar 0 estado saudével? Obviamente, € preciso que ‘uma compreenséo normativa do "ser si mesmo nao per turbado” substitua os incicadores sométicos que faltam. Isso se toma evidente sobretudo nos casos em que a ‘optessio causada pelo sofrimento, que leva os pacientes 0 analista, acaba sendo ela prépria reprimida, de mo- dlo que a perturbacao se introduz discretamente na vida normal. Por que a filosofia deveria se intimidar, por exem plo, com aquilo que a psicandlise se julga capaz de fa- zet? Trata-se de esclarecer nossa compreensao intuitive a respeito das caracteristices clinicas de uma vida fra cassada ou néo. Mesmo assim, a declaracao de Alexan der Mitscherlich, mencionada anteriormente, revela as pistas de Kierkegaard e de seus sucessores filos6fico-exis- tencialistas, 0 que nao é por acaso. 1 Kierkegaard foi o primeiro a responder a questio éti- cae fundamental sobre os éxitos e fracassos da propria vida com um conceito pés-metafisico do “poder ser si mesmo”. Para 05 filésofos seguidores de Kierkegaard, como Heidegger, Jaspers e Sartre, esse protestante ator- 2 A. Mitscherich,Freihoit und Unfiedoitn der Kranthet, Staion 2 psyhosomaischen Medizin 3, Prankfust arn Main, 1977, p. 128. _MODERAGAD JUSTIICADA mentado pela quesiév luterana sobre 0 Deus micericor- dioso é certamente um 0550 duro de rocr. Na discussio sobre o pensamento especulativo de Hegel, Kierkegaard] dew A questao sobre a vida correta uma resposta se bem que pés-metafisica, porém ainda assim profundamente religiosa e, a0 mesmo tempo, tetgica. No entanto, os fi- J6sofos existencialistas, comprometicios com um atefsmo metédico, reconheceram em Kierkegaard o pensador que reformula a questao ética de um modo surpreendente nente inovador e a responde de maneira substancial e formalismo suficiente —este tltimo no sentido de um imo pluralismo ideol6gico, que profoe qualquer tute la em questdes genuinamente ticas?. Obviamente, me ite Scu confronto entre a concepcao “ética” e “estéti- ca” da vida, 0 Kierkegaard da alternativa Entweder/Oder {Ow/ou] acaba fornecenda o ponio de referéncia filos6fico. Nao sem simpatia, Kierkegaard traga nas cores atra tivas do Primero Romantismo a imagem de uma existén- cia jocosa em seu egocentrismo, a deriva numa ironia in- dolente e presa ao prazer desejado e 20 momento. Com esse hedonismo, uma resoluta conduta ética de vida, que exige do individuo que ele se concentre em si préprio e se liberte da dependéncia em relagao a um ambiente domi nador, compée o contraste desejaclo. O individuo precisa recobray a consciéncia de sua individualidade e de sua li- bevdade. Ao se emancipar de uma reificacéo que ele mes- mo se impingiu, ganha ao mesmo tempo distancia de si mesmo. Ele se recupera da dispersio andnima de una vida num étimo reduzida a fragmentos e confere A pré- pria vida continuidade e transparéncia. Na dimensao s0- cial, tal pessoa capaz de assumir a tesponsabilidade pe 3.]. Raves, Poitisher Liberation, Frankfurt am Main. 1998, 10 ORUTURO DA NATUREZA HUMANA los préprios ates e contrair compromissns com seis se~ melhantes. Na dimensao temporal, a preacupacao cor .go mesmo cria uma consciéncia da historicidade de uma existéncia, que se realiza nos horizontes do futuro ¢ do passado, simultaneamente entrecortados. A pessoa que assim se tora consciente de si mestna “tem a si propria como uma tarefa, que (Ihe) é imposta, mesmo que a te nha escolhido conscientemente”+ jerkegeard parie implicitamente do principio de que © individuo consciente de sua existéncia presta continua mente contas de sua propria vida a luz do Sermao da Montanha. Quanto aos proprios critérios morais, que en- contraram uma feicao secular no universalismo igualitario de Kant, ele nao despende muitas palavres. Toda a aten- ‘20 se destina sobretudo a estrutura do pader ser si mes: mo, ou seja, A forma de uma auto-reflexao ética e a uma escolha de si mesmo, determinada pelo interesse infin- dvel em que o projeto de vida tenha éxito, De maneira autocritica, o individuo apropria-se de seu passado hist- rico, efetivamente encontrado e concretamente rememo- ado, tendo em vista as possibilidades de agies futuras, Somente assim ele faz de si uma pessoa insubstitutvel e um individuo inconfundivel O individuo arrepende-se dos aspectos condendveis de sua vida pregressa e decide continuar agindo do modo em que ele consegue se reconhecer novamente sem se envergonhar. Sendo assim, ele articula a autocompreen- sio da pessoa que ele gostaria que os outros conhecessem € reconhecessem nele. Por meio de uma avaliagio mo- ralmente escrupulosa ¢ de uma apropriagao criticamen 4.8. Kierkegaard, Entwoeder’Oder, organizado por H. Diem e W Rest, Ksln e Ulten, 1960, p. 830, mopeRaglo jusTIFICADA n te sondada da histéria de vida efetivamente encantrada, tle se constitui como a pessoa que ele ao mesmo tempo 6 e gostaria de ser: “Tudo o que é estabelecido pela sua liberdade pertence essencialmente a ele, por mais ocasio- nal que isso possa parecer...” Por certo, Kierkegaard dis: toncia-se muito do existencialismo de Sartre ao acrescen- lot: “Essa distingao nao 6, para o individuo ético, uma es. pécie de resultado do seu arbitrio [..] Ele pode muito bem dizer que é seu préprio redator; mas ele é 0 reda- tor responsdvel [..] pela ordem das coisas em que ele vive, responsavel perante Deus”? Kierkegaard esté convencico de que a forma de exis- tencia ética, produzida a partir de esforgo proprio, s6 pode ser estabilizada na relacao do fel para com Deus. Ele che- a deixar para tras a filosofia especulativa e passa a dk cenvolver um pensamento pés-metafisico, mas de manei- ta alguma pés-religioso. Contudo, nesse contexto, ele se serve itonicamente de um argumento jé utilizado por Hegel contra Kant, Enguanto basearmos a moral, que fo neve o critério para a 40 de si mesmo, apenas no conhecimento humano, no sentido socratico ou kan- tiano, faltaré a motivacéo para converter em pratica os jul- gamentos morais. Kierkegaard ndo chega a combater 0 sentido cognitivo tanto quanto o equivoco intelectualista da moral. Se a moral pudesse impulsionar a vontade do sujelto cognoscente mediante apenas bons argumentos, io se poderia explicar aquele estado de desolagao que © eritico de época Kierkegaard, sempre volta a apontar e que se refere a uma sociedade esclarecida do ponto de vista cristo e convencida da infalibilidade de sua moral, nas profundamente corupta: "Disso, pode-se tanto cho- 5. Ibid, p. 827, 2 (0 FUTURO DA NATUREZA HUMANA rar quanto nit ad se perceber que todo esse saber ¢ essa compreensao nao exercem nenhum poder sobre a vida das pessoas.”* A repressio, coagulada em normalidade, ou o reco- nhecimento cinico de um estado injusto do mundo nao falam em favor de um déficit de conhecimento, mas de uma comupgiio do desejo, As pessoas que melhor poderiam sa- bé-lo, néo querem compreender. Por essa razao, Kierke- gard nao fala de culpa, mas de pecado. Tao logo, porém, interpretamos a culpa como pecado, sabemnos que depen: demos da absolvigao e que precisamos depositar nossa esperanca num poder absoluto, que pode intervir de ma neira retroativa no decorrer da histéria e restabelecer a or dem afetada, bem como a integridade das vitimas. So- mente essa promessa de salvagao constitui a ligaco mo- tivadora entre uma moral incondicionalmente exigente & a preocupagio consigo mesmo, Uma consciéncia moral ppds-convencional s6 consegue se transformar no nticleo de cristalizago de uma conciuta de vida consciente quan~ cdo estiver inserida numa autocompreensio religiosa. Kiet kegaard usa o problema da motivagéo como um trunfo contra Sécrates e Kant para chegar a Cristo ultrapassan- do ambos. Contudo, esse Climacus ~ pseud6nimo de Kierke- goard, autor da obra Philosophische Brocken [Migalhas filosoficas) ~ nao tem nenhuma cerieza de que essa mer sagem crista de salvagao, que ele hipoteticamente con dera como um “projeto de pensamento”, seja mais “ve dadeira” do que o pensamento imanente, que se move nas fronteiras pés-metafisicas da neutralidade ideol6- 6. 8. Kierkegaard, Die Krantleit sunt Tode, organizado por I. Richter, Frank am Main, 1988 p. 4ODERAGAO JUSTIFICADA 13 ica’, For 1380, Kierkegaard coloca em cena um Antich- macus, que, embora nao domine seu adversirio secular com argumentos, pretende “ultrapassar Séerates” como auritio cde uma fenomenologia psicoldgica. ‘Com base em formas de vida sintomdticas, Kierke- jaard descreve as manifestagdes de uma “doenga mortal” salutar ~ as feigdes de um forgoso desespero inicialmen- te reprimido, que depois ultrapassa o limiar da conscién- cia e finalmente impée o retorno da consciéncia centrada no eu. Essas feigdes do desespero também so manife tacdes da falta de uma relagao existencial de base, que € a tinica capaz de produzir um ser si mesmo auténtico. Kierkegaard descreve 0 estado inquictante de uma pessoa que, embora tenha consciéncia da sua determinacao de ter de ser um si mesmo, refugia-se nas alternativas “do desespero de ndo querer ser esse si mesmo ou, num ni- vel inferior, do desespero de nao querer ser um si mesmo, ‘ou, no nivel mais baixo de todos, de queter ser um outro diferente de seu si mesmo”®. Quem finalmente reconhe- ce que a fonte do desespero nao est nas cizcunsténcias, nas nos proprios movimentos de fugz, empreenders uma busca obstinada, porém igualmente sem sucesso, para “ querer ser si mesmo”. 0 fracasso desesperado desse til- timo ato de forca—_do querer ser um si mesmo totalmen- te obstinado por si mesmo - move o espirito finito para uma transcendéncia de si mesmo e para um reconheci mento da dependéncia em relagao a um outro, em que a prdpria liberciade se funda. 7.5. Kierkegaard, Philosophische Brocen,organizado por L. Rich= , Frankfurt am Main, 1984. Ci. a condlusio "Die Moral” "A mo: "| p10 8.8. Kleskegeard, Die Kranthet 20m Tode, p. 51 (FUTURO DA NATUREZA HUMANA Esse retorno deve marcar 0 ponto de transigao do exercicio, a superacéo da autocompreensio secularizada da razéo moderna. Com efeito, Kierkegaard descreve esse renascimento com uma fOemula que recorda os primeiros pardgrafos des doutrinas cientiticas de Fichte, mas que, ‘a0 mesmo tempo, inverte 0 sentido autnomo da a¢ao em seu contrério: “Na medida em que o individuo se re- Jaciona consigo mesmo e quer ser si mesmo, 0 si mesmo se estabelece com transparéncia no poder que o insti- tuiu.”