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Contos que valem a pena


Cada semana um novo grande conto

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Arquivo do blog segunda-feira, 4 de julho de 2016 Quem sou eu

► 2017 (2)
095 – Guy de Maupassant – I. Babel
▼ 2016 (20)
► Outubro (1)
Isaac Emanullovich Babel (1894-1940) escritor russo nascido
► Setembro (1)
em Odessa, foi um dos maiores romancistas daquele pais. Marcelo
► Agosto (1)
▼ Julho (2)
Neste conto ele presta homenagem a Guy de Maupassant, um Antinori
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096 – O dos maiores contistas de todos os tempos. completo
espelho de
Lida Sal –
M. A. Guy de Maupassant
Asturias
095 – Guy de
Maupassan
Isaac Babel
t – I. Babel
Tradução de Nivaldo dos Santos
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► Maio (2)
► Abril (1)
No inverno de mil novecentos e dezesseis fui parar em
► Março (2)
► Fevereiro (4)
Petersburgo com um passaporte falso e sem um vintém sequer.
► Janeiro (4) Fui acolhido por Aleksei Kazántsev, um professor de filologia
► 2015 (52)
russa.
► 2014 (28)
Ele morava em Pieski, numa rua gelada, amarelada e
fedorenta. Um ganho extra para seu modesto salario eram as
traduções do espanhol; naquela época, Blasco Ibañez estava
ganhando fama.

Kazántsev nunca fora a Espanha, mas o amor a esse


pais preenchia o seu ser; conhecia todos os castelos, jardins e
rios espanhóis. Além de mim, amparava-se em Kazántsev uma
multidão de pessoas excluídas da vida legal. Nos passávamos
fome. De vez em quando, os jornalecos publicavam em letras
miúdas as nossas notas sobre os acontecimentos.

De manha, eu perambulava pelos necrotérios e


delegacias de polícia.

Mais feliz do que nós era mesmo Kazántsev. Ele tinha


uma pátria: a Espanha.

Em novembro, ofereceram-me uma vaga no escritório da


fábrica Obukhovski, um emprego muito bom, que dispensava
do serviço militar.

Eu me recusei a me tornar um funcionário de escritório.

Já naquela época, com vinte anos de idade, eu disse a


mim mesmo: é melhor a fome, a cadeia e a vagabundagem do
que ficar sentado a mesa de um escritório dez horas por dia.
Não havia nenhuma grande coragem nessa promessa, mas eu
não a quebrei e nem vou quebrá-la. A sabedoria de meus
antepassados estava na minha cabeça: nascemos para nos
deliciar com o trabalho, a luta e o amor; nascemos para isso e
nada mais.

Enquanto ouvia meu sermão, Kazántsev emaranhava a


penugem curta e amarelada de sua cabeça. O horror em seu
olhar misturava-se com a admiração.

No Natal tivemos sorte. O advogado Bendiérski, dono da


editora Altsion, pensou em publicar uma nova edição das obras
de Maupassant. A tradução ficou a cargo da esposa do
advogado, Raíssa. Mas do intento senhorial não saiu nada.

Perguntaram a Kazántsev, o tradutor de espanhol, se ele


não conhecia alguém para ajudar Raissa Mikhailovna.
Kazántsev indicou a mim.

No dia seguinte, vestindo um casaco emprestado, eu me


dirigi à casa dos Bendiérski. Moravam na esquina da Nievski
com o Moika, numa casa construída com granito finlandês e
revestida com colunas rosadas, seteiras e brasões de pedra.
Banqueiros sem linhagem nem herdeiros cristãos convertidos
que enriqueceram no comércio, tinham construído em
Petersburgo, antes da guerra, muitos desses castelos vulgares
e falsamente majestosos.

Pela escada estendia-se um tapete vermelho. Nos


patamares havia ursos empalhados.

Em suas goelas escancaradas brilhavam redomas de


cristal.

Os Bendiérski moravam no terceiro andar. A porta foi


aberta por uma criada de busto alto, usando uma coifa. Ela me
conduziu a uma sala com acabamento em estilo eslavo antigo.
Nas paredes havia quadros azuis de Roerich: monstros e
pedras pré-históricas. Pelos canto, em suportes, estavam
dispostos ícones de escrita antiga. A criada de busto alto
movia-se de modo solene pela sala. Era esbelta, míope e
arrogante. A libertinagem estava petrificada em seus olhos
cinzentos e arregalados. A moça movia-se devagar. Eu
imaginei que, durante o amor, talvez ela se revirasse com uma
agilidade furiosa. Uma cortina brocada pendurada acima da
porta começou a balançar. Na sala, carregando grandes seios
entrou uma mulher de cabelos negros e olhos rosados. Não foi
preciso muito tempo para reconhecer na senhora Bendiérskaia
aquela linhagem arrebatadora das judias vindas de Kíev e
Poltava, das ricas cidades das estepes, cercadas de
castanheiras e acácias. Essas mulheres transformavam o
dinheiro de seus habilidosos maridos na gordura rosada do
ventre, da nuca e dos ombros arredondados. O risinho
sonolento e carinhoso delas tirava o juízo dos oficiais da
guarnição.

