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“heel ‘ . eh ae Gustavo Bernardo “WS rane av ale O PROBLEMA DO REALISMO. DE MACHADO DE ASSIS Copyright© 2011 by Guscavo Bernardo ico paling porcguet ead 20080-021 - Rio de ancico~RF “els 21) 3525-2000 Fave (2) 3525-2001 rocco@enceocar.be "wsoeen come Printed in Breil press no Beil CIP asi Caealogagto na fate. Sindicato Nacional dos Edeore de Liveot, RI Biddy Berardo, Gartwo, 1955- ( protems do ealsno de Machado de Asis Gareavo Berazeda, Rio de Janet: Roce, 2011, ISBN 978-85-225.2643-4 s O QUE DIZ MACHADO DE ASSIS Uz das caracteristicas técnicas mais fortes da literatuca de Machado de Assis se encontra no recurso intensive ¢ extensive da metaficcio. De diferentes modos por di- ferentes vozes, o escritor explicita sua teoria na prdpria Tite- Tatura que faz, muitas vezes conversando claramente com o keitor ou com a “querida leitora”. Esta € uma das cazbes por que 0 escritor mexicano Carlos Fuentes considera o brasileiro um legitimo herdeiro de Miguel de Cervantes — na verdade, © Ginico herdeiro do autor de Dom Quixote em toda a Amé. ica Latina. Ainda que escrevendo em portugués, “Machado asume, en Brasil, la leccién de Cervantes, la tradicién de La Mancha que olvidaron, por mis homenajes que civiea y es- colarmente se rindiesen al Quijote, los novelistas hispanoa mericanos” (Fuentes, 2001: 9). A licio de Cervantes € a ligéo da metaficrio, 0 que fez. do espanhol outro problema para os classificadores contumazes: afiiual de contas, ele seria barroco ou renascentista? Pela impossibilidade de responder de modo adequado, inventou-se um estilo, 0 Maneitismo, para melhor encaixar tanto Cervantes quanto Shakespeare —-tmbora eles Pouco tenham a ver um com o outro, afora a genialidade ¢ 9 ‘mesmo uso intensivo ¢ extensivo da metafic¢io. Mas esta ji é outra questo. Voltemos 4 nossa, que passa pela metaficcio de 73 Os exemplos se stiultiplicam por todos os contos ¢ roman- ces de Machado de Assis, quase que por todas as paginas. Nao suas formas o inteng6es. No entanto, exatamente por se tratar de Ficgio, creio que também nao seria dificil para quem defen- da 0 contritio do que defendo, a saber, para quem defenda 0 tealismo de Machado de Assis, argumentar que todos os meus exemplos reptesentam, ao contrério, uma ‘reafirmagio do rea~ lismo em algum sentido. Por isso, limiro-me agora a comentar alguns momentos embleméticos da ficgio machadiana, para enfatizas, a seguir, o posicionamento do proprio escritor a res- peito. Comego pelo momento menos ébvio, mas que me parece 20 mesmo tempo 0 mais ir6nico eo mais bonito. Em Dom Cas- ‘murro, Beatinho ¢ Capitu se casam no capitulo Cl, intitulado “No Céu”. A descri¢io da noite de nipcias pfeocupa-se em nao desnudar nada, muito menos a bela Capitu (Machado de Assis, 1899: 170}: Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, ¢ vi espaizecer a oucra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma a1 margo, por sinal que chovia. Quando che- gamos 20 alto da Tijuca, onde cra o nosso ninho de noivos, 0 oft recolheu a chuva ¢ acendeu as estrelas, néo s6 as jd conhecidas, mas ainda as que s6 serio descobertas daqui a muitos séculos. Foi grande fineza e nao foi tinica. S. Pedro, que tem as chaves do céu, abtiu-nos as portas dele, fer-nos entrar, ¢ depois de tocar-nos com o béculo, recitou alguns versiculos da sua ptimeira epfstola: “As . ..” Em seguida, fer sinal 108 anjs, ¢ eles entozram um trecho do Céntiee, tio concertada- ‘mente, que desmentiriam 2 hipésese do tenor italiano, se a exceu- so fosse ma verra; mas era no céu. A rtisica ia com o texto, como sehouvessem siascido juntos, 8 maneiza de uma épera de Wagner. 