? Com isso, 0 relacionamento de base toma-se vis vel ¢ possibilita a existéncia do ser si mesmo enquanto forma da vida correta. Embora a referéncia literal a um “poder”, em que o poder ser si mesmo se fundamenta, nao deva ser entendida num sentido religioso, Kierke- gaard insiste no fato de que o espitito humano s6 pode alcangar a compreensao correta de sua existéncia finita por meio da consciéncia do pecado: 0 si mesmo existe real mente apenas perante Deus, Ele sobrevive aos estigios de desespeto absoluto apenas sob a forma de um fel, que, 20 se relacionar consigo mesmo, relaciona-se também com um absolutamente outro, a0 qual ele tudo deve" Kierkegaard enfatiza que nao podemos formar ne- nhum conceito consistente de Deus ~ nem via eninen- fae, nem via negations. Toda idealizagdo permanece pre- ‘sa 208 predicados bisicos finites, dos quais parte a ope- ago pela qual tentamos nos elevar; ¢, pelos mesmos motivos, também fracassa a tentativa do intelecto de de- finir 0 outro absoluto, por meio da negacio de todas es determinacées finitas: “A inteligéncia nao ¢ capaz de 9. bid. p. 18 1D. M. Theunisson, Das Selst auf com Grand der Veraeeifang, Meisenheim Frankfurt am Main, 1991, MODERAGIOR imaginar a diterenca absoluta. Ela nao pode negar-se ast mesma absolutamente, pois utiliza a si mesma para esse fim e imagina a diferenga em si mesma.""" O abismo en- treo saber e a fé no pode ser superado por meio do pen- samento. Naturalmente, para os estuclantes de filosofia, esse fato causa um transtorno, Por certo, mesmo um pensadox socrdtico, que nao pode se apoiar em verdades evidentes, poderd seguir a fenomenologia sugestiva da obra Kratk- eit zwn Tode {Doenca mortall ¢ aceitar o fato de que 0 intelecto finito depende de condigdes de possibilidade, que escapam de seu controle. A conduta de vida etica- mente consciente nao poxie ser compreendida como uma autopermiss’o propria de uma visio limitada. © pensador socrdtico também hé de concordar com a idéia de Kierke~ gaard de que a dependéncia em relagéo a um poder que no nos esté disponivel nao deve ser entendida de modo naturalista, mas inicialmente vinculada a um relaciona- mento interpessoal. Com efeito, a obstinacao de uma pes 80a que se revolta e que ao final quer desesperadamen- te ser ela mesma, volta-se, enquanto obstinacao, contra uma segunda pessoa. No entanto, aquilo que nao nos esté dispontvel e de que dependemos enquanto sujeitos capacitados para a linguagem e para.a acao, temendo 0 fracasso de nossa vida, nao pode ser icentificado com o “Deus no tempo’, sob as premissas de um pensamento pés-metatisico. ‘A mucanga lingitstica permite uma interpretacao deflacionista do “totalmente outro”. Enquanto seres his. t6ticos e sociais, encontramo-nos desde sempre num mundo da vida estraturado lingtiisticamente. J4 nas for- LS. Kierkegaard, Philosophicce Brocton, p43. 16 (O FUTURO DA NATURFZA HUMANA mas de comunidayig, pur meiv das quais nusentendemos tuns com os outros sobre os acontecimentos do mundo e sobre nds mesmos, deparamos com um poder transcen: dental. A lingua no € uma propriedade privada. Nin guém dispée exclusivamente do meio comum de com: preensio, o qual devemos compartilhar intersubjetiva mente, Nenhum participante individual pode controlar a estrutura ou mesmo o desenrolar dos processos de com- preensio e de autocompreenso, O modo como os falan- tes ¢ ouvintes fazem uso de sua liberdade de comunica~ Go para tomar posigdo favordvel ou contréria nao é uma questio de arbitrio subjetivo. Com efeito, sZo livres ape nas gragas & forca vinculante clas pretenstes, que nece sitam de justificativas e s4o reivindicades reciprocamen- te por tais falantes e ouvintes. No logos da lingua, per- sonifica-se um poder do intersubjetivo, que é anterior & subjetividade dos falantes e a sustente Essa leitura fraca e procedimentalista do “outro” mantém o sentido falivel e, ao mesmo tempo, anticéptico de “incondicionalidade”. O logos da lingua escapa a0 nosso controle ¢, no entanto, somos nés, os sujeitos ca- pacitados para a linguagem ¢ para a acio, que, por esse meio, nos entendemos uns com os outtos. Este se tora “nossa” lingua. A incondicionalidade da verdade e da li- berdade é um pressuposto necessério de nossas praticas, mas, além dos constituintes da “nossa” forma de vida, elas carecem ce toda garantia ontolégica. A autocom preensio “conreta” e ética tampouco & “dada” explic tamente ou ce qualquer outro modo. Ela 36 pode ser ad quirida num esforco comum. A partir dessa perspecti va, aquilo que nosso ser si mesmo torna possivel surge antes como um poder transubjetivo do que como um poder absolut. MODERAGAO JUSTIFICADA 1 Partindo dessa visio pés-religiosa, a ética pés-meta fisica de Kierkegaard também permite a caracterizacao de uma vida nao fracassada, Os enunciados universais s0- bre os mados do poder ser si mesmo nao sao descricoes estangues, mas possuem um valor normativo e forca de orientagao. Na medida em que essa ética do juizo se ab- tém nao do modus existencial, mas do direcionamento de- terminado de projetos de vida individuais e de formas de vida particulares, ela satisfaz as condligoes do pluralismo ideoligico. F, porém, interessante observar que a mode- rago pés-metafisica esbarra nos seus limites, quando se dliscutem questées telativas a uma “ética da espécie”. Tao logo a autocompreensao ética de sujeitos capacitados para a linguagem e para a agdo entra totalmente em jogo, a fi losofia ndo pode mais se furtar a tomar posicao a respcito de questies de contetido. Enessa situagio que nos encontramos hoje. O pro- aresso das ciéncias biolégicas ¢ © desenvolvimento das biotecnologias ampliam nao apenas as possibilidades de agio jé conhecidas, mas também possibilitam um novo tipo de intervengao. © que antes era “dado” como natt- reza orgénica e podia quando muito ser “cultivado", mo- vve-se atualmente no campo da intervengao orientada para um objetivo. Na medida em que o organismo humano também é compreendido nesse campo de intervengio, a distingZo fenomenolégica de Helmuth Plessner entre "ser um corpo vivo” (Leib sein) e “ter um corpo” (Kory hucben) adquire uma atuelidade impressionante: a frontei- ra entre a natureza que “somos” e a disposi¢ao organi ca que “damos” a nds mesmos acaba se desvanecendo. Por conseguinte, para os sujeitos produtores, surge um 18 (FUTURO DA NATUREZA HUMANA nw cia, que aleanga v nivel mais profundo do substrato orgénico, Sendo assim, depence 14 da autocompreenséo desses sujeitos © mado como de sejaréo utilizar o alcance da nova margem de decisao~ de maneira aiténoma, segundo consideragdes normativas que se inserem na formacao democratica da vontade, ou de maneira arbitréria, em fungao de suas preferéncias sub jetivas, que serdo satisfeitas pelo mercado. Nao se trata de uma atitude de critica cultural aos avangos louvdveis do conhecimento cientffico, mas apenas de saber se a im- plementagio clessas conquiistas afeta a nossa autocom- preensio como seres que agem de forma responsavel e, em caso afirmativo, de que modo isso se dé, Devemos consicerar a possibilidace, categorialmen te nova, de intervir no genoma humano como um aumen- to de liberdade, que precisa ser normativamente regila meniado, ow como a autopermissio para transformacées que dependem de preferéncias e que nao precisam de ne- nniauma autolimitagao? Somente quando essa questao Fun damental for resolvida em favor da primeira alternativa é «que se podorio discutir os limites de uma eugenia nega- tiva e inequivocamente voltada & eliminacdo de males. Eu gostaria de abordar aqui apenas um dos aspectos do pro: biema subjacente a essa questao, a saber, o desafio da mo- dema compreensio da liberdade. A decodificagao do genoma humano promete intervengdes que langam, de modo surpreendente, uma luz sobre uma condigio natu ral de nossa autocompreensao normativa, condigio essa até agora néo tematizada, mas que, nesse momento, re- vela se essencial Até hoje, o pensamento secular da modemidace euro: péia pode, tanto quanto a crenca religiosa, partir do prin cfpio de que a constituigao genética dos recém-nascidos MODERACAO RUSTIFICADA 19 ©. por conseguinte, as condiciies orgénicas iniciais para sua futura histéria de vida escapavam da programacao eda manipulagdo intencional feitas por terceiros. Certa~ mente, a pessoa em crescimento pode submeter sua his toria pessoal a uma avaliacéo critica e a uma revisdo re trospectiva, Nossa biografia compoe-se de uma materia da qual podemos nos “apropriar” e pela qual podemos, no sentido de Kierkegaard, “nos responsabilizar”. O que hoje se coloca a disposigao é algo diferente: a indisponibi- lidade de ur processo contingente de fecundago, com a conseqiiente combinagao imprevisfvel de duas seqiéncias diferentes de cromossaimos. Tadavia, no momento em que podemos dominé-la, essa continggncia discreta revela-se como um pressuposto necessétio para evidenciar 0 poder ser si mesmo ca natureza fundamentalmente igualitéria das nossas relagdes interpessoais. Com efeito, um dia quando 03 adultos passarem a considerar a composicao genética desejavel dos seus descendentes como um pro- duto que pode ser moldado e, para tanto, elaborarem um design que Ihes parega apropriado, eles estarao exercen do sobre seus produtos geneticamente manipulados uma espécie de disposigao que interfere nos fundamentos so- méticos da autocompreensdo espontinea e da liberdade Gtica de uma outra pessoa e que, conforme pareceu até agora, s6 poderia ser exercida sobre objetas, e nfo sobre pessoas. Desse modo, mais tarde os descendentes pode- iam pedir satisfacio aos produtores do seu genoma & responsabilizé-los pelas conseqiiéncias, indesejéveis do seu ponto de vista, desencadeadas no inicio organico de sua historia de vida. Essa nova estrutura de imputagao resulta da confusdo de limites entre pessoas ¢ coisas ~ como jd ocorre hoje no caso dos pais de uma crianca de- ficiente, que usam de uma agSo civil para responsabilizar 20 (O FUTURO DA NATUREZA HUMANA seus médicos pelas conseqiiéncias materiais de um diag- néstico errado no pré-natal e exigem “indenizacao", como se a deficiéncia surgica contra a expectativa médica pu- desse caracterizar um delito passivel de agéo por dano material Com a decisio irreversivel que uma pessoa toma em. relagio & constituigdo “natural” de outra, surge uma rela sao interpessoel desconhecida até o presente momento. Esse novo tipo de relagao fere nossa sensibilidade moral, pois forma um corpo estranho nas relagoes de reconhe cimento legalmente institucionalizadas nas sociedades modemas, Na medida em que um individuo toma no lu- gar de outro uma decisdo irreversivel, interferindo pro- fundamente na constituigo orgénica do segundo, a si- metria da responsabilidade, em principio existente entre pessoas livres e iguais, torna-se limitada. Perante n0s50 destino determinado pela socializacéo, preservamos fun- damentalmente uma liberdade diferente da que teriamos com a produgao pré-natal do nosso genoma. O joven em crescimento poderd um dia ele mesino assumit a res- ponsabilidade por sua histéria de vida e por aquilo que cele 6. Com efeito, ele pode se colocar de modo reflexivo perante seu processo de formacao, elaborar uma auto- ‘compreensa0 revis6ria ¢ compensar, de maneira apro- fundada e retrospectiva, a responsabilidade assimétrica dos pais em relagao & educagao de seus fills. Essa pos- sibilidade de uma apropriagio autocritica da historia da propria formacio nao ocorre do mesmo modo em relagio as pessoas que sofreram manipulagdo genética. Ao con- ttétio, 0 adulto nesse caso permaneceria totalmente de- pendente da decisio tomada por um terceiro ¢ que nic pode ser reconsiderada, e no teria a chance de estabele~ cera simetria da responsabilidade, necessétria para o rela MODERACKO JUSTIEICADA 21 cionamento entre peers [iguais], seguindo o caminho re- troativo de uma auto-teflexdo ética. Ao descontente resta- ria apenas escolher entre o fatalismo e 0 ressentimento. Sera que essa situacdo mudaria muito se amplidsse- mos 0 cenério da teificacao do embriao em favor de cor- egies auto-reificantes do adulto no préprio genoma? Tan: to num quanto noutro caso, as conseqiténcias mostram que 0 alcance de interveneées biotécnicas evoca, como até agora, nao apenas dificeis questées morais, mas tam bém prope questies de outra especie. As respostas con- cemem & autocompreensdo ética da humanidade em seu ‘anjunto. A Carta dos Direitos Fundamentais da Unigo Furopéia, proclamada em Nice, jé considera a circunstén- cia de que a pracriagao e o nascimento perdem esse ele- mento da indisponibilidade natural, que é essencial para a nossa autocompreensao normativa. O artigo 3%, que gatante 0 direito a integricade fisica e mental, contém “a proibigdo de praticas eugénicas, sobretudo das que visam a selegao de pessoas”, bem como “a proibicdo da clona~ gem reprodutiva de seres humanos”. No entanto, seré ‘que essas orientagdes axiolégicas da Velha Europa jé nao so consideradas hoje ~ nos Estados Unidos ¢ em ‘outros paises — talvez como caprichos atraentes, porém impréptios para sua época? Devemos nos compreender ainda como seres nor- mativos de maneira geral, ou at$ como seres que esperam. uns dos outros uma responsabilidade solidaria e que tém ‘gual respeito uns pelos outros? Que siatus devemos con- ferir & moral e ao direito para que um relacionamento social também possa se adaptar a conceitos funcionalis- tas € desprovidos de normas? ‘rata-se sobretudo de al- ternativas naturalistas. A isto pertencem nao apenas as propostas reducionistas dos cientistas, mas também as. 2 © FUTURO DA NATUREZA HUMANA especulagdes adolescentes sobre a superior inteligéncia artificial das tuturas geragdes de robés. Por conseguinte, a ética do poder ser si mesmo trans: forma-se numa dentre vérias alternativas. A substancia dessa autocompreensdo nao consegue se afirmar por mais tempo com argumentos formais, competindo com outras respostas. Ao contrério, hoje a indapacio filosifica origi- nal sobre a “vida correta” parece se renovar no universo antropolégico. As novas tecnologias nos impingem um discutso puiblico sobre a correta compreenszo da de vida cultural enquanto tal. E 0s filésofos nao tém mais enhum bom motivo para abancionar esse objeto de dis cussio dos bidlogos e dos engenheiros entusiasmados pela ficeao cientifica A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? A DISCUSSAO EM TORNO DA AUTOCOMPREENSAO ETICA DA ESPECIE “Se os futuros pais exigem uma autoceter: minagio de grandes proporgies, entio seria, apenas justo garanti também ao futuro fi Iho a chance de levar uma vida auténoma.” (anpreas KuMMann) Em 1973, conseguiu-se separar ¢ voltar a combinar componentes elementares de um genoma. Desde essa recombinacao artificial de genes, a técnica genética, es- pecialmente na medicina reprodutiva, acelerou seu desen- volvimento, que naquele ano foram empregados nos pro cedimentos do diagnéstico pré-natal e, a partir de 1978, na inseminagdo artificial. O métocto da juncao de évulos espermatozéides “in vitro” faz.com que as células-ironco hhumanas sejam acessiveis a pesquisas e experiéncias sobre a genética humana fora do corpo matemo. A “reprodugio medicamente assistida” j4 havia conduzido a préticas que intervieram de maneira espetacular nas relaghes entre 2s geragées ena relacao tradicional de parentesco social e de ‘escendencia biol6gica, Refiro-me as “barrigas de aluguel”, 20s doadores andnimos de esperma e as doagoes de évu- los, que possibilitam a gravidez apés a menopausa, 011 a0 uso perversamente protelado de dvulos congelados. No entanto, somente 0 encontro da medicina reprodutiva e da técnica genética concuziu ao método do diagnéstico genético de pré-implantagio (DGP?), assim como criou perspectivas para a produgo de dtgéos e intervencdes or ‘ORUTURO DA NATUREZA HUMANA para mextificarin genética com fins terapéuticoc. Hoje, 0 piiblico geral dos cidacéos também se vé confrontado com questies cujo peso moral ultrapassa em grande medida © teor usual dos debates politicos. Do que se trata? O diagndstico genético de pré-implantagio torna possi vel submeter 0 embrido que se encontra num estagio de cito células a um exame genético de precaugao. Inicial- mente, esse proceso é colocado & disposicgo de pais que guerem evitar o risco da transmissio de doencas heredi- tarias. Caso se confirme alguma doenca, o embrio ana- lisado na proveta nao é reimplantado na mae; desse mo- do, ela é poupada de uma interrupeao da gravidez, que, do contratio, seria efetuada apés 0 diagnéstico pré-natal A pesquisa sobre cAlulas-tronco totipotentes também se move na perspectiva médica da prevencao de doengas. Pesqut sas, induistrias farmacéuticas ¢ politicas que visam tor nar o mercado atraente para investidores nessas éreas des- pertam expectativas de superar em pouquissimo tempo escassez cle cirurgias de transplante por meio da produ sao de tecidos de érgéos especificos a partir de céiulas tronco embrionérias e, num futuro mais distante, evitar doengas graves, condicionadas monogenelicamente, por meio de uma intervencao de corregéo no genoma. Na Alemanha, tem crescido a pressto por uma emenda da lei de protegao ao embtido ainda em vigor. A exigéncia é no sentido de que a liberdade de pesquisa seja privile giada em relagéo a protegao da vida do embrido ¢ que “a Vida humana primétia, ainda que no produzida explici- tamente para fins de pesquisa, possa ser utilizada também para tais fins”. Nesse sentido, a comunidade alema de pesquisa invoca 0 objetivo elevado e a “chance realista” de desenvolver novos processos de cura Certamente, 08 autotes nao confiam muito na vera- Cidade da justificativa que deduzem da “légica da cura”. ACAWINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 25 Da rantrérin, nfo abandonariam a perspectiva de partic. pantes do discurso normativo pela de observadores. No gue conceme a conservacao prolongada de dvulos arti ficialmente fecundados, ao uso permitido de inibidores de nidagéo (espirais que nao impedem a concepeao, mas a fixagao do dvulo no tteto) e a regra existente para a inter- rupcio da gravider, esses autores acrescentam “que, com a introdugao da fertilizagao artificial, deu-se um passo importante nessa questao e que seria irrealista acreditar que nossa sociedade pudesse, num contexto em que jé foram tomadas as decisdes relativas ao direito A vida do embrido, retroceder ao status quo ante”. Enquanto prog- néstico soctoldgico, isso até pode ser comprovado como verdadero. Jé no Ambito de uma reflexdo juridico-politi ca moralmente fundamentada, a referéncia a for¢a nor mativa do factual apenas reforca 0 temor do piiblico céti- co de que a dinamica sistémica da ciéncia, da técnica e da economia produza fats accomplis [fatos consumados|, que hao podem mais ser normativamente recuperados. A ma- nobra néo muito convicta da DFG* desvaloriza as decla- ragdes amenizedoras, vindas de um campo de pesquisa ue se financia amplamente no mercado de capitais. Como a pesquisa biogenstica uniu-se ao interesse de aproveitamento dos investidlores e & pressao dos governos nacionais, que retvindicam ages bern-sucedidas, o desen- volvimento biotéenico revela uma dinamica que ameaga derrubar os longos processos normativos de esclareci- mento na esfera piblica. * Deusche Ferschungsgereinschaf comunidade alems ce pesqui saN.aa 1.R Kollel, I, Schneider, “Verschwiegene Interessen”, fn: Sit deutsche Zeitung de 8 dejo de 2001. Sobee os bastdores da impost 40 politica da pesquisa sobro embrises, cf. Chx. Schwviget, "Die Geiser die sie refen”, in: AZ, de 16 de julho de 2001 (FUTURO DA NATUREZA HUMANA Para os pracessos politicos de zutocompreensto, que, com razao, precisam de tempo, 2 falta de perspectiva 6 0 maior perigo. Fles nao podem se agarrar ao estado atual da técnica e & necessidade de regulamentagio, mas pre- cisam ter como objetivo o desenvolvimento global. Um provavel cendrio do desenvolvimento de médio prazo po Geria se apresentar da seguinte forma: na populacio, na esfera publica da politica ¢ na esfera parlamentar, impde- se inicialmente a idéia de que o recurso ao diagndstico ge~ niético de pré-implantagdo deve ser considerado por si sé como moralmente acimissivel ou juridicamente aceitavel, se sua aplicagao for limitada a poucos e bem definidos casos de doengas hereditarias graves que nao poderiam ser suportadas pela prépria pesson potencialmente em ques- to. Posteriormente, em virtude dos avangos biotécnicos e dos éitos na terapia genética, 2 permissdo serd esten- dida para intervengdes genticas em células sométicas (ou até em linhagens germinativas)?, a fim de prevenir e3- sas doengas hereditarias e outras semelhantes. Com esse segundo passo, que no apenas nio apresenta objegdes as premissas cla primeira decisBo como 6 coerente com elz, surge a necessidade de separar essa eugenia “negativa” (como parece ser justificada) daquela “positiva” (inicial: mente consideradla injustificada). Por razoes conceituais ¢ 2, Prfiro no enirar nas questdes especifces sobre a responsa~ bilidade moral pees amplas corseqtiéndas provocadas entre as gera~ s8es, responsabilidad essa que assumiziamoe com urna terapia genica [até entdo proibids) ou simplesmente com os realtades secundrios da terapia ce células somaticas para possivesalteragbes da linhagem sgerminativa. A esce respeito, cf. M. Lappé, "Sthical Issues in Man pulating the Human Germ Line”, é: H. Kuhse ¢ P. Singer (orgs), Bcethics, London (Blackivel), 2000, pp. 155-64. Na seqiénesa, cscs se sem muita espocfcidado a reepeto do ntervengGes genética” efe tuadas antes do nascimento, ‘ACAMINHO DE UMA ELIGENIA LIBERAL? a7 priticas, esse limite entre as duas é flutuante e, portanto, a intengdo de conter as intervencoes genéticas que beiram esse limite do aperfeigoamento genético de caracteristicas nos confronta com tim desafio paradoxal: justamente nas dimensdes em que 0s limites so pouco definidos, preci- samos tragar e impor fronteiras precisas. Atualmente, esse argumento jé serve para defender uma eugenia liberal, que nao reconhece um limite entre intervengies terapéu- ticas e de aperfeigoamento, mas deixa 3s preferéncias indi- Viduais dos integrantes do mercado a escolha dos objeti- ‘os telativos a intervencGes que alteram caracteristicas?. Tal devia ser 0 cendrio que o presidente da Republica Federal Alemd tinha em mente ao advertir em seu discur~ so de 18 de maio de 2001: “Quem comeca a fazer da vida humana um instrumento e a distinguir entre o que é dig- no ou néo de viver perde o freio.”* Esse “argumento do efeito bola-de-neve”* soa menos alarmista se pensarmos no uso retrospectivo que os lobistas da técnica genética fazem de casos precedentes, que nao despertaram nenhu- ma teflexao, e de praticas que se tornaram habituais sem. que nos déssemos conta (como o atual diagnéstico pré- natal), a fim de, com um “tarde demais” indiferente, por 3. N. Agar, “Liberal Eugonies", dt H. Kuhse, P, Singer (2000), p. 173: “Liberals doubt that the notion of disease is up for the moral heovetic task the therapeatic/eagenic distinction requires of 1” [78 liberi duvidam de que a nagio de moléetis esteja altura da tarela moral eteérica que a cistingio terapéutica/eugénica exge dela’). 