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Critica ao Comportamentalismo Matheus Hidalgo Ao destacar a contemporaneidade da filosofia behaviorista skinneriana, Lopes e Laurenti (2014) fazem uma sintese enxuta € consistente do Behaviorismo Radical, passando em revista alguns de seus principais tépicos tedricos (epistémicos e ontoldgicos) € praticos (éticos € politicos), ao mesmo tempo em que, tanto pelo percurso inusitado que percorrem, sugestivo de caminhos férteis e ainda mal explorados entre os comentadores, quanto pelo modo como articulam os temas e conceitos com os quais trabalham, propéem uma interpretacdo original do movimento geral da obra de Skinner, subsidiada por aquilo que os autores chamam de “compromissos filoséficos” do seu autor — pragmatismo e darwinismo. Nesse sentido, bastante preciso, trata-se, certamente, de uma leitura tao interessada quanto interessante. Nao deixa, contudo — e, a rigor, pelos mesmos motivos — de ser problemdtica em alguns de seus momentos mais decisivos, como pretendo mostrar. Impossivel, aqui, acompanhar com o merecido cuidado todos os desdobramentos implicados nas ricas e potencialmente inoyadoras sugestdes contidas nos argumentos de Lopes e Laurenti acerca do behaviorismo radical. Nesse contexto, além de formalizar um didlogo até agora informal, pretendo, a seguir, apenas destacar € analisar aqueles aspectos da argumentacao que me pareceram particularmente suscetiveis de critica, por insuficiéncia ou parcialidade, embora cruciais 4 interpretacao que se propée. 1 Levantando Um Problema: A Quest&o do Estatuto das Ambiguidades e Contradigées Skinnerianas Na contextualiza¢ao histérica que fazem do projeto behaviorista skinneriano, aps criticar a influéncia de certo viés positivista — pois 32 Critica ao Comportamentalismo cronolégico e progressista - fortemente presente na_historiografia convencional do comportamentalismo, os autores se propéem a elaborar uma “narrativa alternativa” as perspectivas tradicionais, que aceitam passivamente os lugares comuns fixados nos manuais de ‘histéria da psicologia — tais como: a) 0 comportamentalismo se restringe aos métodos das ciéncias naturais; b) trabalha quase que exclusivamente com animais nao humanos para tentar explicar 0 comportamento humano; e ¢) aspira a previsio e controle comportamental — narrativa cuja trama deixe em suspenso a ideia de progresso e na qual a cronologia, nao raro, possa ser subvertida. Tal narrativa teria, ainda, a vantagem adicional de nao descuidar das eventuais “contradiges ¢ ambiguidades da teoria de Skinner, que deveriam ser esperadas, dada a extensao de sua obra” (Lopes & Laurenti, 2014, p. 89). Concordo com os autores quanto a parcialidade da visio tradicional, cuja superficialidade frequentemente conduza erros e distorcées por parte dos leitores menos atentos e mais apressados. Eu gostaria, contudo, de ressaltar uma questéo que me parece insuficientemente comentada: por que, afinal de contas, tais ambiguidades ¢ contradig6es “deveriam ser esperadas”? Convenhamos que a pura e simples “extensio” da obra de um autor nao é condigao suficiente para que elas necessariamente aparecam. O ponto, contudo, nao é esse. Trata-se, antes, do seguinte: tal modo de introduzir a tematica das tensdes inerentes aos textos de Skinner nao acabaria por obliterar, no mesmo gesto, uma questio anterior que deveria set levada em conta — ligada ao estatuto mesmo das referidas tens6es? Para deixar mais claro meu ponto de vista, tentemos, antes, compreender o modo como nossos interlocutores conduzem a discussao acerca do tema. Embora, de inicio, nao explicitem a que tipo de ambiguidades e contradicGes especificamente se referem, logo adiante os autores dao a dica relevante, ao dizerem que “a teoria de Skinner é atravessada por diferentes matrizes filosdficas, sendo algumas até incompativeis entre si” (Lopes & Laurenti, 2014, p. 92). Sem mencionar inicialmente qualquer texto especifico de Skinner, Lopes e Laurenti afirmam haver varias “tendéncias filosdficas” (p. 92), nao raro contraditérias entre si, presentes nos textos de Matheus Hidalgo —_ Skinner (mecanicismo, empirismo, positivismo; determinismo; darwinismo; pragmatismo; probabilismo; fisicalismo), subsidiando as mais diversas classificac6es ¢ interpretacdes de seu pensamento. Ora, 0 fato de isto nao ser um ponto pacifico entre os comentadores e analistas do comportamento deveria ser razio suficiente para reconhecer em aberto a questao da natureza e do eventual alcance das tensdes e ambiguidades que se apresentam, conforme 0 recorte considerado, nos diferentes momentos da extensa obra de Skinner. Com efeito, ao menos até aqui, nenhum argumento nos impele a adotar preferencialmente qualquer uma dessas linhas interpretativas (por exemplo: “Skinner determinista”, “mecanicista”) em detrimento de outra (“Skinner indeterminista’, “probabilista”). O que fazem, mais precisamente, porém, Lopes e Laurenti? Nesse cendrio, em que coabitam as mais distintas interpretagGes, fortemente incompativeis entre si, logo apés se indagarem sobre “qual dessas perspectivas interpretativas deveriamos adotar?” (p. 92), simplesmente escolhem uma das perspectivas em jogo, tendo em vista “pensar uma proposta de psicologia contemporanea”, passando, em seguida, a contextualizar o “Comportamentalismo no darwinismo e no pragmatismo” no mesmo passo em que fixam “compromissos filoséficos” de Skinner. Da nossa parte, perguntamos, ao contrario: a qual filosofia podemos seguramente recorret, dentre as diversas matrizes conflitantes que atravessam os textos de Skinner, se quisermos atestar a legitimidade dos alegados “compromissos” e da pretensa “coeréncia de pressupostos” da ciéncia do comportamento proposta por Skinner? Vejamos, na integra, 0 pardgrafo em que nossos interlocutores resumem claramente seu ponto de vistaa respeito do assunto (daimportancia de se levar em conta as tensdes que permeiam a obra skinneriana), bastante ilustrativo do modo como a questao esta sendo conduzida por eles: vale ressaltar que 0 posicionamento apresentado e defendido aqui ainda é fonte de controvérsias entre analistas do comportamento. Isso se deve, em boa medida, porque essa interpretagdo esbarra em ambiguidades ¢ tensées do proprio texto skinneriano. Skinner sugeriu, principalmente em seus textos iniciais, B4 Ciftica ao Comportamentalismo que a regularidade entre estimulos e respostas encerrava relagées deterministas de suficiéncia causal. Isso se verifica, por exemplo, na ocasiéo em que ele defende © conceito de reflexo como o mais adequado para uma descrigéo cientifica do comportamento (Laurenti, 2009). Nesse contexto, a proposta skinneriana ajusta- se facilmente ao determinismo, na acepc4o aqui empregada. No entanto, Skinner abandona o reflexo como conceito central em sua teoria, e o substitui pela nogio de operante e, mais tardiamente, pela de sclegdo pelas consequéncias. Nesse percurso, torna-se mais comum a defesa de que o comportamento encerra relacées probabilisticas entre eventos, com ressonancias tanto no Ambito epistemoldgico quanto ontolégico. ‘Assim, Skinner acabaria aproximando-se de propostas cientifico-filoséficas mais afinadas com o probabilismo ou indeterminismo, como € 0 caso do pragmatismo € do darwinismo (Pepper, 1942/1961; Mayr 2004/2005). Dessa maneira, guando se assume os compromissos filoséficos descritos até aqui, no é mais possivel sustentar de forma coerente que no coragito da contingéncia haveria uma necessidade velada, que nao é alcangada porque nosso conhecimento sobre o comportamento nao é ainda suficientemente desenvolvido, ou porque a complexidade do fenémeno comportamental ultrapassaria a capacidade de compreensio humana’. (Lopes & Laurenti, 2014, pp. 98-99, grifos meus) Essa passagem suscita questées, e faz avancar a discusso acerca de temas de grande envergadura tedrica. Temos, aqui, uma interpretagao condensada, e bastante plausivel, do movimento geral do pensamento skinneriano, no que se refere ao problema fulcral do determinismo, através das etapas sucessivas pelas quais passou, ao longo de uma evolucao gradual, © estatuto explicativo do conceito de operante na obra de Skinner. Em que pese a fertilidade da interpretacao proposta, e sem entrar por enquanto na questao de seu mérito, é certo que “aproximar-se”, “ter Matheus Hidalgo B5 afinidade” etc., é bem diferente de “assumir compromissos filos6ficos” irrevogiveis. Penso, entao, nao ser inconveniente levar adiante a hipotese levantada por Lopes e Laurenti, radicalizando os argumentos da passagem supracitada, através da seguinte pergunta: em que medida Skinner rompe com seu projeto inicial? Ou, ao contrario, sera que ele se mantém fiel, de ponta a ponta, aos seus compromissos, tacitos e/ou explicitos, imiciais? Em suma: hé continuidade ou ruptura no movimento geral da extensa obra de Skinner? Da resposta a esta questao depende a clareza acerca de quais seriam as raz6es, ou motivos, pelos quais deveriamos salvaguardar a contemporaneidade de um Skinner selecionista-pragmatista, em detrimento de outro, por assim dizer mais anacrénico ou antiquado, pois mecanicista-determinista. Veremos, mais adiante, quando tratarmos diretamente do tema do determinismo, que essa auséncia de posicionamento acarretard importantes consequéncias, impondo dificuldades 4 interpretagao proposta. Vale esclarecer, por ora, que nao estamos, aqui, cobrando dos autores aquilo que nao se propuseram fazer. Trata-se, antes, de ressaltar uma das questées mais importantes que seu texto suscita, mas ndo apresenta resposta satisfatoria: afinal de contas, devemos ler os tiltimos textos de Skinner (p. ex., Skinner, 1989/2002) como o resultado da evolucéo (no sentido de mudanga) gradual ¢ do aprofundamento do projeto de pesquisa inaugurado em seus artigos da década de 30 (Skinner, 1931, 1935, 1937) e extensamente desenvolvido no Comportamento dos Organismos (1938)? Ou ser que, do ponto de vista de Lopes ¢ Laurenti, o problema da coeréncia interna da obra de Skinner seria irrelevante, ou nem mesmo seria um problema? Nossos interlocutores passam apenas ao largo da questo, se esquivando do tema das eventuais rupturas internas no pensamento de Skinner. Tudo se passa como se, no mesmo gesto em que pretendessem mostrar a “suposta contemporaneidade de Skinner”, ao sublinhar a presenca de duas (dentre outras seguramente possiveis, como apontado pelos préprios autores) das “matrizes filosdficas” que estéo difusamente presentes na vastidao da obra skinneriana, fosse possivel superar, de uma vez por todas, a situacéo de contradicao e ambiguidade anteriormente BO