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Compartilhamento proibido

MULHERES EM REVISTA

A DISCURSIVIZAÇÃO DA MULHER
NA REVISTA JORNAL DAS MOÇAS
DA DÉCADA DE 1950

Lei de direitos autorais


Compartilhamento proibido

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Lei de direitos autorais
Compartilhamento
Palmira Heine Alvarez
proibido

MULHERES EM REVISTA

A DISCURSIVIZAÇÃO DA MULHER
NA REVISTA JORNAL DAS MOÇAS
DA DÉCADA DE 1950

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Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Copyright © da autora

Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode


ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em
conta os direitos da autora.

Palmira Heine Alvarez

Mulheres em Revista: A discursivização da mulher na


revista Jornal das Moças da década de 1950. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2020.
148 p.
ISBN 978-65-86101-51-5
1.Mulher. 2.Discurso. 3.Revista.
I. Autora. II. Título.
CDD – 410

Capa: Colorbrand Design


Diagramação: Marisol Barenco de Mello
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de
Moura Brito

Conselho Científico da Pedro & João Editores:


Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/
Brasil); Hélio Márcio Pajeú (UFPE/Brasil); Maria Isabel de Moura
(UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa
(UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil); Ana Cláudia
Bortolozzi Maia (UNESP/Bauru); Mariangela Lima de Almeida
(UFES/Brasil); José Kuiava (UNIOESTE/Brasil); Marisol Barenco
de Mello (UFF/Brasil); Camila Caracelli Scherma (UFFS/Brasil);
Luís Fernando Soares Zuin (Usp/Brasil).

Pedro & João Editores


www.pedroejoaoeditores.com.br
13568-878 - São Carlos – SP
2020

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Esse livro é resultado de um projeto de pesquisa


desenvolvido com apoio da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado da Bahia-FAPESB, instituição para a
qual eu presto meus sinceros agradecimentos pelo
trabalho de excelência no fomento a pesquisadores
baianos.

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PRIMEIRAS PALAVRAS

As reflexões aqui apontadas são fruto de uma


pesquisa realizada com o apoio financeiro da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), no
âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisa em Análise de
Discurso (GEPEAD) na Universidade Estadual de Feira
de Santana. Durante mais de dois anos, recolhemos
exemplares da revista feminina Jornal das Moças,
periódico de muita relevância que circulou no Brasil por
mais de cinquenta anos. Tal revista, direcionada ao
público feminino, intitulava-se como “a revista feita para
a mulher no lar e na sociedade”, colocando-se, portanto,
como um veículo direcionado ao público feminino no lar
e fora dele.
O período escolhido para a realização do trabalho
foi a década de 1950. Nessa época, no cenário mundial,
as ideias de Simone de Beauvoir a partir da obra “O
segundo sexo” começavam a ser expostas,
proporcionando reflexões sobre a condição feminina.
Segundo a autora,

a humanidade é masculina, e o homem define a


mulher não em si, mas relativamente a ele: ela
não é considerada um ser autônomo. […] ela não
é, senão o que o homem decide que seja. […] A
mulher determina-se e diferencia-se em relação
ao homem e não este em relação a ela: a fêmea é
o inessencial perante o essencial. O homem é o
Sujeito, o Absoluto, ela é o Outro. (BEAUVOIR,
2016, p. 13)

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Assim, segundo a autora, é pelo inessencial que a
mulher foi construída historicamente, como “o outro”
do homem. No Brasil, a década de 1950 foi um período
de muito crescimento econômico com ampliação de
indústrias e crescimento de cidades, o que ocasionava
um processo ainda bastante incipiente de saída das
mulheres do ambiente doméstico para a ocupação de
algumas vagas (consideradas adequadas ao público
feminino, tais como secretárias, telefonistas, costureiras,
professoras etc.) no mercado de trabalho.
Nos âmbitos econômico e sociocultural, a década de
1950 fez parte do período conhecido como Anos
Dourados, ocorrido após a Segunda Guerra Mundial,
que possibilitou crescimento econômico e modificações
culturais importantes. No Brasil, essa época foi uma
transição entre a Era Vargas e a ditadura militar,
implantada no início da década de 1960.

Do ponto de vista econômico, mesmo com a


retração ocorrida na dinâmica de substituição
das importações, nos anos 1950, o Brasil ingressa
numa fase de desenvolvimento mais acelerado. A
urbanização e industrialização avançam com
vigor. A produção industrial diversifica-se.
Inúmeras transformações ocorrem na
infraestrutura e no cotidiano das cidades
(principalmente no estado de São Paulo). Os
grandes centros atraem um grande número de
migrantes, aumentando as diferenças regionais.
(PINSKY, 2014, p. 16)

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Apesar de todo o desenvolvimento econômico e
estrutural dos grandes centros urbanos, os papéis de
gênero se mantiveram inalterados, no que diz respeito à
inserção social de homens e mulheres, à moral sexual e
às relações de poder exercidas pelo homem no âmbito
familiar.
Nesse período, a imprensa também cresce e o
surgimento da TV vai revolucionar as relações de
comunicação de massa. A mídia vai se modernizando e
passa a representar um grande acervo de informações
para os brasileiros.
Diante desse cenário, passam a circular com maior
relevância, na imprensa jornalística, revistas
direcionadas ao público feminino, destinadas a serem
veículos conselheiros das moças e mulheres, difundindo
elementos da moral e dos costumes dominantes do
período. É nesse contexto que a revista Jornal das Moças
passa a figurar como importante veículo de informação
para mulheres.
As reflexões apontadas aqui têm como base a
análise desse veículo de comunicação a partir do viés da
Análise de Discurso (AD) de linha francesa, de vertente
pecheutiana, deslocando a ideia de que as revistas
serviam apenas para informar, mas defendendo a tese de
que essas revistas eram, antes de tudo, elementos de
discurso e, como tais, faziam circular diversos sentidos
sobre a mulher em diferentes aspectos: o corpo feminino,
o cabelo, o trabalho, a maternidade, o casamento, a
beleza, as prendas domésticas, dentre outros. Voltamos,
então, nosso olhar para essas revistas a fim de perceber
e analisar os modos de construção dessa imagem

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feminina sob um recorte da teoria pecheutiana,
problematizando a noção que permeava a ideia de
feminilidade no período analisado o qual, apesar de
todo o desenvolvimento econômico, ainda mantinha as
relações entre gêneros com base no poder patriarcal.

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JORNAL DAS MOÇAS E A IMPRENSA FEMININA
NO BRASIL

O periódico Jornal das Moças, que se direcionava às


mulheres brasileiras tratando de temas que eram
considerados de interesse feminino, circulou como parte
do que se convencionou chamar de imprensa feminina.
A imprensa chegou ao Brasil após a vinda da
família real, no século XIX. Nesse período já se
encontravam os primeiros registros do que se
denominou “imprensa feminina”, ou seja, as produções
impressas dirigidas a mulheres, mas nem sempre
escritas por elas, uma vez que a maioria dos jornais e das
revistas dirigidas ao público feminino era escrita por
homens. A imprensa feminina surgiu como forma de
fornecer às mulheres e moças informações sobre o que,
no período, chamava-se universo feminino, ou seja,
temas perenes ligados aos papéis sociais das mulheres.
Segundo Luca (2013), a imprensa feminina:

Trata-se de um tipo de produção jornalística que


não é movida pela necessidade de registrar o fato
novidadeiro do dia anterior, matéria prima por
excelência do jornalismo. Pelo contrário, a
imprensa feminina orbita em torno de temas
mais perenes, não submetidos à pertinência do
tempo curto do acontecimento. Moda, beleza,
casa, culinária, ou o cuidado com os filhos
comportam uma abordagem circular, ligada à
natureza das estações do ano, afinal, receitas,
recomendações e conselhos indicados para o

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inverno ou verão podem ser retomados em anos
subsequentes, desde que revestidos do ar de
atualidade e apresentados como a última palavra
no assunto (LUCA, 2013, p. 448).

A imprensa direcionada às mulheres nasceu a partir


de uma necessidade de que elas, que aos poucos
passavam a sair do lar e da vida doméstica, pudessem
ter um veículo de informação e entretenimento, mas
antes de tudo, para que elas pudessem ter um veículo
capaz de auxiliar na difusão dos valores sociais
imputados ao sexo feminino. Dessa maneira, a imprensa
feminina surge no Brasil no século XIX, impulsionada
pelas transformações sociais do período que incluíam
uma maior urbanização, a ampliação de um sistema
ferroviário, o crescimento das cidades, o que fez com que
houvesse a migração de população da área rural para a
urbana etc.
Outro objetivo da imprensa feminina é o de tratar
de temas que eram, segundo o que se dizia na época, de
“interesse da mulher” (como se apenas determinados
temas fossem do interesse feminino). Assim, elementos
como cuidado com filhos, manutenção do casamento,
conselhos de produtos de beleza, propagandas de
eletrodomésticos, contos e piadas deram o tom aos
jornais e revistas direcionados ao público feminino.
Nesse ponto, cabe ressaltar que apesar de temas como
esses serem revestidos de uma aparente neutralidade,
eles são elemento de discurso e, como tais, são
constituídos pela ideologia que indica o que é ou não ser
mulher.