4. Johannes Rau, “Der Mensch is ett Mitspteler der Evolution gevorden’, in: AZ, de 19 de maio de 2001, * Fim alemo, Dammbruchargumente, que literalmente significa “argumentos a ruptura de diques". Como o sentido 6 de uma situagio {que se agrava com o pascar do tempo, optou-se pela traducio “bola cle-neve, imagem mais usual em portugués (N. da T] 28 (OFUTURO DANATUREZA HUMANA de lado consideragies morais. O uso metodicamente cor- reto do argumento significa que agimos bem ao levar em consideragéo, para fazer o julgamento normativo dos de- senvolvimentos atuais, questoes que um dia poderiam ser confrontadas com desenvolvimentos de técnicas genéti- cas teoricamente possiveis (ainda que especialistas nos assegurem que hoje eles esto totalmente fora de alcan- ce), Essa maxima nfo 6 adequiada para a dramatizacéo. Enguanto ponderarmos a tempo sobre os limites mais, dramaticos, que talvez. possam ser ultrapassados depois de amanhi, podemos lidar de modo mais sereno com os problemas atuais e reconhecer 9 quanto antes que, mui tas vezes, as reagdes alarmistas nao sao faceis de ser der- rubadas com raz6es morais imperativas. Por essas razies entendo aquelas seculares, que devem contar com uma receptividade razoavel numa sociedade ideologicamente pluralist ‘A aplicacio da técnica de pré-implantagao vincula-se ‘a seguinte questo normativa: “E compativel com a dig nidacle humana ser gerado mediante ressalva ¢, somente apés um exame genético, ser considerado digno de uma Patino da opinii de colegas que conflam na rape € no bom aprovltamento biotenico das eidncasbiokgicas: “Science so often confounds te best predictions, ard we should nots finding fourelves unprepared for the genetic engineer's equivalent of Hi toshime, Beiter to have principle covering impossible stations than ho principles for situations that ere suddenly upon us" [’Muitas ‘easy a ela confunde oF metRoresprognGsticos, ends no pode tros aacero rsco de nos encontarmos desprepatsdos para que podria serum equvalente genético de Hizoshime, E melhor ter pin pies que deem conta ce stuagdes mpossvels do que note pin bios para situagdes com as quais depacames cepentinaments”) N. Agar “Liberal Eugenics”, fr: H. Kuhse eP. Singer (2000), pp. 171-81, nesta cago: p. 172. ‘A CANMINHO DE UMA ELIGENIA LIBERAL? 29 existincia ¢ de um desenvolvimento?”s Podemos dispor livremente da vida humana para fins de selecao? Uma questo semelhante se faz. quanto ao aspecto do “consu- mo” de embrides (inclusive a partir das proprias células sométices) para suprir a vaga esperanca de um dia poder- se produzir e enxertar tecicos transplantaveis, sem ter de enfrentar o problema de transpor as barreiras da rejeigio a células estranhas. Na medida em que a produgao e a uutilizagao de embrides para fins de pesquisas na érea mé- dica se disseminam e se normalizam, ocorre uma mudan- ‘gama percep¢ao cultural da vida humana pré-natal e, por conseguinte, uma perda da sensibilidade moral pera os limites dos cdlculos do custo-beneficio. Hoje, ainda nota~ ‘mos obscenidade de tal praxis reificante e nos pergun- tamos se gostariamos de viver numa sociedade que ad- quire consideragio narcisica pelas proprias preferéncias ao prego da insensibilidade em relagéo aos fundamentos notmativos e naturais da vida. ‘Ambos os temas, 0 do DGPI e o da pesquisa sobre células-tronco, partem da perspectiva da auto-instrumen- talizagao e da auto-otimizagao, que o homem esté a pon- to de acionar com os fundamentos biolégicos de sua exis téncia, dentro do mesmo contexto. A partir desse ponto, destaca-se a combinacéo normativa e disereta entre a in tangibilidacie da pessoa, ordenada moralmente e garantida juridicamente, e a indisponibilidade do modo natural de sua representagio corporal ‘Com o diagnéstico genético de pré-implantacéo, hoje i ¢ dificil respeitar a fronteira entre a selecdo de fatores hereditarios indesejaveis e a otimizagao de fatores dese- javeis. Quando existe a possibilidade de escolher mais de 6. R Kollek, Prdrmplantationsiagstit, Tibingen © Bosel (A. Peancke), 2000, p.214. 30 (O FUTURO DA NATUREZA HUMANA tum ¢inica “composta multicelular” patencialments “exce- dente", ndo se trata mais de uma deciséo binéria entre sim e ndo. O limite conceitual entre a prevengio do nas cimento de uma crianca gravemente doente ¢ 0 apertei ‘goamento do patriménio hereditrio, ou seja, de uma de- cisto eugénica, ndo é mais demarcado’, Isso passa a ter uma importéncia prética, tao logo se cumpra a expectati- vva crescente dle intervir de forma corretiva no genoma hu mano e de que as doencas condicionadas monogenetica- ‘mente possam ser evitadas. Com isso, o problema concei- tual proposto pela delimitagio entre prevengéo ¢ eugenia transforma-se numa questo de legisiacao politica. Quan do se considera que os outsiders da medicina jé estdo tra- balhando em clones reprodutores de onganismos huma- ros, impde-se a perspectiva de que em pouco tempo a espécie humana talvez. possa controlar ela mesma sua evolucio biolégice®. “Protagonistas da evolucéo” ou até “brinear de Deus” sdo as metaforas para uma autotrans formagio da espécie, que parece iminente. Com efeito, nao é a primeira vez que as sugestoes de tama teoria da evolugio inseridas no mundo da vida for- mam 0 horizonte associativo das discusses ptiblicas istura explosiva do danwinismo com a ideologia do livre-comércio, que se disseminou na virada do século XIX para 0 século XX, sob a protegao da Pax Britannica, parece renovar-se sob a influéncia do neoliberalismo que se globalizou. Certamente, nao se trata mais da superge- netalizagao social-darwinista de conhecimentos sobre a 7.A, Kuhlmann, Politik dos Lebo, Polit dee Stebons, Belin, 2001, pp. 104s. f.ames D, Watson, “Die Bihik des Genoms. Warum wir Gott nicht mehr die Zukuntt des Menschen ibecasson dun’ in: FAZ, de 26 de setembro de 2000. ACAMINHO DE UMA ELIGENIA LIBERAL? 41 hinlogia, mas do afronamenta, que se fandamenton ae mesmo tempo na medicina ena economy das “grilhGes sociomorais” do avango biotéenico. £ nessa frente que as concepgdes politicas de Schrdder e Rau, do FDP* e dos “Verdes” se embatem, E aro que também nao faltam especulagdes ferozes. Um punhado de intelectuais alienados tenta ler, a partir da borra de café, 0 futuro de um pés-humanismo que se tornou naturalista, apenas com o intuito de continuar di- vagando, diante de uma suposta barreira do tempo —"hi- permodernidade” contra a “hipermoralidade” ~, sobre os motivos amplamente conhecidos de uma ideologia bas: tante alema?, Felizmente, a elite conformada em ficar sem a “ilusZo de igualdade” e sem o discurso sobre a justiga no apresenta condigées suficientes para exercer sua contaminacao. As fantasies nietzscheanes dos que se autopromovem, que enxergam “na luta entre os peque nos @ grandes cultivadores do ser humano” o “conflito basico de todo o futuro” e encorajam “os principais seg- mentos culturais” a “exercer o poder de selecao que eles conquistaram de fato”, satisfazem, de modo provisério, apenas o espetéculo da midia™®, Partindo de premissas sucintas do Estado constitucional numa sociedad plura- lista, eu gostaria, em vez disso, de tentar contribuir para o esclarecimento dliscursivo dos nossos sentimentos mo- 1ais desencontrados" * Freie Danckratsche Parte Pattkl Liberal Democrata (N. da T). 9. Asse respeito, cto comentétioesclarecedor de Thomas AS~ heuer, ‘DerKisliche Mensch’, in. Die Zeit de 15 de margode 2001 10, CE Zet-Dokromert 2, 1999, pp. 4-18. 1, | Habormg, Faktsitt tnd Colton, Frankfurt om Mein, 1992; 4d, Die Einbevchunrg des Aruieren, Franck am Main, 1996. 12. Vide como excimalo as contibalgdes & diecussio reali centre fl6soles em Dis Zeit, n? 4.910, 2001 32 OPUTURO DA NATUREZA HUMANA Contudo, esse ensaio 6 literalmente uma tertatioa de tornar um pouco mais transparentes intuicdes dificeis de decifrar. Eu mesmo estou bem longe de acreditar que tam- bém s6 consegui chegar a meio caminho desse propdsto. No entanto, vejo que também sao poucas as andlises mais persuasivas? © fendmeno inquietante é 0 desvaneci mento dos limites entre a natureza que somos e a dispo- sigdo organica que nos damos. A questo sobre o signifi- cado da indisponibilidade dos fundamentos genéticos de nossa exist@ncia corporal para a prOpria conduta de vida € sobre nossa autocompreensio enquanto seres morais compoc a perspectiva a partir da qual observo a discusséo atual sobre a necessidade de regulamentagao da técnica genética (J). Segundo minha concepea0, 0s argumentos gue se tornararn conhecidos com o debate sobre o aborto dao um encaminhamento inadequadio 8 questio. O direi- toa uma heranga genética néo-manipulada é um tema diferente daquele sobre a regulamentagdo da interrupgio da gravidez (M). A manipulagao dos genes toca em ques: tes relativas a identidade da espécie, sendo que a auto compreensao do homem enquanto um ser da espécie também compée o contexto em que se inscrevem nossas representagSes do direito e da moral (Il). A mim interes- 1. A intensa toca de ies com Lut: Wingert e Rainer Fors ot tum grande ausio. Tambémn agradeco a Tilmann Habermas por seus -omentirios detalhados. Naturalmente, cada um cesses conselheitos tem suas reservas. A minha refere-se& circunstaneia de eu tratar ese tema sem estar familarizado com esse eatipo da biodtien Sendo a8 sim, lamento ter tomado conhecsmento da pesquisa realizada por Allen Buchanan, Daniel W. Brock, Norman Daniels e Danvel Wikler, € intulada From Chance to Choice, Cambrkige UP, Cambrklge, Mass. 2000, somente aps a conciusdo do meu manuscto. Tambem pari tho ca perspectiva deontoldgica da critica desses autores. Quanto as divergenciasigualmente exstentes, posso apenas marcé-las em pou «cos notas de rodepé, ecrescentadas posterionmente ACCAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 33 #a eopecialmente a questéo que trata do modu uno neutralizagio biotécrica da distineao habitual entre “o que crescett naturalmente” e “o que foi fabricado”, entre © subjetivo e o objetivo, muda a autocompreensio ética da espécie que tinhamos até agora (IV) e afeta a autocom- preensao de uma pessoa geneticamente programada (V), Nao pademos excluir 0 fato de que o conhecimento de ‘uma programacao eugénica do proprio patriménio here diténio limita a configuragao aut6noma da vida do indi- viduo e mina as relagoes fundamentalmente simétricas entre pessoas livres e iguais (VI). O uso de embrides ex- clusivamente para pesquisa” e 0 diagnéstico genético de pré-implantagio desencadeiam fortes reag6es, pois sio percebidos como uma exemplificacao dos perigos de uma eugenia liberal que se aproxima de nos (VII). 