Critica a0 Comportamentalismo apontada. Desse modo, Lopes e Laurenti subentendem respondida uma questo que deixam sem resposta: serd que a tese da adesto filoséfica de Skinner ao pragmatismo e ao darwinismo permitiria superar, a um s6 tempo, tanto as eventuais insuficiéncias do seu projeto original quanto as tensOes que atravessam os seus textos? Caso contrario, podemos perguntar até que ponto tais ambiguidades ¢ contradicées seriam, ou nao, suficientes para arruinar a coeréncia interna do projeto de Skinner? Portanto, o maior inconveniente desse procedimento, que obscurece ou minimiza a relevancia da questao que trazemos ao primeiro plano, € que ele traz consigo a suposicao segundo a qual seria possivel superar as tensdes, contradigées e ambiguidades que perpassam os textos de Skinner — como se nao fosse possivel, por exemplo, num sé e mesmo texto ou passagem, encontrd-las, juntas, trabalhando na articulagdo mesma dos conceitos em pauta. Do nosso ponto de vista, seria preciso reconhecer a necessidade de compreender as eventuais tens6es que se apresentam entre o espirito e a letra dos textos skinnerianos — ou seja, de viabilizar a hipdtese de trabalho segundo a qual tais ambiguidades e contradicdes, antes de supostos obstdculos a serem superados por um Skinner mais maduro, podem (¢ talvez devam) ser vistas, positivamente, como momentos expressivos de uma sé e mesma trama conceitual, sendo, portanto, constitutivas do movimento proprio da obra skinneriana. Assim, uma vez reconhecido que as ambiguidades e contradiges inerentes ao pensamento de Skinner nao sao necessariamente obstdculos passiveis de superacao pela adesao a um dos termos no jogo dos contraditérios (determinismo mecanicista vs. indeterminismo probabilista), uma vez reconhecido, em suma, que seu estatuto ainda nao esta claro, estarfamos prontos pata admitir outras hipdteses de leitura, como a que acabamos de mencionar. Do contrario, corre-se 0 risco de recair no positivismo historiografico do qual se pretende afastar: como se houvesse uma linearidade progressiva no pensamento de Skinner — determinista/mecanicista nos primeiros textos, selecionista/probabilista nos tiltimos. Digo, com isso, que o problema do estatuto das ambiguidades e contradicées no contexto da obra de Skinner deve ser colocado em Matheus Hidalgo w primeiro plano; e, portanto, levado em conta nao pelo fato (cronolégico e quantitativo, alids) de que a obra é “extensa”, mas, principalmente, por estarmos em pleno acordo acerca da importincia de nos afastarmos da estreiteza de uma leitura cumulativa e progressista da obra de Skinner. Pretendo, a seguir, mostrar que, ao menos num caso especifice (porém exemplar), nem todas as tens6es tornam-se superadas, como parecem sugerir nossos interlocutores, pela simples adogao do viés interpretativo segundo o qual a obra de Skinner deve ser lida 4 luz do darwinismo e do pragmatismo. Vale notar, em todo caso, e ja introduzindo nosso préximo tépico, o seguinte: ao mesmo tempo em que, de um lado, nao encontramos facilmente nos textos de Skinner passagens que deem suportea interpretacao de que ele teria rompido radicalmente com suas ideias cientifico-filoséficas iniciais, é certo, de outro lado, que abundam passagens literais que mostram acontinuidade com varios dos pontos cruciais do seu programa de pesquisa iniciado na década de 1930, sugerindo, portanto, que Skinner se manteve fiel as linhas mestras de seu programa de pesquisa inicial, ainda que tenha aprofundado e ampliado enormemente 0 escopo de suas andlises. Para citar apenas um exemplo, que nos interessa em particular: embora tenha partido da nogao de “reserva reflexa”, passando por “emiss4o”, até chegar a nogao, certamente menos comprometedora, de “ocorréncia” (Skinner, 1989/2002, pp. 175-176), Skinner jamais abandonou o recurso a légica das classes para definir 0 operante (Skinner, 1935, 1938, 1953/1996, 1957, 1981). Afinal de contas, o que é selecionado pelas consequéncias reforgadoras? Nao, certamente, a resposta que ja ocorreu, pois, nesse caso, estariamos diante do contrassenso de um efeito que antecede sua causa. ‘Tratar-se-ia, ent4o, para Skinner, de uma classe de respostas”. Desse modo, se, como afirmam nossos interlocutores, Skinner “abandona o reflexo como conceito central em sua teoria, e o substitui * Em que: a) cada resposta singular mera instancia ou representante tipica, cuja equivalén- cia funcional com as demais respostas pertencentes i mesma classe ¢ atestada empiricamen- te; b) ao longo do processo de condicionamento, a probabilidade de ocorréncia do operante —inferida através do registro da frequéncia das respostas que j4 ocorreram — pode se tornar uma das propriedades funcionalmente relevantes (variével dependente) das contingéncias em vigor (varidvel independente). BB tica ao Comportamentalismo pela nogao de operante e, mais tardiamente, pela nog4o de selego pelas consequéncias” (Lopes & Laurenti, 2014, p. 99), como, entao, compreender © inabaldvel recurso skinneriano 4 légica das classes? E quais s4o os pressupostos ou “compromissos” ontolégicos implicados nesse recurso, a0 longo dos diversos momentos da vasta obra do psicdlogo americano? 