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Fernanda Henrique Cupertino Alcantara Os classicos no cotidiano ARTE « CIENCIA EDITORA Digitalizado com CamScanner as ee Te A ae © 2007 by Fernanda Henrique Cupertino Alcintara Direcéo Geral Henrique Villibor Flory Supervisio Geral de Editoracio Benedita Aparecida Camargo Diagramacio e Capa Rodrigo Silva Rojas Letizia Zini Antunes Dados Internacionais de Catalogagéo na Publicagio (CIP) Acicio José Santa Rosa (CRB - 8/157) AleSintara, Fernanda Henrique Cupertino Os elassicos no cotidiano: Auguste Comte, Karl Marx, Aléxis de C347 Tocqueville, Emile Durkeim; Max Weber / Fernanda Henrique Cupertino Alcincara. Séo Paulo: Arte & Ciencia, 2007, p.224; 21 em. Fontes bibliogrificas Filmes relacionados Exercfcios ISBN - 978-85-7473-332-6 1. Sociologia. 2. Sociologia — pensadores elissicos. 3. Sociologia clissica. 4. Comte, Auguste, 1798- 1857 ~ Histé: 5. Marx, Karl, 1818-1883 — Abordagem socioldgica. 6. Tocqueville, Aléxis de, 1805-1859 — Critica e interpretagio. 7. Durkheim, Emile, 1858-1917 — Andlise critica 8. Weber, Max, 1864-1920 — Influéncia sociolégica. I Titulo. Indices para catélogo sistemético 1. Sociologia: Autores clissicos 301 2. Sociologia : Fundagio : Auguste Comte 301.09 3. Sociedade: Estrutura social : Sociologia, 301.45, Proibida toda qualquer reprodusio deta eign par qualquer meio ou Forma, scfcla clerdnica ou mectniea, foroespia, ravacto ou ‘qualquer meio de reprodusfo, sem permissfo expresiado editor “Todos os dicitor desta edigho, em lingua portuguess eservador d Editora Ame & Citneia Editora Arte 8& Ciéncia Rua dos Franceses, 91 - Morro dos Ingleses Sio Paulo — SP - CEP 01329-010 Tel.: (011) 3284-8860 Na internet: hetp://wwwrarteciencia.com.br Digitalizado com CamScanner Capitulo 2 Karl Marx (1818-1883) © segundo cléssico da sociologia que estudaremos € Karl Marx. Esse fe6rico era um pouco mais novo que Comte, mas ambos conviveram com a mesma realidade européia: a modernidade tradicional'?, Comte era francés € Marx alemio (na verdade, prussiano), mas ambos compartilhavam a mesma Percepsio da realidade no século XIX europeu no que diz respeito 20 avango do sistema industrial, a crenga de que o homem estava evoluindo e que a crise da ordem social de entio concretizava claramente esse imagindrio. Potém, as derivagées desta idéias centrais nfo sfo comuns, to pouco se assemelhan, Marx nasceu em 1818 ¢ acomy acontecimentos do século XI préprio tempo como 0 ipanhou de perto boa parte dos grandes do que eleo seu E também o do surgimento do capitalismo industrial e de cons lagio das nagBes ¢ dos Estados modernos. Ninguém percebeu tao bem o quanto © dinamismo modernizadot do capitalismo comunistae, especialmente, em O capital ~ centros de origem, (Weffort, 2004, p.228) ~analisado em O manifizto haveria de apequenaros seus etn, ji Medernidade eradicionaléum termo wilizado em sociologia Paraassinalaro perfodo que identifica inkio dos procestos de modernizagio eseguerr atk o perlodlo da modernidade organizada estatalmente, passando dlepols por uma tetera fase que &a da modernicdade de ‘ariculesto mista Para saber mais sobre 0 assunto ver Domingues (2002), 5 eldssteos no cotidtano - 51 \\ i WA LLL \ LAL i Digitalizado com CamScanner Como jé vimos, a sociologia surgiu como uma das respostas & crise de ordem social que acometeu 0 século XIX. O traballio desses autores consiste em compreender essas questées em profundidade e elaborar solugées para os problemas queestavam surgindo, Logicamente, como veremos, as solugées e compreensées nao coincidem, ainda que referente aos mesmos problemas, pois eada um desses autores’ im, perceberemos a crenga de Comte no fato de que a histéria se efetivava de acordo com o desenvolvimento do espirit. 0, 0 qual necessariamente passari estados distintos Ele acreditava, inclusive, que o problema da desigualdade entre os homens seria resolvido pela mudanga do sistema de crengas. Ora, Marx também se preocupou em estudar a sociedade industrial, mas a caracterfstica que ele considerava essencial neste processo era a prevaléncia do sistema capitalista- de producio. Portanto, diante da mesma realidade diagnosticamos dois olhares bastante diferentes, o que contribui para a discussdo sociolégica acerca do problema da naturalizagzo de questées sociais. Essa naturalizagao implica na aceitagao de determinadas interpretagées como sendo tinicas e inquestiondveis. Incontestavelmente Marx também considerava que as sociedades modernas sio industriais e cientificas, em oposigio as sociedades militares € teolégicas. Porém, em vex de por no centro de sua interpretagdo a antinomia entre as sociedades do passado € a sociedade presente, Essa supremacia do capitalismo era, contudo, apenas uma das etapas do pensamento histérico, a qual tinha como eorrespondente a supremacia da burguesia enquanto classe fundamental, Assim como Comte, Marx acreditava que a humanidade necessariamente caminharia para uma maior racionalizagao da vida e, com isso, alcangaria um estdgio evolufdo de organizagio social. Tal concepsio representa uma heranga direta do Ihiminismo. No entanto, para cada lum, esse fendmeno ocorreria de formas diferentes e de acordo com motivos diversos. E importante destacar também que, para ambos, a modernidade é um erfodo de crise social a qual antecede um perfodo ordenado que para Comte 52- Fernanda Henrique Cupertine Alcantara Digitalizado com CamScanner seria o pasitivismo e para Marx seria 0 comunismo, reafirmando assim a crenga na evolugio da humanidade. Tendo visto algumas das semelhangas, faz-se necessério agora passarmos as diferengas existentes entre esses autores. Uma diferenga importante entre os dois situa-se na discussio acerca da propriedade, da fungdo do homem frente & hist6ria, das relagdes que os homens estabelecem entre si ¢ com a natureza, De um lado, realidade, ao negligenciar a materialidade dos fendmenos histéticos. Marx, por outro lado, tenta objetivar a realidade por meio da compreensao da materialidade dos acontecimentos histéricos. Para Matx a realidade nao pode ser reformada, 0 primeiro ponto. Jé para Comte, 52 social imp ma evolugao da inteligéncia, por isso independe de nosso empenho. O segundo ponto de divergéncia ¢ uma conseqiiéncia direta do primeiro. iro ponto diz respeito & concepsao de desigualdade. Para Comte ela existe, mas o que importa é que a propriedade tenha uma fungio social. JA para Marx a desigualdade € resultante de uma exploragao intensa do trabalho assalariado por meio do controle politico. Em decorréncia disso, tanto a propriedade privada quanto o Estado deveriam desaparecer como resultado do desenvolvimento humano. Enquanto no positivismo os conflitos entre trabalhadores ¢ emptesirios sao fenémenos marginais, imperfeigdes da sociedade industrial cuja corregao é relativamente facil, para Marx esses conflitos entre os operirios € os empresirios [,..] so 0 fato mais importante das sociedades modernas, © que revela a natureza essencial dessas sociedades ao mesmo tempo em que permite prever o desenvolvimento histérico. (Aron, 1982, 135) E importante que mantenhamos sempre essa visio comparativa entre 9s autores para que eles possam ser compreendidos de fato ¢ nao apenas superficialmente, Para prosseguir com esta metodologia, passarei agora 4 anilise dos dados biogrdficos de Kar! Marx. Os classicos no cotidiano - 53 Digitalizado com CamScanner 3. O método de anilise: dialética e materialismo histérico A dialética marxiana é uma heranga dii isdo hegeliana acerca da histéria. A diferen ali: iral i a realidade firma-se sobre um -0 extremamente complexo, o qual contém elementos que ao entrarem em contradigdo — temo bastante usado por ele -, promoveriam 0 desenvolvimento histérico ea mudanga social de fato. Essa mudanga, portanto, nao seria proveniente de reformas, mas sim de conflitos estruturais”. Marx utilizou essa premissa conferindo a dialética a fungo de apontar quais sao as contradigdes que compéem a realidade social. A partir disso, tornar- se-ia possfvel compreender as mudangas ocorridas nas ordens anteriores os mecanismos que permititiam, ¢ até mesmo engendrariam, a consolidagio de uma nova ordem social por meio da negagéo de uma ordem anterior. Esse fato 86 ocorrétia porque a consciéncia nao estava fundada em si mesma, mas na realidade material do mundo. Nao sé retiramos da realidade as idéias, crengas, teoriase pensamentos que produzimos, como também devemos necessariamente utilizé-los para intervir no mundo, ou melhor, no fragmento de mundo que estivermos estudando. Neste ponto ocorre a aproximagao entre ele ¢ Feuerbach, critico do idealismo de Hegel. ‘A dialética, entdo, representaria a contradigao e'0 conflito existentes na realidade social, sendo eles os responsdveis diretos pela mudanga social. Em outras palavras, Marx no acreditava que poderia existir mudanga por meio de reformas, mas sim de revolugées. A esséncia da existéncia do conflito, para Marx, residia na contradigao entre as forgas produtivas e as relagdes sociais de produgiio, ocasionando assim a /uta de classes!’, Pois bem, se é por meio da anilise dialética que Marx esperava compreender a histéria humana, nao € menos verdade que 17 Marx usa idéias inspiradas na obra A esséncia do cristianismo, de L. Feuerbach, para se afastar do idealismo hegeliano. Contudo, manteve a seu modo, 0 conceito de dialética, Esses coneeitos serio trabalhados posteriormente. = 5 elassteos no cotidiano - 61 Digitalizado com CamScanner deixou claro a importancia dessa © materialismo histérico, como podemos observar com 0 fragmento transcrito abaixo. Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem ea Natureza, lum proceso em que o homem, por sua prépria aco, media, regula controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma forca natural. Ele pde em movimento as forsas naturals pertencentes sua corporalidade, bragos ¢ pernas, cabeca € mio, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma util para sua prépria vide, Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externaa ele e20 modificé-la, cle modifica, ao mesmo tempo, sua prépria natureza. Ele desenvolve as poténcias nela adormecidas e sujeita 0 jogo de suas forsas a scu préprio dominio. (Marx, 1983, p.149) Nisso é que consiste 0 materialismo histéric atentar para a andlise das condi¢des materiais de existéncia sempre que o objetivo for compreender a vida social, Por sua vez, as condigbes materiais de existéncia compreendem as relagGes materiais que os homens estabelecem entre sie 0 modo co! mo produzem seus meios de vida, 5 quais formam a base de todas as outras relagées. Contudo, aplicagao do conffito dialético e sua transposigao para a realidade ‘muitos comentadores afirmam que a dialética sé € posstvel em termos objetivos ~ precisa considerar a existéncia de uma dialética pré-burguesa e uma dialética burguesa. O divisor de aguas seria o capitalismo e, com ele, o estabelecimenta de uma contradicéo muito especifica: a das forcas produtivas com as relagées sociais de produgdo num contexto de mio-de-obra livre e assalatiada, essa na verdade, A concepgio materialista da da perspectiva do socialismo, Este seria vio e impotente enquanto se identificasse com utopias propostas As massas, aceitar seus projetos prontos e acabados, fosse criagio das préprias massas traball frente. Ou seja, se surgisse do movimento Proletariado na condigio de classe objetiv mais revoluciondrios da sociedade, O socialismo sé setia efetivo se lhadoras, com o proletariado & histético real de que participa o amente portadora dos interesses (Gorender, 1983, XIV) 62-Fernanda Wenrique Cupertine Rlcantara Digitalizado com CamScanner ae I Neste caso, Marx néo poderia ser considerado apenas evolucionista, fatos histéricos que ele Marx conferiu a historia reante no tocante a j4 que seu esquema tedrico buscaria reproduzir os recortou, tratando-os de forma complexa. Com isso, e A contextualizagio dos fatos/fendmenos um papel impo filosofia, reafirmando a importancia da praxis e da relagao entre as formas de organizagio da vida social com as crengas, hdbitos e costumes de um povo- nsitérios como Mas no apenas os processos ligados & produgao sao tra categorias do também as proprias idéias, concep¢Ges, gostos, crengas, conhecimento ¢ ideologias os quais, gerados socialmente, dependem do modo como os homens se organizam para produzir. Mesmo o pensamento ea consciéncia sfo, em iltima instancia, decorréncia da relagio homem/ natureza, isto é, das relagées materiais. (Quintaneiro, 1995, p.68). Essa materialidade da existéncia humana passa, entdo, por duas formas. A primeira diz respeito as relagdes que o homem estabelece com a natureza de acordo com o intuito de (sobre)vivéncia. A segunda deve-se as relagoes constituidas entre os homens, na medida em que eles precisam estabelecer formas sociais que propiciem a sua prépria (re)produgio. Na verdade, de acordo com Marx, a produedo ocorre num primeiro momento ¢ é objetivada por meio da cultura, que cuida de transmitir os conhecimentos acumulados e ai, sim, promover a reproducdo. Portanto, por meio do trabalho o homem se desenvolve € promove tanto a produgio como a reprodugéo das relag6es que constitui no decorrer da vida, expandindo-se a todos os aspectos dela, por mais diversos que paregam a princfpio. Novamente aparece aqui a relagéo entre o trabalho — elemento principal de objetivagio desse cardter material da existéncia humana ~ ea organizagio simbélica da vida. 4. A concretizac&o do trabalho: forcgas produtivas e relagées sociais de producao Como disse anteriormente, dois conceitos sio fundamentais para uma introdugéo ao pensamento marxiano, sendo eles: forgas produtivas ¢ relagoes sociais de produgdo. Para tanto é importante relembrar que a sociedade ¢ decorrente dos dois tipos de relacées citados anteriormente, ou seja, € um produto da interagao constante dos homens entre si e com a natureza. Porém, © resultado desta interagao nao ¢ determinado pela intencionalidade humana, Os clissicos no cotidiano - 63 Digitalizado com CamScanner j& que a histéria necessariamente deve seguir 0 curso previamente determinado. Isso implica que o determinante (0 indicativo) do grau de desenvolvimento de uma sociedade ¢ obtido por meio da andlise do desenvolvimento de suas forgas produtivas e das relagSes sociais de produgao. Marx denominou de forgas produtivas aquilo que representa o dominio do homem sobre a natureza, isto ¢, sua tecnologia, sua capacidade produtiva, os instrumentos e as técnicas que desenvolveu para cumprir tal tarefa. A ago dos homens sobre a natureza é expressa no conceito de forgas produtivas — 0 qual busca aprender 0 modo como aqueles obtém os bens de que necessitam por meio da tecnologia, da diviséo técnica do trabalho, dos processos de producio, dos tipos de cooperacio, da qualidade dos seus instrumentos, das matérias-primas que conhecem ou que dispéem, de suas habilidades e saberes. Esse conceito pretende, pois exprimiro grau de dominio do homem sobre as condig6es naturais. (Quintanciro, 1995, p.71) Por outro lado, as relagdes sociais de produgdo expressam o desenvolvimento das formas de organizacéo criadas pelos homens com 0 intuito de viabilizar a produgio ¢ a reprodugio de sua vida. Sendo assim, em cada perfodo histérico a humanidade desenvolveria um formato distinto para organizar 0 processo produtivo, o qual identificaria o préprio grau de desenvolvimento de cada sociedade. As relagdes sociais de produgéo que sio compostas pelas formas estabelecidas de distribuigao dos meios de producao e do produto, ou as leis que regulam tal apropriagio e pelo tipo de divisio social do trabalho —expressam, em suma, como 0s homens se organizam socialmente para produzir. (Quintaneiro, 1995, p.72) Entio, as forgas produtivas sfo os elementos que, conjuntamente, medem a capacidade produtiva de uma sociedade e o grau de dominio que ela obteve sobre a natureza. As relagées sociais de produgio, por sua vez, refletem essa capacidade por parte da organizagio das interagSes para o trabalho (tendo em vista a realizagao do trabalho). Esses dois conceitos reunidos definirdo o contexto de contradigdo que propicia o surgimento das revolugées. 64 - Fernanda Henrique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner A burguesia nfo pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produséo, por conseguinte as relagoes de produgio, 6, desse modo, todas as relagdes sociais. A conservacio, sem alteragoes, do antigo modo de produsio era, pelo contrério, a condigio primeira de existéncia de todas as anteriores classes industriais. O permanente revolucionar da produgio, 0 abalar ininterrupto de todas as condiges sociais, a incerteza eo movimento eternos distinguem a época da burguesia de todas as outras. Todas as relagées fixas e enferrujadas, com o seu cortejo de vetustas representagGes e concepgées, sio dissolvidas, todas as recémn- formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo 0 que era sélido se desmancha no ar, tudo 0 que era sagrado € profanado, e os homens so por fim obrigados a encarar com os olhos bem abertos a sua posicéo na vida € as suas relagées recfprocas. (Marx e Engels, 1998, p.71) Na veidade, se nos atermos ao desenvolvimento proposto por Marx, essa contradigéo acaba por impor a revolucio, alids, varias revolugées até a crise final do capitalismo. 5. O material e 0 simbélico: infra-estrutura e superestrutura Marx descreve, em sua obra, duas estruturas responsdveis por abarcarem dimensdes analiticamente diversas, quais sejam: a infia-estrutura ea superestrutura. A infra-estrutura corresponde ao conjunto das forsas produtivas e das relagoes sociais de produgio de uma determinada sociedade. A superestrutura corresponde a0s aspectos no materiais da vida social, 0s quais, a princ{pio, seriam decorrentes dos aspectos materiais. Esta compreensio, no entanto, como jé mencionado, no é um consenso entre os comentadores de Marx, jé que existe outra versio segundo a qual a relagio entre essas esferas analiticas é necessariamente cfclica, ainda que se admita o fato dele nao ter desenvolvido uma discussio ampliada e densa sobre a superestrutura. Esta seria entio 0 conjunto de instituigées, crengas, ideologias, costumes e representagées desenvolvidos por uma sociedade. De qualquer forma, parece claro na obra de Marx que é chegado um determiniado momento histérico no qual as forcas produtivas e as relagées sociais de produgio deixam de ser correspondentes ¢ a segunda passa a ser um impedimento para 0 desenvolvimento da primeira, E ent&io que todas as condigées favordveis & revolusio de um sistema produtivo e politico encontram- se reunidas. Ou seja, é devido & incompatibilidade entre forgas produtivas Os ldssicos no cotidiano - 65 Digitalizado com CamScanner relagées sociais de producdo, os quais compbem a infra-estrutura, que terfamos uma mudanga na superestrutura e também na infta-estrutura. Esse tema & mais importante do que pode parecer numa citagao rasa itos, Implicay entre outras coisas, na dadominacéo material o responsdvel pela continuidade da prépria dominagio, 20 justificar o mundo do ponto de vista de quem domina, nao de quem édominado. 