1, O que significa moralizagao da natureza humana? Os avancos espetaculares da genética molecular eon- Guzem aquilo que somos “por natureza’ cada vez mais ao campo das intervengGes biotécnicas. Do ponto de vista das ciéncias naturais experimentais, essa teenicizacéo da Natureza humana simplesmente dé continuidade a co- nhecida tendéncia de tomar progressivamente disponivel ambiente natural. Sob a perspectiva do mundo da vida, certamente nossa atitude muca tao logo a tecnicizagdo, ultrapassa o limite entre a nalureza “externa” e a “in * Verbrauchende Embryorenforsinung, que litecalmente quer dize ‘pesquisa que consome embrices", Diferentemente do diagnéstico _genélico de pré-Implantaco, que fa2 pasquisa com o emnbrlo, visando reimplanto posterionmente na mie, Vrbrauchende Enbryonenfrst sen autiizagto de embries para pesquisa pure, Portanto, os emibrides scrim “consuunidos” por essa pexpusa, para ating outros objetivos ‘enifcos ngo-voltados ao naseimente clo ser amano, (N. da R) a4 (O FUTURO DA NATUREZA HUMANA tema’. Na Alemanha, o legislador proibiu nao apenas 0 UGEL¢ 0 uso de embrides exclusivamente para pesqui- sa, mas também as quest0es relativas & clonagem tera péutica, & “barriga de aluguel” e 8 “eutandsia”, permitidas em outros paises. Por enquanto, as intervengdes téenicas na linhagem germinativa e na clonagem de organismos hhumanos chegam a ser mundialmente proscritas, obvia~ mente ndo apenas devido aos riscos a elas relacionados. Com Wolfgang van den Daele podemos falar da tentativa de uma “moralizagao da natureza humana”: “Aquilo que se tomou tecnicamente disponivel por meio da ciéncia de~ ve voltar'a ser normativamente indisponivel por meio do controle moral.” ‘Com os novos desenvolvimento técnicos, surge, na maioria das vezes, uma nova necessidade de regulamen- taco. No entanto, até agora, as regras normativas sim- plesmente se ajustaram as transformagées sociais. AS mudangas na sociedade, desencadeadas pelas inovacdes técnicas nos campos da produgao e do intercambio, da comunicagéo e dos transportes, do exército e da satide, estiveram sempre 3 frente, A cléssica teoria social ainda descreveu as concepsties pés-tradicionais do direito e da moral como resultado daquela racionalizacao cultural e social, que se realizou paralelamente aos avancos da cién- cia e da técnica modemas. A pesquisa institucionalizada € considerada como 0 motor desses avancos. A autono: mia da pesquisa adquire protecio a partir da perspectiva do Estado constitucional liberal. Com efeito, com o ale: ce¢ a profundidade crescentes da disposicao técnica sobre anatureze, tanto a promeessa econémica de progressos na 114, W. van den Dacle, “Die Natirlichkeit des Measchen als Kr teriuim und Schranke techniseher Eingrife in: Wechsel irk, ju holagosto de 2000, pp. 24-31. A CAMINHO DE UMA EUIGENIA LIBERAL? produtividade de aumento do bem-estar quanto a es- peranca politica de maiores margens de decisgo indivi- duais encontram-se unidas. Como a crescent liberdade de escalha incentiva a autonomia privaca do individuo, a ciéncia ea técnica estiveram até o momento informal- mente aliadas ao prine‘pio liberal de que todos os cida dos devem ter a mesma chance de moldar sua prépria vida de maneira autonoma Do ponto de vista sociolégico, a aceitagéo social nao deverd diminuir no futuro, enquanto a tecnicizag3o da na- tureza humana puder ser fundamentada pela medicina coma expectativa de uma vida mais saudavel e mais lon: ga. O desejo por uma conduta de vida autonoma une-se sempre aos objetivos coletivos de satide e de prolonga- ‘mento da vida. Por essa razio, no que conceme as tenta~ tivas de uma “moralizacao da natureza humana”, o olhar dla medicina histérica exorta ao ceticismo: “Desde as pri- meitas vacinagGes e operacées feitas no coragao ¢ no cére bro, passando pelo transplante de drgaos e pelos érpos attifciais, até chegar a terapia genética, sempre se discu tiu se jd nao se havia aleancado o limite em que mesmo os fins terapéuticos nao podiam mais justificar outras tecni- cizagdes do hamem. Nenhuma dessas discussdes dete vea técnica.” A pattir dessa perspectiva empiricamente desenganadora, as intervengées legislativas surgem na liberdade da pesquisa biolégica e no desenvolvimento da técnica genética como tentativas vas de se opor & tencén- cia de liberdade que domina a modemidade social, Tra- ta-se aqui de uma moralizagdo da natureza humana no 15. fi 16. W. van don Dacle, “Die Moralisienang der menschlichen Natur und die Netubeziige in gesellschaflichen Institutionen”, i Knit. Uj fr Geseagoting und Reciswisconscha 2 (1987), pp. 351-66. 36 (OFUTURO DA NATUREZA HUMANA sentido rle 1ma rassacralizagio discutivel. Depois que a ciéncia e a técnica ampliaram nossa margem de liberda de ao prego de uma dessocializago ou de um desencanta mento da natureza extema, essa tendéncia incontida pare- ce ser refteada com o estabelecimento de tabus artificiais, ‘ou sejo, com um novo encantamento da natureza intema, A recomendacéo implicita ¢ evidente: seria melhor reconhecer aquele resto de sentimento arcaico, que sub- sistiria na aversio as quimeras produzidas pela técnica genstica, aos seres humanos cultivados ¢ clonados ¢ aos cembrides utilizados em experiéncias. For certo, podemos ter um quadro totalmente diferente se entendermos a “moralizacao da natureza humana” no sentido da auto afirmacao de uma autocompreensao ética da espécie, da qual depende o fato de ainda continuarmos a nos com- Preender como tinicos autores de nossa histéria de vida e podermos nos reconhecer mutuamente como pessoas que agem com autonomia. A tentativa de prevenit, mediante Fecursos juridicos, que nos acostumemos a uma eugenia liberal, que vai se instalando lenta e discretamente, e de garantir a proctiagéo, ou seja, 8 fusdo de seqiéncias de cromossomos dos pais, um certo grau de contingéncia ‘ou naturalidade seria algo diferente da ewpressio de uma resisténcia apatica e antimodemista. Como garantia das condigees de presercacio da autocompreensao prética da modernidade, essa tentativa seria, antes, um ato politico de uma acio moral relativa a si mesma. Certamente, essa concepego combina com o quadro socioligico de uma modemidade que tenha se tornado reflexiva””. 17. U, Bock, Ristgeselichap, Feankfurt am Main, 1986; J Habermas, “Konzeptionen der Moderne", i, id, Die Postuatioule Konstllaton, Frankfurt am Main, 1988, pp. 195-231 _ACAMINHO DE UMA BUGENIA UBERAL? 37 A destradicionalizagio dos mundos da vida constitu ‘um aspecto importante cia modernizagao social; ela pode ser entendida como uma adaptacao cognitiva a condigdes de vida objetivas, que so incessantemente revoluciona- das em conseqiiéncia da exploragio dos avancos cientifi cos ¢ técnicos. Todavia, depois que as reservas de tradigao foram quase totalmente consumidas ao longo desse pro- cesso de civilizacdo, as sociedades modernas também tém de regenerar as energias morais que as unem a partir de ‘suas proprias resisténcias seculares, ou seja, a partir das fontes de comunicacao presentes nos mundos da vida, que se tornaram conscientes da imanéncia de sua auto- construgdo. Sob esse ponto de vista, a moralizagéo da “natureza interna’ apresenta-se antes como um sinal da “tigidez" dos mundos da vida quase totalmente moder- nizados, que perderam o apoio de garantias metassociais endo podem mais reagir a uma nova ameaca da sua con sisténcia sociomoral com outros impulsos de seculariza foe, sobtetudo, com uma reelaboragao moral e cogniti- va das tradigies religiosas. A manipulacéo genética poderia alterar nossa auto- compreensao enquanto seres da espécie de tal maneira, que, com 0 ataque as representagdes do direito e da mo: ral, 0s fundamentos normativos e incontomaveis da in- tegragdo social pocleriam ser atingidos. Tal mudanga de configuragio na perceppio dos processos de modemizagao lanca uma outra luz sobre a tentativa “moralizante” de adaptar os avangos biotécnicos as estruturas comunica- tivas do mundo da vida, surgicas de modo transparente. Esse propésito ndo denota um novo encantamento, mas uma transformagao reflexiva de uma modernidade que, ultrapassando seus préprios limites, se revela Com isso, o tema fica limitado & necessidade de saber 82 a protegio da integridade de patriménios hereditérios 38 (FUTURO DA NATUIREZA HUMANA ndo-manipuladgs pode ser justificada com a indisponi- bulidade dos fundamentos bioldgicos da identidade pes- soal. A protegio juridica poderia encontrar expresso num “direito a uma heranca genética, em que néo houve in- rvencao artificial”. Com um tal direito, reivindicado, por sua vez, pela assembléia parlamentar do conselho eur peu, a admissibilidade de uma cugenia negativa, justi cada pela medicina, nao seria previamente decidida. Dado © caso, esta poderia restringir, por meio de dispositivos legais, o diteito fundamental a um patriménio hereditario nao-manipulado, se a ponderagio moral e e formagdo de mocritica da vontade conduzissem a esse resultado A restricéo temética a intervengdes que implicam modlficagio genética ngo leva em consideragdo outros temas biopoliticos. Do ponto de vista liberal, as novas téc- nicas de reproducéo, tanto quanto a substituigao de ér- gos ou a morte medicamente assistida, apresentam-se como um aumento da autonomia pessoal. Muites vezes, a objegdes dos eriticos nao se voltam contra as premis sas liberais, mas contra determinados fendmenos ligados 8 reprocugao assistida, contra priticas duvidosas na cons tatacio da morte e na retirada de érpaos, bem como con. tra conseqiiéncias sociais paralelas e indesejadas da orga- nizacio juridica de uma eutandsia, que talvez se devesse deixar para a avaliacgo profissional, regulamentada pela Gtica da profissdo. Além disso, ha boas razdes para se con- star a utilizacdo institucional de testes genéticos eo modo como as pessoas lidam com o conhecimento ofere~ cido pelo diagnéstico genético preditivo. sas importantes questoes biosticas certamente es {0 ligadas ao aumento da acuidade do diagnéstico ¢ a0 dominio terapSutico da natureza humana. No entanto, somente a técnica genética, que tem em vista a selegao ¢ ‘A CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 39 a alteragdo das caracterfstices, bem como a pesquisa ne- cesséria para tanto e destinada a terapias genéticas futuras (Pesquisa essa que quase no permite uma diferenciagao entre a pesquisa fundamental e a aplicagio médica‘®) constituem uma neva espécie de desafios"”. Flas colocam a disposigao aquela base fisica, “que somos por nature- 7a”. Aquilo que Kant inclufra no “reina da necessidade” transformou-se com a visdo tedrico-evolucionista num “reino do acaso”. A técnica genética esté deslocando a fronteira enire essa base natural indisponivel e 0 “reino da liberdade”. A distingao entre essa “ampliagao da contin- géncia”, relativa & natureza “interna”, € es ampliegdes semelhantes da nossa margem de op¢ao esta na circuns- tancia de a primeira “modificar a estrutura geral da nos- sa experiéncia moral” 18.1. Honne‘eldler, “Die Horausforderung des Mensehien durch ‘Genomforsehung und Gontechnik", i: Forun: (Dif der Bundeszentrale fir geswsibetliche Aughirang), caderno n? 1, 2000, p. 9. 