2 A Realidade do Operante: Entre a Légica das Classes e a Diferenciagao do Fluxo Nessa seco, pretendo mostrar que a hipétese de leitura de Lopes e Laurenti, ao menos até 0 ponto em que foi explorada, em pouco ou nada nos esclarece acerca de uma tematica j4 amplamente debatida por outros comentadores de Skinner (Gianotti, 1973; Rose, 1983), ligada as dificuldades de articulacéo entre a légica das classes, empregada na propria definigao do operante, de um lado, e, de outro, a temporalidade constitutiva do fluxo comportamental, que faz com que seu processo de diferenciacao seja ininterrupto: de um lado, h4 uma exigéncia metodolégica, que se impée como condigao sine qua non ao cientista experimental, de trabalhar com uma unidade fixa que se repete, a classe operante (assintética) propriamente dita, e, de outro, a relevancia, ao menos tedrica, das caracteristicas dinamicas do comportamento (essas, bem menos passiveis de controle experimental) ao longo de um processo ininterrupto de autodiferenciagéo continua do fluxo comportamental, no qual novos operantes se originam sem cessar. Embora afirme, em diversos textos, a ideia de que “o condicionamento operante ocorre em uma velocidade em que pode ser observado de momento a momento” (Skinner, 1981, p. 501), ou, ainda, que a “evidéncia’, 0 “dado basico”, da Andlise do Comportamento “aparece diante dos othos” (Skinner, 2005, p.107; ver também Skinner 1969/1984, p. 183; 1976, p. 252), parece-me que toda ¢ qualquer “observacao” rigorosa do comportamento, entendido como classe operante, envolve um artificio experimental inevitavelmente arbitrario, sem 0 qual nao ha subdivisao possivel de suas partes, enquanto unidades pretensamente mensurdveis, Matheus, fidalgo. Bb ao longo do continuum comportamental. Nao é A toa, portanto, que, logo num de seus primeiros textos tedricos, de 1935, ao se esquivar da possfvel critica de subdividir arbitrariamente o fendmeno comportamental, © psicélogo americano considerava insuficiente “definir os conceitos de estimulo € resposta tao simplesmente como ‘partes do comportamento e do ambiente”, e se propunha, entao, a “dar conta das linhas naturais de fratura articulando 0 comportamento e o ambiente” (Skinner, 1999, p. 504). Mas, podemos perguntar: como efetivamente delimitar cada classe, se o intercdmbio efetivo dos estimulos e respostas é fundamentalmente dinamico? Como tracar a fronteira da intercomunicabilidade dos membros da classe de respostas? Sera, de fato, possivel, mesmo nas condicdes ideais do laboratério, em que as varidveis podem ser experimentalmente manipuladas, delimitar as linhas naturais de fratura entre o organismo e o ambiente? Caso negativo, quéo mais problemdtica nao serd a extrapolacao das conclusées acerca dos resultados experimentais, nos quais se inspira a Andlise do Comportamento, quando se trata de interpretar 0 comportamento humano em situagées extralaboratoriais? De um lado, o analista do comportamento, sempre preocupado com o rigoroso controle experimental do fenémeno que estuda, nao pode perder de vista os estados estdveis, ou os “padrées de acdo identificaveis no fluxo comportamental”, sobre as quais a narrativa experimental se apoia, mas, de outro, deve estar atento, embora raramente o faca (Rose, 1983), ao fato de que “a direcao do fluxo (...) vai sendo construida durante o processo, pelo prdprio processo” (p. 8). Nesse sentido, como afirmam Lopes ¢ Laurenti, “a variacao ou mudanga convive com regularidades ou padrées”(Lopes & Laurenti, 2014, p. 103). Resta saber de que modo isso é posstvel, se € que 0 é. Lopes e Laurenti chegam a resvalar nessa questao, mas, de novo, parecem supé-la superada ou dissolvida pela hipdtese da identificacio dos compromissos filoséficos de Skinner aos do darwinismo e do pragmatismo: essa relagéo [comportamental] nao é uma ocorréncia isolada, ela é temporal, ela precisa do tempo para aleangar seu efeite: a produgao de regularidades no fluxo 140 Critica a0 Comportamentalismo comportamental. Isso mostra, definitivamente, que na base das regularidades do fluxo comportamental nao ha uma esséncia, mas um processo, ou seja, a manutencdo, no tempo, de uma organizagdo entre acoes e mundo. (Lopes & Laurenti, 2014, p. 97, grifos meus) No sentido que a expressao “esséncia” é utilizada ao longo do texto de Lopes e Laurenti, concordamos plenamente quanto 4 necessidade de nos afastarmos de uma ontologia essencialista da nogao de comportamento ou, ainda, da nogao de uma “esséncia que situaria o ser humano numa posi¢do sobrenatural”** (2014, p. 114). Voltemos, entio, ao que mais nos interessa no trecho supracitado. Afinal, o que garante a organizacao desse processo, “entre ages ¢ mundo”, como um todo? Da nossa parte, nao vemos de que modo é possivel, dentro dos parametros estritos em que nossos interlocutores se colocam, haver convivéncia harmoniosa, ao longo do processo comportamental, entre “varia¢do ou mudanga” de um lado, e “regularidades ou padrio”, % Embora néo tenhamos deixado de notar que, por contraste com o cuidado empregado na exposicao dos conceitos do Behaviorismo Radical, Lopes e Laurenti peremptoriamente reduzem o sentido da nogao de “esséncia” ao seu sentido mais trivial ou corriqueiro, assim como, na linguagem cotidiana, empregamos uma mesma classe de palavras, 0 substan- tivo, para designar coisas ou entidades (“algo”. “tipo ideal”, “eidos”, “télos”, “personalidade” etc.), bem como propriedades