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ESCADA ROLANTE, FUZIS E LITERATURA

TÂNIA MARTINS

José Pantagruel Silveira me disse que, de leitor contumaz e raro que era, quase virou
escritor se sua personagem, uma menina que fugiu de casa, não tivesse também
desaparecido de um conto.
Estranho.Todos sabem que uma menina pode escapar por uma rua, perder-se numa
escada rolante, soltar-se das mãos de um irmãozinho maior, mas fugir de um conto?
Meninas, meninos? Tudo acontece com eles: São adotados, seqüestrados, violentados
por malucos de todos os matizes e exterminados pela polícia ou ficam adultos
simplesmente, mas, pelo menos no Brasil, jamais ouvira dizer ou lera que se perderam
em um conto.
Por aqui, autores deste ou daquele gênero são alvos de comparações como serem um
pedaço do galho português na árvore da literatura européia. Ou padecer da antipatia
circundante por livros e seu conseqüente, que é se tornar best-seller com dez mil
exemplares vendidos.Presas fáceis, pois, de técnicas virtuosísticas e sucessivas neuroses
de criação, mas, ora, é sério, isso de um personagem fugir? Foi Pantagruel, nada
livresco e leitor por esporte até dia desses, quem me entregou os restos mortais do
fenômeno, avisando que antes dele, Lucas Antilho vivera o mesmíssimo drama.
A primeira impressão que se tem é a de que seu antecessor, Lucas Antilho, não chegou a
conhecer a história toda como um conto. Antilho deixou confissões constrangedoras,
como a de sonhar acordado em ser escritor desde criança em Santa Maria do Suaçuí.
Mas, ao se lançar à obra,de repente viu palavras se apagando do texto, alçando vôo em
espirais até o teto, seguidas por um incêndio em tudo inexplicável.
Verdade. Encontraram referências a relatórios policiais de busca com lacunas
vergonhosas e um retrato falado tão comum que fora descartado como pista. Da menina
restaria pouco mais que um nome: Clarinha.
Lê-se em um papel sobrevivente que era miúda, morena, tinha olhos amendoados e
cabelos encaracolados, como se nunca tivessem visto um pente. Noutro molhe
chamuscado, têm-se informações genéricas em folhas de papel pautado.
De Antilho, não se vai conhecer muito mais que mal traçadas linhas e que o quarto de
hotel que usou para tentar escrever a sua obra-prima foi o mesmo ocupado por
Pantagruel, segundos após passarem um pelo outro no corredor. Pura coincidência?
O mais incrível é que embora soubesse do desaparecimento da menina no passado, em
dado momento puseram-se a procurá-la no presente em carne e osso.
Ambos chegaram a duvidar de que quisessem encontrá-la. Pode parecer presunção de
minha parte, afinal, até dia destes, estive na mesma situação deles, ou seja, alerta a tudo,
apegada a movimentos insignificantes de coisas e pessoas, como também a bisonhas
progressões do tipo com quantos quilômetros e quilos de celulose se faz um autor e sua
personagem.
Em outro embrulho amarrotado, temos o seguinte: Clarinha amanheceu contente… –
Mais sinais de letras desfeitas.
Igualmente Pantagruel faria revelações íntimas sem qualquer ligação com a menina.
Como Lucas, que chegou a montar um quebra-cabeça relacionando-a com a água fria do
banheiro, a um bicheiro que conheceu em campana, bom de papo, e a lamentos de que a
realidade não cabia no discurso, nem este conseguiria captá-la. Pantagruel vai
parodiá-lo depois: As personagens são muito fugidias e inesperadas, não faz sentido
dar-lhes sobrancelhas, cílios, omoplatas e atitudes. Logo ele que não se deu tão mal
assim ao construir frases curtas, adaptadas ao escasso tempo dos povos. Mas, o leitor
deve estar se perguntando como foi que tive acesso a tantos não-acontecimentos e o que
faço agora aqui de pedacinho em pedacinho.
Simples: Pantagruel é meu amigo, sei que já tocou guitarra e gosta de literatura de
cordel. Foi hippie e fã do Raul Seixas, como eu. Aderiu à filosofia zen e largou a
faculdade para ser viajante. Leu de Morris West à Guimarães Rosa. Outra confissão sua:
Nunca, em toda a sua vida de leitor, imaginou que escreveria mais que cartas de amor,
fichas de cartão de crédito ou contratos de aluguel de casa. Então, por que ousou?