9, Pelas razes indicadas anteriocmente, concentio-me na sagguinte questio fundamental queremos mesmo caminhar na dite sgenia Hera, que ultapassa objetives rigorosamente terapéuticos? Néo entra e os sobre 0 que seria uma imple- rmentagio justa de tals procedimentos, Eases conseqiientes problemas normativos de uma eugenia em princiio adamada sio ratados por Bechanan eal. 2000), p. 4 do panto de wisa da teoria da justig, 2 rada por Rawls "The peimary objective of this book is. 10 answer single question: What are the mst hase moral principles that would aide pubhe policy and individual cheice concerning the nse of gene Be interventions in a just and humare society in which the powers of {genetic intervention are much mace developed than they are today?” [FO objetivo peincipal deste lira ¢... responder a uma tnics quest: (Quais sio os principios morais mais bisicos que pocriamn guiar a politica pica e a escolha individual em relaydo 20 uso de inerven- ‘58 genéticas numa sociedade justae humana, em que os podares da genilica serdo muito mais desenvolvides do que hoje?" O FUTURO DA NATUREZA HUMANA Ronald Dworkin justifica tal fato com a mudanga de perspectiva que a'técntca genética produz para as condi Bes consideradas até 0 momento como inalterdveis para 0 julgamento moral e a ago moral: “Faz-se uma distin- sao entre aquilo que a natureza criou, incluindo a evolu- cdo, [..] e aquilo que iniciamos no mundo com 0 awxtlio desses genes. Tanto num quanto nauitro caso, essa distin- géo traca urn limite entre o que somos e o modo como lidamos com essa heranga sob nossa prépria responsa- bilidade. Esse limite crucial entre o acaso ¢ a livre decisio forma a espinha dorsal da nossa moral. [..] Tememos a perspectiva de que os homens projetem outros homens, pois essa possibilidade desioca a fronteira entre 0 acaso ¢ a decisdo, que esté na base de nossos critérios de valor." E bastante contundente afirmar que as intervenes eugénicas e para modificagto genética poderiam alterar a estrutura geral da nossa experiéneia moral. Isso nos per- entender que, em alguns aspectos, a técnica gené- nos confrontar com questies praticas, que se refe- rem a pressuposios de julgamentos e ages morais. O des- locamento da “fronteira entre 0 acaso e a livre decisao” afeta de modo geral a autocompreensao de pessoas que agem de forma moral e se pteocupam com a propria exis- tencia. Ele nos torna conscientes das relagdes entre nos: sa autocompreensio moral eo pano de fundo da ética da espécle. De certo modo, também depende da maneira como nos entendemos antropologicamente enquanto se- res da espécie 0 fato de nos enxergarmos como autores responsdveis por nossa prdpria histria de vida e de po- 20, R. Dworkin, “Pie falsche Angst, Gott au spielen”, in: Zeit Dokwenent 1999), p. 39; cf, também “Playing God. Genes, Clones, and Luck’, ins i, Sovereiga Virtue, Cambridge. 2000, pp. 427-52, A CAMIIVHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 41 dermos nos considerar reciprocamente como pessoas “nascidas sob as mesmas condigdes”. Podemos conceber a aulotransformagio genética da espécie como o caminho para o aumento da autonomia do individuo ~ ou com isso estaremos minando a autocompreenséo normativa de pessoas que conduzem suas proprias vides e consagram, ‘© mesmo respeito umas as outras? Caso a segunda alternativa esteja correta, nao obte- mos diretamente um argumento moral decisivo, mas sim uma orientaga mediada pela ética da espécie e que reco- menda cautela e moderagio. Antes de entrar nessa ques- Go, eu gostaria de esclarecer a razdo pela qual o desvio necessétio. O argumento moral (e discutivel do ponto de vista do direito constitucional) de que o embriao destruta “desde 0 inicio” da digniclade humana e da absoluta pro tecdo 2 vida interrompe a discussao, da qual nao podemos nos esquivar se quisermos chegar a um acordo politico so- bre essas quesiées fundamentais, levando em conta o que é constitucionalmente exigido quanto ao pluralismo ideo- Jogico da nossa sociedade. Il. Dignidade humana vs. dignidade da vida humana O debate filos6fico em torno da admissibifidade do uso de embrides exclusivamente para pesquisa e do DGPT 21, Nao Teva em conta em nosso contexto a discusséa juriiea sobre as implicagses ds aplicagia vigente do § 218 do Ccigo penal alemo. A corte consttucional federal tomcu a nidagio como 0 ‘momento a part: do qual o feto deve receber protegio. Os jurisias consideram discutvel ¢ eu mesmo acho duvidosa a possibildade de transfece essa decsio, sem unas, conforme supdem Herta Diubler- (O FUTURO DA NATURE2A HUMANA ‘moveu-se at agota no canal da dliscussao sobre o abor to. Na Alemanha, tal discusséo levou & regulamentacao segundo a qual a interrupgao da gravidez atéa 12" sema- na € considerada um ato ilegal, mas livre de pena. Pela lei, o aborto é permitido se houver uma indicagao médi- ca.em casos de risco para a mae. Como em outros paises, esse tema dividiu a populacao em dois grupos. Enquan- to esse conflito determina a discussao atual, a polarizacao entre 0s partidérios “Pro Life” e aqueles “Pro Choice” dirige a atengio para o status moral da vida humana da- quele que ainda nao nasceu. © laclo conservador espera poder impedir os temidos desenvolvimentos da técnica genética, apelando para a protecéo absoluta do évulo fertilizado, Mas as supostas paralelas enganam. Em rela ‘¢20 4 questzo atual sobre a admissibilidade do DGPL, as mesmas convicgoes nommativas nao dao origem as mes mas tomadas de partido como na questio do aborto. Ho. je, 0 campo liberal daqueles que privilegiaram o direito de autodeterminagio da mulher em rela¢ao A protesto da vida do embriao em seus primeiras momentos esta div dido. Quem se deixa conduzir por intuigées deontok’ gicas nao quer simplesmente dar seu aval aos atestados Gmelin e Ext Bend exfera de merecmento de protetoabscata david humana parti da focondagiy ck M, Pav “Der Set hat dem Enbryo ale Trample genommen’, in: AZ. de 27 de jutho de Soir. Quanto sera ex consttagos ares, ver Ringer “Von welcern Zep an et der Embrye pte geet Sidhe sno det de julio de 2991, De ese, interpretacto cf tibunaesupeiont &couecBo de une props dere ante. prince conatitisoneis até moalent fadamentacs -exgem ACAMINHO DE UMA ELIGEMIA LIBERAL? Uilltarisias de nan-objegio a respoito da liberagio do uso instrumental de embrides® O uso do diagnéstico genético de pré-implantagSo, que permite prevenir um eventual aborto por meio da “rejeigao” de células-tronco extracorporais ¢ genetica- mente defeituosas, distingue-se da interrupgio da gravi- dez em aspectos relevantes. Com a rejeicao de uma gra videz indesejada, o direito da mulher & autodetermina Go colide com a necessidade de protegio do embrixo. No outro caso, a protecao da vida do feto entra em con- ito com as consideragoes dos pais, que, ponderando a questo como se fosse um bem material, desejam ter um filho mas recusam a implantagdo se 0 embriao nao cor- responder a determinados padrées de satide. Nesse con. flit, os pais nao sdo envvolvidos de inprovis; eles aceitam desde o principio o embate ao mandarem fazer um exa- me genético do embriao. Esse tipo de controle deliberado da qualidade coloca um novo aspecto em jogo ~a instrumentalizacao de uma vida humane, produzida sob condigdes e em funeao de preferéncias e orientagdes axiokigicas de terceiros. A deci sao de selecdo orienta-se pela composicao desejada do genoma. Uma deciséo sobte a existéncia ou a nao-exis- tencia se da conforme o critério da esséncia potencial. A decisio existencial de interrompera gravicez tem to pou co a ver com eesa disponibilizagao orientada para as ca- tacteristicas e com essa selegao da vida pré-natal como com a consumpeao dessa vida para fins de pesquisa. Apesar dessas diferengas, podemos tirar uma ligio dos debates sobre o aborts, conduzidos ao longo de déca 22. C1. R Merkel, “Rechte fr Embsyenen?’, is Die Zeit, de 25 de janaio cle 2003; U. Mueller, “Gebt une die Lizenz zum Klonen’”, inc FAZ, de 9 de margo de 2001. 44 (FUTURO DA NATUREZA HUMANA das com grande seriedade. Nessa controvérsia, fracassa toda tentativa de aleangar uma deserigio ideologicamente neutra e, portanto, sem prejulgamentos, do status moral da vida humana prematura, que seja aceitével para todos 0s cidadaios de uma sociedade secular”. Um lado descre- ve 0 embrigo no estégio prematuto de desenvolvimento como um “amontoado de células” 0 confronta com a pessoa do recém-nascido, a quem primeitamente compe te a dignidade humana no sentido estritamente moral. © outro lado considera a fertilizagao do dvulo humano como 0 inicio relevante de um processo de desenvolvi- mento jé individualizado e controlado por si proprio. Se- gunc essa concepsao, todo exemplar biologicamente de- termindvel da espécie deve ser considerado como uma pessoa em potencial e como um portador de direitos fun damentais. Ambos os lados parecer nao se dar conta de que algo pode ser considerado como “indisponive!”, ain- da que nao receba o status de um sujeito de direitos, que, ‘nos termos da constituigéo, é portador de direitos funda- mentais inaliendveis. “Indispontvel” nao é apenas aquilo quea dignidade humana tem. Nossa disponibilidade pode ser privada de alguma coisa por bons mativas morais, sem por isso ser “intangivel” no sentido dos direitos funda~ mentais em vigor ce forma irrestrita e absolute (que s4o direitos constitutivos da “dignidade humana”, conforme © artigo 1? da Constituigao) Sea discussto sobre a atribuigdo da “dignidade hu- mana’, garantida pela Constituicao, tivesse de ser decicii- da a partir de razdes morais imperatives, as questdes da técnica genética, ainda que tenham embasamento antro 23. R. Dworkin, Life's Dominion, Now York, 1994, [Trad. bea. Dominio cave, Sao Paulo, Martins Fontes, 2003,) ACAMINHO.DE LIMA ELIGENIA LIBERAL? poligico pmnfindo, nfo ultrapascariam campo di tes morais comuns. Sendo assim, as hipéteses ontolégi cas fundamentais do naturalismo cientifco, das quais deri- va o nascimento como cesura relevante, nao so de forma alguma mais triviais ou mais “cientificas” do que a! poteses metafisicas ou religiosas, do pano de fundo, que sugerem uma conelusdo contrétia, Ambos 0s lados refe- rem-se ao fato de que a foda tentativa de tragar um limite preciso ¢ moralmente relevante em algum ponto entre a fecunda¢ao ou a jungao dos gametas, de um lado, € 0 nascimento, de outro, une-se algo arbitréio, pois a par- t dos primérdios orpanicos, primeiro se desenvolveria, com grande continuidade, uma vida sensivel, que depois se tornaria pessoal, Todavia, se eu estiver certo, essa tese de continuidade vai antes de encontro a ambas as ten tativas de estabelecer um inicio “absaluto” e detinitivo, também no aspecto normativo, a partir de proposigées ontoldgicas, Nao seria, pois, arbitrétio resolver o fendmeno da ambivaléncia dos nossos sentimentos ¢ intuigSes, que mudam aos poucos conforme avaliam a questio do em brido nos estagios iniciais ou intermedidrios ou a do feto os estdigios mais avancadios do desenvolvimento", por meio de estipulagdes moralmente univocas, em favor de lum ou outro lado? Apenas com base numa descrigio ideo- Jogicamente marcada dos fatos, que permanecem razoa- velmente disculfveis nas sociedades pluralistas, pode-se ‘conseguir chegar a uma determinacdo inequivoca do sta- tus moral ~ seja no sentido da metafisica crista ou do na- 2A dostrnn avstelizo-exolisica soba anima scen- va leva tal fato er consierado. CL. 0 panovara propete por H Schr “Wane wid dar Merech ein Mensch? i FA, de sae 420% 46 (O FUTURO DA NATUREZA HUMANA turaliomo. Ningdém duvida do valor intrinsceo da vida humana antes do nascimento ~ quer a chamemos sim- plesmente de “sagrada”, quer recusemos tal “sacraliza- 20” daquilo que constitui um fim em si mesmo, No en- tanto, a substancia normativa da necessidade de proteger a vida humana pré-pessoal ndo encontra uma express racionalmente aceitavel para todas os cidadios nem linguagem objetivante do empirismo, nem na de religiéo, Por fim, na discussa0 normativa de uma esfera pi- blica democratica importam apenas as proposicées mo rais em sentido estrito. Somente as proposig6es ideolo: gicamente neutras sobre aquilo que € igualmente bom para todos podem ter a pretensao de set aceitaveis para todos por boas razdes. A pretensio a uma aceitabilidade racional distingue as proposicdes sobre a soluglo “justa” para 0s contfltos de ago das proposigdes acerca do que é “bom para mim” ou “para nés” no contexto de wma his- t6ria de vida ou de uma forma de vida partilhada. Ainda assim, esse sentido espectfico de questies sobre justiga admite uma conchusio com “base na moral”. Considero essa “determinacio” da moral como a chave adequada para responder & seguinte questo: independentemente das determinacdes ontolégicas discutiveis, como pode- ‘mos definir 0 universo dos possiveis portadores de direi tose deveres morais? Na linguagem dos direitos e deveres, a comunidade de seres morais, que fazem suas préprias leis, refere-se a todas as relacdes que necessitam de um regulamento nor- mativo. Todavia, apenas os membros dessa comunidace podem se impor mutuamente obrigagdes morais e esperar uns dos outros urn comportamento conforme & norma. Os animais s&o beneficiacios pelas obrigacdes morais, e por consideragio « eles precisamnos levar esses obrigagdes em "A CAIMINHO DE UMA EUIGENIA LIBERAL? 