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Desse modo, as representações sobre o que é ser
mulher na sociedade da época circulam através dessas
materialidades revestidas de uma neutralidade sem
falhas, mostrando ao sujeito as verdades construídas
pelas revistas. Voltaremos a esse ponto em seções
posteriores deste livro.
Retomando a historicidade da imprensa feminina,
no Brasil, o primeiro veículo destinado especificamente
para mulheres foi o “Espelho diamantino”, publicado
em 1827, com edição quinzenal, no Rio de Janeiro. O
jornal que era destinado às senhoras, conforme descrição
que consta na capa, considera a mulher como
companheira do homem, sendo que ela deve cuidar do
marido, dando-lhe conselhos, sendo a única responsável
pela manutenção da harmonia da família. A seguir, o
trecho de uma seção denominada “Prospecto da edição
número 1 de 1827” desse jornal:

A influência das mulheres sobre as vontades, as


acções e a felicidade dos homens abrange todos
os momentos e as circunstâncias de existência e
quanto mais adiantada a civilsação, tanto mais
influente se mostra este innato poder, de forma
que a companheira deste homem inda selvagem,
cultiva as terras, carrega os fardos, orna e tinge o
corpo do consorte, não deixando de lhe dar
conselhos para a guerra, para a paz e para a caça,
a esposa do homem civilisado, não satisfeita com
o tomar sobre si todo o peso do governo interior
da família, [...] está também pronta a repartir os
cuidados do marido involvido nos lances, e
tormentas dos negócios privados ou públicos, a
sugerir-lhes expedientes mais delicados […] (O

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ESPELHO DIAMANTINO, 1827, n. 1, grafia
original)

Entre 1830 e 1831, alguns jornais surgiram também


direcionados à mulher. Podemos citar, dentre eles “O
manual das brasileiras” (1830 em São Paulo), “O
despertador das brasileiras” (1830 em Salvador). Em
1831, o periódico “O Espelho das brasileiras" veiculava
assuntos de moda, culinária e literatura. Já em 1839,
começa a circular o “Correio das Modas”, que saía aos
sábados e se autointitulava “jornal crítico e literário das
modas, bailes, theatros, etc”. Esse periódico circulou
durante dois anos. É interessante observar como no
título desses periódicos o tom pedagógico já era
colocado: manual, espelho, despertador, dizem respeito
à ideia de que era preciso despertar e ensinar as
mulheres sobre a manutenção ou modificação de sua
condição feminina. Assim “eles se colocam acima das
mulheres e como guias responsáveis pelas mudanças no
seu status quo” (DUARTE, 2017, p.21)
Os periódicos destinados ao público feminino se
sucederam durante o século XIX, sempre trazendo
temáticas de literatura, culinária, belas artes, teatro,
moda e conselhos comportamentais para mulheres e
moças. No entanto, encontravam-se dentre os veículos
dirigidos às mulheres aqueles que reivindicavam um
outro lugar para o sexo feminino, mas esses eram em
menor número. Segundo Buitoni,

no século XIX encontramos duas direções bem


definidas na imprensa feminina: a tradicional,
que não permite a liberdade de ação fora do lar e

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que engrandece as virtudes domésticas e
qualidades femininas e a progressista que
defende o direito das mulheres, dando grande
ênfase à educação. (BUITONI, 2009, p. 47)

A imprensa progressista, influenciada pelas ideias


libertárias foi também denominada de imprensa
feminista. Esta última, “destinada também ao mesmo
público, se diferenciava por protestar contra a opressão
e discriminação e exigir a ampliação de direitos civis e
políticos.” (Duarte, 2017, p.14).
Assim, veículos como o periódico “A família”,
editado por Josephina Alvares de Azevedo, que circulou
durante um ano entre 1888 e 1889, defendiam o direito à
educação para mulheres, numa época na qual ainda se
duvidava da capacidade intelectual feminina. No jornal
“O quinze de novembro do sexo feminino”, de 1890,
pode-se encontrar um trecho bastante significativo de
defesa do direito à instrução da mulher, o que
representava para o período uma ideia bastante
progressiva e libertadora. Escrito por uma mulher, um
trecho do artigo “Igualdade de direitos” já reivindicava
a emancipação feminina através do estudo, como se
pode notar a seguir:

Não queremos representar na sociedade o papel


do adorno dos palácios dos senhores do sexo
forte, não devemos continuar na semi-escravidão
em que jazemos, vendo-nos mutiladas em nossa
personalidade, em seus códigos ou leis por eles
legisladas, tal como a da outrora escravidão, sem
que pudesse ser pela escrava protestada. Não nos

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perturba a negativa. Seu sofisma é tal que nos
tratando de rainhas só nos dão o cetro da
cozinha, da máquina de procriação, etc., etc. Não
nos consideram senão como objeto de
imprescindível necessidade! Somos a flor de
Cactos e nada mais. A emancipação da mulher
pelo estudo, é o facho luminoso que pode
dissipar-lhe as trevas pela verdade em que deve
viver, levar-la-há ao templo augusto da ciência,
de bem viver na sociedade civilizadora.” (O
QUINZE DE NOVEMBRO DO SEXO
FEMININO, 1890, p. 1-2)

Assim, a educação feminina seria a libertação da


mulher das teias do sistema que a subjugava, fazendo
com que ela pudesse sair da situação de mera
coadjuvante, e a defesa dessas ideias em veículos
midiáticos do século XIX já indica uma luta feminina por
espaço e liberdade, coisas que foram importantes para as
conquistas obtidas em décadas posteriores.
No século XX, a imprensa brasileira deu um grande
salto, entrando na era capitalista e originando grandes
empresas. Nesse contexto, as revistas ilustradas
ganharam popularidade e, com o aumento da população
e o crescimento das cidades, aumentou-se também o
público consumidor das mesmas. É nesse período que a
fotografia vai passar a ser utilizada como aliada da
imprensa jornalística e, aos poucos, vai ganhando mais
espaço que a xilogravura, fazendo com que as revistas
ilustradas passem a ganhar bastante espaço.
Nesse período, outros veículos midiáticos
direcionados às mulheres também reivindicavam

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direitos para o público feminino. Em São Paulo, em 1914,
surge a “Revista Feminina”, dirigida por mulheres e
fundada por Virgínia de Sousa Salles, que reivindicava
através de suas páginas o direito ao voto feminino. A
revista apresentava seções de poesia, contos,
informações gerais, moda, artes e outros temas
considerados como apropriados ao “universo
feminino”, mas também é possível ler nas páginas da
revista temas até então silenciados nos veículos
direcionados ao público feminino. Na edição de
fevereiro de 1918, há um artigo intitulado “A mulher
brasileira na guerra” assinado por Anna Rita Malheiros,
em que se fala sobre mulheres que se tornam voluntárias
para cuidarem de homens que vão à guerra, de outras
que se alistam na Cruz Vermelha etc. O artigo estava se
referindo à Primeira Guerra Mundial, na qual a
imprensa brasileira estava, em sua maioria, a favor do
bloco da Tríplice Entente (Inglaterra, EUA e França) à
qual o Brasil deu apoio. Tema como esse geralmente não
era abordado nas revistas femininas e o fato de aparecer
nessa indica uma necessidade de se falar sobre assuntos
diversos nos veículos direcionados a esse público.
Diversos outros periódicos surgiram no século XX
dentro do que se denominava de imprensa feminina,
dentre eles, destacamos o Jornal das Moças, veículo
sobre o qual nos debruçamos para a realização da
pesquisa que culminou com esse livro.

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1.1
O JORNAL DAS MOÇAS

Publicada entre 1914 e 1965, a revista Jornal das


Moças tinha periodicidade semanal e, como uma revista
tradicional, buscava manter os padrões da sociedade
patriarcal, sem questioná-los. Jornal das Moças se
autointitulava: “A revista da mulher no lar e na
sociedade” e era um periódico ilustrado que foi
publicado pela Editora Jornal das Moças Ltda. do Rio de
Janeiro e se mantinha, basicamente, através de
assinaturas mensais e vendas avulsas nas bancas do
Brasil.
O Jornal das Moças não estava situado dentro do
que se chamou de imprensa feminina progressista, ao
contrário, buscava continuar a discutir em suas páginas
temáticas como moda, casamento, marido, culinária,
cuidado com os filhos, cuidado com a estética, cuidado
com o lar e educação doméstica, além de trazer anúncios
publicitários de produtos estéticos e para o lar, somados
a contos, piadas e moldes para vestidos que constituíam
a base da revista, o que indica o silenciamento de outros
temas como questões sobre política, economia, dentre
outros que não eram abordados. Tal periódico destacava
em suas páginas a função da mulher no lar, colocando-a
dentro da esfera doméstica com naturalidade, inserindo-
se em um discurso patriarcal que interditava, através do
silêncio local, ou seja, “o silêncio da censura”, outros
dizeres sobre a participação da mulher na sociedade.
Sobre essa questão do silêncio, tanto como o não dizer,

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como sob a forma de interdição, retomo a seguir as ideias
de Eni Orlandi (2007) que nos interessam aqui:
A primeira forma do silêncio, apontada por Orlandi
(2007), é o silêncio fundador, aquele que, antes da
linguagem, permite que a palavra surja. Assim, o
silêncio é o real da significação. Segundo essa ideia, só
pode haver linguagem e, consequentemente, sentido,
porque há silêncio, e é neste sentido que o silêncio é
fundador. Ainda segundo Orlandi (2007), o silêncio
fundador é necessário, indispensável para que os
sentidos se construam. Orlandi (2007, p. 45) destaca que
“[...] O silêncio não é um acidente que intervém
ocasionalmente: ele é necessário à significação”. Isso
implica pensar que sem silêncio não seria possível haver
linguagem e nem comunicação, pois o silêncio é
constitutivo da linguagem e atravessa as palavras. Sem
silêncio, portanto, todos os sentidos estariam sendo
ditos, instaurando o impossível na linguagem. Essa é a
primeira forma na qual o silêncio se apresenta.
Além do silêncio fundador existe o que a autora
chama de políticas de silenciamento, que constitui o ato
de pôr em silêncio, colocar em silêncio, seja por uma
interdição ou por um não dizer.