Perguntei-lhe, e me respondeu, penso que uma heresia: Não dizem que a ocasião faz o
ladrão?
Procurei um editor que se interessasse pelo caso, mas, qual? Me arrependi; Dois deles,
de cara, me aconselharam a confiá-lo a um profissional de marketing que os maquiaria
num sopro. Fiz de conta que não ouvi o que disse e continuei a via-sacra.
Outros disseram que os textos não tinham um quê que distinguisse a arte da não-arte e
que leitor algum jamais se interessou por tentativas de autor, muito menos pela resenha
de seus fracassos, exceto o italiano Italo Calvino.
Tartamudeei. Disse que, ora, o “que” em português é tão prolixo e que os leitores não
podiam ter mudado tanto assim, continuavam amantes de uma boa história, ainda que
fosse de um vir a ser. Deram de ombros.
Pedi que fossem razoáveis, pois, há quanto tempo, leitores, personagens que correm por
fora de toda história, vêm sendo paparicados pelos autores com histórias com princípio,
meio e fim, quando a vida é quase sempre puro non sense? Não adiantou. Perguntaram
se eu entendia o significado de palavras como “mercado”, “faturamento”, “demanda”.
Antes que eu abrisse a boca, me disseram que, no caso, simplesmente estavam
traduzidas por: Os leitores, que nunca foram muitos, sumiram de vez! Nada de haver
solteironas suspirando por romances mesmo adocicados, nada de estudantes
ensandecidos por um estilo ou ponto de vista, pessoas buscando companheiros de
viagem, ou homens importantes se valendo de Atlas, dicionários e até revistas em
quadrinho, nada. E a técnica, então? Uma calamidade! Pontos, vírgulas, tudo caíra em
desuso e em seu lugar puseram reticências meras: “Esse disfarce de quem nunca teve o
que dizer, máscaras como tática de ligação entre o texto e os sentidos!”. Fiquei tonta.
Fartei-me. Julgavam-me concorrente, não era possível!
Ernesto Morais, sim, o famoso Ernesto Morais, me foi apresentado como professor de
Lingüística da PUK e editor nas horas vagas. Esse sugeriu, sem rodeios, fingir que eu
era Lucas, Pantagruel e Clarinha ao mesmo tempo, pois, hoje em dia todo mundo tem
crise de identidade mesmo!
“Seja principalmente Clarinha!” - Gritou enquanto nos separávamos em um sinaleiro.
Com tais conselhos, suponho, queria me aliciar para o rol dos escritores de obras
sociológicas, o tarado.
Mas contara nos dedos: Faltava precocidade sexual, tóxico e estilete na história.
Realidade, senhora! Tornou a gritar entrando em um café. Não nego que fiquei
impressionada. Então, antes de tudo, dever-se-ia colocar Clarinha com quatro entradas
na FEBEM?
Ou uma pré-adolescente riquinha conhecendo o pré-adolescente riquinho que vai ser o
seu happy-and após “muitas dificuldades todas injustas”? Uma menina não pode ser
personagem saindo de uma casa qualquer e simplesmente?
Finalmente, um deles, também muito respeitado, me confidenciou que o momento
literário atual, a seu ver, se divide em apenas dois troncos: O de místicos e o de não
místicos. Que os primeiros fazem obra aberta, os segundos, livros de bruxaria. A
terceira vertente, embora inexpressiva, seria a dos que se sujeitam, algo abjetos, a
assistirem a rendição de seus textos de ficção à sua teoria.
Mas, em algum momento, foi a minha vez de, inexoravelmente, voltar aquele 31 de
março às cinco da tarde, quando Pantagruel pediu um quarto em um hotelzinho suspeito
e lhe deram o de número 23.
Conforme relatou, o de número 24 estava ocupado por outro viajante da
Jonhson&Stelmen. No quarto 22 havia um casal de velhos esperando vaga em um asilo,
enquanto outros hóspedes, encarnados e desencarnados, perambulavam pelos outros
quartos e os demais corredores.
Recomecemos: Meu amigo Pantagruel entra no quarto 23 e percebe a desordem em
volta, pensa rápido que o tipo com quem se cruzara no corredor – Lucas Antilho -
estava aflito demais, como que prestes a pular na frente de um carro. Como acabava de
perder seus pertences em um assalto, ponderou, mal humorado, que, ele sim, tinha
motivos para pular na frente de um carro. A bagunça em volta invadiu suas retinas.