6. Classe social e estrutura social: a luta de classes Nao é possivel afirmar que Marx deixou consolidada uma teoria das classes sociais. Contudo, ele as distinguiu e as requalificou externa e internamente. Segundo ele, as classes sio produto direto das relagSes constitufdas para a produgao e a reprodugao da vida. Por um lado, tem-se a classe de produtores (nao-proprietérios) e, por outro, a classe dos proprietérios (ndo-produtores), sendo que a-relacao estabelecida entre elas € sempre de dominagio e concomitante exploragéo, num tnico sentido: dos proletdrios pelos proprietarios no capitalismo, dos vassalos pelos senhores feudais no feudalismo, dos escravos pelos senhores na antiguidade e assim por diante. A nossa época, a época da burguesia, distingue-se, contudo, por ter simplificado os antagonismos de classe. Toda a sociedade estd dividida, cada vez mais, em dois grandes campos hostis, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia ¢ o proletariado. (Marx ¢ Engels, 1998, p.69) No capitalismo essa exploracao tem caracterfsticas particulares porque 0 trabalho é livre e assalariados consiste no fato de que os proprietirios apropriam- se da riqueza produzida pelos trabalhadores, 0 que os impede de remuneré-los adequadamente pelo trabalho desenvolvido. Mas nos outros modos de produgio a exploragao também ocorre, s6 nao est ligada a relagdes assalariadas. Dessa forma, Marx desenhou um modelo dicotdmico segundo o qual os proprietdrios estariam sempre em oposigao aos interesses dos ndo-proprietdrios, sendo essas, 66 - Fernanda Henrique Cupertino Aledntara Digitalizado com CamScanner ne h is, ji ele, existiriam na verdade, apenas as classes fundamentais, jd que segundo is sfo aquelas cujos intere ses de classe. As classes fundamentais sio aquel open aa que promovem a lua de classes. A ses SSeS opéem radicalmente. Sao elas, portanto, i histria é construfda devido aos aes travados nas diferengas de interes entre as chamadas clases fundamentais, as quais compdem, de um lado, a elasse de proprietdrios,e, de outro, a classe de trabalhadores nito proprietdrios. As fragbes de classe, por sua ver, compée-se dos elementos que nao se enquadram nas classes fundamentais, De acordo com Quintaneiro (1995, p.81), para Marx, * existéncia das classes sustenta-se na exploracao ¢ em diversas formas de opressio social, politica, intelectual, religiosa, etc; daf que a relagao entre elas nao pode ser outra senao conflitiva, ainda que apenas potencialmente”. asse em sie classe ransformagio d ico que a alienagao também impede esse processo de transi¢o de um tipo de classe para outro, mas.essa questao ¢ objeto de outro tépico. Nao existe, portanto, uma preocupagio em conciliar a idéia iluminista de progresso com a de ordem social. Muito pelo contrdtio, para Marx o progresso s6 ocorre devido ao confronto, tinico elemento capaz de levar & “revolu¢ao”. E © confronto entre classes, cuja base éa reivindicacao de uma nova configuragao social, que faz com que uma nova organizacio se instaure, promovendo assim uma “tevolugao” social. Essa mudanga deve, segundo sua concepgio, caminhar sempre em diregao a formas mais avangadas de organizacao social, reafirmando sua convicgao de que a humanidade segue em direco ao progtesso. O fim deste processo ocorreria com a tomada do poder pelo proletariado, a instauragao do regime comunista, a extingao do Estado e das classes sociais, Nao é demais relembrar que esta também é uma diferenga entre Comte e Marx, j que o Primeiro nao aceitava a idéia de progresso sem ordem. Ainda hoje tomamos como referéncia a classe para explicar determinados comportamentos sociais. Contudo, além do fato de esta classificagéo mudar em fungao do instituto que coordena cada pesquisa, cada vez mais novas categorias io criadas para auxiliar na compreensio da realidade social, tal como o conceito de status cunhado por Weber ou o de poder aquisitivo tao usual nas andlises da Os classicos no cotidiano - 67 Digitalizado com CamScanner atualidade. Esta categoria ainda hoje é central para explicar os conflitos sociais € os diferentes comportamentos adotados. Digitalizado com CamScanner Capitulo 4 Emile Durkheim (1858-1917) Abra de Durkheim se aproxima dos conceitos e pressupostos comteanos de tal forma que até mesmo sua maior preocupagio estd, também, relacionada & obra de Comte, na medida em que pode ser cada como a questio da urkheim no conheceu Comte, visto que nasceu um ano apés a morte dele. Isso nao impediu de ter acesso & obra deste tiltimo e de ter sido amplamente influencjado por ele, Alguns autores argumentam que Durkheim iniciou seu trabalho frente & preocupagao com a filta de organizagao social (desordenamento) advinda com a modernidade, preocupagio essa presente também na obra comteana, o que reafirma a influéncia deste sobre aquele. E com esse intuito que Durkheim comegou sua tese intitulada Da divisto do trabalho social, demonstrando também grande preocupagao com os fendmenos que acompanhavam a modernidade. Mas ele nao se restringiu a descrevé-la sem compor alternativas poss{veis, ¢ essa assertiva nés poderemos verificar ao ler a sua obra. Durkheim publicou varias obras sobre este tema, mas todas com base em objetos e enfoques iniciais diversos. Neste capitulo limitar-me-ei apenas as obras que sio consideradas as mais importantes, sendo elas: Da divisdo do trabalho social, O suicédio, As formas elementares da vida religiosa e As regras do mnétodo socioldgico, Nao teremos, portanto, um objeto nico para Durkheim, tal como ocorreu com os demais autores estudados até agora, Teremos, entéo, uma visio mais pulverizada devido & pluralidade e riqueza de sua obra. Além s classicos no cotidiano - 117 Digitalizado com CamScanner produgio | disso, devido & presenga marcante da heranga comteana’em sua sempre que posstvel, etomarei os preceitos de Comte com o objetivo ! intelectual, Marx, Tocqueville ou ¢ Baurricaud (1993, p-183): ‘Weber, sempre quis evitar atribuir ao individuo o status de um sujeito que age”. Essa concepsfo coletivista estar presente em toda a sua obra, determinando os métodos utilizados para o estudo de objetos diferentes. Vale destacar Durkheim tratou de institucionaliz4-la, claramente que enquanto Comte fundou a Sociologia, | dando seqiiéncia ao trabalho de seu antecessor. De diversas formas essa ago foi | concretizada: tanto a partit de justificativas teéricas acerca da suposta supremacia | do social, quanto pelo estimulo & realizagio das primeiras pesquisas sociais, com destaque para o detalhamento do método ¢ dos procedimentos necessdrios para que a sociologia alcangasse o status de ciéncia. . Durkheim ganhou notoriedade, ainda muito novo, para o padrio-da | época, no circuito intelectual europeu. A maior parte de sua obra foi publicada | antes que ele completasse 40 anos. Ao falarmos sobre ele necessariamente devemos mencionar a preocupacdo com o restabelecimento da ordem — que ele acreditava ter se dissolvido com a modernidade — ea presenga constante da heranga comteana em sua teoria. elemento constante pode se resumir as duas ambigdes que Durkheim coloca como 0 quadro de seu trabalho, com respeito as quais vai se csforgar em nunca se desmentir, A primeira, fundada na antitese i individuo-sociedade (que vai se desdobrar nas ant{teses privado-piblico, profano-sagrado etc.), traduzit-se-4 na vontade de explicar a ordem social | € 0s princ{pios da moral por meio das ‘realidades coletivas’. A segunda, , estritamente ligada & primeira, é de fundar uma ‘ciéncia dos fendmenos | sociais’ que seja a0 mesmo tempo espectfica ¢ distinta das outras ciéncias j (especialmente da psicologia). (Pizzorno, 1977, p. 49) “ Ele ird rejeitar a visio marxiana, a qual atribufa aos problemas econémicos a responsabilidade pela quebra da ordem social. Durkheim frisa que a economia 118 - Fernanda Henrique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner Estes decorreriam, principalmente, nio da conta de explicar os problemas sociais. gio dos da falta de socializagio dos individuos, ou seja, da falta de integra individuos & sociedade. Marx ¢ Durkheim discordaram nao s6 com relagao a esta questio especifica. © segundo tedrico rejeitari a idéia de que a hist6ria ocorre devido aos conflitos existentes entre proprietérios e produtores em cada sistema produtivo. Em resposta a idéia marxiana de que a evolugio implica numa mudanga de regime, Durkheim afirma que os problemas sociais possuem outra otigem eo socialismo “verdadeiro”, segundo ele, nada tem a ver com 0 marxismo. Posto isso devemos considerar duas concepgées bastante distintas com relag4o a0 socialismo: para Marx 0 socialismo é 0 perfodo de transicao do capitalismo para o comunismo, fundado com a ditadura do proletariado; para Durkheim 0 socialismo é 0 fendmeno que se opée ao individualismo e seria fundado com a instituigéo da ordem social ea moralizagao dos individuos. Embora num certo sentido seja socialista — um verdadeiro socialista, de acordo com a definico que emprega—, nao é marxista. Opée-se mesmo a doutrina marxista, como ela ¢ interpretada ordinariamente, em dois pontos essenciai Em primeiro lugar, nfo cré na fecundidade dos meios violentos e se recusa a considerar a luta de classes, em particular 0s Durkheim acteditava que os pesquisadores deveriam considerar os fatos dl Du sociais como coisas, ou seja, objetivando-os ¢, com isso, neutralizando os valores do sociélogo, enquanto individuo que também far. parte da sociedade « dela T Tg ictia inftuéncia direta. Nessa busca pelo reconhecimento da objetividacte da NE onia, ele entra em contradic¢éo com um dos seus alicerces tedricos, qual Sejao de quea sociedade, representada pelo fato social, exerce coergao constante lps Pesobre 0s individuos. Onde esté a contradigdo? Se o individuo tem a capacidade de criticamente determinar quais valotes carrega consigo e despis Tealidade deles, esta no deixa de ser objetiv pela educagio”. (Durkheim, 1999a, p.1) 7» “Bsses tipos de conduta ou de pens € coercitiva em virtude da qual cra, « mente, quando me conformo n pancoctsio nfo se faz ou pouco se faz sentir, sendo intl, Novy Por isso ela deixa de ser um eardter inteinseco desses fatos, ¢. Prova disso é que ela se firma tio logo tento resists". (Durkheim, 1999s, p.2) voluntariamente a ela, 148 - Fernanda Wcarique Cupertino Al, Antara Digitalizado com CamScanner momento em que achar conveniente, onde esté a sociedade imperando sobre ele? Entio o individuo se submete a sociedade “porque quer” no porque esté condicionado a ela? De qualquer modo, o fendmeno social se caracterizaria pela imposigio que exerce sobre os individuos e por esta razao seria denominado coisa’, Tal concepgao baseava-se no pressuposto de que 0 conhecimento cientifico deve ser construfdo dos fatos para as idéias. Em outras palavras, como 6s fendmenos sociais sao coisas, é por meio da apreensio dos fatos sociais que formulamosas teorias e nao 0 contrario. Na citagao abaixo Aron (1982, p.302) ratifica essa afirmagao ¢ relembra que, por exemplo, tomando-se essa concepgio por referéncia, na obra Da divis ao do trabalho social Durkheim insiste que nao sé desenvolveu suas idéias de modo racional causal como demonstrou que os conceitos elaborados podem ser observados