As políticas de silenciamento, são, portanto, um


movimento do sujeito que, ao se inserir na
atividade discursiva, seleciona, a partir de seu
posicionamento ideológico o que diz,
diferentemente do silêncio fundador, que existe
antes mesmo da linguagem, porque para se dizer
é preciso que antes haja silêncio. As políticas de
silenciamento, por sua vez, se dividem em:

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silêncio constitutivo e silêncio local. O silêncio
constitutivo indica que quando se diz algo, é
preciso silenciar outra coisa, ainda que tal
movimento não seja consciente. Para dizer, é
preciso não dizer. Se se diz que lugar de mulher
é na casa, não se diz, por exemplo, que o lugar da
mulher pode ser na política, na vida social,
pública, nas Universidades, dentre outras coisas.
(ALVAREZ; AZEVEDO, 2018, p. 134)

O silêncio constitutivo relaciona-se, então, com a


posição que o sujeito ocupa na atividade discursiva, com
sua posição ideológica, pois ele diz algo para não dizer
outra coisa, ele fala x para silenciar y. Assim, o silêncio
constitutivo atravessa a seleção de temas da revista
Jornal das Moças, que, inserida no quadro da imprensa
feminina, deixa de dizer sobre política, sobre questões
sociais e econômicas para dizer sobre moda, culinária,
casamento, filhos etc.
O outro elemento constitutivo das políticas de
silenciamento é o silêncio local, que é o silêncio da
censura, da interdição, do não poder dizer, seja pela
proibição explícita, seja pela impossibilidade de se dizer
algo numa dada conjuntura. Na revista Jornal das
Moças, não se podia dizer que o lugar da mulher era fora
da esfera doméstica. Não se podia dizer isso, pois,
inserida numa formação discursiva patriarcal, numa
ideologia que concebia a diferença intelectual entre
homens e mulheres, não era possível que tais assuntos
fossem abordados numa revista feminina.

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A interdição de sentidos é um modo de controle
dos sujeitos, é uma forma de controle da
polissemia, para que os sentidos não se abram
para a polissemia, sendo apenas autorizados
sentidos que se adequam a determinada
formação discursiva ou a dada ideologia. Os
veículos midiáticos trabalham muito com o
silêncio local. Neles, há um controle do que pode
ou não ser dito: publica-se nos jornais, por
exemplo, algo que pode ser veiculado naquele
meio, há uma seleção prévia de informações que
poderão ali ser veiculadas em detrimento de
outras que ali não poderiam aparecer. A
interdição nem sempre se dá pela violência, mas
ela é imposta pelo que é ou não permitido ao
sujeito dizer. (ALVAREZ; AZEVEDO, 2008, p.
135)

Para a Análise de Discurso de vertente pecheutiana,


na qual ancoramos as reflexões aqui realizadas, a
ideologia é uma prática de linguagem que se constitui no
discurso. É no e pelo discurso que ela se materializa,
gerando sentidos diversos. Pêcheux retomou as ideias
do pensador francês Louis Althusser (1985), segundo o
qual a ideologia é constitutiva do sujeito e este não pode
a ela ser alheio. Isto significa dizer que não há sujeito fora
da ideologia, sendo essa entendida como uma prática
que se materializa de diversos modos. Para Althusser
(1985), a ideologia é a representação da relação
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de
existência, portanto, para se constituir como sujeito, o
indivíduo é interpelado ideologicamente, chamado para

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Lei de direitos autorais
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se tornar sujeito. Essa interpelação ocorre na e pela
língua, materializando-se na forma de discurso.
Voltando à revista Jornal das Moças, ressalto que a
mesma fazia circular sentidos de que a função principal
da mulher era a vida doméstica. Isso era feito de modo a
colocar o trabalho doméstico como algo nobre e
importante, como função natural e a única possível de
ser exercida com méritos pela mulher. O exemplo a
seguir, retirado da revista Jornal das Moças de 1950,
indica o papel atribuído à mulher pela revista:

Exemplo 1

Fonte: Jornal das Moças (26 jan. 1950)

O exemplo 1 se trata de um trecho de um artigo


escrito para a coluna Evangelho das Mães. Nela havia
artigos que indicavam como uma mãe deveria educar
seus filhos, com conselhos e ideias sobre o que fazer em
situações diversas que envolviam a maternidade. No
artigo, o autor critica o fato de mães da classe alta ou
classe média dividirem os trabalhos domésticos e
cuidados com os filhos com outras mulheres,
funcionárias domésticas ou amas de leite, como
denomina o autor. Um outro trecho do artigo diz: “Entre

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a obrigação doméstica de um lado e o dever materno de
outro; a pobre procura resolver o problema com suas
próprias mãos, a remediada e a rica procuram auxílio
estranho, e, vai daí, não hesitam em tomar uma ama seca
ou, mesmo, uma ama de leite” (JORNAL DAS MOÇAS,
1950). E as aconselha a não fazerem isto, já que a
responsabilidade de cuidado do lar e dos filhos cabe
exclusivamente à mãe. Neste ponto, o autor não toca na
responsabilidade paterna de criação e educação dos
filhos. De acordo com essa ideia, toda a carga do
trabalho doméstico e cuidado com a prole cabe
irrestritamente à mulher, sendo o homem silenciado
desse processo. O artigo finaliza com o trecho em
destaque: “a grande, a elevada, a importante função da
mulher na sociedade humana não é ser doutora,
telegrafista, boticária, comerciária, jornalista, etc. é ser
mãe e ser esposa.” (JORNAL DAS MOÇAS, 1950)
Neste sentido, destacamos o papel da revista em ser
o periódico que procurava manter os moldes da
sociedade patriarcal, a partir da difusão de ideias sobre
como a mulher deveria agir em sociedade.

1.2
CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E IMPRENSA
FEMININA

O período selecionado para a realização da


pesquisa que culminou com este livro foi a década de
1950, período em que houve muitas transformações na
economia e na sociedade brasileiras. Do ponto de vista

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econômico, ocorre um avanço acelerado pela produção
industrial que se diversificava. Sendo assim,

tanto a indústria pesada quanto a de bens de


consumo, inclusive a automobilística, ganham
força no período de 1956 a 1962. Novas empresas
são implantadas, determinando novos setores de
produção e serviços, um maior número de
pequenas indústrias e o incremento da
infraestrutura (especialmente energia elétrica,
transporte rodoviário e comunicações). (PINSKY,
2014, p. 17)

Todas essas transformações têm reflexo na vida


feminina. Enquanto algumas funções ocupadas por
mulheres no setor secundário eram extintas devido à
automatização da produção nas fábricas, outras funções,
que viriam a ser ocupadas por elas no setor terciário de
serviços, surgiam. Assim, as mulheres de classe média
baixa passaram a trabalhar no setor de serviços a fim de
complementarem a renda familiar. Essa saída da mulher
para o trabalho apareceu algumas vezes, mas ainda
muito poucas, nas revistas pesquisadas, o que indica
que, apesar das transformações sociais indicarem novos
ares para o trabalho feminino fora do lar, a revista Jornal
das Moças não incorporava tais mudanças de maneira
efetiva. Segundo Pinsky (2014, p. 17-18), “as concepções
arraigadas de que as mulheres devem dedicar-se
preferencialmente ao lar e aos filhos, fazendo com que o
trabalho da mulher continue cercado de preconceitos e
sendo visto como subsidiário ao do chefe de família”
continuam sendo mantidas na grande maioria dos

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Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
veículos midiáticos e mesmo nos veículos da
denominada imprensa feminina. No campo cultural,
grandes mudanças também ocorreram com a
transmissão televisiva, o que ocasionou a expansão das
comunicações no Brasil. A industrialização também
atingiu a imprensa; os jornais e revistas passaram a
entrar na fase de produção em larga escala e a imprensa
feminina começou também a ter uma tiragem crescente
para atender ao público de mulheres consumidoras. Um
exemplo desse crescimento é a Revista Capricho,
lançada em 1952, com uma periodicidade quinzenal, e
que

do número nove em diante passou a vender mais


de 100 mil exemplares, atingindo, no ano
seguinte 240 mil. No final da década a venda
chegava a 500 mil exemplares […]. Esses
resultados são expressivos, considerando-se que
na década anterior nenhuma revista feminina
ultrapassava 50 mil exemplares. (BUITONI, 2009,
p. 98)

Assim, as revistas femininas foram se inserindo na


industrialização, o que se reflete na diagramação e na
qualidade das ilustrações e do projeto gráfico. A
modernização das revistas, principalmente das
ilustradas, saltava aos olhos pelas cores e pela qualidade
gráfica que começavam a imprimir uma nova cara para
a imprensa feminina no Brasil.