Prendeu a respiração esperando ouvir o baque de freios lá fora. Contou dois segundos e
nada. Aliviado, inspecionou melhor o local: Sobre a cama e a mesa viu papéis
embolados e rasgados se queimando, letras agigantando-se, dançando no meio da
fumaça como se tivessem cabeça, tronco e membros e se debruçou sobre o acidente.
Também lhe pareceu que seu antecessor preteria a garota às simples conjeturas sobre o
seu paradeiro: Viu furor nos traços, desenhos e outras poucas possibilidades. Por quê? –
Pensou. Não seria egoísmo se representar sabe-se-lá-o-quê de nossas próprias mazelas
por meio de uma criança que fugiu de casa? De qualquer forma, se convenceu de que
Lucas agira inconscientemente, o que, por sinal, em nada atenuava a sua culpa.
Lucas, a certa altura, também procurara conselhos com outro escritor – O senhor J.
Gorbes, autor de cinquenta livros: Cinquenta best-sellers. O encontro foi gravado no
celular, embora em uma freqüência sonora rouca e esganiçada, mas, sob alguns
aspectos, teria sido uma pena se tal encontro tivesse sido destruído pelas chamas, pois
vejam só o diálogo:
- Nem os parentes encontraram a menina?
- Mas trata-se de um conto! – Voz de Lucas Antilho.
- Certo, mas se nem… Você pode ter se comovido além da conta, entende?
- Não me ensine isso, por favor.
- Ora, história de uma menina que sumiu? Pobrezinha, quase indigente? Não me venha
com essa! Pensa que ainda pega faturar em cima dessa gente? Ela se fartou de nós,
rapaz, hoje esconjura nossas estantes emboloradas, cansou de esperar pela luz e
liberdade que lhe prometemos séculos a fio, e nada, nada além de uma magra eternidade
em nossas bibliotecas.
- O que você quer dizer com isso?
- Digo que essa gente toda migrou para as televisões, como figurantes. Para fotos das
capas de discos, sites de busca e os cardápios de políticos e jornalistas que as devoram
diariamente, sem dó nem piedade.
- Pelo amor de Deus!
- Deus? Não seja tonto.
- Poupa-me do teu pessimismo!
- E você faça o mesmo com a tua ingenuidade.
- Vai reduzir a marcha do velório ou volto outra hora?
- Oh, então ligue suas antenas e ouça: O planeta não se agüenta mais de acontecimentos,
não percebe? Heróis, anti-heróis, anjos, demônios e outras criações, tudo já foi escrito e
não querem mais saber!
- Não acha cedo para tanto pessimismo? Afinal, do Brasil ainda não se escreveu a
metade!
- Ah, a velha tese dos gênios que temos e dos talentos que não…
- Não, dos talentos vexados por não serem gênios.
- Mas esse draminha de bastidor nem vai chegar ao palco! Não vê que as propagandas
de televisão são muito mais interessantes?
- Não é bem assim, porque acredita nisso? Não sintetizam! A imagem em muito
antecedeu a escrita e a não a evitou.
- E quem falou que ainda se quer a síntese?
- É muito desespero, homem!
(Que escândalo, se soubessem por aí que este grande autor de auto-ajuda, essa imagem
de candura e otimismo nacionais, era esse contrário todo em sua intimidade?).
- Você acha que ela volta? - Pergunto.
- Quem?
- A menina!
- Como saber? Já viu quantas pessoas somem todo dia? Não me admira que lhe
aconteça o mesmo. Olha, faça o seguinte, resgate-a no realismo fantástico, é o jeito!
- Brincadeira, Senhor Gorbes? Passe bem!
Em suas anotações apressadas, Lucas disse que, após essa visita, voltou ao hotel
disposto a continuar sem mais perda de tempo, pois os diálogos já soavam primitivos e
ríspidos, como que vindos de outras histórias de pessoas alhures pelas cidades aonde
andaram procurando Clarinha feito agulha em um palheiro.
Nas ruas, escutara pessoas discutindo mais uma Copa do Mundo vitoriosa, passaram
bêbados desocupados, motoristas protegidos pela blindagem de seus carros, passeatas
pelas Diretas-Já, pelo Fora Collor e pela Reforma Agrária, funcionários públicos
tentando se divertirem na hora do cafezinho com revistas pornográficas e hits de
músicas de periferia.