— Maupassant é a única paixão da minha vida — disse-


me Raissa.

Tentando conter o balanço dos grandes quadris, ela saiu


da sala e voltou com uma tradução de “Miss Harriet”. Em sua
tradução não restava nenhum vestígio da frase de Maupassant,
livre, corrente, com um demorado sopro de paixão.
Bendierskaia escrevia de um jeito enfadonhamente correto,
sem vida e sem cerimônia, tal como os judeus escreviam antes
em russo.

Levei o manuscrito, e em casa, na mansarda de


Kazántsev, entre as pessoas que dormiam, passei a noite toda
desbastando uma tradução alheia. O trabalho não estava tão
ruim como parecia. Uma frase nasce boa ou ruim a um só
tempo. O segredo está numa virada quase imperceptível. A
chave deve ficar na mão, ser aquecida. é preciso virá-la uma
vez, e não duas.

Na manha seguinte levei o manuscrito corrigido. Raissa


não mentiu quando falou de sua paixão por Maupassant. Ela
permaneceu imóvel na hora da leitura, com as mãos
entrelaçadas; aqueles bravos de cetim escorregavam para o
chão, sua testa ficava pálida, a renda entre seus seios
comprimidos deslocava-se e tremia.

— Como o senhor fez isso?

Então comecei a falar sobre o estilo, sobre o exército de


palavras, um exército no qual circula todo tipo de arma.
Nenhum ferro pode penetrar no coração humano de forma tão
congelante quanto um ponto colocado na hora certa. Ela
escutava com a cabeça inclinada e os lábios pintados
entreabertos. Um raio negro resplandeceu em seus cabelos
laqueados, bem presos e repartidos. As pernas esmaltadas
pela meia, com panturrilhas fortes e delicadas, estavam
separadas sobre o tapete.

A criada, desviando os olhos devassos e petrificados,


trouxe o café da manhã numa bandeja.

O vítreo sol petersburguense deitava-se sobre o tapete


descorado e áspero. Vinte e nove livros de Maupassant
estavam numa estante, acima da mesa. O sol tocava com
dedos derretidos as lombadas de marroquim dos livros, o
maravilhoso túmulo do coração humano.

Serviram-nos café em pequenas xicaras azuis, e nós


começamos a traduzir “Idylle”. Todos se lembram do conto do
jovem carpinteiro faminto que sugou de uma ama gorda o leite
que a oprimia. Isso aconteceu num trem que ia de Nice para
Marselha, num meio-dia abrasador, no pais das rosas, na pátria
das rosas, lá onde as plantações de flores descem até a beira
do mar...

Saí da casa dos Bendiérski com um adiantamento de


vinte e cinco rublos. Naquela noite, a nossa comuna de Pieski
ficou bêbada como um bando de gansos embriagados.
Pegávamos caviar granulado e o comíamos com linguiça de
fígado para tirar seu gosto. Meio embriagado, comecei a
maldizer Tolstói.

Ele se assustou, o nosso conde, ficou com medo... Sua


religião é o medo... Assustado com o frio, com a velhice, o
conde teceu uma camisola de fé...

– E o que mais? — perguntou-me Kazántsev, balançando


a cabeça de pássaro.

Adormecemos ao lado de nossas camas. Sonhei com


Katia, uma lavadeira de quarenta anos que morava no andar de
baixo. De manhã, pegávamos água quente com ela. Não tive
tempo de enxergar claramente o seu rosto, mas Deus sabe o
que eu e Katia fazíamos no sonho. Exauríamos um ao outro
com beijos. Não me abstive de passar em sua casa na manhã
seguinte em busca de água quente.

Fui recebido por uma mulher definhada, enrolada num


xale, com as madeixas grisalhas despenteadas e as mãos
úmidas.

