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J.’ exposicao de pintura de criancas museu de arte moderna do rio de janeiro CAPA — Joyce Landman, § anos PREFACIO No barracéo do Museu. de Arte Moderna, onde as producées infantis aguardavam o momento de exposic¢do, perguntei ao professor Ivan Serpa que pensamento o guiava no trato com os alunos, e Gle me respondeu: “Desejo vé-los felizes”. Assim, com simplieidade, exprimia o alvo a que devem pre- tender tédas as atividades educativas, ¢ que elas, por mau jeito, nao alcancam quase nunca. Nossa eseola aspira a pre- parar a crianca para a vida, mas Ihe retira poderosos esti- mulos vitais que a crianea, em sua inocéncia desarmada, lhe confia. A maquina de nivelar, que sio as classes numerosas, funcionanda em turnos continuos e horarios de pressa, com deficiéncia ou impropriedade de material didatico, perma- nece fiel a padrées disciplinares que, mesmo ndo observades, projetam sébre as consciénclas sua sombra cinzenta e sua rede de inibiedes. Ela nos mostra zombateiramente como os principios da “escola ativa” (e ouvimos falar néles ha trinta anos!) podem penetrar a mentalidade de uma época sem, vontudo, alterar o estado de coisas vigentes. Como denuncia, com pequeno mas perdodvel exagéro, 0 uruguaio Jesualdo, ésse irriquieto, 6 uma escola que nem tansmite conhecimen— tos nem desentranha a personalidade infantil. Personalidade no fundo da qual um criador, desconhecido de si mesmo, zguarda ser descoberto, e raramente o é, quando néo o é para ser aniquilado pela incompreensio ou pela rotina. Os modernos cursos de iniciacdo artistica visam, pois, & fe- licidade dos garotes através da expressio plastica, @ isso porque seus organizadores tém em mira essa alegria sentida pela crianca ao adquirir conseiéneia de sua faculdade de eriacdo. grafica, elemento que Luquet considera fundamental na estética infantil. O prazer de tracar uma linha, tao natu- ral como o prazer de saltar, nadar, desmontar um objeto, ja constitui um primeire convite ao desenho; e essa forma de j6go € téo mais facil de exercitar quanto, coma ja se obser- vou, ela prescinde de pareeiro, e prolonga o brinquedo para além dos limites da solidao, Désse prazer muscular nascerd outro, quando ja quase consumada a evolucdo: a alegria mais profunda de estabelecer uma relagéo intelectual entre o objeta ¢ sua representacdo, de converté-lo em “cosa mentale” e fazé-lo passer, através de econémicas, divertidas ou paté- licus alteragGes, & superficie do papel ou da tela, onde a erianga poe, mais do que aquilo que seus olhos véem, aquilo que seu universo intimo contém. Mas a satisfacio de recriar o mundo pela imagem ha de ser espontanea, sob pena de nao produzir-se e, mesmo, degenerar em tediosa e aflita obrigacio. No pode a erianca substituir seus “modelos internos” pelos modelos que o adulto lhe quer oferecer com uma boa vontade fértil em maus resultados, E nisso consiste um des aspectos mais negativos da escola cos- tumeira, — quando procura orientar o aluno para a repro- dug&o ordenada de formas da natureza ou Ihe impoe prema- Maria Leticia Dobbin, 11 anos turamente uma abstracéo geométrica em oposicao ao seu inato realismo, tio tipico e delicado. As influéncias sociais, familiais ec de toda sorte — rua, cinema csnorte, eletrénie1 — ja so tho sensiveis na vida psiquica de crianea que se torna, nao apenas redundante, mas agressiva, a intervencdo direta do adulto na largada e no desenvolvimento da aventura gra- fica infantil, Com o mesmo espirito com que Ihe ministram matematica, georrafia, nocées morais e civicas, querem dar- Ihe visdo adulta aa natureza, movimentos maauros, esprrito eritieo maduro; buscam cirigir-The a imaginacéo e substituir- The o dom poético em csiadn de graca, por uma espécie de fantasia racional, melancdlico testemunho de como, na maio- vias das “pessoas grandes”, 9 sentimento da infancia, que deveria ser uma riqueza para téda a vida, nado somente se perdeu, mas o que é pior, mergulhou em esquecimento. A essa ameaca da escola ao tranqilila desenvolvimento de lores essenciais da personalidade, procura remediar o que paderiamos chamar de “anti-escola”, no porque a anime intuito polémico (longe disso), mas porque serve ae antcoto a desearacterizacéo promovida pela outra, ao preservar a fina substancia individual que a pedagogia, aplicada em krosso, nao leva em conta. Dia vira, ¢ que nao tarde até