A imprensa moderniza-se, principalmente no


que diz respeito às revistas ilustradas. O vínculo

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Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
entre imprensa feminina e o consumo se
intensifica acompanhando o crescimento da
indústria de bens ligados à mulher e à casa e o
aumento do poder aquisitivo da população.
(PINSKY, 2014, p. 20)

1.3
DE QUE LUGAR FALAMOS?

Para falarmos sobre as revistas femininas,


poderíamos partir de diversas teorias para embasar
nossas reflexões. No entanto, tomaremos, como já temos
afirmado até aqui, o arcabouço teórico da Análise de
Discurso de vertente pecheutiana, a fim de pensar a
revista como uma prática, antes de tudo, discursiva. É
nessa perspectiva que iremos abordar agora alguns dos
principais pontos da Análise de Discurso de vertente
pecheutiana, também chamada de Análise Materialista
de Discurso.
A Análise de Discurso, surgida na década de 1960
do século XX, tendo como principal fundador o filósofo
francês Michel Pêcheux, indica-nos que os sentidos não
estão e nem derivam da língua compreendida como um
sistema formal de ordem sintática e fonológica, mas
incidem sobre a língua concebida como sistema
relativamente autônomo, como base sobre a qual se
desenham os processos discursivos. Para chegar a essa
afirmação, Pêcheux questionou a linguística da época,
perguntando sobre o sujeito e o sentido, elementos que
não eram levados em conta nas teorias formais, e sobre
o aspecto ideológico que incidia sobre a língua,
concebida como estrutura histórico-social.

26
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Segundo o que nos diz Pêcheux (2009, p. 82), “todo
sistema linguístico, enquanto conjunto de estruturas
fonológicas, morfológicas e sintáticas é dotado de uma
autonomia relativa”. Com essa afirmação, o filósofo
critica a ideia de autonomia total da língua, postulada
pelas teorias formais como gerativismo e estruturalismo,
lançando a luz para o fato de que, mesmo sendo uma
estrutura, a língua não é completamente autônoma, mas
é constituída intrinsecamente por elementos sócio-
históricos. Assim, nas revistas analisadas, é possível
perceber a marca da historicidade que as constitui e que
estão nas propagandas, nas piadas, nos contos etc.
É sobre a base linguística que se desenvolvem os
processos discursivos e cabe ao analista de discurso
observar justamente o processo discursivo, pois este é
que determina os sentidos que estão em jogo na
enunciação, numa relação entre historicidade e sistema
relativamente autônomo na língua. Por isso, é preciso
fazer um movimento de deslocamento, considerando
que a língua não é puro e simples “instrumento de
comunicação”, ela não existe fora do sujeito que a utiliza
quando quer para comunicar algo, a língua é
constitutiva da subjetividade. Nesse sentido, Pêcheux
afirma que a noção de língua como instrumento de
comunicação deve ser deslocada e tomada em sentido
figurado, na medida em que “esse instrumento permite,
ao mesmo tempo, a comunicação e a não-comunicação”
(PÊCHEUX, 2009, p. 82). Nesse ponto, o pensador se
refere ao fato de que língua comunica, mas também
silencia, de que a língua gera sentidos não transparentes,

27
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
de que ela se situa entre o dizer e o não dizer, pois o
silêncio é constitutivo da linguagem.
É através do discurso que poderemos observar os
modos de funcionamento da ideologia na construção
dos sentidos, pois não há sentido que não seja moldado
ideologicamente e não há sujeito sem ideologia.
Segundo Pêcheux e Fuchs (1997, p. 166), devemos
conceber o discurso como “um dos aspectos materiais do
que chamamos de materialidade ideológica”. Desse
modo, não há discurso sem ideologia.
O funcionamento da ideologia ocorre a partir do
interpelar indivíduo em sujeito, de modo a “dissimular
sua própria existência no interior mesmo de seu
funcionamento, produzindo um tecido de evidências
subjetivas, devendo entender-se esse último adjetivo não
como que afetam o sujeito, mas nas quais se constitui o
sujeito”. (PÊCHEUX, 2009, p. 139). Assim, pode-se
afirmar a partir da citação anterior que a ideologia
dissimula sua existência, dando a impressão ao sujeito
de que ele é origem do dizer e de que os sentidos são
únicos.
Ao interpelar o indivíduo em sujeito e produzir o
efeito de evidência e unidade, que o coloca como origem
do dizer, a ideologia naturaliza os sentidos,
apresentando-os como se eles fossem transparentes,
como se fossem óbvios e únicos para o sujeito,
escondendo o fato de que, na verdade, os sentidos são
históricos, atravessados pela memória e que não há
originalidade na produção de sentidos, já que os sujeitos
não controlam o dizer. A partir do interdiscurso, que
Pêcheux (2009) denomina de “todo complexo com

28
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
dominante”, assevera-se que os sentidos possuem uma
dimensão sóciohistórica, uma vez que são constituídos
por já-ditos, por enunciados outros que são retomados
da e na história. Aliás, é realmente essa a função da
ideologia: dissimular a polissemia linguística,
apresentando como estabilizados e únicos, sentidos
desde sempre históricos e sociais.
A evidência do sujeito como fonte do dizer (a ideia
de que ele é a origem do dizer) é acompanhada pela
evidência do sentido, como se não houvesse opacidade
na língua. É a ideologia que confere sentido às palavras
e disso pode-se inferir que as palavras não têm um
sentido anterior ao sujeito, e que sujeito e sentido se
constituem simultaneamente. Não há um sentido fixo, o
sentido é sempre constituído a partir do modo como o
sujeito interpreta determinada palavra, sob o viés de seu
posicionamento ideológico. Assim, segundo o que nos
diz Pêcheux (2009, p. 146-147), “as palavras, expressões,
proposições etc, mudam de sentido segundo as posições
sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer
dizer que elas adquirem seus sentidos em referência a
estas posições.”
Para falar de ideologia, Pêcheux (2009) retoma
algumas ideias de Althusser (1985) no que diz respeito à
interpelação do indivíduo em sujeito. Segundo
Althusser (1985), a ideologia é constitutiva do sujeito e
esse não pode dela escapar. Não há sujeito que esteja fora
dela, sendo essa entendida como uma prática que se
materializa de diversos modos. Althusser (1985) indica
que a ideologia é a representação da relação imaginária
dos indivíduos com suas condições reais de existência. É

29
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
nessa relação imaginária que os sujeitos se constituem.
Para Althusser (1985), não se pode compreender a
ideologia como um simples conjunto abstrato de ideias,
ao contrário, toda ideologia tem uma existência material
na medida em que os sujeitos moldam suas práticas
sociais a partir das ideologias que lhes interpelam.
Assim, a ideologia se materializa principalmente a partir
dos Aparelhos Ideológicos do Estado, instituições que
têm como função reproduzir e difundir as ideias
dominantes, objetivando a manutenção dessas classes
no poder.
Em consonância com as ideias althusserianas, nas
duas primeiras fases da AD, Pêcheux afirma que o
sujeito é, desde sempre, interpelado pela ideologia e
constituído pela posição que ocupa no discurso. Aliás, é
porque é interpelado que é sempre assujeitado, condição
sine qua non para se constituir como sujeito. Em relação a
essa questão, afirma-se:

A modalidade particular do funcionamento da


instância ideológica quanto à reprodução das
relações de produção consiste no que se
convencionou chamar interpelação, ou o
assujeitamento do sujeito como sujeito
ideológico, de tal modo que cada um seja
conduzido, sem se dar conta, e tendo a impressão
de estar exercendo sua vontade, a ocupar o seu
lugar em uma ou outra das duas classes sociais
antagônicas do modo de produção (ou naquela
categoria, camada ou fração de classes ligada a
uma delas). (PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p. 165-
166)

30
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Assim, é pela ideologia que o sujeito se torna
sujeito, a partir da identificação ou da desidentificação
com uma dada formação discursiva que está inserida
numa formação ideológica.
Interessa, neste livro, observar o modo de
construção de sentido sobre a mulher na revista Jornal
das Moças da década de 1950. A constituição desse
sentido passa, como já se sabe pela posição que o sujeito
enunciador, neste caso, a revista e as materialidades
analisadas ocupam.
Não é possível compreender os sentidos se não se
compreende as condições de produção que envolvem a
geração dos mesmos. Assim, a noção de condições de
produção do discurso indica-nos que, além de toda a
dimensão simbólica que envolve os processos
discursivos, encontra-se neles uma dimensão histórica.
A dimensão histórica não é e nem deve ser entendida
como um apêndice que, somado à língua, gera o
discurso, mas como elemento constitutivo da língua e,
consequentemente, do discurso. Segundo Pêcheux
(1997), um discurso é sempre pronunciado a partir de
condições de produção dadas e, desse modo, mobiliza
sentidos que se ligam à dimensão histórica. Não se trata
aqui de compreender condições de produção apenas
como o contexto imediato no qual se desenham os
processos discursivos. As condições de produção
envolvem outros elementos, como os lugares ocupados
pelos sujeitos numa formação social, a representação
desses lugares (que ocorre no âmbito da atividade