Porém, foi de tais andanças desconexas de Lucas que Pantagruel soube que Clarinha
tinha o rosto redondo, miúdo como os olhos etc. Admirou-a como a uma deusa, pouco
se importou que também os ambientes no texto variassem do tablado de um teatro
mambembe, uma sala de espera de aeroporto, uma passarela de moda, um hotel cinco
estrelas em São Paulo e no Rio de Janeiro ou uma casinha de capim em uma rua sem
asfalto, empoeirada e velha de fazer dó em Araguaína, ainda Estado de Goiás.
Lucas contou que quando fechava os olhos para descansar, Clarinha surgia diante de si
puxando-o pela perna, beliscando as suas costelas e outras atitudes típicas de pessoas
que morrem antes da hora, pedindo que se cumpram por elas certas obrigações deixadas
na Terra.
Pantagruel foi mais longe: Também deitei naquela mesma cama miserável – Disse. De
uma vez, ela puxou o telhado do quarto céu acima e gritos desconhecidos ecoavam nas
correntes de ar produzidas pelo choque do seu corpo contra as nuvens. “Abri os olhos,
cheio de amargura, achei que eram presságios de que ela tinha morrido e nem queria ser
escrita, mesmo em psicografia ou livros temáticos importantes”.
Pantagurel escreveu que quando Clarinha sumiu de casa uma mulher precisou de
calmante: Andava e mal se ouvia o ruído dos seus passos, escreveu. Quando surgiu a
idéia de que ela se desequilibrara nas pedras à beira de um rio, como acontece a
populações de cidades ribeirinhas, alguém disse que, então, deveria haver um caixão e
assim a prantearam em uma sala cheia de móveis afastados. Pessoas tristes de cabeça
baixa madrugada adentro.
Ambos, Lucas e Pantagruel, não sabiam que seus esforços não agradariam a gregos e
troianos – leia-se – a leitores, escritores e críticos. Muitos dos últimos torceriam seus
narizes chamando-os de farsantes. E os autores, claro, muitos deles estigmatizariam a
todos nós como impostores, pois não se julgam uma família de rios, oceanos, fontes e
veios de água acima dos comuns? Elementos supra-terrenos em contato direto com o
cosmo? Perguntem-lhes como escreveram tal obra para verem o que acontece! Ficam
indignados, fazem mistério absoluto! No máximo admitem que um autor se faça com
uma pitada de gênio e outra de ócio. E então? O que se faz aqui com toda essa história
se não revelando os seus segredos? Poderão reagir a isto com maus bofes de magos
vendo seus truques desvendados.
No conto, temos ainda: Izinha, de mãos pequenas, zarolha, que tem uma porção de
irmãos e os pais que não fitam os vizinhos porque se envergonham dela. Dona Geralda,
que come mingau de fubá há dez anos porque nada mais lhe para no estômago. E o
marido da outra, um velhão magro e esperto com um baralho, que se esconde no mato
toda vez que mudam a corporação militar da cidade.
Assim mesmo, ninguém dizendo a que veio. Caras de invasores, dissimulados como
eles só. Descritos em páginas e páginas ainda mais inescrutáveis do que o punho
humano. Todos resistindo bravamente à combustão circundante como, em dado
momento, foi a de todo mundo morrer afogado na beira do Rio Paranaíba.
De repente, dois novos personagens se insinuaram: Dois garimpeiros, um deles teria
almoçado na casa de Clarinha, era brincalhão, tinha a unha do dedo mindinho enorme
pra tocar violão e foi embora dizendo que voltaria quando Clarinha crescesse pra se
casar com ela.
Modestos, não pediram mais que algumas pinceladas.
O outro garimpeiro estava doente, tiritando de frio perto da ponte guardada pelo
Exército que anunciava a inglória revolução em 1964. De manhã lhe deram dinheiro
para que fosse embora rápido dali, pois abriram as comportas da nova represa onde
construíram uma hidrelétrica e deitariam mais uma cidade água abaixo.
Depois disso, só confusão: Outro homem com maleita sobre a ponte prestes a ir pelos
ares. Seria o mesmo garimpeiro pedindo esmola a engenheiros ingleses que preparavam
dinamite? Nada mais, fim de história. Vamos resumir: Consegue-se alguns traços da
menina Clarinha, clima familiar sucinto e enlutado, garimpeiros, integrantes do Exército
e pessoas correndo em todas as direções, novamente Clarinha e um bando de
personagens e leitores que até aqui ficam no ora veja.