76 Depois, visitamas uma parce daquele lugat infi nfo farei descricao algums, nem a lingwa hu: id6ness para tanto, Deseansa que posgui formas Brincando com o cliché ‘Giaraimisele foram (eliza para) ‘Sempre’, o noivo narrador declara: “pois sejamos felizes de uma ver, antes que 0 leitor pegue em si, siorto de esperar recer a outra parte; casemo-nos". Numa tinica frase a narrativa chama duplamente a atengao do leicor de que ela ndo passa de uma narrativa, isto ¢, de um discurso: refere-se tanto a uma ex- presséo chave ( chavo) do discurso cotidiano quanto 20 pré- prio leitor, que estaria cansado de esperar 0 desenlace, 0 climax, © ponto mais alco, enfim, a “Kiss part”. A seguir, aleerna a claca ironia, que nio deixa de ser autoitonia, porque afeta o préprio discurso literdrio, corn um momento poético da melhor quali: dade: “o céa recolheu a chuva e acendeu as estrelas”, Bentinho mostra-se apaixonado como deveria estar, mas desde o princi- pio irénico do capitulo ¢ do parigrafo néo deixou o leitor se es- quecer de que narra todos os acontecimentos quando ja se tor ‘Tanto, que volta a ser irdnico, atacando subrepticiamente os clichés religiosos ¢ aqueles que governam as relag6es entre ho. mens ¢ mulheres. Esta ironia seguinte, porém, vem certamence: is de construir uma das personagens femininas mais iceratura brasileira, Machado/Bentinho mostra como o discurso vigente trata as mulheres: clas devem se sujeitat com: pleamente a seus maridos, devem trazé-los na alma como tni- co adomo, devem se reconhecer como mais fracas do que os homens, logo, aceitando sua proteglo e, consequentemente, seu controle absoluto. Em contrapartida, os homens devern tar completamente suas esposas, tratando-as com honra, sim = amor ¢ fidelidade sio dispensiveis porque, enfim, coisas de eve epar 7] mulher 9 ii#és com pulso sempre forte. A izonia é dupla, ¢ for- a, como certamente diria 0 José Dias, agregado da farn(- Santiago. Capita mostra-se por todo o romance muito mais te do que Bentinho, mesmo quando ele a manda para a Suf- com 0 filho, enquanto o senhor Santiago nunca deixa de se 8 apresentar como o filhinho mimado da sua mare. muito mais forces e integras do que os seus personagens mas- -culinos, o que nao deixa de ser uma forma ds elogiar sempre “o -90tk0" do escrtor. Da ironia 4 poesia e de volta A ironia — e, para terminar, um fecho poético que nio deixa de ser, ao mesmo tempo, no- vamente, iconico. Para 0 primeiro encontro de dois jovens que amam quase que desde a infincia, separados por um muro xo ¢ pelas diferengas de classe ¢ cor da pele (sempre li Capita. como negra, talvez uma mulata de olhos claros), alguma frase pode ser mais precisa, mais perfeita, mais bonita do que: *n6s A seguir, o per sonagem tranquiliza o leitor afirmando que nao facé descrigio uma, num gesto supremo de respeito a0 mais belo momento seu romance, que desse modo permanece convenientemente 10 dito, que desse modo deixa aberta a leitor ¢ leitora a vas- lacuna que deve ser preenchida por sta imaginagio. Por sua naginagio, € no por suas palavras — até porque a lingua hu- mana no “possui formas idéneas para tanto”, Sabemos que 0 autor aqui fala pela boca virtual do seu per- sonagem, Bento Santiago. No entanto, a extrema delicadeza do comentétio nio deixa de nos espantar se, pelo menos desde n Caldwell ¢ de Wayne Booth, que elaborou o conceito “unreliable narrator’, isto & de “natrador néo confiivel” nos habituamos a desconfiar das palavras e principalmen- tc das intengées do nosso Bentinho. A despeito da poesia, a ironia dessa cena reside na clara relacdo que estabelece coin 2B a critica demolidora que Machado de Assis fizera, vinte ¢ dois anos antes, ‘20 romance O primo Basilio, de Eca de Queirés. Se Dom Casmaurro pode ser lido como a resposta ficcional do esctitor brasileiro ao escritor portugués, 0 capitulo Cl de Dora Casmurro parece a versio metaforica, condensada ¢ concen EAs cenas de alcova entre Luisa © Basilio incomodam Machado nao por moralismo, mas por- que pretendem dizer tudo ¢, desta maneira, néo deixam nada quer para os leitores quer para os prdprios personagens. Porque nada sugerem, nada transcendem, talvez a ninguém verda- deicamente excitem. O préximo momento emblemécico da ficgio machadiana se encontra nas Memérias péstumas de Bris Cubar, desde 0 titulo ‘uma rasteira no realismo que, cstranhamente, seus defensores no conseguem ler. gargio, lindo c audaz, que entrava na vida icote na mio e sangue nas veias, cavalgando loz, como 0 covcel das ancigas baladas, gue 0 romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com