A partir de então, passei a tomar o café da manha na


casa dos Bendiérski todos os dias. Em nossa mansarda
apareceram um fogão novo, arenque e chocolate. Raíssa
levou-me às ilhas duas vezes. Eu não me contive, e contei a
ela sobre minha infância. Para minha própria surpresa, a
história saiu sombria. Sob o gorro de pele de toupeira, olhos
brilhantes e assustados olhavam para mim. A tez ruiva dos
cílios tremia melancolicamente

Conheci o marido de Raíssa, um judeu de cara amarela


com uma cabeça calva e um corpo forte e delgado, que parecia
inclinar-se, precipitando-se para o voo. Corriam rumores sobre
sua proximidade com Rasputin. Os lucros obtidos por ele com
suprimentos de guerra deram-lhe a aparência de um
endemoniado. Seus olhos vagavam, o tecido da realidade tinha
se rompido para ele. Raíssa ficava confusa ao apresentar
novas pessoas a seu marido. Em razão de minha juventude,
percebi isso uma semana depois de ocorrido.

Depois do Ano Novo, chegaram à casa de Raissa suas


duas irmãs de Kíev. Um dia levei o manuscrito de “A confissão”,
mas como não encontrei Raíssa, voltei à noite. Estavam
ceando na sala de jantar. De lá vinha um relincho argênteo e
um ruído surdo de vozes masculinas excessivamente alegres.
Na casa de ricos sem tradições, as refeições são barulhentas.
O barulho era judaico, com estrondos e desfechos melodiosos.
Raíssa me recebeu num vestido de baile, com as costas nuas.
Os pés, em sapatinhos laqueados e inseguros, pisavam
desajeitados.

— Estou bêbada, querido — e ela me estendeu os braços


cobertos de correntes de platina e estrelas de esmeraldas.

Seu corpo balançava como o de uma cobra erguendo-se


para o teto ao som de uma música. Ela balançava a cabeça
ondulada, tilintando os anéis, e de repente caiu numa poltrona
com entalho russo antigo. Em suas costas empoadas ardiam
cicatrizes.

Atrás da parede explodiu mais uma vez o riso feminino.


Da sala de jantar saíram as irmãs de bigodinhos, tão peitudas e
altas quanto Raíssa. Seus seios estavam projetados para a
frente, os cabelos negros esvoaçados. Ambas eram casadas
com seus próprios Bendiérskis. A sala ficou cheia daquela
alegria feminina inconsequente, da alegria de mulheres
maduras. Os maridos agasalharam as irmãs com casacos de
pele de lontra e xales de Orenburg e calçaram-nas com botas
negras; sob a viseira de neve dos xales ficaram apenas as
bochechas ardentes e coradas, os narizes de mármore e os
olhos de brilho semítico e míope. Depois de fazer barulho, eles
saíram para o teatro, onde era apresentada “Judith”, com
Chaliápin.

– Eu quero trabalhar — balbuciou Raíssa, estendendo os


braços nus —, perdemos uma semana inteira...

Ela trouxe uma garrafa e duas taças da sala de jantar.


Seus seios repousavam livremente no saco de seda do vestido;
os mamilos estavam eretos, cobertos pela seda.

– Reserva especial — disse Raíssa, servindo o vinho —,


um moscatel de mil oitocentos e oitenta e três. Meu marido vai
me matar quando souber...

Eu nunca experimentara um moscatel de mil oitocentos e


oitenta e três, nem imaginara beber três taças, uma após a
outra. Eles me levaram de imediato para vielas onde tremulava
uma chama alaranjada e ouvia-se música.

– Estou bêbada, querido... O que temos hoje?

– Hoje temos “L’aveu”...

– Pois bem, “A confissão”. O sol é o herói desse conto, le


soleil de France... Gotas derretidas de sol, ao caírem sobre a
ruiva Celeste, transformaram-se em sardas. O sol polia com
seus raios íngremes, vinho e sidra a cara do cocheiro Polyte.
Duas vezes por semana, Celeste ia à cidade vender creme,
ovos e galinhas. Por viagem, ela pagava a Polyte dez tostões
por si e quatro pela cesta. E a cada viagem, Polyte dava
piscadelas e indagava a ruiva Celeste: “Quando vamos nos
divertir, ma belle?”. “O que quer dizer isso, monsieur Polyte?”
Saltitando na boleia, o cocheiro explicou: “Mas que diabo,
‘divertir-se’ quer dizer ‘divertir-se’... Um rapaz e uma moça não
precisam de musica...”. “Eu não gosto dessas brincadeiras,
monsieur Polyte” — respondeu Celeste e afastou do rapaz as
suas saias, que estavam em desalinho sobre as panturrilhas
poderosas com meias vermelhas. Mas o diabo do Polyte
gargalhava e tossia: “Um dia vamos nos divertir, ma belle”. E
lágrimas felizes rolavam em seu rosto cor de sangue, tijolo e
vinho.

Eu bebi mais uma taça do moscatel especial. Raíssa


brindou comigo.