É isto? É. A menos que continuemos mais um pouco para me ouvirem dizer que
encontrei Clarinha... Praticamente! Soube algo mais dela, ouvi alguém falar seu nome
ontem na frente de uma loja. Seu nome ali, no meio da rua, me fez abordar uma mulher
com estardalhaço, esta, apesar das aparências ainda não confirmarem, foi, a duas frases,
me dizendo que deixara de ser prostituta e se casara com um funcionário da Nesty.
Fui logo querendo saber se a Clarinha dela seria a mesma Clarinha de todos nós, ela deu
uns estalidos de paixão confirmando.Ouvi sua história diversa e espicaçada. Como pode
acontecer? Clarinha estava em algum lugar e chamava-se Clarinha de verdade?! Então,
a velha coincidência ainda varria esse velho mundo? Conversamos como se nos
conhecêssemos há anos! Como se eu fosse sua vizinha de porta, outra que, ao invés de
lhe roubar a filha, viera procurando-a tanto quanto faria qualquer mãe. O caso, segundo
me disse, está na Justiça. Bem, não é bem isto: O caso está arquivado em um inquérito
policial por falta de provas e à espera de exames de DNA! Mas como está na Lei que
ninguém é obrigado a fazer qualquer coisa que possa prejudicar a si mesmo, né?!
Ela jura que Clarinha é sua filha, foi roubada, entende? Entendo, ou melhor, não
entendo. Hoje, com 20 anos, a Clarinha teria tem a sua cara! – Penso rápido: Foi uma
Marcília não sei das quantas mesmo, sua vizinha, que vivia de agrado com ela, era
Clarinha pra lá, Clarinha pra cá, e que agora fala que é a sua mãe?
Como disse e repito, essa Marcília apresentou Certidão de Nascimento na Justiça, aliás,
como sua mãe o fez na polícia, com o nome do hospital aonde lhe deu a luz e tudo.
Arrolaram testemunhas. O hospital não confirmou nada porque jogaram as fichas fora,
todos os hospitais as jogam após cinco anos, pode?
Ela, mãe, resolveria o problema se tivesse marido naquela época! Não tinha! Não sabia
cem por cento se o pai de Clarinha era um ex-prefeito ou um linotipista que já morreu,
pois ambos se pareciam. Marcília também já não tinha marido, era viúva, viera com
uma conversa de que Clarinha nasceu em casa com parteira, ora, que força ela teria para
chegar ao ex-prefeito com uma história maluca dessas?!
- Se bem que, minha filha, olhe a cor daquela mulher, uma negra, como se diz hoje,
afro-descendente, e Clarinha é clarinha da silva, pode?!
- Não é possível! Eu disse.
- Juro.
- E ela! Com quem está? – Perguntei engolindo vento.
- Está com aquela morfética!
- Sei, mas, como? Ela levou sua filha e você não viu?
- Lutei muito, moça. Os enfermeiros, médicos e policiais riram na minha cara quando
falei de seqüestro… Ora, Clarinha já podia estar na Europa, não? Nos Estados Unidos,
no Canadá.
Francamente, ainda não me refizera.
- Mas, como foi isso? –
- Nem te conto. O estrupício da Marcília não saía da minha casa,chamegando a Clarinha
que era muito bonita, é bonita, entende? E inteligente! Marcília era a minha melhor
amiga, como eu ia desconfiar? Tem três filhos, ia querer mais um pra quê?
- Quantos anos ela tinha na época?
- Quase três… Coitadinha. Agora a mãe que ele conhece é aquela cachorra!
- Ela, como, como a senho…Você, essa Marcília tem três filhos e roubou a sua filha?
- O troço invocou com ela, eu não disse?
- Puxa!
- O quê?
- Nada, quero dizer, que mulher, não?
- Nem me fale. Vivo comprando coisas para a minha filha, como se fosse uma tia. Um
dia ela volta, tenho fé, não é, Marinalva? (Olhou sua amiga ao lado com aflição latente e
virou-se para mim)... Enfim... Mas, o que você tem com isso? Quem é você?
- Eu? Nada, quero dizer, meu marido também trabalhava na Nesty e…
- Ah.
- Bom, pelo menos sua filha está viva, não é?
- Mas disso eu sei há muito tempo.
- Que bom – Eu disse.
Naturalmente, não fui buscar outra versão para os fatos. Fiquei, ao fim de alguns
segundos, morrendo de raiva dessa tal de Marcília também, onde já se viu? Mas voltei
ao juízo, afinal, diz um ditado popular até esquisito de tão curto e certo que diz que nada
como um dia atrás do outro, não é?

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