lc nas ruas do nosso século. O pior é que o estafarai a tal ponto, que foi preciso deitéto a margem, onde o 10.0 velo aha, comida de lazeita c vermes, e, por Compaico, o transportou para ‘os seus livros. ‘Ao perceber o realismo como a carniga podre do romantis- ido 05 junta na mesma Ironia, apontan 70 0 aTIStOCTHISMO aANACTONICO que constitui o romantismo © 0 pessimismo mérbido que constitui o realismo. O objeto de ‘alee FUpOSEAMENEREpoIA. Justamence aquclas cenas de alcova entre Luisa ¢ Basilio parecem mostrar 0 realismo como reférn da racio reguladora, classificadora, enguadradora ¢ “es. goradora’, Bacretanto, talver haja uma emogio force por balsa "testa Fao ensandecida ~ se nao houvesse, ela nao enlouque- ceria tio facilmente, hipdtese de que essa emo- Sompaixao. Se a hipdtese puder ser confirma- 2, entenderemos qué compaisio & a emogio responsivel por motivar 0 realismo a voltat os olhos para os aspectos negativos da sociedade ¢ da humanidade, como se deserevé-los com to. dos os detalhes, da maneira mais, objetiva ¢ cientifica possivel, contribufsse para a sua tansformasio postive. OrayalpReSGHRN A pretensio de descrever a realidade como cla € csconderia uma pretensio maior, muito maior: a de salvar 2 realidade ¢ a sociedade de si mesmas, tornando-as revelucion= SEnTEnEE melhores. Por iso, o realismo busca tantos adjetives Para'se refazer, por exemplo na primeira metade do século XX. quando se quer “Socialista’, propriamente revolucionétio, mas também e ainda “cientifico’ A crltica dessa ciéncia realista cheia de boas intengses, Machado a realiza através da sua maior alegoria. Ele publi, ca a novela O alienista no periédico A Enagéo, de outubro de {81 & margo de 1883, Por essa época, o fancionario Joaquim Maria respondia consultas sobse a aplicabilidade da La de Ventre Livre. Invariavelmente, 0 Funciondtio se posicionava 20 lado dos escravos, no pesiodo em que a campanha aboli_ cionista dava apenas os primeiros passos. Nao é absurdo dizer 80 que o escritor disFarcou 2 oposicéo na oposigao Casa Verde é sobretudo um espaco de privagio-da liberdade no qual as pessoas so escravizadas em nome dos discutiveis ¢ camale6nicos poderes da ciéncia e da politica. O médico fun. {2.0 asilo da Casa Verde a fim de demarcar 0s limites da razdo ¢ da loucura. Sea sobrenome é bélico mas também anacroni. ©; Pordue a arma a que se referejé era antiquada no tempo da natrativa, Este sobrenome indicia a revolugio cientifica pre- tendida pelo cientista mas, 20 mesmo tempo, jé aponta para © seu desfecho frustrado, ou seja, sugere que 0 “tiro” iria sair pela culatea, No inicio da histéria, Bacamarte estabelece 0 pri critério para a saiide mental: “a razéo é 0 perfeito qi de todas as faculdades; fora daf insinia, ins&nia, e s6 insAnia' (Machado de Assis, 1882: 29). A cxperincia, porém, transforma-se numa tragédia para a co munidade: quase toda a populagio é trancafiada na Casa Ver de. Bacamarte entio modifica o seu critério para a satid tal < passa a admitiz como normal e exemplar o desequ das faculdades. Em conscquéncia, roman-se patoldgicost 05 casas equilibrados. Os internos sio libertados, mas ye Ceram os melhores da cidade, ou seja, a pessoas mais das ¢ razoaveis. Todavia, mesmo os equilibrados demo algum descquilibrio. De acordo com 0 novo ctitério de Bacamarte, resta apenas uma pessoa perfeita, porcantn louca, em toda a cidade: 0 préprio Siméo Bacamarte. Em nome do ti gor cientifico, o ilustre médico interna a si mesmo no seu as onde vied a petecer sozinho. Como vemos, © considera-se.absolutamente certo mesmo quando percebe que cstd completamente errado, Ele se mostra uma representagio POOP OTH se Sete ete te tse eee ironica do uréboro, a serpente ou dragio que morde a prdpria at coudatPrécura tanto a causa da loucura que a encontra enfim iho, reconhecendo-se 0 tinico louco do pedaco. Desse nyo Bacamarte mostra-se, dessa maneira, a metéfora pe a... - Se tas € do realismo. Através de Bacamarte, 0 escri- segue dizer que no comego encontra-se sempre o verb que a loucura é sempre a da palavra, quando ela acredi mesma, 0, como se