ou atributos (“imutaveis”, “universais” etc.), introduzindo assim uma concep¢ao hipostasiada (substancial) de um conceito que, a0 menos na tradicéo da filosofia contemporanea de inspiracéo fenomenolégica, apresenta forte conotacio rela- cional, ligado menos & ideia de substancia do que a um certo modo de organizar os fendme- nos, haja vista clucidar ou explicitar aquilo que foi concretamente experimentado a0 longo do proceso indutivo de interpretacéo dos dados empiricos coletados. Digo, com isso, que as nocées de contingéncia de reforco ¢ de comportamento operante, na medida em que instituem, em sua relacao reciproca, um principio de inteligibilidade sem o qual os “dados” (por exemplo: a ocorréncia de cada resposta, em sua singularidade temporal e espacial- mente circunscrita) permaneceriam esparsos, pressupdem uma “consciéncia de exemplo” (Merleau-Ponty, 1964, p. 153). Nesse sentido, bastante preciso, as nocées de operante ¢ de contingéncias de reforco, a0 contratio do que muitas vezes sugere Skinner, néo procede de um simples actimulo de dados obtidos por inducéo sistemética, como por vezes a rele- vancia dada & expressio “cumulative records” (registros cumulativos) sugere. Desse ponto de vista, a “epistemologia empirica” elaborada por Skinner (1969/1984, p. 346), bem como sua critica explicita ao método hipotético-dedutivo (1969/1984, pp. 173-6), pode ser in- terpretada como nio implicando necessariamente a suposicao equivocada segundo a qual existem fatos puros, totalmente isentos de pressupostos ou interpretacdes prévias. Lopes € Laurenti, por sua vez, deixam escapar inteiramente esse sentido, compreensivo ou relacio- nal, da nogao de “esséncia”, como Wesensschau (sobre isso, ver Merleau-Ponty, 1964). Matheus Hidalgo Wi de outro. Embora esse problema seja, a0 menos no que diz respeito as condigées ideais do laboratério, pratico ou metodolégico (de Rose, 1983), é certo que também consiste numa séria objecao tedrica ao Projeto skinneriano como um todo (Giannotti, 1974; Prado Jr., 2000, pp. 71-78), pois decorre das dificuldades ligadas 4 objetivacéo mesma do fenémeno comportamental, caracterizado, por Skinner, tanto como classe quanto como fluxo. Voltando, entao, 4 nossa pergunta: uma vez que as contingéncias de reforco, bem como as regularidades comportamentais a elas subordinadas, nado apenas estéo no tempo, mas, pelo efeito do efeito, instituem as condi¢es de sua propria temporalidade, como identificar ou reconhecer, a cada instante, durante 0 processo, os membros (enquanto propriedades ou instancias singulares) de uma classe operante qualquer, sem pressupor, de antemao, a classe a que se pretende subordind-los? Essa tensdo, me parece, é interna a obra skinneriana, atravessando-a de ponta (1935) a ponta (1990). Parece-nos que a temporalidade inerente ao comportamento operante (i.¢., sua génese e diferenciacio real, por meio dos processos seletivos ininterruptos, que acabam paulatinamente por modelar comportamentos diferenciados, assintéticos, ou parcialmente assintéticos, a partir da selecao/extincao de pequenas variacées ao longo dos diversos processos de condicionamento a que os organismos estao submetidos 20 mesmo tempo o tempo todo) exige, ou deveria exigir, do pensamento objetivo consequente, uma reconstrucéo integral, a cada instante, das relagdes que efetivamente garantem a identidade de cada uma das diversas classes operantes, no transcorrer do fluxo das relacées organismo-ambiente_ Eis, aqui escancarado, 0 que podemos chamar de carater idealizador da explicacéo skinneriana, tal como Lopes ¢ Laurent 2 interpretam, na medida em que o cientista comportamental deve Lamcar méo de uma narrativa cuja estrutura é perfeitamente reflexiva, ou Sectional hipotética, ¢ nao exclusivamente empirica (como gostaria que fesse). 7 que a génese real de cada classe operante é essencialmente inacessivel a observacao direta. Pois, se a resposta, enquanto acontecimento ou mentalisme 142 Critica ao Comp ocorréncia singular, pode ser “vista” ou “observada diretamente”, j4 nao podemos dizer o mesmo da classe a que se diz. que tal ocorréncia pertence. E uma grande injustiga, portanto, dizer que Skinner era “antitedrico” (como jé foi assinalado diversas vezes, sobretudo por ocasiao da publicacao do artigo em que Skinner se perguntava se “As teorias da aprendizagem sao necessdrias?”), uma vez que cada resposta, na sua singularidade empirica prépria, nao passa, como jé dissemos, de uma representante tipica da classe operante de que supostamente participa. Esse cendrio torna-se ainda mais dramatico quando levamos em conta os argumentos de K. Schick, que, ao radicalizar 0 gesto tedrico de Skinner (quando este tiltimo afirma que “a mudanga resultante do reforco é uma ‘mudanga na probabilidade de ocorréncia de respostas que pertencem ao mesmo operante da resposta que foi reforcada”, conforme citado em Prado Jr. 2000, p. 75), passa a subordinar a unidade da classe operante as contingéncias de reforgo (no contingencies of 1 reinforcement, no operants): JA que qualquer resposta pertence a miiltiplos operantes ao mesmo tempo ¢ jé que o reforgamento de uma resposta reforca muitos operantes a que pertence essa resposta, € incorreto dizer que o reforco de uma resposta aumenta a forca do operante a que ela pertence. Dever-se-ia