31
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
discursiva), a imagem que se faz do referente, a
memória, dentre outros.
Outro elemento bastante relevante para a Análise
de Discurso é a questão da memória, essa compreendida
não como uma memória cognitiva ou como a capacidade
de memorizar coisas, mas como memória sócio-histórica
que constitui os sujeitos e os sentidos.
Diferentemente da memória cognitiva ou pessoal, a
memória discursiva não pertence a um sujeito. Ela é uma
memória histórica e coletiva consubstanciada nas
palavras e nos enunciados. Assim, quando se fala de
memória em Análise de Discurso, não se faz referência à
memória no sentido psicológico do dizer, mas fala-se da
memória histórica, daquela memória que constitui
inevitavelmente palavras e enunciados. De acordo com
o que nos diz Pêcheux (1999), a “memória deve ser
entendida aqui não no sentido diretamente psicologista
da “memória individual”, mas nos sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social
inscrita em práticas, e da memória construída do
historiador.” (PÊCHEUX, 1999, p. 50) Então é essa
memória que interessa à Análise de Discurso: a memória
histórica, não individual, não pessoal, mas a memória
inscrita em práticas que desde sempre são sócio-
históricas.
É, portanto, através da memória que se pode
compreender que os sentidos são construídos numa
dimensão histórica, não sendo então originais e
carregando outros sentidos, os já-ditos. Dessa forma, a
memória é a base para restabelecer os implícitos, e é
também o que indica que o discurso tem uma dimensão

32
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
heterogênea, pois sempre há outros dizeres que
constituem o dito.

A memória seria aquilo que, face a um texto que


surge como acontecimento a ler, vem restabelecer
os implícitos‟ (quer dizer, mais tecnicamente, os
pré-construídos, elementos citados e relatados,
discursos-transversos, etc.) de que sua leitura
necessita: a condição do legível em relação ao
próprio legível. (PÊCHEUX, 1999, p. 52)

A memória é também o lugar de embates entre os


sentidos. É pela paráfrase (pela repetição e retomada)
que a memória se materializa, mas é também pela
paráfrase, pelas falhas e buracos gerados pelo dizer
parafrástico, que o sentido deriva e pode ser outro.
Assim, sob o mesmo dizer parafrástico, abre-se então o
jogo da metáfora, o dizer de outro modo “[...] Uma
espécie de repetição vertical, em que a própria memória
esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em
paráfrase”. (PÊCHEUX, 1999, p. 53) Daí, a polissemia. É,
portanto, a partir da opacidade da língua, pela
possibilidade de o dizer se deslocar, que a memória se
atualiza. Desse modo, não se pode concebê-la como algo
homogêneo e estável. Ela é necessariamente um espaço
de divisão movente, modifica-se a partir das brechas do
sentido. A memória pode transformar-se envolvendo
retomadas, réplicas, divisões e disjunções. Conforme
afirma Pêcheux,

a certeza que aparece, em todo caso, no fim desse


debate é que uma memória não poderia ser

33
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
concebida como uma esfera plena, cujas bordas
seriam transcendentais históricos e cujo
conteúdo seria um sentido homogêneo,
acumulado ao modo de um reservatório: é
necessariamente um espaço móvel de divisões,
de disjunções, de deslocamentos e de retomadas,
de conflitos de regularização... Um espaço de
desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-
discursos. (PÊCHEUX, 1999, p. 56)

O interdiscurso se diferencia da memória segundo


Indursky (2009) porque, enquanto esse abriga todo o
conjunto de dizeres, de já-ditos (o todo complexo),
sendo, portanto, saturado, aquela relaciona-se com os
dizeres possíveis dentro de uma dada formação
discursiva e não se refere a todos os dizeres. Apoiando-
nos no próprio Michel Pêcheux, podemos definir o
interdiscurso dizendo que o discurso se constitui a partir
de já-ditos, que “isso fala” sempre “antes, em outro lugar
e independentemente”. Assim, um discurso sempre se
conjuga sobre outros discursos, sobre já-ditos e é aí que
está o funcionamento do interdiscurso.
Tendo ancorado nosso escopo teórico que permitirá
analisar as materialidades selecionadas, partiremos para
o próximo capítulo, em que procedemos algumas
análises de materialidades que constituem a
representação feminina na revista Jornal das Moças,
tendo como foco o discurso sobre ser mulher, o
atravessamento da ideologia na construção da
representação subjetiva da feminilidade, a historicidade,
os já-ditos, a memória e as condições de produção.

34
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
2
DISCURSO E PRÁTICAS DE FEMINILIDADE EM
JORNAL DAS MOÇAS

Como já foi afirmado anteriormente, as revistas


femininas, muito mais do que veículos de informação e
entretenimento, eram aliadas na educação de jovens,
ditando regras de comportamentos, de moda etc. À
mídia feminina era dado o papel principal de
manutenção de ideias que pudessem estabelecer bem a
separação de papéis de gênero, colocando as mulheres
no lar e os homens na esfera pública com naturalidade.
Essas ideias circulavam através de propagandas,
reportagens e entrevistas que valorizavam a mulher no
lar e evitavam a dispersão do sexo feminino em outras
esferas de poder, como a política, a vida pública, sendo
essas esferas, anteriormente citadas, reservadas ao
homem. Assim, a mídia funcionou como um elemento
capaz de difundir a ideologia patriarcal dominante,
elemento regulador do comportamento feminino,
inclusive da sexualidade, disseminando ideias sobre o
que era ser “moça de família” e “moça leviana”, a
primeira, sendo mulher para casar, a segunda, sendo
mulher para viver aventuras sexuais. A revista Jornal
das Moças, nesse escopo, aparece como elemento de
controle de comportamento e do corpo feminino. Por
muito tempo, o Jornal das Moças foi o semanário
feminino mais vendido no Brasil e influenciou o
comportamento de muitas mulheres dessa época,
normatizando-as, principalmente no que concerne ao
seu corpo (ao modo como deveriam se vestir, andar,

35
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
sentar) e ditando o que deveria ser ou não apropriado
para as moças (por exemplo, sobre como deveriam se
portar frente aos homens).
Segundo Gramsci (2011), a mídia aparece como
prática institucional que contribui para a manutenção da
hegemonia da classe dominante, a partir do controle da
opinião pública. Para esse pensador, a hegemonia é a
supremacia de um grupo social sobre outro, sendo tal
supremacia conquistada através do consentimento, da
imposição ou da concessão entre classes. Nesse caso, é
importante observar que a hegemonia nem sempre é
obtida a partir do uso explícito da força de uma classe
em relação à outra, mas pode ser obtida a partir do
consentimento das classes não hegemônicas que, ao não
perceberem a imposição da classe dominante e não
resistirem a ela, consentem na hegemonia. Tal
consentimento é uma espécie de aceitação das ideias
veiculadas pelas classes dominantes, da aceitação da
dominação, sem resistência. A mídia é, portanto, um
aparelho privado de hegemonia que busca servir aos
interesses da classe dominante, moldando a opinião
pública para que essa aceite as ideias da classe
hegemônica, sem questioná-las. Assim, a classe
dominante encontra na imprensa um meio de controlar
e moldar a opinião pública a partir de seus interesses,
garantindo a hegemonia de classe e o controle da classe
dominada.
Para Gramsci (2011), existe então uma tentativa de
estabelecimento da hegemonia a partir do controle da
opinião pública e, nesse caso, os meios de comunicação
servem como instrumentos que moldam a opinião

36
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
pública, portanto, controlá-los é exercer a hegemonia
sobre as classes dominadas.

[...] A opinião pública é o conteúdo político da


vontade política pública, que poderia ser
discordante. Essa é a razão pela qual existe a luta
pelo monopólio dos órgãos de opinião pública:
jornais, partidos, parlamento, de modo a que
uma única força modele a opinião e desse modo
a vontade política nacional, dispersando os
desacordos numa poeira individual e
desorganizada. (GRAMSCI, 2011, p. 415)

Desse modo, o controle da mídia indica o controle


da opinião pública e, por isso, a mídia é um importante
elemento de poder, havendo lutas pelo controle dos
aparelhos midiáticos. As revistas, os jornais e o rádio
funcionam como elementos de manutenção dessa
hegemonia.
Por outro lado, interessa-nos, para as reflexões
apontadas aqui, a noção de Aparelhos Ideológicos de
Estado para pensar a mídia também como prática
ideológica. É nesse cenário em que Jornal das Moças se
insere como líder das revistas semanais, difundindo
ideologias sobre ser mulher, ser moça, ser mãe e esposa.
Ao longo da década de 1950, o referido semanário
carioca era distribuído nas bancas de todo o Brasil, sendo
reconhecido devido a sua alta popularidade, o que o
levava, dessa forma, a ocupar o importante papel de
prática ideológica hegemônica da época.