materialmente nos tipos de direito presentes em cada sociedade. A resposta dada por Durkheim & questo metodolégica € a seguinte: para estudar cientificamente um fendmeno social, € preciso estudé- lo objetivamente, isto é, do exterior, encontrando 0 meio pelo qual 08 estados de consciéncia nao perceptiveis diretamente podem ser reconhecidos € compreendidos. Estes sintomas, ou expressées dos fendmenos de consciéncia s40 em De la division du travail social, os fenémenos juridicos. Mas além dos fatos sociais existiriam ainda as correntes sociais, j& mencionadas anteriormente. Estas no se cristalizam, ocorrendo como uma “onda” de euforia sobre os individuos e condicionando-os; por isso, nem toda ago homogénea é um fiato social, E necessario que ela se solidifique para se tornar #0 “O que vem a ser uma coisa? A coisa se opSe A idéia assim como o que se conhece a partir de fora se opée ao que se conhece a partir de dentro. E coisa todo objeto do conhecimento que nfo é naturalmente penetravel & intéligéncia, tudo aquilo de que nio podemos fazer uma nogao adequada por um simples procedimento de andlise mental, tudo 0 que o espirito nao pode chegar a compreender a menos que saia de si mesmo, Por meio de observages ¢ experimentagées passando progressivamente dos caracteres mais exteriores ¢ mais imediatamente acessiveis aos menos visiveis ¢ aos mais profundos. [...] E abordar seu estudo tomando por principio que se ignora absolutamente o que eles so e que suas propriedades caracterfsticas, bem como as causas desconhecidas de que estas dependem, nao podem ser descobertas pela introspecsiio, mesmo a mais atenta”. (Durkheim, 1999a, XVII) Os classicos no cotidiano - 149 Digitalizado com CamScanner um fato social e poder ser observado no direito, nos costumes ou nas estatisticas. Tal como a postura sociolégica,' que, imitando 0 processo histérico pelo qual passou a psicologia, deveria deixar de ser subjetiva e pasar & objetividade, também seu objeto deveria tornar-se um dado objetivo, uma “coisa”. Pensando nisso, Durkheim tratou de estabelecer regras para o que ele denominou a observagio dos fatos sociais. A primeira regra e, de acordo com le, a mais importante, j4 foi mencionada: “[...] € considerar os fatos sociais como coisas” (Durkheim, 1999a, p.15). Quanto a esse ponto, Durkheim insiste que até sua época a sociologia havia se dedicado aos conceitos, nfo as “coisas”. Ele adverte que a ciéncia deve necessariamente percorrer o caminho contrdrio. a este. Em todo 0 livro ele dialoga mais diretamente com Comte e Spencer, estando mais préximo tedrica e métodologicamente do primeiro e rechagando por diversas vezes alguns posicionamentos do segundo. Entretanto, ao falar da relagao entre “coisas” e conceitos, Durkheim chega até mesmo a alfinetar Comte, ao mencionar que embora este tenha considerado os fenémenos sociais positivamente como “naturais”, ou seja, submetidos a leis naturais €, provavelmente, por isso mesmo, aceitaria a idéia de que eles so “coisas”, contrariando essa premissa ele desenvolve apenas idéias e conceitos como objetos de estudo em:sua teoria. Essa temética se expande entao & problemdtica dos conceitos e nogées, sua origem “vulgar” ou cientifica. O risco que o sociélogo corre ao formular teorias ¢ andlises tendo por base conceitos é 0 de transferir a impreciséo e ambi idade contidas em sua formulagio cortiqueira para o contexto cientifico; 0 “vulgo” acaba por ser confundido com o cardter cientifico. Durkheim (1999a, p- 23) vai ainda além e alerta que: “No estado atual de nossos conhecimentos, nao sabemos com certeza o que é o Estado, a soberania, a liberdade politica, a democracia, 0 socialismo, o comunismo, etc.; 0 método aconselharia, portanto, a que nos proibissemos todo uso desses conceitos, enquanto eles nio estivessem cientificamente constitu/dos’. Ateoria, para Durkheim, resulta da pesquisa, nao a impée, a substitui ou a ignora. Em iltima instancia, a teoria sé “aparece” ao pesquisador quando a pesquisa tivesse “avangado bastante”, nfo no in{cio do empreendimento como comumente ocorre, Decorre daf outra proposigao: “O cardter convencional de uma pritica ou de uma instituigdo jamais deve ser presumido” (1999a, p.29). Em outros termos, sé a pesquisa objetiva e sistemdtica pode mostrar como ocorre um dado fendmeno social, tudo o que antecipe constatagées foge 20 150 - Fernanda Henrique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner cardter objetivo e, portanto, cientifico. A “coisa” é uma forma que Durkheim encontrou de postular a exterioridade do fendmeno e, com ele, da pesquisa cientifica, impedindo que se altere sua “natureza” pot meio do subjetivismo. ‘Tem-se, entio, outra preocupagio claramente durkheimiana: se a psicologia saiu do subjetivismo e se institucionalizou ao alcangar 0 mundo objetivo, deve-se empreender um esforgo para que o mesmo movimento ocorra com a sociologia. ‘A empresa sociolégica seria muito mais provével do que a realizada pela psicologia porque, no caso da primeira os fatos sociais sao facilmente objetivados €, entio, observaveis. Ironicamente, Durkheim lembra que, sendo assim, “[...] nao € preciso, portanto, torturé-los com engenhosidade” (1999a, p.31)- Partindo do pressuposto de que os fatos sociais devem necessariamente ser tratados como coisas, Durkheim produz trés derivagées importantes. Primeiro, a de que: “E preciso descartar sistematicamente todas as prenog6es” (1999a, p.32). Implica dizer que 0 “vulgo” nao deve adentrar 0 campo cientifico ¢ requerer para si cardter de ciéncia; o costume e o empirismo nao fornecem os dados ¢ informages necessdrios ao empreendimento cientifico. Tal procedimento, por isso mesmo, nada tem de simples ou ficil ¢ € Durkheim que relata jd em seu tempo a resisténcia & sua obra quando se fala da necessidade de uma “andlise fria ¢ seca”. Os sentimentos e paixdes seriam os responsdveis por dificultar a objetividade. O que torna essa libertagao particularmente dificil em sociologia é que o sentimento com freqiiéncia se intromete. Apaixonamo-nos, com efeito, por nossas crengas politicas ¢ religiosas, por nossas priticas morais, muito mais do que pelas coisas do mundo fisico; em conseqiiéncia, esse cardter passional transmite-se 4 mancira como concebemos e como nos explicamos as primeiras. As idéias que fazemos a seu respeito nos sto muito caras, assim como seus objetos, ¢ adquirem tamanha autoridade que no suportam a contradi¢ao. Toda opiniao que as perturba é tratada como inimiga. (Durkheim, 1999a, p.33) Segundo é importante que o socidlogo jamais tome “...] por objeto de pesquisas sendéo um grupo de fendmenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que Ihes so comuns, e compreender na mesma pesquisa todos os que correspondem a essa definigio” (Durkheim, 1999a, p.36). A sistematizagio e o estabelecimento de um princfpio racional que possa ser identificado por outros individuos ¢ permanega vilido para todos os elementos observados na pesquisa, objetivando os critérios utilizados. Os critérios, por sua Os classicos no cotidiano - 151 Digitalizado com CamScanner vet, esto intimamente ligados & necessidade de definigao dos objetos de estudo a pattir das caracterfsticas apresentadas, nao da experiéncia anterior do pesquisador, mas das “sensacées”, Aparentemente é estranho falar em “sensagdes” num texto Cuja palavra que mais se repete insistentemente é “objetividade”. Mas Durkheim quer, com isso, lembrar que a ciéncia se constréi a partir do que é percebido, sentido, néo do que se acha a priori. Eis que se observa, entéo, um dilema: a ciéncia nfo ¢ 0 conhecimento vulgar, mas é a partir da experiéncia vulgar que nos —. apercebemos, sentimos, as caracterfsticas pertencentes As “coisas”. | Por ultimo, posto em terceiro lugar, 0 conjunto dos fatos sociais néo S'S" deve ser confundido com fatos individuais: “Quando, portanto, 0 socidlogo ™ empreendea exploragio uma ordem qualquer de fatos sociais, ele deve esforcar- = 4| se em consideré-los por um lado em que estes se apresentem isolados de suas | manifestag6es individuais” (Durkheim, 1999a, p.46). dd | Um dos destaques inegéveis desta obra reside no fato de que, ao prezar = ~~ pela objetividade e pelo carter cientifico, Durkheim dedicou grande parte af de suas preocupacses as questées referentes a conceitualizagdo, definigéo e 1 classificagao, no sentido de fandamentar suas andlises ¢ consideragbes. Talvez seja . um dos primeiros a se preocupar mais detidamente com a elaboragao detalhada = —_ desses elementos. Por isso mesmo foi chamado de conceitualista por muitos = D> comentadores de sua obra. | Nao obstante, sua concepsio acerca dos procedimentos metodolégicos sua visio de ciéncia contribufram definitivamente para 0 aprimoramento das técnicas e métodos de pesquisa nas ciéncias sociais. A partir de Durkheim esob sua influéncia, os estudos sociolégicos néo mais apenas se referem a ensaios, mas se preocupam em demonstrar de forma clara os elementos da realidade que indicam a validade dos postulados construfdos ~ nao podendo mais se fandar em fatos isolados e dificilmente verificaveis por tetceiros. i _ > 3 as E interessante notar que, embora pertencentes a um mesmo perfodo histérico, Durkheim e Max Weber (préximo autor a ser estudado neste livro) ‘fo tiveram conhecimento da obra um do outro, Durkheim, inclusive, redigiu uma critica a um artigo de Marianne Weber, mulher de Weber, sem citar o nome do socidlogo. As diferengas metodolégicas e teéricas entre os dois séo marcantes © por isso mesmo, seria interessante observar um debate entre eles sobre as equestdes pontuadas por cada um, Fato este que a histéria no nos legou. Durkheim pregava um positivismo renovado, reconhecendo aimportincia da teoria comteana ¢ consolidando a idéia de que a sociologia precisava ser 152 -flernanda Henrique Cupertino Alc Digitalizado com CamScanner objetiva, implicando com isso a neutralizagio de valores, preconceitos ¢ pré nogées. Por outro lado, Weber salientou que ao pesquisador era necessdrio 0 reconhecimento de que a tarefa dita objetiva era tio imposstvel quanto a idéia de verdade, fundando assim uma sociologia compreensiva. Para cle, 