A criada de olhos petrificados passou pela sala e


desapareceu.

Ce diable de Polyte... Em dois anos, Celeste havia


pagado quarenta e oito francos. Eram cinquenta francos menos
dois. Ao final dos dois anos, quando eles estavam sozinhos na
diligência e Polyte, que tinha tomado sidra antes da partida,
perguntou como de costume: “Que tal nos divertirmos hoje,
mademoiselle Celeste?”, ela respondeu de olhos baixos: “Estou
a seu dispor, monsieur Polyte...”.

Raíssa desabou sobre a mesa com uma gargalhada.


Esse diabo do Polyte...

A diligência foi atrelada a um pangaré branco. O animal


de lábios rosados por causa da velhice foi a passo. O sol alegre
da França cercou o veículo protegido do mundo por uma
capota desbotada. Um rapaz e uma moça; eles não precisavam
de música...

Raissa estendeu-me a taça. Era a quinta.

– Mon vieux, a Maupassant...

– Que tal nos divertirmos hoje, ma belle...?

Eu me estiquei para Raissa e beijei seus lábios. Eles


ficaram trêmulos e inchados.

– O senhor é divertido — murmurou Raíssa entre lábios e


recuou.

Ela se encostou na parede, com os braços nus estirados.


Pintas brilharam em seus braços e ombros. De todos os deuses
crucificados, esse era o mais sedutor.

– Tenha a bondade de sentar-se, monsieur Polyte...

Ela me indicou uma poltrona azul reclinada, feita ao estilo


eslavo. Seu encosto era um entrelaçamento de madeira
esculpida com pontas pintadas. Caminhei até lá, tropeçando.

A noite pôs diante da minha juventude faminta uma


garrafa de moscatel de mil oitocentos oitenta e três e vinte e
nove livros, vinte e nove petardos recheados de piedade,
espírito, paixão... Eu dei um salto, derrubei a mesa, esbarrei na
estante. Os vinte e nove volumes desabaram sobre o tapete;
suas páginas se espalharam, eles ficaram virados... e o
pangaré branco do meu destino foi a passo.

– O senhor é divertido — rugiu Raíssa.

Saí da casa de granito no Moika depois das onze horas,


antes que as irmãs e o marido voltassem do teatro. Eu estava
sóbrio e poderia andar sobre uma tábua, mas era bem melhor
cambalear; e eu balançava de um lado para outro, cantando
numa língua inventada só por mim. Nos tuneis das ruas
contornadas por uma cadeia de lampiões, os vapores da
neblina vagavam em ondas. Monstros urravam atrás das
paredes em ebulição As calçadas decepavam as pernas que
seguiam por elas.

Em casa, dormia Kazántsev. Dormia sentado, com as


pernas magra: esticadas em botas de feltro. Adormecera junto
ao fogão, inclinado sobre o Dom Quixote, uma edição de 1624.
No titulo desse livro havia um: dedicatória ao duque de Broglio.
Eu me deitei em silêncio para não acordar Kazántsev,
aproximei a lâmpada e comecei a ler o livro de Édouard de
Maynial Sobre a vida e a obra de Guy de Maupassant.

Os lábios de Kazántsev se mexiam, sua cabeça pendia.

E naquela noite eu soube por Edouard de Maynial que


Maupassant nascera em 1850, filho de um fidalgo da
Normandia e de Laure de Poittevin, prima de Flaubert. Aos
vinte anos teve seu primeiro ataque de sífilis hereditária. A
criatividade e o entusiasmo que tinha em si resistiram a
doença. No inicio sofreu dores de cabeça e acessos de
hipocondria. Depois o fantasma da cegueira apareceu diante
dele. Sua vista enfraqueceu. Ele desenvolveu uma mania de
desconfiança, insociabilidade e trapaça. Lutou furiosamente,
desvairou-se pelo Mar Mediterrâneo, foi a Túnis, ao Marrocos e
a África Central; e escrevia sem cessar. Depois de alcançar a
fama, cortou a garganta aos quarenta anos de idade, esvaiu-se
em sangue, mas ficou vivo. Foi internado num hospício. Ali ele
andava engatinhando... O ultimo relatório em sua triste ficha
diz:

“Monsieur de Maupassant va s’animaliser.” (“O senhor


Maupassant transformou-se num animal.”) Ele morreu aos
quarenta e dois anos. Sua mãe sobreviveu a ele.

Li o livro ate o fim e levantei da cama. A nevoa se


aproximou da janela e cobriu o mundo. Meu coração ficou
apertado. Um pressagio da verdade me roçou

Postado por Marcelo Antinori às 05:02

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