37
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
2.1
O DISCURSO DA BELEZA

A publicidade da indústria da beleza,


historicamente, teve como alvo a mulher. A ideia de que
a mulher tem que ser bonita deriva de uma construção
social patriarcal em que ela é educada para servir ao
homem (seja como objeto de desejo, seja como objeto de
submissão), diante disso, é levada a fazer do seu corpo,
de sua aparência um elemento essencial para atenção do
sexo oposto. Enquanto esperava-se que o homem
demonstrasse qualidades como inteligência e razão, da
mulher esperava-se beleza, corpo ideal, cabelos bonitos
e pele bem cuidada. Tais elementos não são aleatórios,
mas ligam-se aos modos de construção das ideias de
feminilidade e masculinidade que atravessam as
sociedades e a história.
Para ser bonita, a mulher precisava estar ciente das
novidades em relação aos produtos que fossem capazes
de conferir beleza e jovialidade ao seu corpo e à sua pele.
Assim, a beleza passa a ser um elemento que possibilita
destaque, diferenciação entre uma mulher e outra. A
indústria de cosméticos utiliza dessa necessidade de
diferenciação para construir as ideias de felicidade e
alegria relacionadas à aparência física. Do mesmo modo,
a ideia de relação entre beleza e limpeza era colocada
pelas revistas que traziam propagandas estreladas por
diversos artistas que indicavam que, para uma mulher
ser bela e arranjar um marido, era necessário ser limpa e
cheirosa.

38
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Para ser considerada bela e arrumar um marido,
era preciso ser limpa, cheirosa, prestimosa, e
ainda conhecedora das novidades disponíveis no
mercado dos produtos de higiene. Os sabonetes
coloridos das marcas Lifeboy, Lever, Palmolive e
Gessy foram inúmeras vezes ilustrados pelas
revistas das décadas de 1940 e 1950. Artistas de
sucesso apareciam na propaganda confirmando
a ideia de que a limpeza corporal era a “principal
madrinha dos casamentos duradouros”.
(SANT’ANNA, 2014, p. 90)

A ideia de que a limpeza do corpo feminino era


fundamental para que esse fosse considerado belo, era
bastante difundida no período e o discurso em relação
ao corpo da mulher retomava já-ditos sobre a impureza
desse a partir da esfera religiosa, quando a mulher era
considerada impura, por exemplo. Assim, para que um
casamento fosse duradouro ou que uma mulher solteira
atraísse um bom pretendente, era necessário que ela se
preocupasse com a limpeza de seu corpo e das partes
íntimas. Além disso, dentro do contexto de uma
sociedade com permanências das ideias patriarcais na
qual a mulher era levada a ser exclusivamente voltada
ao lar, ao marido e aos filhos, as características esperadas
para uma mulher eram beleza, docilidade, prendas etc.
O discurso da beleza, assim, está muito ligado à
mulher a partir de uma construção social marcada por
questões históricas sobre o que é ser mulher ou ser
homem na sociedade, levando-a a ocupar uma
determinada posição em relação à ideia de beleza. Os
conselhos de beleza eram passados para as mulheres

39
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
jovens e as mais velhas também eram incentivadas a se
manterem belas, sendo a beleza ligada à graciosidade,
numa construção discursiva do corpo. A beleza e a
jovialidade eram atributos dos mais importantes da
mulher e essa precisava se cuidar, consumindo os
produtos que conferissem leveza ao seu corpo e à sua
pele.

Os conselhos de beleza destinados aos “brotos”


realçavam a necessidade de manter-se delicada e
graciosa, ao passo que muitos contos e
fotonovelas ainda chamavam as moças de
pequenas. Assim, uma pequena era um brotinho
cujo encanto estava nas linhas de seu delicado
corpo, na cútis acetinada, na voz aveludada, nos
pés mimosos. (SANT’ANNA, 2014, p. 92)

Desde que nasce, a mulher é enfeitada com


babados, rendas e bordados e essa construção perdura
durante o tempo e é alimentada por pressões sociais para
que o sujeito se adéque a um padrão. Esses padrões, por
sua vez, são uma construção histórica, simbólica e
discursiva. O corpo belo é, antes de tudo, uma
construção discursiva marcada pela historicidade na
qual se inscreve o ideal de beleza feminino. Dentro desse
escopo, trago à tona alguns exemplos do modo como o
discurso da beleza incide sobre a mulher e requer do
corpo feminino um certo padrão: é preciso ter um
determinado tipo de pele, um determinado corpo, um
certo cabelo. É preciso consumir produtos que moldem
e modelem o corpo para torná-lo belo e desejado.

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Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Exemplo 2

Fonte: Jornal das Moças (jan. 1954)

O exemplo 2, colocado anteriormente, é um anúncio


publicitário de um creme para a pele. No trecho
destacado, há o funcionamento ideológico que confere à
mulher o lugar de preocupação com a estética. A mulher
deve ser bonita, tem a obrigação de sê-lo, não pode
escapar disso. Essa ideia da obrigação de ser bela pode
ser recuperada historicamente mesmo antes do período
analisado. Anúncios da década de 1930 em revistas
populares exaltavam a cirurgia plástica para a
restauração da beleza, conforme a citação a seguir em
relação a esse período:

Em outras publicações, havia a propaganda do


Doutor Pires que retirava pelos do rosto e

41
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
obtinha “resultados rápidos e perfeitos” com
cirurgias plásticas feitas por ele em seu
consultório. Segundo esses anúncios, as tristezas
resultantes da falta de beleza eram injustificáveis.
(SANT’ANNA, 2014, p. 87)

Dentro da formação discursiva patriarcal, esse


anúncio significa trazendo discursos que ligam mulher e
estética. O uso da palavra obrigação indica uma marca
ideológica que exclui da mulher a possibilidade de não
se preocupar com a beleza e retoma discursos e
construções históricas sobre a feminilidade: a mulher
tem que ser bonita porque, como objeto de desejo do
homem, precisa se adequar aos padrões. No período
analisado, a mulher tinha que ser bonita porque
precisava ter atributos para atrair um bom provedor e
um bom casamento. Assim, a ideologia funciona
indicando que a nenhuma mulher deve escapar do
cuidado com a estética e com a beleza e que o descuido
com esses elementos seria culpa da mulher que não
estaria cumprindo sua obrigação. O funcionamento do
silêncio constitutivo nesse trecho indica que a mulher
não deve se preocupar com outras questões que não
seriam relativas ao universo feminino, como trabalho e
questões intelectuais, o que poderia reduzir o interesse
feminino a elementos da estética. O silêncio constitutivo
funciona a partir do fato de que se diz algo para silenciar
outra coisa. Nesse caso, diz-se que a obrigação da
mulher é ser bonita, colocando-a obrigatoriamente no
campo da estética, para silenciar sua capacidade de
ocupar outras esferas da sociedade.

42
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Segundo o anúncio do Creme de alface brilhante, o
uso desse produto conferiria à pele feminina, viço,
embranquecimento e refrescância. Chama a atenção o
modo como a pele escura é discursivizada, sendo dita
como “horrivelmente escura”, ligando-a a uma pele
descuidada, que não respira e que, portanto, é feia. É
pela memória que o sentido de pele escura como algo
feio é acionado, indicando que a apele alva era o ideal de
beleza.

Exemplo 3

Fonte: Jornal das Moças (6 mai. 1954)

O rosto feminino seria, segundo anúncios da época,


o cartão de visitas da beleza, por isso precisaria ser muito
bem cuidado. O anúncio publicitário anterior, trazendo
elementos do discurso científico e recorrendo a termos
como glândulas sebáceas e células mortas, apresenta um
tom de autoridade na enunciação. Após apresentar os
motivos que interferem na renovação da cútis, o anúncio
mostra as vantagens de uso da “máscara de 1 minuto”

43
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
com o creme V Pond’s. O produto anunciado seria capaz
de resolver os problemas da imperfeição da pele, como
cor irregular, pequenas escamas, polos dilatados,
espinhas e cravos. No exemplo, a necessidade de
correção da pele para que essa fique livre da imperfeição
é colocada: era preciso corrigir, adequar a pele a um
determinado padrão considerado o perfeito.
A propaganda também cita os passos que devem
ser dados para que o produto anunciado aja
corretamente, corrigindo o que deveria a ser corrigido:
coloca-se o creme, deixa-se por um minuto e depois
remove-se, quando se observará a tonalidade
resplandecente da pele. O anúncio funciona a partir de
uma ideologia que considera o corpo como dotado de
imperfeições que precisam ser corrigidas, a partir da
imagem de uma mulher em frente ao espelho usando o
referido produto. Assim, de acordo com Gregolin (2007,
p. 10), a propaganda “age como um dispositivo de
etiquetagem e de disciplinamento do corpo social”.
Indica-se então uma normatização do corpo que,
simbolicamente, precisa estar dentro dos padrões da
perfeição e para que essa normatização seja bem
sucedida, é preciso um ritual que pressupõe formas de
uso do produto.