0 maximo que o pesquisador poderia fazer era assumir seus preconceitos, pré-nogbes ¢ valores, facilitando assim a andlise de suas consideragées ¢ permitindo ao puiblico compreender que estas so reflexos também daqueles. Enquanto Durkheim afirma que os fatos sociais se impdem aos individuos, Weber ird descrever a atividade cientifica como origindria de uma série de recortes do mundo justificados com base em valores muito especificos e nada estranhos aos interesses dos pesquisadores. De um modo ou de outro, ambos constituem-se em ferramentas que podem ser utilizadas em contextos distintos para a produgo do conhecimento cientifico e mais especificamente do conhecimento sociolégico. Digitalizado com CamScanner 4 Max Weber (1864-1920) — Bs Capitulo 5 Junto a Karl Marte Emile Durkheim talvez Max Weber seja um dos tedricos clissicos mais citados e reconhecidos na atualidade, tendo cada um deles “formado” escolas politicas e metodolégicas que agregam milhares de disc{pulos até hoje. Apesar disso, o que nos importa mais detidamente no momento é 0 arcabougo metodolégico que cada um deles legou & ciéncia. Por exemplo, enquanto Marx desenvolveu e disseminou 0 método do materialismo histérico dialético, Weber construiu uma teoria sobre a ago social que trouxe grandes conttibuicées metodolégicas para as Ciéncias Sociais, bem como ajudou a desmascarar a pretensio de uma sociologia objetiva e positivista. Ao mesmo tempo, a anilise de Weber acerca das instituigées sociais ea ligagao destas com as idéias (0 imagindrio social) concernentes a cada perfodo histérico inovaram e se contrapuseram ao materialismo histérico dialético legado por Marx. Serdo detalhadas melhor essas comparagées no decorrer do texto. Como lembra Aschcraft: Embora seus interesses abarcassem um ambito enciclopédico de assuntos, as teorias de Marx e Weber se cruzam no terreno comum do século XVII. A partir de perspectivas diferentes, fizeram um levantamento completo da destruigao da comunidade feudal e do triunfo da sociedade burguesa. Entretanto, seu acordo quanto a caracterizar o liberalismo como ideologia burguesa obscureceu diferengas de interpretagio histérica, concepgées opostas de metodologia ¢ da estrutura social. (Aschcraft, 1977, p.186) Os classicos no cotidiano - 159 Digitalizado com CamScanner Como veremos Weber sofreu grande influéncia de Marx no infcio de sua carteira, distanciando-se dele com o passat do tempo e aproximando-se mais de Nietzsche, dois dos maiores tedricos reverenciados no perfodo. Tal como cita Fleischmann (1977, p.141), Weber “{...] emancipando-se da influéncia marxista, procuraré ¢ encontrard uma solugao filosdfica que o satisfard melhor”, referindo- se a adogio da teoria de Nietzsche. Nao podemos negar que Weber chegou inclusive a aceitar a relagao entre infra-estrutura ¢ superestrutura proposta por Marx, mas criticou claramente o estabelecimento de uma causalidade tnica entre elementos tao complexos. Muitos comentadores argumentaram que, na verdade, Weber teria entendido Marx de forma equivocada e por esta razo teria se afastado metodologicamente dele. Como lembra Fleischmann (1977, p.142), ao tentar explicar a concepcao weberiana acerca da anilise cientffica: “Em lugar de um condicionamento unilateral, convém falar de um ‘condicionamento reciproco’ dos fatores econémicos e culturais. Essas relagdes nao podem ser definidas a nao ser por assuntos e perfodos histéricos particulares”. Equivoco de interpretagio ou no, de acordo com a teoria weberiana, 0 marxianismo teria se limitado a explicar 0 mundo a partir de causas econdmicas, ignorando por completo quaisquer outras possibilidades. Nesse caso, a causa tinica a determinar os fendmenos em pauta se limitaria aos fatores econdmicos, 0s quais representariam a materialidade da vida social. Weber acreditava que, a0 se comportar assim, Marx reduzia em muito a possibilidade de se compreendera realidade social. Uma ironia marcante, no entanto, reside no fato de que Weber também serd criticado por realizar esse tipo de recorte metodoldgico, ainda que ele tivesse advertido a esse respeito. Outro ponto de embate entre estes dois tedricos das Ciéncias Sociais diz respeito & relagao causal entre infra-estrutura ¢ superestrutura. Enquanto Marx, na maior parte de sua obra, argumenta que a infra-estrutura é de fato a responsdvel por formar, moldar e condicionar a superestrutura, Weber ird entender que nao sao as condigées materiais da existéncia humana que geram as idéias, mas sim o movimento contrario a este. Acrescentou, ainda, que esta relacdo nao segue apenas de acordo com um sentido, uma diregao causal, como mencionado anteriormente. E importante ressaltar que Weber nao abre mio da busca por uma causalidade para explicar os fendmenos, o que ele insiste em registrar € que essa causalidade nao pode, ou nfo deve, ser unidirecional, mas sim relacional. A ciéncia, na verdade, se resumiria a essa busca pelo conhecimento causal, mas relativo, nao absoluto, nem dogmtico. 160- Fernanda Henrique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner Existe ainda uma terceira questao importante, qual seja ade que Marx e Weber entendem por classe conceitos distintos, como explica Aschcraft (1977, p. 209): “Isso derivava naturalmente de sua insisténcia em separar a ordem econémica da ordem social”. Aschcraft, neste caso, esté falando de Weber. E importante lembrar que 0 conceito weberiano de classe nao se constitui no centro de sua andlise. Para demonstrar que havia constru{do uma teoria que alcangou um patamar no vislumbrado pela teoria marxiana, ele relativizou a importancia © a capacidade de interferéncia que cada elemento tem em dados contextos, podendo até mesmo promové-los. Novamente, deriva dos pressupostos metodolégicos, os quais, por sua vez, tiveram ampla fundamentagéo em sua vivéncia e atuagio politica. Mas 0 embate entre Marx e Weber nio ‘pdra af. Marx achava que 0 socialismo levaria ao comunismo, como resultado da crise final do capitalismo. Sé entdo as classes subalternas e desfavorecidas teriam uma condigao de vida condizente com os desenvolvimentos alcangados pela tecnologia e pela economia. Weber nio contava com isso. De acordo com ele, 0 socialismo nao resolveria © problema das diferengas entre classes, porque o Estado deveria obter uma forma compativel com os interesses das duas classes, no negando, para tanto, as tendéncias modernizantes de controle e burocratizag4o, por isso o socialismo continuava a ser um dominio de poucos, tal como é 0 capitalismo. Constitui-se, entdo, como quarto ponto as diferencas quanto a viséo de desenvolvimento do capitalismo moderno na Europa. d A antecipacio marxista do socialismo estava assentada na crenga de que a sociedade capitalista poderia ser superada por uma nova ordem social; mas, na concepgio de Weber, a possibilidade de superagao do capitalismo tinha sido. completamente eliminada. A caracteristica essencial do capitalismo se configurava nio nas relagdes de classe entre trabalho assalariado e capital, mas na orientagdo racional para a atividade produtiva. O processo de “separacao” do trabalhador dos meios de producao foi apenas uma instdncia do processo de racionalizacao da conduta que avangava em todas as esferas da sociedade moderna. Esse proceso que fazia ascender a especializagao burocrdtica era irreversivel. Na medida em que o socialismo estava embasado na imposi¢ao adicional do controle racional da conduta econdmica (a centralizagio da economia) eno “desaparecimento” do “politico” por sua imerséo no “econémico” (controle do Estado sobre as empresas de carter econdmico), 0 resultado s6 poderia ser uma expanstio enorme da burocratizagao. Esta Os classicos no cotidiano - 161 Digitalizado com CamScanner | | | ! i | | | nao configuraria a “ditadura do proletariado”, mas a “ditadura dos funcionérios”. (Giddens, 1998, p48) Ourtra correlagao importante a se fazer aqui é entre Weber e Durkheim. Nao se tem noticia de que eles tenham tido contato, embora tenham vivido no mesmo perfodo, como vimos ao estudar este iltimo tedrico, Sabemos, no entanto, que eles também nao foram influenciados pelas mesmas questées. Enquanto Durkheim estava preocupado com as formas disponiveis de se restaurar a ordem social, Weber deteve-se no estudo dos fendmenos sociais eo imagindrio que, de certa forma, acomoda e permite a expansio dos mesmos, como é 0 caso da relacao entre 0 capitalismo ea religiZo protestante . Freund (2003, p.14) lembra bem o fato de Weber e Durkheim serem contemporaneos, assinalando as contribuigées de ambos & consolidagao da sociologia enquanto ciéncia. E Durkheim? O certo é que no ano de 1895, em que ele publicava As regras do método sociolégico, Weber era professor na Universidade de Fribourg-en-Brisgau ¢ se ocupava muito mais dos problemas de economia politica ¢ de politica social do que de sociologia. E indubitavel que com esta obra Durkheim langava os fundamentos de uma sociologia entendida como ciéncia positiva e auténoma, independente de qualquer hipstese metafisica e de qualquer predilegio escatolégica. Em contraposicéo a tantas polémicas estéreis ¢ criticas injustas, € preciso sublinhar aqui os méritos de Durkheim: ele foi o teérico da sociologia cientifica, mesmo que na pratica tenha sido infiel & sua distinggo entre julgamento de realidade ¢ julgamento de valor. Metodologicamente Weber funda uma nova forma de se abordar e compreender a realidade social. De acordo com sua teoria, era necessdrio estabelecer uma abordagem compreensiva acerca dos fendmenos sociais, buscando analisar o sentido subjetivo das agées individuais, pois s6 0 individuo era capaz de ser efetivamente investigado e, com isso, explicar algo sobre como funcionam aqueles. Distanciando-se e opondo-se frontalmente a Durkheim, 0 qual defendia o positivismo renovado, prezando pela objetividade, neutralidade dos valores e tomando por referéncia a éoletividade, nao 0 individuo. E Weber (1994, 9) quem dit pela Sociologia, ao contrario, essas formagées [sociais] nada mais sio do que desenvolvimentos ¢ concatenagées de aces espectficas de pessoas individuais, : “Para a interpretagio compreensfvel das agSes 162 - Fernanda Henrique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner pois 6 estas s40 portadoras compreensfveis para nés de agées orientadas por um sentido”. Nio obstante, ponto comum entre esses dois autores nao ¢ apenas a Preocupagao com a consolidagio de um método de andlise dos fenémenos sociais. Weber, tal como Durkheim, dedicou-se amplamente ao estudo das religides mundiais, produzindo uma extensa obra sobre o assunto. Enquanto Durkheim tentou demonstrar que o cerne da religiao nao era a idéia de um deus, mas sim a coordenagao moral dos individuos, Weber postulou que a religido era um mecanismo capaz de demonstrar um ethos de vida concernente a um grupo, em um dado periodo histérico. Sendo assim, como veremos, para este tiltimo autor nao é central a ordem instaurada com a religiio. Importa saber se essa ordem ¢ compattvel com © programa polftico e/ou econdmico que se busca implantar. Por isso, sua andlise sobre a relagao entre o estilo de vida protestante e a expansio do capitalismo é to perspicaz e notdvel. Digitalizado com CamScanner ‘Weber morreu em 14 de junho de 1920. 