os filhos de nossos netos, em que os métoaos ae livre criagito, € ce projecao da experiéncia vivida, postos em pratica pelos cursos nao oficiais de abe artistico, sero assimilados pela escola primariz e pelo ginasio, que assim se enriquecerao e humanizaréo com proveito para o aprendizado geral. Deixar a crianga abrir por si mesma o caminho que a levara a exprimir seu conceito plastico do mundo e, até, a revelar- nos alguns de seus enigmaticos tesouros, eis o pequeno inde segredo de professores como Augusto Rodrigues ¢ fvan Serpa, na trilha, alias, de Claparéde, que parece ter sido o primeiro a dar carta de alforria ao desenho infantil, a0 mandar meninos de Genebra, em 1906, rabiscar o que bem entendessem, quando nao estivessom cansados, enervados ou desejosos de outra ocupacao. Agindo dessa maneira, isto é deixando de air, o adulto mais atilado sente que ndo esta prépriamente conecdendo uma permisséo a crianca: esta impondo a si mesmo uma proibicdo, pois lhe é muito dific nao identificar sua personalidade com a do filho ow aluno, para reeomecar, com a alma ¢ os dedos do outro, o aventura gratica malograda de seus verdes anos. Fruto dessa atitude que exige humildade, paciéneia, tato, amorosa dedicacéo simulada em desinterésse, e intuicao do espirito infantil em seus matizes ainia imperfeitimente elos- sificados pela ciéncia (mal mecamos a definir a estruturi do mundo mental da crianca, adverte:n-nos os manuais de psicologia), € a V Exposigdo de Pintura de Criancas, que o Museu de Arte Moderna apresenta ao publico, Recolhe-se a safra de 1956, e com ela se propde um valioso material A apreciacao de educadores e pais. Todos sao convidados a contemplar com olhos desprevenidos esta sucessio de pinto- res de 4 a 14 anos, que apenas vislumbram a tura mas a vivem e praticam como forma, entre tantas outras, de lin- guagem cotidiana, expressio de conteidos psiquicos, desa- guadouro de impressées concentrada no mais puro € refo- Ihado de cada um. Por cima do desenho basico, as céres relumeantes, tao de agrado déste powinho, ora valendo como simples recurso or- namental, ora constituindo clomento integrante do objeto f gurado, ora servindo simultaneamente a ¢sse duplo fim, dao idéia do que séo nossas criancas de hoje, tao parecidas com as de todos os tempos em todos os paises (“a arte infantil nao chega a assurir, em parte alguma do mundo, carater nacio- nal”: Herbert Read), e 10 mesmo tempo {30 diferentes de quaisquer outras, ¢ mesmo umas das outras, e até cada uma de si mesma, em dois flagrantes sucessivos. Pois cada boneco esbocado por uma crianca no mundo inaugura um novo mundo dentro do existente, e nia ha filosofias ou psicolog! pragmatistas que logrem reduzir a esquemas fixos os praces- sas criadores ¢ renovadores da infancia, tornando-os simples reagdes & provocacdo de influxos externas. No meio désses garotos e garotas que se divertem dis buindo formas ao sabor de sua imaginacio, e que explicam a seu mode o significado de cada pintura, nde nos preocupe- mos em pressentir o futuro artista que abalara a gensibilidade geral e incorporara novas estruturas ¢ contetidas afetivos 20s do repertério plastico de hoje. Nao 6 éste o objetive do curso de arte espontdnea: fabricar um artista. Mas, por outro lado, tem éle o condao de impedir que o eventual artista deixe de realizar-se a seu tempo por um inadequado convivio com os meios de expressde plastien oferecidos a todos os homens, tanto normais como excepcionais. Quanto mais néo seja, ao sair desta escola que nio lhe prope uma ordem, mas lhe sugere uma liberacio de bens naturais, o adolescente adqui- riu meios de participar da beatitude de contemplacdo artis- tica, penctrou no segrédo (publico e tao escondido!) das re- lagées entre espago, forma e cér, — em suma: aprendeu a ver, ciéncia dificil, E a licio de Liicia Casta, ao recomendar uma educacdo artistica “entendida nfo com propdsitos de requinte cultural, mas como o pao e o vinho cram para os antigos, ou seja, visando, atender as necessidades humanas primarias e fundamentais”, Guardemo-nos de atitudes imutdveis diante déstes meninos. Nao lhes pecamos mais do que aquilo que podem dar-nos; nfo nos extasiemos diante do que fizeram por acaso ou. mesmo, por graciosa inabilidade, comprometendo assim a modesta auto-avaliagio de seus autores. Particularmente, fugir as litanias da admiracdo doméstica em face da primeira saratuja... A