47 conta ao Lidatintus cum ertaturas que tambem sao passi- ‘eis de softimento, Mesmo assim, eles nao pertencem a0 uuniverso dos membtos que dirigern uns aos outros ordens @ proibicdes intersubjetivamente reconhecidas. Conforme pretendo demonstrar, a “dignidade humana”, entendida em estrito sentido moral e juridico, encontra-se ligada a essa simettia das relagdes. Ela no é uma propriedade que se pode “possuir” por natureza, como a inteligéncia ou.0s olhos azuis. Ela marca, antes, aquela “intangibilida de” que $6 pode ter um significado nas relagdes interpes soais de reconhecimento teciproco e no relacionamento igualitario entre as pessoas. Emprego o termo “intangi bilidade” nao com o mesmo sentido de “indisponibilida- de”, pois uma resposta pds-metafisica 3 questao de como devemos lidar com a vida humana pré-pessoal no pode ser obtida ao prego de uma definicao reducionista do ho- ‘mem e da moral Entendo o comportamento moral como uma respos: ta construtiva as dependéncias e caréncias decortentes da imperfeicdo da estrutura organica e da fragilidade perma- nent da eaisténcia corporal (eviclente sobretudo em fas da inifancia, da doenga e da velhice). A regulamentagao normnativa das relagdes interpessoais pode ser compreen- dida como umn poroso invéluicto de protegio contra certas contingencies, as quais o corpo vulnersvel ¢ a pessoa nele Tepresentada estao expostos. Ordens morais s20 constru- @es frgeis, que, de wma s6 vez, protegem o corpo de le sbes comporais e a pessoa de lesdes internas ou simbélicas. Com efeito, a subjetividade, que 6 0 que faz do corpo hu- mano um recipiente animado da alma, se constitui a par- tir das relacées intersubjetivas para com os outros. O. mesmo individual surge apenas com 0 auxilio social da exteriorizagao ¢ também 36 pode se estubilizar na rade de relagdes intactas de reconhecimento. 48 > RUTURO DA NATUREZA HUMANA Depender dos outros é uma circunstancia que escla- rece a vulnerabilidade do individuo em relacéo aos outros. A pessoa fica exposta de forma completamente desprote gida a feridas em relagoes das quais ela geralmente de- pende para o desdobramento de sua identidade e para 1a defesa de sua integridade por exemplo, nas relagies intimas de dedicagéo a um parceiro, Em sua versio des- transcendentalizada, a “vontade livre” de Kant nao cai mais do céu como uma caracterfstica ce setes inteligiveis ‘A autonomia é antes, uma conquista precéria de existén cias finitas, que s6 conseguem “se fortalecer” quando conscientes de sua vulnerabilidade fisica e de sua depen- déncia social. Se este for 0 “fundamento” da moral, en- tao seus “limites” se explicam a partir dele. E 0 universo das relagdes e interagdes interpessoais possiveis, que necessita ¢ 6 capaz de impor regras morais. Apenas nes~ sa rede de relagdes de reconhecimento legitimamente te- guladas é que as pessoas podem desenvolver e manter uma identidade pessoal, juntamente com sua integrida- de fisica, Uma vez que o ser humano nasce “incompleto”, no sentido biolégico, e passa a vida dependendo do auxilio, 25. M. Nussbautn critica a distingéo feta por Kant entre a exis tencia intaligivel e aquelafsica do agente: “What's wrong with Kant’s lstinction? [| It ignotes the fat that our dignity is that ofa certain ‘sort of animal It is a dignity that could not be possessed by a being, tho was not moral and vulnerable, just asthe beauty ofa cherry tree inbloom could not be possossed by a diamond” [*O que de errado com a distinc de Kane? [..] Ele ignorao fato de que nossa dignide ea de uma determinada especie de animal, 6 uma dignidade que ‘lo poderia se possida por um ser que nio fosse mocal e vulnerd- ‘el, assim como a belera de uma ceejera em flr no poderia ser pos buida por um diamante"), Disabled Lioes: Who Cares?, manuscito nao publicado, 2001 ACAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 49 da atencao e do reconhecimento do ses ambiente sacial a imperfeicao de uma individualizacao fruto de seqiiéncias de DNA torna-se momentaneamente visivel quando tem. inicio 0 processo de individualizacao social, A individua- lizagio da hist6ria de vida realiza-se por meio da social zasio. Aquilo que, somente pelo nascimento, transforma © organismo numa pessoa, no sentido completo da pala~ vra, ¢ 0 ato socialmente inclividualizante de admissao no contexto priblico de interagao de um mundo da vida par- tilhado intersubjetivamente”. Somente a partir do mo- mento em que @ simbiose com a mae é rompida é que a crianga entra num mundo de pessoas, que ado ao set en cont?o, que lhe ditigem a palavra e podem conversar com ela, O ser geneticamente individualizado no ventre ma- temo, enquanto exemplar de uma comunidade reprodu- tiva, nao é absolutamente uma pessoa “ja pronta”. Ape- nas na esfera priblica de uma comunidade lingiistica que o ser natural se transforma ao mesmo tempo em indi viduo e em pessoa dotada de razao% 24, HelnutPlessne e Amold Gehlen compatham ese cone ciment fundamental com George Herbert Mead 2 Hannah Ancend: (Vie dit Mien, 1959) ferns 4 “putaliade™ como Um ago fundamental da eastinca humors. A vida 6o homem ralzase epenas sob a condigho da intragbo com otra pesca ("Pasa a pests vida cur dso mesmoque-< 4iz 0 latin au sje lingua dos povos tae mate prokindament politicos que conhecem ‘tar ete osborme er honest) Emote omesme que deka: de estar ert os homens ese nee font as 19 ‘momento da insergio no mundo sol, marea tami © momento 2 Tat do qual etsporigo para se: posina pode ae reali, indepen dentemonte ds fos em que vo poe eeentecee Opens em ‘coma também participa dessa forma de vida. Cf. M. Seel, Ethisch-detite ‘ci Se, ark a May 1996 pp. 25 "Por, arma (0 PUTURO 0 NATUREZA HUMANA Na tede sithbdlica das relagdes de reconhecimento reciprocas entre pessoas que agem visando & comunica ao, o recém-nescido ¢ identificado como “um” ou “um de nds” ¢ aprende aos poucos a identificar-se asi mesmo 20 mesmo tempo em que se identifica totalmente como pessoa, como parte ou membro de sua(s) comunidades) social(s) e como individu tinico e inconfundivel, sendo também moralmente insubstitufvel®, Nessa diferencia~ ‘io da auto-referéncia reflete-se a estrutura da comunica- ‘ao lingifstica. Somente aqui, no space of reasons [espaco das razdes] colocado em discussdo (Sellars), 6 que 0 patri ‘monio cultural da espécie representado pela razao pode desenvolver sua forga unificadora e formadora de con- senso, na diferenca das miltiplas perspectivas de si pro- prio e do mundo, Pr Antes de ser inserida em contextos piblicos de inte ragdo, a vida humana, enquanto ponto de referéncia dos nnossos deveres, goza de protecao legal, sem ser, por si s6, ‘um sujeito de deveres e um portador de direitos huma nos. Disso nao devemos tirar conclusdes erradas. Os pais nao apenas falam sobre a crianga que cresce in utero, mes, de cerlo modo, também j8 se communica com ela. Nao & apenas a visualizacéo dos tragos inegavelmente huma ACAMINO DE UMA FUGENIA LIBERAL? 51 nos do feio na tela que fax da crianga que ce move no fiero materno um destinatétio, no sentido de uma antic patory socialization (socializacao por antecipagao). Obvia- ‘mente, temos para com ela c em consideracto a ela deveres morais e juridicos. Além disso, a vida pré-pessoal, anterior a um estagio em que se pode atribuir a ela o papel destinia~ doa uma segunda pessoa, a quem se pode dingir a pala vra, também conserva um valor integral para a totalidade de uma forma de vida eticamente constituida, Nesse as- pecto, di-se a distingao entre a dignidade da vida huma- nae dignidade humana garantida juridicamente a toda pessoa — uma distingdo que, de resto, reflete-se na feno: menologia da nossa maneira sentimentalizada de tratar (08 mortos, Recentemente falou-se de uma alteragao da lei de numagdes do Estado de Bremen. Ela se refere aos nati- mortos, 4 morte de criancas prematuras, bem como aos abortos clinicos, ¢ exige que se mantenha o devido respei- to pela vida perdida, mesmo no trato com os fetos. Segun do ela, fetos nao deveriam mais ser eliminados ~ con- forme se diz no alemao administrative ~ camo “etischer Abjall” [lixo ético], mas sepultades anonimamente num cemitério em tuimulos coletives. Ja a reagéo do leitor a formulagio obscena — para néo falarmos da pratica que, por si $6, jé € penosa ~ revela, na contraluz do embrigo morto, o amplo e profundo temor & integridade da vida humana em formacéo, na qual nenhuma sociedade civili- zada pode tocar sera maiores problemas. Por outro lado, © comentario do jomal a respeito clo sepultamento ané- nimo e coletivo enfoca, 20 mesmo tempo, uma distinga0 intuitiva, que considero importante apresentar: “A muni- ipalidade de Bremen também estava consciente de que seria uma exigéncia excessiva~e talver.alé se igualasse a uma tristeza patolégica e coletiva ~ se embrides e fetos 52. (0 FUTURO DA NATUREZA HUMANA tivessem de sersepultados conforme os mesmos critérios ‘que as eriangas que mortem apés 0 nascimento. [.] A exi- géncia de respeito para com os mortos pode se manifes~ tar em diferentes formas de sepultamento.”® Para além dos limites de uma comunidade de pessoas morais, compreendida em seu sentido estrito, nao se es tende nenhuma zona cinzenta em que poderiamos agir sem Jevar em conta as normes e manipular sem entraves ‘0 que quisermos. Por outro lado, conceitos juridieos mo- ralmente saturados, como “direito humano” e “dignidade humana”, perdem, devido a uma excessiva extensao con- tra-intuitiva, ndo apenas sua acuidade, mas também seu potencial critico. Lesdes ao direito humano néo podem ser reduzidas a infagées as representacdes avioldgicas® A diferenca entre direitos, ponderados de maneira fixa, e bens, que padem ser considerados prioritérios ou nao dependendo de cada nova ponderagao, nao deveria ser confundida®® O cardter dos entraves morais,diffceis de definir, que regulam 0 trato com a vida humana antes do nascimento © apés a morte explica a escolha de expresses semanti- camente flexiveis. A vida humana também desfruta, em suas formas anénimas, de “dignidade” e exige “respeito”. Se podemos recorrer ao termo “dignidade”, é porque ele cobre um amplo especiro seméntico e apenas evoca 0 con- ceito mais especifico da “dignidade humana”. As conota- 30. St, Rhen, “Totenwirde’, in: FAZ, de 19 de margo de 2001 31, W. Kersting, “Menschenechtsverletaung ist nicht Wertver letzung’, in FAZ, de 17 de maego de 2001 32. R. Devorkin, Reve omgenoramen, Frankfurt am Main, 1984 [trod. bras, Lenando oe direits a séro, S80 Paulo, Martins Fontes, 202} K. Giinther, Der Sinm ir Angentescnhe't, Frankfurt am Main, 1988, pp. 335 6, ‘A CAMINHO DE UMA BLIGENIA LIBERAL? 