2. A sociologia compreensiva e a ago social Para Weber, estudar a sociedade e os fendmenos sociais correspondia roda ago cujo sentido a estudar 0 que ele denominou agio social, isto subjetivo esté voltado para outro(s) individuo(s)” . Portanto, seu método era 0 que se convencionou chamar de sociologia compreensiva, a qual compreende 05 dssieos no cotidiano - 165 Digitalizado com CamScanner 0 estudo das agées sociais, em outras palavras, do sentido subjetivo que os individuos conferem As suas agdes. Nas palavras de Domingues (2000, p. 217), “[..] Weber nao se rende & intuigao ao definir 0 método compreensivo: é na ‘;elagao’ manifesta ¢, por isso, captavel empiricamente entre sujeitos sociais que © pesquisador deve focalizar sua atengio, de modo a capturar 0 sentido que emprestam a sua agao. RelagSes estas que ele define como de dominagao”. De acordo com sua compreensio a acao poderia ser distinguida entre social e no social. O elemento capaz de efetuar tal distingao &a diregao atribufda ao sentido da ago. Quando o sentido se estabelece em fungio de outro(s) individuo(s) € uma ago social, caso contrério é uma agao nao social. Mas a acio social nao teria apenas um formato; na verdade seriam ao. menos quatro os tipos gerais abstratos de acZo social, sendo eles: agéo racional com relagéo a fins, ado racional com relagao a valores, agao tradicional e aco afetiva . ‘A acio racional com relagéo a fins € toda ago em que o individuo determina um objetivo a ser alcangado ¢ traga uma rota de agéo tendo em vista atingir esse objetivo. Ela é racional porque foi calculada, planejada, programada. Outro elemento que a distingue das demais é 0 fato de o individuo agir em busca da obtencao de uma dada meta, buscando apenas uma forma mais habil para alcangé-la. Varios exemplos podem, ser mencionados, embora Weber afirmasse enfaticamente que nenhum tipo de a¢éo poderia ser encontrado puro na natureza, mas um deles me parece mais razodvel por sua simplicidade. Um individuo sente fome e est4 perdido em um local desconhecido. Ele entao comega a procurar por comida ¢ descobre que uma espécie de ave tinha feito ninho numa alta arvore situada bem préximo de onde ele se encontrava. Para chegar aos ovos supostamente presentes no ninho ¢ com eles saciar sua forme 0 individuo ter que criar um mecanismo para subir na drvore ou se langar a altura desejada. O sentido da agio é racional porque o individuo comega a escalar a drvore com o intuito de cumprir seu desejo tiltimo: saciar a sua fome. Para tanto, ele se programa co relagio aos meios dos quais deverd dispor. Por isso se caracteriza como uma ago racional com relagéo a fins. Aagio racional com relagio a valores ¢ toda ago em que o individuo age sem pensar no resultado final em si, mas sim na manutengio de um dado valor como, por exemplo, a honra pessoal, Também se distingue devido A capacidade de calcul, mas 6 objetivo a ser alcangado nao ¢ propriamente o resultado da ago. Esta se justifica devido & tentativa de conservar uma dada visio de mundo, um conjunto de valores. Por exemplo, podemos tomar o Cédigo de 166 - Fernanda Henrique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner 4 Manu, sistema de direito indiano . De acordo com este cédigo, para resolver problemas de infertilidade era previsto a adogao ou outros meios de continuagao da linhagem. O primeiro filho da filha mais velha de um homem poderia ser considerado filho deste tiltimo e o cunhado ou outro parente poderia tomar as vezes de reprodutor. Neste caso, o interesse € manter um valor, qual seja o da necessidade de manutengao da linhagem e esta sé é feita através dos filhos do sexo masculino. Por isso, um homem poderia se divorciar alegando motivos de infertilidade da mulher se ela tivesse apenas filhas ou se os filhos morressem 20 nascer. Diante da necessidade de manter seu status numa sociedade de castas, tradicionalmente organizada, ele se predispée inclusive a deixar que a mulher tenha um filho com um parente préximo e 0 adote como seu. A “traigao” neste caso nfo é levada em consideracio, pois o que importa é que o valor seja mantido , qual seja, o reconhecimento social. A agio afetiva ocorre quando os individuos.agem por impulso, momentaneamente, sem se dar conta dos resultados imediatos de tal aco, Preocupam-se apenas em satisfazer uma vontade imediata. Nao € calculada ¢, portanto, é imprevis{vel, negando a idéia de projeto e racionalidade. Este tipo de agdo tem também uma imensa gama de exemplos possiveis. Suponhamos que ao acaso um individuo descobre que est sendo trafdo por sua mulher e essa descoberta ocorre ao presenciar a traigdo. Nosso personagem encontra-se dirigindo uma automével e, por raiva, desespero ou outro sentimento qualquer, atropela o casal de amantes. Se o individuo tivesse sido informado anterior mente sobre o fato e tivesse calculado o atropelamento terfamos, dependendo do ponto de vista, ou uma ago racional com relacao a fins ou uma aco racional com relagao a valores. Como nosso personagem foi “pego de surpresa” ele reagiu instantaneamente, sem planejar e sem pensar nas conseqiiéncias de sua acao. A agio tradicional ocorre quando o individuo age por costume, sem considerar as outras alternativas que nao sejam as jé costumeiras, adotadas por ele, sua familia ou seu grupo. Esse tipo de agdo nao necessariamente nega a teflexividade por inteiro, mas ele a usa de forma rasa, superficial. Calcula-se apenas qual é-0 caminho mais conhecido, mais familiar. Em outras palavras, © tipo de agéo que foi rotinizada. Bons exemplos podem ser encontrados na politica. E 0 caso das eleigdes municipais de um munic{pio chamado Fronteira dos Vales, zona do mucuri, estado de Minas Gerais, ano de 2004. Neste municfpio os eleitores dividem-se em dois grandes grupos chamados de “pé liso” e “pé rachado”. A filiagao a cada grupo ocorre, de acordo com uma Os clissicos no cotidiano - 167 Digitalizado com CamScanner TTT? . 7 SSTEFEFEPRrYYyyyyreee ee e?e ta explicacao superficial, devido A tradigio, a0 costume cultivado por cada familia - O individuo nao age de modo racional. Mas se acaso nosso personagem estivesse interessado em obter um cargo ptiblico e para tanto tivesse tratado de oferecer seu voto, entao terfamos uma agio racional com relagao a fins. Do mesmo modo, se honrado fosse seguir a opgio da familia e o individuo assim agisse terfamos uma agio racional com relagao a valores. J& que existem as agées sociais, também parece cabfvel 0 fato de existirem as aes no sociais. Estas tiltimas se enquadrariam no grupo de agGes que nao ocorrem de acordo ou em relagdo a outro(s) individuo(s). Em outras palavras, o motivo da acao nao estd relacionado a outro(s) individuo(s). A tipologia para a agdo nao social enquadraria duas possibilidades: a agao homogénea ¢ a aco imitativa. A aio homogénea é uma ago que ocorre 20 mesmo tempo com vérios individuos. Por ser assim impede que um individuo se programe em fungao de outro(s). Exemplo: fugir de uma tempestade, de um desastre ambiental, entre outros. A agio proveniente de imitacao ocorre quando um ou mais individuos imitam a agao de um individuo ou grupo. Ao se imitar a ago nao se busca entender, de certo modo, porque tal indivfduo tomou dada decisao e nao outra. Exempl : entrar numa fila sem um motivo claro, correr apenas porque todos esto fazendo isso, ficar olhando para o céu porque um ou mais individuos esto comportando-se dessa forma. A opsio por compreender as agées é em si um claro indicio do formato metodolégico que Weber desenvolveu, valorizando assim o “sentido” que desencadeia(ou) essas ages. Em decorréncia, uma das grandes preocupagées dele era a de demonstrar que as explicagGes que formulamos a respeito da realidade social esto intimamente relacionadas com nossos valores e concepgées de mundo. Além disso, ele acreditava que nao sé as resultados como também os recortes que efetuamos em nossos estudos sofrem influéncia direta dos valores que comungamos no meio social ¢ em fungao dele. Conseqiientemente, buscava demonstrar que “o mundo” nao poderia ser explicado com base em um tinico ponto de vista ou caracterfstica, j4 que, por exceléncia, os valores so plurais, O argumento principal é que se a sociedade & composta por imimeras esferas (econdmica, polltica, religiosa, ...), n”io podendo ser resumida apenas 2 uma delas, 4 que cada qual possuiria uma Iégica interna de fancionamento, a qual corresponderiam seus elementos fundantes. Ao final das contas, Weber tenta argumentar que nossas escolhas nunca sao objetivas 168 - Fernanda Henrique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner € 0 minimo que devemos fazer para contribuir com a ciéncia é deixar claro quais valores esto influenciando-as. Podemos considerar essa uma diferenca importante entre ele e Marx, como veremos em detalhe no tépico 4. Por tiltimo, so as acées sociais as responsdveis por formarem as relagdes sociais, todas elas sob a égide do conceito de dominagio. Para cada tipo de ago social tem-se um tipo de dominagio