Segundo a imprensa, a mulher devia ampliar o


interesse masculino por seu corpo, nele incluindo
o zelo e a fidelidade à sua alma. O rosto
permanecia o ponto alto da beleza vendida na
propaganda, mas o corpo inteiro insinuava-se no
cinema e nas fotonovelas. (SANT’ANNA, 2014,
p. 93)

44
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
A ideia de beleza feminina estava ligada também à
necessidade de atração do homem e ao encontro de um
bom partido para casar, uma vez que, nas páginas da
revista, o casamento era colocado como o principal
destino da mulher: o de casar e estabelecer uma família.
Assim, ela devia estar bonita para atrair o olhar
masculino. Segundo Sant’anna (2014, p. 93) “uma parte
significativa dos cuidados com a beleza continuou,
contudo, focada na necessidade de levar as jovens ao
altar, encaminhando-se para a construção de um lar
feliz”.
O discurso publicitário oferece assim determinados
modelos de corpos, rostos e cabelos considerados os
ideais e induzem os sujeitos consumidores a imitarem e
reproduzirem os padrões ali difundidos. Conforme
Gregolin (2007, p. 10), “esses modelos de identidades são
socialmente úteis, pois estabelecem paradigmas,
estereótipos, maneiras de agir e pensar que
simbolicamente inserem o sujeito na ‘comunidade
imaginada’”.
Os modelos de identidade e de padrões de beleza
que indicam uma normatização do corpo feminino
revelam que a beleza é, antes de tudo, uma construção
histórico-discursiva que segue padrões dos diferentes
momentos históricos e que indicam perfis ideais para
cada período. Na década de 1950, encontramos alguns
anúncios incentivando o bronzeamento de pele, mas a
pele negra era negada e silenciada, além de ser, pelos
implícitos, considerada feia e indesejada. Repete-se na
revista a ideia de que a pele deve estar branca, clara, e

45
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
que a pele escura é feia e indesejada, como se vê no
anúncio a seguir:

Exemplo 4

Fonte: Jornal das Moças (5 set. 1957)

A noção de imperfeição na pele estava também


ligada à tonalidade da cútis. A pele ideal colocada no
anúncio é a fresca, clara e sedosa, o que indica um
determinado modelo de rosto, negando a pele negra. É
pelo não dito que se pode inferir que a pele escura era
indesejada e precisava ser corrigida, clareando-a, e isso
poderia ser feito com uso de produtos clareadores, que
serviriam para “suavizar” a tonalidade da epiderme.
Assim, a ideologia conduz os sujeitos a se identificarem
a uma comunidade imaginada na qual todas as
mulheres possuem pele sedosa, clara e fresca.

46
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Uma pele branca, delicada e fina, dentro da qual
se vê circular a vida, deve ser o ideal de toda a
mulher. Peles encardidas, conforme anunciava a
propaganda, precisariam ser regeneradas. E não
eram poucas as receitas dedicadas a esse
trabalho: a máscara feita de leite, clara de ovo,
suco de limão e óleo de amêndoas prometia bons
resultados, assim como a lavagem do rosto com
água que serviu para a lavagem do arroz branco.
O uso constante do talco também estava
associado ao valor da higiene e à capacidade de
esconder manchas e uma pele queimada pelo sol.
(SANT’ANNA, 2014, p. 76)

A pele negra era discursivizada como encardida,


necessitando, portanto, de limpeza e clareamento, o que
incluía um ritual de hábitos que envolviam o uso de
determinados cosméticos próprios para isso.
O item a seguir indica um outro aspecto
mencionado nas revistas de modo a construir uma
determinada representação da mulher: os cabelos.

2.1.1
O CABELO

Muito mais do que um elemento estético, o cabelo


enquanto elemento simbólico e discursivo é uma
importante marca identitária feminina. Também sobre
ele incidem padrões e pressões sociais que levam os
sujeitos a se inserirem em determinadas esferas de
sentidos sobre o cabelo bonito/feio, o cabelo
desejado/indesejado etc.

47
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Compartilhamento proibido
Desde o Egito antigo, em que o cabelo já era um
importante elemento estético, já havia práticas de
cuidado capilar, para mantê-lo com aspecto de beleza e
pureza
Como afirma Quintão (2013, p. 14) “os egípcios, por
exemplo, já mantinham hábitos estéticos que ainda hoje
vemos por todo o mundo: cortes, tranças, penteados,
tingimento e raspagem de cabelos, fazendo uso,
inclusive de adornos, apliques e perucas.” Assim, os
cabelos já simbolizavam beleza e pureza nesse período,
sem diferenciação entretanto entre cabelos de mulheres
e homens.
Para povos judaicos, os cabelos de homens e
mulheres eram simbolizados diferentemente. Os cabelos
masculinos eram símbolo de cuidado com o corpo, mas
os femininos eram símbolo de sedução sexual, tendo,
portanto, que ser cobertos, só sendo permitido mostrá-
los ao marido. Já se observa aí a relação de poder e
controle feminino estabelecida através do cabelo.
Na Europa entre os séculos XVII e XVIII, o cabelo
ornamentado era símbolo de poder e status social. Por
isso, a mulher desse período que pertencia a uma classe
social privilegiada ornamentava os cabelos com grandes
adereços, representando seu destaque na sociedade.
Tanto na África Ocidental quanto na Índia, os
cabelos representavam uma forma de linguagem e
comunicavam elementos religiosos, a origem social e até
mesmo, a região geográfica a qual o sujeito pertencia.
Segundo Quintão (2013, p. 16), “o cabelo, que
pertence ao mesmo tempo à vida pública e à privada, é
um dos traços fenotípicos mais marcantes e evidentes de

48
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
nossa ancestralidade, denotando não apenas nossa etnia
como também nosso status e pertencimento social.”
Para refletirmos sobre os discursos em relação ao
cabelo, lançamos mão de propagandas para shampoos
retiradas do Jornal das Moças da década de 1950.
Consideramos o cabelo como elemento no qual se
inscrevem ideologias e se constitui também a memória,
portanto, ele é muito mais do que um elemento estético,
é discurso.

Exemplo 5

Fonte: Jornal das Moças (18 ago. 1955)

49
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Exemplo 6

Fonte: Jornal das Moças (1951)

Os exemplos 5 e 6 são anúncios publicitários de


produtos para cuidados dos cabelos. O primeiro refere-
se a um shampoo que devia ser usado antes do
alisamento, indicando que o uso do produto confere ao
cabelo maciez, perfume e mantém o alisamento. Já o
segundo é um produto direcionado exclusivamente ao
alisamento do cabelo crespo. No exemplo 5, a ideologia
dominante condiciona o sujeito consumidor mulher a
fazer parte do grupo de mulheres com cabelos alisados
ou a serem alisados, fazendo ecoar os sentidos de que
apenas o cabelo liso é bonito, perfumado e macio e que

50
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
o uso do shampoo Sedalise vai conservar nos cabelos (já
previamente alisados com outros produtos químicos ou
com ferro quente) essas características. Assim, não basta
alisar o cabelo, mas na normatização da estética, na qual
se impõem estereótipos e padrões, é preciso usar um
produto que possa reforçar a ação do alisador,
garantindo que o cabelo continue liso. Desse modo, o
cabelo alisado passa a ser almejado pelo sujeito
consumidor do produto que precisa utilizá-lo para
adequar-se aos padrões do belo da sociedade da época.
Assim, a ideologia age sem que o sujeito se dê conta, de
modo a fazê-lo ocupar uma das posições sociais que o
permitem gerar sentido sobre o cabelo liso. A esse
último, ligam-se características como maciez, limpeza e
perfume, elementos que estão relacionados ao uso dos
referidos produtos. Ao mesmo tempo, pelo silêncio
local, o da interdição, é negado ao cabelo crespo
configurar no lugar estético da beleza, do macio, do
desejado. Ao contrário, esse cabelo deve ser corrigido,
consertado.
No exemplo 6, as marcas de construção do sentido
na língua aparecem desde a pergunta seguida pela
resposta que está acima da imagem do anúncio:
“Cabelos crespos? Use pasta Janax” (JORNAL DAS
MOÇAS, 1951). O fato dessa pergunta aparecer seguida
da resposta “use pasta Janax”, num anúncio publicitário
de produto para cabelo, já indica um modo de
funcionamento da ideologia, a partir do sentido de que,
sendo o cabelo crespo indesejável para o padrão de
beleza da época, era preciso corrigi-lo, alisá-lo,
domesticá-lo. A ideologia funciona também na

51
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Compartilhamento proibido
discursivização do cabelo crespo, por exemplo, no
adjetivo encarapinhado. Segundo o Dicionário Online
de Português (2020), encarapinhado é o “cabelo que é
muito crespo e enrolado; encarapelado”. O uso desse
adjetivo, no contexto desse texto publicitário, faz
referência aos cabelos muito crespos, que, segundo o
anúncio, mesmo esses, podem ser alisados com a pasta
Janax. No trecho: “dando-lhes um aspecto natural,
favorecendo os mais belos penteados e permitindo
lavar”, há o funcionamento do silêncio que constitui na
tensão entre dizer e não dizer os sentidos do cabelo
crespo. Esse não é visto como natural, não permite fazer
bonitos penteados e nem é fácil de lavar. Para não dizer
diretamente que o cabelo crespo é sujo e indesejado,
afirma-se, pelos não-ditos, que o cabelo crespo é artificial
e difícil de lavar.
Por fim, ainda no mesmo exemplo, o uso do termo
“indispensável”, no trecho “indispensável para a
mulher”, sugere que a mulher não pode se negar a alisar
o cabelo. Para o homem, o produto é excelente, mas para
a mulher, é indispensável. Tal enunciado retoma já-ditos
sobre a obrigação feminina de estar e ser bonita,
silenciando outros tipos de capacidades da mulher. Ela
tem a obrigação de ser bonita, de cuidar da sua beleza,
sem, no entanto, ter que se preocupar em ser culta ou
inteligente, características atribuídas na época ao
homem.
Desse modo ao estabelecer um padrão de cabelo
liso, nota-se que não havia nas revistas pesquisadas,
anúncios de produtos que pudessem agir para manter a
beleza dos cabelos crespos, mas sim produtos para

52
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
corrigi-los, alisá-los, fazendo com que os sujeitos
mulheres aderissem a um padrão de beleza imposto na
publicidade. O hábito de alisar cabelos era difundido
como a solução para correção do cabelo indesejado e
imperfeito.