diz. hoje em dia, quando “ela toa tém precedéncia para a cles que padecem dos males da ret6rica. O primeito rada no asilo € um rapzz. bronco, sim, mas que todos » depois do almogo, faz. um discurso académico ornado 10pos, antiteses e apéstrofes. Qualquer semelhanga irénica professores, criticos ¢ deputados baianos nfo seri, decer- ra coincidéncia. Segue-se ao rapaz bronco o eloquente ci- lio que resolve clogiar a mulher do alicnista, dizendo que depois de dat ao universo o homem ¢ a mulher, esse dia- © essa pérola da coroa divina (¢ 0 orador arrascava triun- ue esta frase de dma ponta a outra da mesa), Deus quis et a Deus, ¢ ctiou D. Evarista” (Machado de Assis, 1882: © homem € imediatamente internado. Os cidadaos ¢ os es suspeitannt dé citime, sem perceber que o médico teria ainda que a narrativa oscile entre aquelas ias, aos diversos casos de deméncia ver- como mostra 0 discurso esquizofiénico do barbeiro Por- A palavra se mostra, a0 mesmo tempo, todo-poderosa e i. A experitncia de Simao Bacamarte, no fundamental 4 experiéncia com a palavra que delira, considerando-se a prOpria Verdade, termina com seu préprio isolamento e morte nna Casa Verde. A partir desse ponto, jd podemos ler as palavras do préprio Machado de Assis sobre o realismo. Cabe reconhecer que 0 es- ctitor chegou a se posicionar a favor do realismo; s6 que isso acontecetr quando ele era bem jovem, com 20 anos de idade, ¢ ainda nao despontara como escritor de ficeio. Em crftica a pega teatral O Asno morto, de Joaquira Manoel de Macedo, publi je setembro de 1859, m poucos meses, porém, ele se afasta da escola realista a que dissera pertencer, j& preparando sua critica furura. Em texto publicado em 29 de marco de 1860, 0 jovem critico escreve: “As minhas opinides sobre 0 teatro so ecléticas em absoluto: Néo subscrevo, em sia totalidade, as méximas da escola realista, nem aceito, em toda a sua plenitude, a escola das abstra inticas; admito & aplaudo 0 drama como forma absoluta mas nem por isso condeno as cenas admiriveis de Corneille e de Racine”. Passam-se outros tantos 20 anos ¢ se consolida a critica de Machado de Assis contra o realismo, 83, No ensaio “A Nova Geragio”, por exemplo, Machado de Assis emite a condenagio mais categérica do realismo que alguém poderia enunciar. Ele diz, tio somente: “a realidade éboa, o realismo ¢ que nfo presta para nada” (Machado de Assis, 1879: 239). Vou repetir, para todos lermos de novo: “a realidade € boa, o tealismo & que nfo presta para nada”. Bisa condenagio nao poderia ser mais veemente nem mais categ6- Hea: Machado dis, simplesmente, queso realiomo ndo pres para nadal Cabe enfatizar que a primeira parte da condenagéo macha- diana € to importante quanto a segunda, embora talvez nao tio dramética. Ao dizer que “a iealidade é boa”, 0 escritor ji se opée ao realismo, porque o realismo defende, programati camente, que “a ealidade é ruim”, De fato, os manuais did: cos aceitam, corretamente, que o realismo seja intrinsecamente pessimista, considerando que ele se preocupa sempre em des- crever os aspectos negativos da realidade para vé-la de maneira “nua ¢ crua’, Os adeptos do realismo politico, ou do realismo socialista, também entendem que a sua misséo & a de revelar 605 aspectos essencialmente negativos da r ide que temos, ou seja, da realidade burguesa, para permicir a sua superagao revoluciondria. Na linguagem cotidiana, por sua vez, também pedimos que uma pessoa “seja mais realista” quando queremos aconselhé-la a ser mais cinica, a desconfiac das pessoas e de ra, por oposi¢ao ao realismo ¢ a todos esses discursos que sefletem 0 pensamento vigente, o senso comum € 0 status qua, Machado de Assis diz. uma frase muito simples, aparentemente ingtnua: “a realidade é boa”. Ora, todos concordamos, supo- sho, que se podem atribuir vérios adjetivosa Machado de Assis {até 0 de “realista”, como vemos), mas néo o de ingénuo. Logo, 84 . | sua frase aparentemente ingénua contém um, objetivo menos ingénuo: combater frontalmente o realismo, que diz o'éontrio a todo momento, ou seja, que diz que a realidade € niim & nio boa. Machado percebe, me