correspondente, e, com ela, um quadro administrativo especifico. Digitalizado com CamScanner 4. Método, tipo ideal e objetividade do conhecimento Aparentemente, nao hd como dissociar a vida polftica de Weber e suas produgées teéricas de sua concepgio metodolégica. Isso pode ser observado tanto em seus embates contra 0 marxismo quanto contra o positivismo. A | | distingao, comum a sua época, entre o mundo da natureza e os fendmenos sociais nao faz qualquer sentido em sua teoria, assim como ndo o faz a tentativa de transplantar para a andlise destes iltimos os métodos utilizados para se observar 0 primeiro. Quanto a isso ele viveu um dilema que aos olhos apressados pode até constituir numa incongruéncia de seu pensamento. Weber achava que © mundo natural nao era téo previs(vel como’ se pensava, nem tao objetivo, como acreditavam os positivistas. Para complicar ainda mais a situacao deste pesquisador, talvez até como provocacao maxima, afirmou ele que a acdo humana era tio previsivel e constante quanto os fendmenos do mundo natural. Eis que se cria a relatividade do conhecimento, sem abrir mao do rigor cientifico, das possibilidades de conhecer o real e de produzir a ciéncia em seus préprios termos. Essa foi uma grave aftonta aos pressupostos positivistas ¢ uma abertura para a relativizagéo da produgao cientifica. Mas essa relativizacao foi limitada por ele € nao consistiu num abandono da possibilidade de se alcangar 0 conhecimento cientifico. Pelo contrétio, 0 conhecimento obtido, por ser relativo, seria mais sélido e pertinente, mais préximo do “real”. Nao que se fosse abandonar as generalizagées, elas de fato eram necessirias ¢ ocorreriam, mas saber-se-ia que entre elas ea realidade propriamente dita existiria uma distancia a ser assumida pelo pesquisador ¢ confessada a seu piblico. Ao assumir essa postura, Weber reafirma insistentemente a necessidade do rigor cientifico, ao mesmo tempo em que rompe por completo com a perspectiva de formulacao de leis gerais sobre 0 devir histérico. 174 - Fernanda Henrique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner Era, portanto, uma faldcia supor que as ages humanas no pudessem ser tratadas por generalizagGes; na verdade, a vida social dependia de regularidades na conduta humana, de tal forma que um individuo pudesse calcular as respostas provaveis de outro em rclagao A sua propria aco. Porém, do mesmo modo, isso nao implicava que as ages humanas pudessem ser tratadas com total igualdade em relagéo aos eventos do mundo natural — isto é, como fenémenos “objetivos”, na acep¢40 assumida pelo positivismo. A acao teria um conteddo “subjetivo” nao compartilhado pelo mundo da natureza, ¢ a apreensao do sentido das ages de um ator era essencial para a explicagao das regularidades discernfveis na conduta humana, Por essa razio, Weber insistia em que 0 individuo era 0 “étomo” da sociologia: toda proposigao que envolvesse referéncias & coletividade, tal como um partido ou uma nagio, teria em tiltima instncia que ser resolvida por conceitos referentes as ages individuais. (Giddens, 1998, p.52) Por se preocupar com 0 sentido conferido as ages, formulando uma abordagem sociolégica de estudo do comportamento individual, pautada na compreenséo por meio da andlise interpretativa, muitas vezes a proposta weberiana foi indevidamente confundida com um certo psicologismo ou a apologia a um descomprometimento,com:os padroes cientificos. Mas néo era esse 0 objetivo de Weber. Sua assertiva era de que para se fazer ciéncia, ser sistemdtico e manter o rigor cientifico nao era necessirio ser positivista. estabelecimento de relagio de causalidade entre determinados fendmenos sociais poderia ser realizada, sem prejuizo para os resultados, tendo como elemento complementar a sociologia compreensiva. Essa abordagem no pretendia romper com 0s padrées jé estabelecidos — embora isso pareca hoje inevitavel —e admitia que existiriam varios métodos e técnicas possiveis de serem adotados em realidades particulares, mas encarava com grande preocupacio a transformagio de fendmenos individuais — individualidades histéricas — em formulagées generalizantes. A critica interna foi sempre necessftia no desenvolvimento de seus projetos intelectuais e agia como dado limitador, tal como expresso no raciocinio mencionado anteriormente. Como figura intelectual, apesar de seu tom sempre forte, Weber parece a0 leitor um sujeito moderado. Nao rompe com os extremos, pois tenta apazigué- los em fungio da busca por um resultado de andlise mais préximo do real. Tronicamente, entretanto, nfo acredita na andlise pura do real, apenas numa aproximagao do real. Critica os sistemas fechados de explicacio, os dogmas, as @s clssieos no cotidiano - 175 Digitalizado com CamScanner “Igrejas” cientificas, como ele mesmo dizia. A pretensdo de explicar a realidade e a suposicao de que o conhecimerito total era algo alcancével sempre foi ignorada por ele. Mas também nio pretendia defender que a ciéncia nao contribufa para a compreerisio do mundo, desmerecendo-a. Importava admitir que essa compreensio era sempre limitada, residual, correspondente apenas a um recorte infimo da realidade, nunca a sua totalidade. Era assim, entao, que a causalidade poderia ser estabelecida: tendo em vista que comungo de dados valores, os quais exerceram determinada interferéncia na escolha pelo meu tema de pesquisa, € que minha observagao pauta-se na andlise compreensiva e interpretativa de tais elementos apenas, entendo que A mantém relagio de causalidade com B em fungao das seguintes circunstancias X ¢ Y; tudo o que extrapole essa relagio & apenas suposigao ou generalizagao sem fundamento. Esse seria um breve resumo do que serd desenvolvido a seguir. Atento a esse ponto de vista, um dos recursos utilizados por Weber para compreender a realidade foi denominado tipo ideal, o qual consiste numa construgao que toma tragos da realidade, mas de uma forma nao-especifica, isto é, refere-se a varios casos, mas no representa nenhum especificamente. Ele acreditava que esse deveria ser um recurso utilizado pelo pesquisador para compreender a tealidade. Dessa forma, como lembra Jaspers (1977, p-128), “Ele préprio exprimiu 0 método que é essencial para isso: € preciso 08 possiveis para captar o real”. Mas o real no é 0 que se desenha, porque a realidade é demasiadamente complexa para que tenhamos a capacidade de compreendé-la de fato. Conhecer o presente em si nao nos ajuda a entender o futuro ¢ usar © passado desafortunadamente nao nos ajuda a explicar o presente. Seria entao necessdrio entender os fenémenos sociais enquanto individualidades sociociilturais que carregam consigo res{duos e determinagées passadas, mas que precisam ser usados como fontes para a formacao de um modelo teérico que esteja para além dessas individualidades, ao mesmo tempo em que as represente. Esse modelo ¢ 0 tipo ideal por ele proposto. Os tipos ideais representam a constatagio de que ao cientista néo é dada a possibilidade de compreender a realidade social em si, mas tio somente fragmentos da mesma. Esses fragmentos, por sua vez, no sio estipulados de forma objetiva, mas sim de acordo com os valores alimentados pelos cientistas. Weber falava que a realidade € como uma teia, um entrelagado de fios. Nao temos, entio, condigées de dar conta da complexidade do real e, diante dessa 176 - Fernanda Heneique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner constatagao, resta-nos uma safda: compreender partes ou fragmentos desse todo. Para tanto, recortamos a realidade de acordo com nossos interesses, sempre orientados por valores, e nos dedicamos a compreender esse fragmento espectfico com a esperanga de que cle nos habilite a compreender algo do todo social. Contudo, o tipo ideal nao é a explicagao do real, nem tampouco € 0 real, consiste sim numa forma de orientagio usada pelo cientista para discernir entre os varios elementos que podem interferir ou interferem causalmente em um dado fendmeno, impulsionando-o ou retraindo-o. ‘Weber iré manter, até sua morte, que tudo o que podemos conhecer cientificamente a respeito da realidade humana sao justamente essas sinteses histéricas parciais constru(das de acordo com as regras de causalidade em torno de um tipo “ideal”. Assim se apresentam os dois pontos essenciais da “filosofia” weberiana das ciéncias — a construgio dos tipos “ideais” ¢ sua eficicia causal ~ frutos desiludidos de uma __ Feflexdo que nao rompeu todos os lacos com os elementos duvidosos do pensamento contemporaneo. (Fleischmann, 1977, p.144) A fungio metodolégica do tipo ideal é a de oferecer uma possibilidade tedrica fundada em dados empiricos de comparagéo com a realidade social que se pretende compreender. A liberdade e a afirmagio de valores torna-se, entio, compativel com o rigor cientifico. Continua nfo sendo normativo, apelando para a compreensio e a interpretagio, relegando os valores a assumir os efeitos que causa sobre o processo da pesquisa ¢ primando pelo reconhecimento de sua existéncia a fim de diminuir suas implicagées. Esse modelo seria composto por trés caracterfsticas principais, sendo elas: a racionalidade, a unilateralidade € 0 cardter utdpico. Como podemos observar, um dos requisitos para a construgio de um tipo ideal é exatamente a sua unilateralidade. Mas seria legitimo nos perguntar se nfo existe af uma incongruéncia, j4 que ele utilizou-se de fartos espagos em seus textos para criticar a unilateralidade marxiana. Na verdade, Weber criticou 0 fato de esta prética nfo ter sido declarada, aberta, ¢ as raz6es para tanto, Sua visdo € exatamente a de que no podemos realizar outra andlise que nao seja esta (unilateral), mas devemos considerar que nela, ou com ela, nao existe a possibilidade de conhecer a totalidade dos fatos . @s clissicos no cotidiano ~ 177 Digitalizado com CamScanner E finalmente, conquanto Weber tenha sempre evitado reduzir suas interrogagées ¢ suas explicagSes a um niicleo central ou prinefpio tinico, parte entretanto de uma intuigéo origindria e fundamental, adainfinidade extensiva ¢ intensiva da realidade emp/rica. Isto significa primeiro que a realidade é incomensurdvel