53 Bes. que ainda se vineulam com muito mate clareza a0 conceito de “honra’ a partir da histéria de seus modos de utilizagdo pré-modernes, também deixaram rastros na se- mintica do termo “dignicade” ~a saber, a conotagéo de um étlis dependente do status social. A dignidade do rei materializava-se no estilo de pensamento e de comporta- mento de uma forma de vide diferente daquela da mulher casada e do celibatirio, do artesao e do carrasco. Dessas manifestagdes coneretas de uma determinada dignidade 6 que se abstrai a “dignidade do homem”, universalista em sua esséncia, e que compete & pessoa como tal. Quan- toaeesse processo de abstragio, ole conduz a “dignidade humana” e ao “direito humano” — 0 tinico de Kant — no podernos de nossa parte nos esquecer de que mesmo a comunidade moral dos sujeitos livres e ipuais de direitos humanos nao forma um “reino dos objetivos” no além rnumenal, mas permanece inserida em formas coneretas de vida e no seu éthes. ULL A insercio da moral numa ética da espécie humana Sea moral tem sua sede numa forma de vida lingitis: ticamente estruturada, a discussao atual sobre a amiss bilidade do uso de embrides exclusivamente para pes quisa e do DGPI nao pode ser decidida com um tinico ¢ decisive argumento em prol da dignidade humana e do status dos direitos fundamentais dos évulos fecundados. Ngo apenas compreendo, mas também compattilho do motivo pelo qual alguém queita se servir desse argumen: to. Com efeito, a utilizacdo restritiva do conceito da dig- nidade humana permite que a necessidade de proteger 0 (OFUTURO DA NATUREZA HUMANA cembrido — nao 66 porque ole precisa dessa também porque 6 digno dela - seja avaliada como um bbem, oque abre uma brecha para a instrumentalizacao da vida humana e para o esvaziamento do sentido categ’ co de exigencias morais, Tanto mais relevante seré a busca por uma solucao convincente e ideologicamente neutta, 4 qual de toda forma o principio de tolerancia do dircito constitucional nos obriga. Mesmo que minha prépria si gestdo de como o fundamento da moral ¢ seus limites deveriam ser compreendidos nao cumprisse essa exigén cia e fosse responsabilizada por uma parcialidade meta sica, a consequiéncia continuatia sendo a mesma. O Esta~ do iteologicamente neutro, quando composto democra- ticamente e quando procede a uma politica de incluso, nao pode tomar partido numa aplicagao “eticamente” controversa dos artigos 1! e 2° da Constituigéo. Quando a juest3o sobre o tratamento da vida humana anterior a0 nascimento assume um cardterético, € preciso contat com uma divergéncia razoavelmente fundamentada, confor me delineada no debate realizado pelo parlanento fede- ral alemo (Bundestag), em 31 de maio de 2001, Desse modo, a discussao filoséfica pode ficar livre das polariza ses ideol6gicas infrutiferas e se concentrar no tema da autocompreensio adequada e ética da espécie humana Todavia, observemos inicialmente o comentério a respeito do uso da linguagem. Chamo de "motais” as questdes relativas 8 convivencia haseada em normas jus tas, Para pessoas ativas, que podem entrar em conflito umas com as outras, essas questées sio suscitadas consi- derando-se a necessidade normativa de se regulamentat as interagdes sociais. Existe a expectativa sensata de que tais conflitos, a principio, possam ser racionalmente de- cididos em prol do igual interesse de cada um. Em contra A.CAMINHO DE UMA EUGENIA LIBERAL? 35 partida, essa expectativa de aceitabilidace racional deixa de existir quando a descrigio da situagdo de conflito e a fundamentacdo das normas cortespondentes dependem, do modo de vida que escolhemos e da autocompreenséo. existencial, ou seja, quando dependem de um sistema de interpretagio com identidade propria, relativo ao indivi- duo ou a um determinado grupo de cidadaos. Tais confli- secundarios tocam em questies “éticas” As pessoas ¢ comunidades, cuja existéncia pode fra cassar, se questionam a respeito do que seria uma vida nao fracassada, com vistas orientagao de sua histéria ou forma de vida segundo valores normativos. Essas ques tes sdo talhadas dle acordo com a perspectiva daquele ou daqueles que querem saber como devem se compreender em seu contexto de vida e quais as melhores préticas para les de uma maneia geral. Uma nagao lida com a crimi- nalidade em massa de seu regime anterior diferentemen te de outra. Conforme a experiéncia histériea e a auto compreensao coletiva, elas optam pela estratégia do per~ dio ¢ do esquecimento ou pelo processo de punicao e recuperagdo da meméria. O modo como lidam com a energia atdmica dependera, dentre outras coisas, do sta tus que conferem a seguranga ¢ a satide em relagio prosperidade econdmica. Considerando-se essas ques: tes ético-politicas, vale a sentenga “outras culturas, ou tios costumes” Em contrapartida, a forma de lidar com a vida huma- na pré-pessoal suscita quesides de um calibre totalmente diferente. Elas aludem nao a esta ou Aquela diferenga na variedade de formas de vida cultural, mas.a autodescrioes intuitivas, a partir das quais nos identificamos como pes- s0as e nos distinguimos de outros seres vivos - portanto, nossa autocompreensio enquanto seres da espécie. Nao 56 (O FUTURO Da NATUREZA HUMANA ce trata da cultura, que 6 diferente de um Ingar para outro, mas da imagem que as diversas culluras fazem “do” homem, que, na sua universalidade antropol6gica, & 0 mesmo em toda parte. Quando avalio comretamente a discussio sobre a “utilizagio” de embrides para fins de pesquisa ou sobre a “ geracao de embrides com res salvas”, vojo manifestar-se nas reagoes afetivas menos a indignacao moral do que a aversao a algo obsceno. E como sentir vertigens quando o chao que acreditévamos firmemente existir escapa sob os nossos pés. Sintomatica 6 a repugnancia diante ca leso quimérica de limites da espécie, que ingenuamente haviamos cansiderado como “inalterdveis” . Os “novos horizontes étcos”, aos quais se refere Otfried Hiffe® com razio, consistem em tornar incerta a identidade da espécie. Os desenvolvimentos not6rios ¢ temicos da teenologia genética afetam a ima gem que haviamos construido de nés enquanto ser cul- tural da espécie, que é 0 “homem’, e para o qual parecia no haver alternativas. Certamente, e35as Imagens também se apresentam de maneira plural. A formas de vida cultural pertencem sistemas dle interpretagio, que se referem & posigo do homem no cosmo e oferecem um “denso” contexto an- tropol6gico de insergao para o espectivo cddigo moral em vigor. Nas sociedades pluralistas,essas interpretagdes de simesmo edo mundo, enquadradas no campo da meta sica ou da religiao, estao, por boas razoes, subordinadk 0s fundamentos morais do Estado constitucional, ideo- logicamente neutro, e obrigadas a uma coexisténcia paci- fica, Sob as condigSes do pensamento pés-metafisico, a 33. O. Hotfe, “Wesson Menschenwirdo?”, in: Die Zatt, de 1° de ode 2001, A CAMINHO DE UMA EUGENLA LIBERAL? 37 autocompreensio ética da espécie, inscrita em determi nadas tradigdes e formas de vida, nao permite mais que dela se deduzam argumentos que suplantem as preten. ses de uma presumida moral valida para todos. No en- tanto, essa “primazia do justo em relacéo ao bom” nao pode perder de vista o fato de que a moral abstrata da ra- zo, pertencente 20s sujcitos de direitos humanos, apéia- se, por sua vez, numa anterior autocompreensio étiea da espécie, compartithada por todas as pessoas morais. Assim como as grandes religides universais, as dou- trinas metafisicas e as tradigdes humanistas também for ecem contextos em que a “estrutura total da nossa ex- periéncia moral” esta inserida, Elas articulam, de um ou ‘outro modo, uma autocompreensao antropolégica, que se adapta a ume moral auténoma. As interpretagées reli giosas de si mesmo e do mundo, surgidas na época axial das grandes civilizages, convergem, de certo modo, numa autocompreensio ética minima da espécie, que sustenta ‘essa moral. Enquanto esto em harmonia uma com a ou- tra, a primazia do justo sobre 0 bom nao é problematica A pattir dessa perspectiva, impde-se a questao de saber se a tecnicizagao da natureza humana altera a auto- ‘compreensao ética da espécie de tal modo que néo possa~ mos mais nos compreender como seres vivos eticamente livres e moralmente iguais, orientados por normes ¢ fun- damentos. Somente com o surgimento imprevisto de al- temativas surpreendentes 6 que a evidéncia de hipsteses clementares do pano de fundo é abalaca (ainda que essa novidade ~ como as “quimeras” artificiais oriundas de organismos transgenicos “degeneredos” — tenha precur- sotes arcaicos em imagens miticas cujo valor j se perdu). IcritagGes desse tipo S40 desencadeadas por aqueles ce- nérios que, nesse interim, migram da literatura de ficco cientifica para 0 cademo de ciéncias dos jornais. Desse 58 (FUTURO DA NATUREZA HUMANA modo, recentemente notaveis autores de livros Kecnicos nos confrontam com o aperfeigoamento do homem por meio de implantes de chip ou com a substituicao do ho: mem por rob6s mais inteligentes. Para os processos vitais do organismo humano, assis~ tidos tecnicamente, os nanotecndlogos projetam, pela fu- sio do homem maquina, a imagem de uma estagéo de produgéo, que é submetida a uma supervisdo e a uma re~ ovagiio auto-reguladas, além de passer por reparo e aper- feigoamento constantes. Segundo essa visto, os mictor- robés capazes de se autoduplicar circulam pelo corpo hu mano e unem-se aos tecidos orgnicos, por exemplo para deter processos de ervelhecimento ou estimuler fungdes o cérebro, Os engenheiros de computagao também nao sfo de trabalhar pouco nesse género e, a partir do rob6 do futuro, tomado autonome, projetam a imagem de ma- quinas que condenam pessoas de came e osso ao made- To fora de linha, Essas inteligéncias superiores deverao superar as limitagGes do hardware humano. Blas prenun- ciam ao software extraido de nosso cérebro néo apenas a imortalidade, mas também a perfeicao ilimitada. O compo repleto de proteses, destinadas a aumentar o rendimento, ou a inteligéncia dos anjos, gravada no cis- co tigido, so imagens fantisticas. Estas apagam as linhas fronteirigas e desfazem as coeréncias que até o momen: to se apresentaram a nosso agir quotidiano como trans- cendentalmente necessaiias. De um lado, 0 ser organico que erescou naturalmente se funde com 0 ser produzido de forma técnica; de outro, a produtividade do intelecto humano separa-se da subjetividade vivenciada. Pouco im- porta se nessas especulagées se manifestam idéias malu- cas ou prognésticos dignos de serem levados a sério, ne- cessidades escatol6gicas postergadas ou novas variedades de uma science-fiction-sctence. Para mim, tudo isso serve ACAMINHD DE UMA EUGENIA LIBERAL? 59 apenas como exemplo de uma tecnicizagaio da naturcza humana, que provoca uma alteragio da autocompreensio ética da espécie — uma autocompreensao que néo pode mais ser harmonizada com aquela autocompreensao not- ‘mativa, pertencente a pessoas que determinam sua pro- ia vida e agem com responsabilidade. (Os avangos da tecnologia genética, realizados nesse ‘meio-tempo ou previstos de forma realista, nao provocam nada que chegue a esse ponto. No entanto, as analogias no devem ser totalmente desconsideradas®*, A manipu- 2, Por exemple, Buchanene al. pp. 177s, mencionam o cen “o fanasmageeo de an “Gant Corinto” [eomunta sme gansta, no gual diferentes subeukas leven aah eto medo qbe a uniade dt natura humane onquanto base de fe

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