dizer, ao contrério, que o reforcamento de uma resposta dé forca a alguns operantes aos quais ela pertence. (Schick conforme citado por Prado Jr., 2000, p. 77) Se a participagao simultanea de uma mesma resposta em varios operantes sé pode ser determinada, caso a caso, pela fungao que cada uma de suas propriedades fisicas pode desempenhar, a previsibilidade comportamental nao acabaria por tornar-se rigorosamente invidvel? Assim, a delimitacdo estrita de uma classe operante, isto é, sua fixa¢do em uma assintota (enquanto padrao estavel passivel de identificacao por parte do analista comportamental), parece inevitavelmente deixar escapar 0 feixe total de possibilidades funcionais a que pode pertencer cada resposta em sua singularidade empirica. Matheus Hidalgo 43 Se bem compreendemos a proposta de Lopes ¢ Laurenti, a temporalidade intrinseca ao processo, que faz apelo ao efeito do efeito, deveria, no limite, acabar por esfumar a rigorosa légica das classes. Nesse caso, contudo, a histéria da constituicéo da classe comportamental, que se supée selecionada “por arranjos acidentais de varidveis tio imprevistveis quanto os arranjos acidentais de moléculas ou genes” (Skinner, 1968, p. 180 conforme citado por Lopes & Laurenti, 2014, p. 102), passa a depender integralmente da construcao de uma narrativa, pragmatica embora perfeitamente especulativa, sem a qual seria impossivel “identificar padrées deacao estaveis no fluxo comportamental”. Tal narrativa, vale destacar, tanto impée, retrospectivamente, a procura pelas supostas condicGes efetivas de selecao (especificacao de tipo de reforgadores, esquemas de reforco, relacdes de controle de estimulos, etc.), quanto incita, prospectivamente, a uma certa antevisao hipotética (indissoci4vel do objetivo declarado, do qual Skinner, ao que nos parece, também no abre mio, de previsdo e controle do comportamento — p. ex., Skinner, 1953/1996, 1976) sobre o desenrolar dessa histéria. Resta saber, entdo, se o comportamento, assim considerado, no “se transforma em reflexao objetiva ou, em linguagem mais comum, ayessa ao espirito da Andlise Experimental do Comportamento, em prdxis” (Prado Jr., 2000, p. 78). Estaria a psicologia behaviotista radical, quando se trata de salvaguardar sua contemporaneidade a luz do darwinismo e do pragmatismo, ironicamente fadada a desembocar numa espécie de comportamentalismo reflexivo? Caso contrario, como dissolver as tensdes inerentes as dificuldades de circunscrigao da unidade minima de andlise do comportamento operante, que acabamos de apontar? 3 Uma Questao de “Principio” Nesse tépico pretendo abordar o tema da universalidade no contexto da obra skinneriana. De acordo com Lopes e Laurenti (2014), (..) © modelo de selecéo pelas consequéncias nfo sublinha um monismo metodolégico, mas nem por 144 tica a0 Comportamentaismo isso implica em ecletismo, Embora cada ciéncia tenha métodos ¢ contingéncias especificas que explicam seus fendmenos de interesse, 0 principio gue coordena as produgbes de conhecimento em cada ciéncia ¢ 0 de variagido e selegéo pelas consequéncias. Em outras palavras, é esse principio comum que articula e da sentido as partes. (p. 110, grifos meus) Pergunto-me, diante dessa afirmacao, até que ponto nao estarfamos, aqui, diante da boa e velha universalidade, travestida em principio coordenador da pluralidade metodolégica das diversas ciéncias € seus respectivos objetos? Isso, é claro, apenas na exata medida em que tais objetos estejam, mais ou menos, implicados na expressio das “relacdes inextrincaveis entre homem e mundo” (p. 91), ou seja, na medida em que digam respeito, em suma, ao “campo comportamental” (p. 91). Mas, afinal, por que estariamos? E importante notat, em primeiro lugar: no sentido a que nos referimos aqui, universalidade nao diz respeito, é claro, a “uma referéncia imutével, necessdria, que permite uma classificacéo universal e padronizada de casos particulares” (p. 121). ‘Trata-se, antes, do seguinte: a narrativa explicativa skinneriana, tal como os autores a concebem, est bem ou mal comprometida com a suposi¢ao tacita segundo a qual tudo aquilo que diz respeito ao campo comportamental (tudo aquilo, enfim, que esta inserido em suas fronteiras, e ainda que estas tiltimas sejam movedicas, e nao fixas) est4 igualmente comprometido com o principio de seleco pelas consequéncias, de acordo com o modelo explicativo de Skinner, adaptado do modelo de Darwin para o estudo do comportamento humano nos ambitos da ontogénese e da cultura. Seria preciso, entao, rastrear e explicitar os desdobramentos epistémicos e ontolégicos da tese tacita de Skinner segundo a qual o principio indutivo da variacao e selecdo pelas consequéncias é universalmente aplicdvel 4 totalidade dos seres vivos (ou, em boa légica indutivista, ao menos a totalidade dos que foram estudados até hoje), assim como, de acordo com Lopes e Laurenti, 4 totalidade das demais ciéncias cujo objeto de estudo esteja relacionado ao comportamento humano. Matheus Hidalgo “5 Passemos, agora, ao tiltimo tépico da nossa critica 2 interpretacao de Lopes e Laurenti acerca do comportamentalismo skinneriano. 