parece, 0 que o realismo quer dei- xar subliminarmente subentendido em suas criticas recorrentes a realidade: a realidade ¢ ruim, decerto, mas eu sou bom porque eu € 86 cu consigo perceber como a realidade é ruim. Quando dizemos para Fulano set mais realista, na verdade queremos lhe mostrar 0 que h4 de mau na realidade & volta nas pessoas que © cercam ~ mas com a tinica excecio da nossa pessoa, aquela que lhe est abrindo 0s olhos. ‘Em contrapartida 4 maldade circundante, ser realista é bom porque apenas o realista pode ver a realidade “como ela é”, su “ismo” do cermo “realismo” deixa claro que ele 56 pode ter por suposta uma perspectiva tinica sobre a tealidade, perspectiva esta que pode ser percebida tio somente por quem for realis~ ta. Entretanto, esta perspectiva dinica sobre a realidade nao é boa porque, segundo o realista, a realidade “real” nao pode ser boa. Por oposicio, todavia, 0 realista é bom, se ele € 0 tinico capaz. de ver a maldade da realidade. ego) Mealiseleonsider, desse argumento com a estrutura do ressentimento tantas vezes denunciado por Nietzsche. O realista é, na visio machadiana, 85 ee SO TURRTREREAEAG) recusando qualquer perspectiva que ngq sgja a sua ou que nio © coloque como centro do mun- do ¢ dono da verdade. Em consequéncia, o realista também é antes de tudo um dogmético, usando sua prépria condicéo de realista autonomeado para desqualificar qualquer pensamento divergence. ‘Também nao é mera coincidéncia a semelhanca da formu- lagio aparentemente ingénua de Machado, “a realidade é boa”, com a afirmagio superior do destino, do desejo ¢ da vida de Friedrich Nietzsche: “foi assim?; assim eu o quis!”. Ao invés de lamentar suas desditas, como fazem os cristdos ¢ ‘os realistas, o Ubermensch nietzschiano, de que a ficgio de Machado de Assis pode ser um antincio, afirma a vida e o passar do tempo, trans- cendendo-o dessa maneira. Com isto no postulo Nicezsche como uma das influéncias de Machado, mas sim chamo a aten- «fo para substrato afirmativo do pensamento de ambos ¢ para a circunstancia de terem passado por este planeta quase que 20 mesmo tempo ¢ terem vivido quase que o mesmo nimero de anos: 0 filésofo alemio de 1844 2 1900 ¢ 0 esctitor brasileiro de 1839 2 1908. No caso de Nietzsche, enlouqueceram-no para methor deturpar suas ideias, a ponto de fazé-las virar do aves- so até apoiarem a estupidez do nazismo. No caso especifico de Machado de Assis, uma vez. que os arautos do realismo nao po- dem desquali come esctitor menor, seria um escindalo, tentam encarceré-lo dentro do conceito que cle repudiava, con- siderando-o nada menos do que o nosso maior escritor realista. Logo, desvalorizam o escritor para valotizar a si mesmos e & sua perspective niGlESGOlAr. Entrecanco, essa inferéncia, que parece atingir tanca gente, inclusive criticos e professores que me ensinaram a per- sar ¢ pelos quais tenho o maior respeito, se mostra por demais apressada. Hi sem diivida outras razées que ndo o ressentimen- to pessoal ¢ de classe para a insisténcia no realismo como valor, em geral, ¢ no realismo de Machado de Assis, em particular ‘Vamos vé-las no préximo capitulo. Por enquanto, observemos a critica realista 3 realidade como uma critica de mao anica que veta todo ricochete, isto & que veta toda forma de autocritica. No ensaio “A Nova Gera- 40, 0 escritor afirma também que precisamos volear os olhos para a realidade, esta que ¢ boa, no porque ela seja a melhor possivel, mas apenas por ser a Gnica possivel. Sua literatuca é obviamente critica, mas na forma de uma ironia que nao se crime de si mesma, A ironia machadiana é sempre autoironia, atingindo e afetando seus personagens, seus narcadores, seus leitores ¢ finalmente o préprio escritor que iconiza. Por isso, a sua literatura ndo se pode dizer “séria’, no sentido daquelas pes- soas sérias que pensam deter a razéo ¢ a verdade ¢ entéo, mag- nanimamente, a compartilham com a plebe ignara que, coita- da, ainda nao atingiu as mesmas aleuras reflexivas. Por isso, a sua literatura é simultaneamente compassiva ¢ bem-humorada,

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