figura humana reproduzida simultaneamente de face e de perfil nao é positivamente um Picasso 1937, que a ela atingiu por um requinte de especulacdo e reelaboracao, mas sinal de que a crianga passa de uma fase inicial de rea- lismo para outra mais complexa, e hesitando em renunciar Maria Cecilia Velasco Cruz, 9 anos aa conhecimento anterior, superpde um a outro. Picasso e 0 menino se encontram — mas com a arte no meio, ponte ¢ ao mesmo tempo rig a separd-los. Outre menino esboca um cavaleiro de perfil, com ambas as pernas visiveis: a trans- paréncia ¢ uma fase elementar na evolucdo do desenho in- fantil, um indice de visdo inesperta, e contudo também rea- lista, que ndo quer abrir mao do conhecimento fisico adqui- rido: se o ser humano tem duas pernas, é preciso representd- las num trabalho sincero. Nao se veja nisso humor ou fan- tasia, mas um dado do florescimento psiquico. Por outro lade, néo recusemos A crianca aquilo que ela tem © as vézes esconde: nio amesquinhemos a signifiencdo de seus trabalhos nem os confuncamos com produtos da meatalidade primitiva. A criagdo infantil sé tem significacdo se avaliada em sua dimensdée prépris — e entéo alegrias, inquietacoes, voos de obscuro lirismo. pungéncias, tudo que povoa a alma surpresa € surpreendente, em sua descoberta da terra e dos homens, se entremostra e confere grandeza prépria ao que parecia mero exercicio conhestro. J foi suficientemente refutada a concepgdo de Lamprecht, que, partindo de suposta identidade entre o desenvolvimenta das espécies e o dos individuos, assimilava a producao. “ listica’ infantil & dos selvagens e 4 dos homens pré-histé- s, No album de Koch-Grunberg sébre indies brasileiros, observadores encontraram desenhas muito parecidos com o de meninos curopeus, eam os mesmos enganos de represen- lagdo. Mas ndo foi esclarecido se tais desenhos eram tipicos da atividade grafica indigena, ¢ pode bem ser, como observa Georges Roums, que cm sua aparéncia tosca indicassem antes elementos excepcionais da tribo. Quanto aos criadores da palcolitics, a comparacdo, de tao honrosa, seria insustentével bara a crianca: qual o artista civilizado de hoje que nao daria tudo por atingir ao extremo requinte e beleza de uma pintura parietal madaleniana, em que duas renas se entes- tam numa admirdvel cstrutura ritmica? Socorrendo-nos de verdades provisérias de psicologia e an- tropologia cultural, chegaremos a entender um pouco a lin- guzgem das manifestacoes plastieas da crianca que j4 fomos e de que perdemos consciéncia. Um pouco. O resto sera invencao do amor, ésse mestre da boa vontade, embora corra- mos sempre o risco de ver o que no existe. e de omitir o qu esta claro. Nao importa, A férea de contemplar, observar e permitir o livre curso de aventura mental e manual, aca- bara o adulto por compreender 0 aue Ihe dizem as criancas Isso o reintegrara em suas fundacdes, e talvez o habilite a tornar menos dura a vida dos pequenos, inclusive os felizes. Nao s&0 pintores, nao sao poetas éstes meninos: sia meninos, ‘0 que é muito mais misterioso, por absurdo que Parega — e também muito mais deliciaso. CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE EXPOSITORES Cid Menezes Machado Thereza Christina Couto Carvalho Leila Figueira de Lima Maria Liicia Bastos Americana Yves Henrique Cardoso Serpa Célia Landmann Maria Dagmar Gregorie Yeda Maria Alves Borges Lygia Tupy Caldas Elisabeth R. Campos Martins Clara Lucia Yamitay 12 Carlos Sérgio Gomes Pinto 18 Heloisa Elvira Mello 14 Regina Maria Pereira do Carmo 15 Roberth Kenneth Sushereba 16 Cecy Mendez Goncalves 17 Alice Scheikaman i8 Silene Meilman 19 Julio Seharfstein 20 Fernando Portugal Fraga 21 Luiz Eduarde Seixas da Fonseca 22 Doris Corréa Paes 23 José Reginaldo Santos Goncalves 24 Maria Ignez Mendes Goncalves 25 Joyce Landman 26 Martha Chaves Peixoto 27 Vera Lucia de Menezes Machado 28 Elisabeth Senna Penna 29 José Alexandre Scheinkman 30 Maria Alice Moniz Gomide 31 Mari Cardoso 32 Maria Cecilia Velasco Cruz 33 Betty Schenkman 34 Ana Maria Ribeito do Couto 35 Maria Tereza Alves Borges 36 Maria Leticia Soriano Dobbin 7 Claudia de Souza Gerpe 38 Sonia Meilman 29 Maria Inez Barreto 40 Antonio Carvalho Neto 41 Ricardo Alfredo de Andrade Perissé 42 Vera Lucia Alves Menezes 43 Helmar de Andrade 44 Amélia Maria Mayall 45 Francisco Gomes da Rocha oes toe 5 6 8 9

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