4 A Probabilidade Como Variével Dependente: Determinismo ou Indeterminismo? Pode-se alegar, com justeza, a impossibilidade de tratar de maneira aprofundada todos os temas abordados em um artigo que levanta questoes de grande complexidade conceitual. Fica dificil, contudo, concordar Prontamente com a conclusao de nossos interlocutores, para quem “parece claro que a ontologia apresentada opée-se frontalmente a essa concep¢io determinista” (Lopes & Laurenti, 2014, p- 98). Vejamos, em todo caso, de que concep¢4o determinista se trata. Embora reconhegam que n’o é sem controvérsias que o determinismo pode ser “entendido como a concep¢ao que defende relagées comportamentais completamente regulares e previstveis, 0 que torna sua descri¢ao probabilistica sinénimo de ignorancia da totalidade das causas envolvidas” (grifo dos autores), ao defini-lo desse modo, a probabilidade torna-se, ex abrupto, peremptoriamente identificada ao indeterminismo. Tal identificagio, por sua vez, leva os autores 2 seguinte definicio estratégica do “probabilismo ou indeterminismo: ndo se trata de auséncia de regularidade ou da completa relacdo de independéncia entre eventos, trata-se tao somente da tese de que a regularidade nao ¢ absoluta; de que pode haver, em algum momento, “algum jogo frouxo das partes entre si (James, 1907/1988, p. 73), ou algum desvio, mesmo que infinitesimal, das leis gerais (Peirce, 1892/1992)”. Ora, assim definidos, os termos antitéticos (determinismo”, identificado ao mecanicismo, de um lado, e, de outro, “indeterminismo”, vinculado ao probabilismo), fica facil recusar a hipétese, logicamente plausivel, de que se trata, sim, de determinismo, mas, também (e por que nao?) de probabilidade: a probabilidade — ao menos no caso de Skinner — nao poderia ser interpretada como uma das possiveis expressdes do determinismo, mais frouxo do que aquele defendido por se sMportamentalismo, 46 Gai Laplace, determinismo probabilista? A mesma questéo pode ser colocada da seguinte maneira: a introdug4o, por parte de Skinner, do conceito de aleatoriedade das varidveis ambientais determinantes do comportamento humano (contextos antecedentes e consequéncias contingentes) e o recurso a regularidade estatistica da frequéncia de respostas (enquanto medida indireta da probabilidade de ocorréncia de uma determinada classe de respostas operantes), de acordo com o modelo das contingéncias triplices, implica, necessariamente, a tese do indeterminismo ontolégico? Probabilismo implica indeterminismo?” Além de jamais ter se pronunciado a favor da tese segundo a qual o comportamento operante diz respeito a um fendmeno caprichoso ou indeterminado, Skinner, ao que nos parece, nao deixa espaco algum para outro tipo de determinacao que o das histérias genética e ambiental (Skinner, 1953/1996, 1976, 1981). Desse modo, a afirmagao do papel ativo das variagdes randémicas, do acaso, parece estar bem longe de implicar na tese radical do indeterminismo ontolégico, & luz do qual o desenrolar do comportamento seria invariavelmente nebuloso ou imprevistvel. Parece-nos que Skinner jamais admitiria a tese segundo a qual eventuais possibilidades de realizagdo futura de um comportamento qualquer nada devem, no sentido probabilistico, ao passado das relagées organismo-ambiente. Se nao fosse assim, seria dificil compreender a estratégia skinneriana no sentido de encorajar novas pesquisas que permitam esclarecer 0 papel das “circunstancias antecedentes” das quais o comportamento supostamente é ® Podemos, por exemplo, pensar num contraexemplo ao argumento que afirma a plena identificacao entre probabilismo ¢ indeterminismo: o célculo de probabilidades, enquanto importante ramo da matemitica, fornece preciosos instrumentos priticos e tedricos para a claboragao, por parte do cientista natural, de leis inexordveis da natureza, denominadas leis dos grandes ntimeros (que podem ser expressas por meio de gréficos, curvas, médias, relages entre fungées ¢ varidveis). Nesses casos, o estudo das relagées probabilisticas nao rompe efetivamente com todos os aspectos do determinism. Com efeito, quando se trata de estudar fenémenos complexos, hé muitos ramos das ciéncias naturais (como no estudo dos gases pela quimica: 0 nimero de moléculas é quase ilimitado ¢ as relagoes de causa efeito s6 podem ser estabelecidas estatisticamente), em que 0 uso da nocio de probabilidade nao implica abandono do determinismo: apenas o sentide mais forte da nogio de causali- dade é deixado de lado — ou seja: a nogio de frequéncia estatistica visa a minimizar, senao eliminar, 0 papel do acaso ¢ do indeterminismo, tanto no plano da explicagéo quanto no do ser ao qual ela remete. Matheus Hidalgo wy “fungao”, sendo, portanto, impossivel elaborar uma narrativa plausivel de historicidade do comportamento. Os autores quase admitem essa possibilidade interpretativa, quando afirmam que as relagées comportamentais s4o “irremediavelmente probabilisticas” (Lopes & Laurenti, 2014, p. 96, grifos meus), mas, a mew ver, se nao o fazem, é porque teriam que rever o pressuposto segundo o qual o Behaviorismo Radical deve ser interpretado como uma das versées do indeterminismo ontolégico, 4 la James, Peirce e Pepper (embora nao encontremos, em Skinner, nada que se assemelhe explicitamente a teoria peirceana do acaso — “chance”). Além disso, mesmo 0 reconhecimento explicito, por parte de Skinner, da natureza inverificdvel da tese do determinismo (Skinner, 1976, p- 189) nao o