a0 poder de nosso entendimento, de maneita que este nunca cessou de explorar os acontecimentos e suas variagoes no espago € no tempo, ou de agir sobre eles; em seguida, que é impossvel descrever integralmente até mesmo a menor parcela do real, ou levar em conta todos os dados, todos os elementos e todas as conseqiiéncias no momento de agit. (Freund, 2003, p.12) Essa concepgio metodoldgica com base numa viséo compreensiva ¢ hermenéutica da realidade langa a discuss’o sobre a validade da nogéo de objetividade nas ciéncias humanas. Esse propésito de objetividade, tao amplamente difundido em nosso meio principalmente pelo positivismo, € confrontado na medida em que Weber indica que os valores nos ajudam a compreender a realidade, ou melhor, admitir e identificar os valores que condicionaram nossa interpretacao acerca de um dado fendmeno nos ajuda a compreendé-lo ainda mais. Para Weber, nds sé vemos o mundo a partir de nossos valores, nunca sem cles. A percep¢ao de que os valores sio um elo importante entre o conhecimento ¢ individualidades histéricas permite que 0 pesquisador de fato desenvolva a sociologia compreensiva, por ele elaborada e exposta anteriormente. Essa postura metodoldgica abre mao de um conhecimento apenas empirico estrutural para buscar a compreensio acerca do sentido conferido pelos individuos as agées que implementaram num dado contexto sécio-histérico. Despir-se dos valores para ir a campo como queria Durkheim nao sé é impossfvel como também comprometea tentativa de compreender a sociedade com proximidade. Sob esse aspecto, o século XIX teria presenciado diversas escolas supostamente cientificas — porque embasadas na observagao, experimentagio, indugao, formulagio de leis, métodos quantitativos — construfrem saberes estritamente doutrindrios, de cardter reformador. Essas doutrinas impediam, inclusive, que os grupos divergentes entendessem que cada forma de se analisar as situagSes postas eram apenas “pontos de vista” sobre a realidade, embora pleiteassem a aceitagio de que eram “a realidade”. Ignoravam, portanto, 0 pressuposto weberiano de que a ciéncia apenas ordena o real. 178 - Fernanda Henrique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner Tendo em vista essa concepgio, Weber trata entao de efetuar a distingao entre 0 que compreende como julgamento de valor, de um lado, e saber empirico, de outro. A primeira situagio indica um comportamento que nao esté preocupado com os questionamentos propriamente cientfficos ¢ plurais, sendo determinado claramente, ainda que nao se admita, por valores anteriores As quest6es propostas, impossibilitando com isso a pesquisa ou qualquer resultado aceitével que surja dela. A segunda situagao trata apenas de dizer o que pode ser feito diante de uma dada realidade que se pretende compreender, abstendo-se de ditar normas ou regras comportamentais que sao caracteristicas tipicas dos individuos que se interessam em proferir julgamentos de valor. Dessa forma, a objetividade da ciéncia encontrar-se-ia no limite da atitude do pesquisador, no por carregar consigo seus valores, mas por compreendé-los ¢ nao conduzir suas investigagées tendo em vista um cunho politico que preze por defender projetar julgamentos de valor. Jaspers (1977, p.130) lembra que: A ncutralidade valorativa da ciéncia significa a contengao dos préprios julgamentos, para se terem os dados bem claros, tanto em face de fatos desejados como dos desconfortaveis. A obrigagéo cientifica de ser a verdade dos fatos ¢ a obrigacio pratica de defender os préprios ideais so deveres diferentes. Essa assertiva é hoje um dos pilares da metodologia cientifica em todas as dreas das ciéncias humanas, com excegio de algumas posturas pretensainente cientfficas, que se restringem ao campo da normatividade. A separagio que Weber propés entre julgamentos de valor ¢ saber empfrico, além da erftica bem fundamentada acerca da concepgio positivista do que seria objetividade, permitem-nos hoje construir uma ciéncia nao autoritéria, que necessariamente conjuga teoria é pesquisa de campo de forma exemplar. A postura de Weber, apesar de parecer descomplicada e plausivel com relagio a essa questio, esconde uma complexidade pouco palatdvel que incide diretamente sobre a relagao entre as produgées cientificas e as concepsées/valores politicos. Os valores nio so coerentes entre si, mas sim conffitantes e plurais ~ Schluchter (2000) fala mesmo em politefsmo de valores. Resulta daf que a linha ténue entre a vida cotidiana e as elucubragées cientificas nfo podem ser colocadas num mesmo plano pelo pesquisador. As conviccées politicas de modo algum deveriam ultrapassar seus limites e adentrar o Ambito académico, utilizando-se 0 pesquisador do que Weber denominou de “carisma” pessoal Os classicos no cotidiano - 179 Digitalizado com CamScanner AAIINITVIIYY para convencer seus subordinados ou seus pares nao de seus achados cientificos, de seus valores pessoais. A ciéncia, nesse caso, apenas mas sim da pertinén serviria para justificd-los, mas nao os valida em nenhum momento, jé que nao € esse o seu fundamento. Weber foi ainda além ao afirmar que 0 socialismo ou quaisquer discussées que ousavam confundir premissas cientificas com julgamentos de valor nio passavam de “Igrejas”, religides como outras quaisquer. Nao caberia A ciéncia 0 papel de informar aos individuos nem como viver nem as respostas itracionais que buscam e buscarfio durante toda a trajetéria de suas vidas. Tampouco reproduzi-las sob a roupagem cientifica. Nas palavras de Schluchter (2000, p.19), “A ciéncia que respeita seus limites, seja ela empirica ou intérprete do sentido, fica muda diante desta pergunta decisiva, em tiltima instancia”, porque quando buscamos conhecimentos que possam ser considerados validos do ponto de vista cientifico estamos prezando pela objetividade, mas quando nos preocupamos em validar nossas percepgées pessoais fornecendo-lhes um caréter cientifico estamos objetivando-as. Mesmo considerando que o papel da ciéncia era restrito, Weber nao se distanciou das preocupacées concernentes ao processo cientifico, sua legitimidade, abrangéncia, riscos e mecanismos inerentes. Talvez por isso tenha reservado grande parte de sua obra para reproduzir, separadamente, as premissas metodolégicas com as quais desenvolveu seu raciocinio maior sobre 0s objetos que buscou compreender. Weber limitou-se 0 mais estritamente posstvel a esta linha de conduta em seus trabalhos de sociologia e perante seus alunos, Nao eram palavras vas ou afirmagao de uma simples convicc4o, mas sim a expresso da disciplina que cle se impunha pessoalmente, quando declarava que em sua cétedra 0 professor deve evitar toda tomada de posigio avaliativa ¢ limitat-se unicamente aos problemas de sua especialidade, enquanto pode bancar o demagogo o profeta na rua, nas revistas e jornais, enfim, por onde quer que a livre discussao e a critica publica sejam posstveis. (Freund, 2003, p.18) No texto A ciéncia como vocagio Weber aborda em profundidade essa questo. Primeiro demonstra como “elementos externos” interferem na vida académica e, para tanto, toma por exemplo os EUA e a Alemanha: Nestes dois casos ele observou diferengas sistémicas tanto na selegio dos docentes, nas caracterfsticas avaliadas como importantes, como tambétn no proceso de 180 - Fernanda Hencique Cupertino Alcantara Digitalizado com CamScanner desenvolvimento académico. Ele pontuou que a busca por um docente capaz de angariar os fundos de mercado necessrios as instituigdes por vezes acaba por excluir intelectuais ¢ pesquisadores importantes, vistos como “péssimos professores”. Alerta ainda para a questo da selesao afirmando sua aleatoriedade, bem como os processos de promosio interna, os quais mesmo primando por certa objetividade acabam por se comprometer com outros aspectos que em nada contribuem para a avaliagio dos candidatos a determinados cargos. Ele é bastante enfitico quanto a esta consideragao: “Depois de uma boa experiéncia e sébria reflexio, tenho profunda desconfianga dos cursos que atraem multidées, por mais inevitaveis quie sejam. A democracia sé deve ser utilizada quando for adequada” (Weber, 1972, p.159). Separa, ento, a Alemanha dos EUA, alegando que a primeira vive em um regime plutocrético € 0 ultimo em um regime burocratico no que diz respeito & carreira académica. A “democracia” por vezes esconderia “mediocridades” que apareceriam como excelentes professores ou intelectuais. Contrapée-se a isso 0 que ele denominou “aristocracia intelectual”. Weber preocupou-se ainda em afirmar que o cientista tem como caracterfsticas inerentes ¢ altamente necessdrias a paixao, a inspiragao, 0 dom, © entusiasmo e o trabalho. As “idéias” ou insights poderiam ‘surgir a qualquer momento na vida do pesquisador, desprivilegiando as vezes aqueles que trabalham arduamente para tanto. Mas as caracteristicas acima permitem a sua lapidago e permanéncia. Mas ele adverte que a ciéncia realiza-se pela superagio ¢ sua dinamica é constante. Desse modo, todas as produgées cientificas so sempre superdveis e apenas a especializacio, por isso mesmo, é capaz de fornecer a sensagao de que o pesquisador conseguiu realizar algo de concreto. Reside nessa postura metodoldégica também uma afinidade desenvolvida entre os escritos antropoldgicos e a teoria weberiana. Intimeras sao as razes para tanto, principalmente o fato de que a antropologia por um longo perfodo de tempo restringiu-se ao estudo de sociedades primitivas e hoje se dedica também ao estudo das sociedades modernas e das questées urbanas. Nessa amplificagio da drea de atuagao tanto o desenho metodolégico weberiano quanto seus pressupostos analfticos muito tém a contribuir, a0 preocupar-se com o sentido subjetivo que os individuos conferem as suas ages, As elaborag6es simbélicas do contexto cultural, & valorizagio da religigo como elemento que amalga determinado conjunto de idéias presentes em dados contextos culturais — todos estes jd presentes na antropologia— ea importancia conferida a politica Os classicos no cotidiano - 181 Digitalizado com CamScanner

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