impediu, contudo, o de afirmar sua crenga no determinismo: Para termos uma ciéncia da psicologia, devemos adotar © postulado fundamental que 0 comportamento é um dado sujeito a leis, que ele no € perturbado pelos atos caprichosos de qualquer agente livre — em outras 30 Sobre esse t6pico, vale notar, ainda, que 0 recurso ao contextualismo funcional, de Pe- pper (1970), como uma das variantes do pragmatismo, embora se aproxime da abordagem skinneriana, no sentido preciso de que também se afaste do modelo mecAnico-causal de explicagio, impée a Lopes e Laurenti a dificuldade de lidar com 0 fato de que, na aborda- gem pepperiana, as relages comportamentais sao melhor compreendidas como fungées no sentido matematico do termo (ver Fryling & Hayes, 2011), em que nogées como est{mulo ¢ ambiente nfo correspondem a certos eventos (consequéncias reforcadoras, por exemplo) ocorrendo antes ou apés um ponto de referéncia (uma resposta, como instancia de uma classe operante, por exemplo), ou sendo internos ou externos a esse ponto. Ao trabalhar apenas com coordenadas matemiéticas abstratas, 0 contextualismo funcional se afasta de- cisivamente de qualquer tipo de linearidade empirica (entre um “antes” ¢ um “depois” por exemplo), enquanto que o estudo da regularidade do fluxo comportamental, tal come Skinner 0 concebe, jé implica numa determinada sequéncia temporal, ainda que dotada de eficdcia retroativa ou circular (pois se pretende légica ¢ empirica), entre os trés termes da continggncia triplice - a situagao antecedente, as respostas e as consequéncias reforcadoras ou punitivas. Além disso, vale lembrar, Skinner é um forte critico do uso de modelos esta tisticos e matemiticos como recurso vélido a andlise e interpretagio de comportamentos de organismos individuais. E certo, entretanto, que os autores nao identificaram, pomes pox ponto, a teoria do comportamento operante, de Skinner, ao contextualisme famciomal, de Pepper. Esse exemplo ilustra bem, contudo, 0 modo como os atttores, quando se crass de defender a tese da contemporaneidade de Skinner, por vezes recorrem, a stiragte. 2 pers pectivas bastante distintas — e, se no necessariamente incompativeis emtie si, tampouco necessariamente compativeis — 0 que faz com que os problemas se 48 Gritica a0 Comportamentalisme palavras, que cle é completamente determinado. (Skinner conforme citado por Laurenti, 2008, pp. 171-172) De um lado, Skinner deixa em suspenso a questao filosdfica acerca do estatuto ontoldgico do determinismo, e, de outro, recorre a uma explicacao do tipo probabilista ao defender sua epistemologia claramente determinista (no sentido do paradigma selecionista darwiniano). Nesse sentido, para Skinner, a “selegdo por consequéncias surgiu enquanto um modo causal” de explicagéo do comportamento (Skinner, 1981, p. 501). Assim, embora a oposigéo absoluta necessidade-contingéncia, bem como a noc&o de causalidade, no sentido mecanicista da expressao, sejam perfeitamente dispensdveis quando as relacées comportamentais passam a ser encaradas a luz da nogdo skinneriana de contingéncia de reforco (nela inclusa o duplo aspecto da variacdo randémica dos aspectos dinamicos das relagées comportamentais e da selecdo pelas consequéncias), o determinismo, no sentido mais amplo de busca por regularidades funcionais entre o comportamento € 0 meio (fisico, histérico, biolégico e social), é renovado, e nao abandonado, no contexto da explicacao analitico comportamental. Do contrdrio, como seria possfvel ao cientista empirico, descrente no determinismo (mecanicista ou probabilista), escrutinar a presenca de eventuais “relagGes insuspeitadas de controle entre o comportamento ¢ 0 ambiente”? Como deverfamos interpretar a afirmacao segundo a qual as “contingéncias de reforgo levam vantagem em relacdo 4 previsdo ¢ controle” (Skinner, 1976, p. 44)? Teria Skinner rompido com 0 ideal cientifico de previsio e controle do comportamento? O alegado indeterminismo ontolégico dos tiltimos textos de Skinner, supostamente patrocinado pelos princfpios de variagao e selecdo, pragmaticamente interpretados, nada nos esclarece sobre esse assunto. 5 Consideragédes Fnais Ha muitos outros aspetos interessantes do texto de Lopes e Laurenti (2014) que ainda gostariamos de comentar. Devemos, Matheus Hidalgo 149 entretanto, nos restringir 4s observacées que ja fizemos, e terminar com uma tltima questéo: ser que a estratégia de mostrar a atualidade do pensamento de Skinner, por meio da alegada adesao skinneriana a algumas das teses centrais do pragmatismo e do darwinismo, nos permite, com efeito, superar as tenses que atravessam a obra de Skinner, de ponta a ponta, ¢ que procuramos mostrar ao longo da nossa breve critica ao comportamentalismo? Ou, de outro lado, sera que nao estariamos, na expressdo de Flanagan (2010, p. 43) diante de mais “um exemplo do método pragméatico em acio — 0 método de tentar manter em jogo, de uma s6 vez, todas as coisas em que precisamos acreditar”? Referéncias Flanagan, O. (2010). A consciéncia vista por um pragmatista. In R. Putnan (Ed.), William James. Sao Paulo: Ideias & Letras. Fryling, M., 8& Hayes, L. J. (2011). The concept of function in the analysis of behavior. Revista Mexicana de Andlisis de la Conducta, 37, \1- 20. 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