2.2
DISCURSO DA MATERNIDADE

A questão da maternidade historicamente sempre


esteve relacionada a um determinismo biológico que
conduzia as mulheres a ocuparem invariavelmente o
lugar de mãe, não necessariamente pela sua vontade
pessoal (posto que algumas mulheres não queriam ter
filhos), mas pela obrigação de gerarem filhos, fato que as
confinou durante muitos anos dentro da esfera
doméstica, uma vez que se exigia das mães o cuidado
exclusivo com a prole. Assim, a presença da mulher
exclusivamente no espaço doméstico representava um
sistema de dominação e controle femininos, impedindo
que as mulheres ocupassem lugares públicos. Segundo
Scavone,

o lugar das mulheres na reprodução biológica —


gestação, parto, amamentação e consequentes
cuidados com as crianças — determinava a
ausência das mulheres no espaço público,
confinando-as ao espaço privado e à dominação
masculina. (SCAVONE, 2001, p. 138-139)

A definição da mulher pela maternidade, sob a ideia


do tota mulier in útero, colocava-a num ambiente

53
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
doméstico privado, impedindo-a de ocupar outros
espaços na sociedade. A luta pela pílula
anticoncepcional permitiria à mulher o controle de seu
corpo e possibilitaria a ela controlar o momento e o
desejo de ter ou não um filho, representando a liberdade
feminina, já que com o uso do anticoncepcional seria
possível à mulher trabalhar ou estudar, e programar
uma gestação caso fosse sua vontade. Segundo Scavone
(2001, p. 140), “a aquisição deste direito era considerada
fundamental para liberar as mulheres do lugar que
ocupavam na vida privada, portanto, condição de
liberdade e igualdade sociais.”
No período analisado (a década de 1950), a ideia de
que a mulher tinha obrigação de ser mãe era muito
comum. Essa ideia circulava em propagandas, em
editoriais, em cartas, piadas etc. Ser mãe era considerada
a principal função feminina, sendo todas as outras
funções que a mulher pudesse ocupar na sociedade
consideradas secundárias e desimportantes. O mesmo
não ocorria com o homem, para quem a esfera pública
era a mais importante e a que mais lhe conferiria
destaque.

A maternidade é sagrada missão feminina.


Praticamente indissociável da ideia de ser
mulher, ser mãe é quase uma obrigação social. O
mundo continua porque a mulher não perde seu
espírito de maternidade — assegura Jornal das
Moças. O elogio permanente da maternidade
perpassa toda a revista ao longo dos anos.
(PINSKY, 2014, p. 291)

54
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
A seguir, colocaremos exemplos que trazem
questões sobre a maternidade em reportagens e
propagandas retiradas do Jornal das Moças da década
de 1950.

Exemplo 7

Fonte: Jornal das Moças (12 set. 1957)

Esse texto, publicado na seção “Evangelho das


Mães”, do Jornal das Moças, dá-nos indícios de um
funcionamento da ideologia e da memória sobre o papel
da mulher na família e na sociedade. Essa coluna era
constituída por conselhos às mães, como indica o
próprio título que, pela memória sócio-histórica, retoma
o evangelho, remetendo, assim ao discurso religioso que

55
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
traz ensinamentos e diretrizes para seus seguidores.
Assim, no texto, a prática da maternidade é relacionada
a padecer no paraíso e não se desviar dos ensinamentos
sobre filhos, marido e casa. Há nessa retomada também
a ideia de santidade, pelo acionamento do interdiscurso
e da memória que constitui a ideia de maternidade como
sagrada, pois o evangelho indica algo sagrado e santo e
essa coluna faz ecoar também esses sentidos pelo
atravessamento do discurso religioso na constituição do
próprio título.
Observe-se o trecho:

Em épocas passadas o problema não existia. Vida


sem complicações, cada qual sabia qual era o seu
dever. Durante séculos, milhares e milhares de
mulheres cumpriam com sua missão de mãe,
deram à luz a seus filhos e criaram-nos com a
grandiosa simplicidade própria das mães. Mas os
tempos mudaram e novas coisas tumultuaram a
vida das pessoas. E eis que com as modernas
complicações de toda ordem surge para algumas
mães a teoria de que não é necessário que sejam
elas mesmas quem se encarreguem da criação de
seus bebês. (JORNAL DAS MOÇAS, 1957)

Nesse trecho, a mãe é vista como deslocada da sua


missão de vida, da função primordial da maternidade,
devido às mudanças ocorridas no mundo que já eram
sentidas na época da década de 1950, uma vez que,
segundo os costumes da época, acreditava-se que “pela
maternidade que a mulher realiza integralmente seu

56
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
destino fisiológico; é a maternidade sua vocação
‘natural’” (BEAUVOIR, 2009, p. 645).
O texto do exemplo condena as mulheres que
desejam ser mães, mas que precisem trabalhar ou
realizar atividades fora do lar, deixando seus filhos sob
os cuidados de outras pessoas enquanto estão fora: nesse
caso, a mulher seria a responsável pela desagregação da
família. A palavra usada para se referir às mudanças
sociais que representam uma ainda tímida saída da
mulher do ambiente doméstico para ocupar alguns
postos de trabalho é “complicações”, já indicando a
marca do funcionamento ideológico que reprova a
participação da mulher em atividades fora do lar,
levando-a a ocupar uma posição no discurso, a aderir à
ideia de que cabia exclusivamente a ela o cuidado com
os filhos, devendo, portanto, para realizar bem essa
tarefa, permanecer no lar. Desse modo, as mudanças
sociais, ainda que incipientes, são colocadas pela revista
como negativas e indesejáveis, pois afastam as mães do
que era considerado seu papel natural. O sujeito
enunciador, através da seleção de palavras, diz que a
saída da mulher do lar, seja para trabalhar, seja para
realizar outras atividades que a vida demanda, é um
problema, algo que traz transtornos para a família, que
desmorona a estrutura construída para ser imóvel, cada
um no seu lugar, cumprindo seu dever. Assim,
considera-se que cada um tem as tarefas pré-
determinadas: mulheres sempre em casa com os filhos e
ocupadas com as atividades domésticas e homens
provendo o sustento e desfrutando da vida pública.

57
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Esse discurso indica a atualização da memória que
já se fazia presente em séculos passados, quando a
mulher era proibida de sair de casa, exceto se
acompanhada, e é reflexo de uma época em que o
homem tinha plena liberdade na sociedade, como bem
afirma Pinsky:

A vocação prioritária para a maternidade e a vida


doméstica seriam marcas da feminilidade,
enquanto a iniciativa, a participação no mercado
de trabalho, a força e o espírito de aventura
definiriam a masculinidade. A mulher que não
seguisse seus caminhos estaria indo contra a
natureza, não poderia ser feliz ou fazer com que
outras pessoas fossem felizes. (PINSKY, 2008, p.
609)

Nesse texto aciona-se, pela memória, a ideia de que


cabe à mulher seguir seu caminho natural, que
historicamente seria o do casamento e da maternidade.
Há, portanto, a partir da coluna do exemplo anterior, o
desprezo e a negação da atividade fora do lar, realizada
pelas mães, evidenciando os problemas que o filho terá
se ficar longe delas. O trabalho feminino fora do lar é
colocado como algo secundário, sem muita importância
e necessidade, o ambiente doméstico depois da saída da
mãe para o trabalho é descrito como bagunçado,
inconveniente e indesejado.
No trecho “O amor das mães, feito de sacrifício e
de abnegação, é como um farol em tôdas as idades. E isto
têm que compreender as mães que preferem atender
suas obrigações sociais e a esbelteza de sua silhueta a

58
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
ocupar-se do filho”, a maternidade é construída como
uma abnegação, como algo que é dotado de uma aura de
santidade. Essa santidade é feita de sacrifícios e um
deles, seria, justamente o de abrir mão da atuação
feminina no espaço fora da casa, interditando também
sua vida pessoal, o cuidado de si e de sua saúde, a fim
de não ser considerada uma mãe desleixada. Para esse
veículo, constituía uma demonstração de falta de amor
pelo filho a atitude da mãe ao, por exemplo, participar
de eventos sociais em ambiente público fora do espaço
doméstico –, pois isso fazia com que se abrisse mão de
uma função a ela delegada, a qual é colocada pela revista
como obrigação exclusiva: a criação dos filhos. Isso,
portanto, retoma a ideia do determinismo biológico que
concebe a função biológica da maternidade como única
função importante da mulher. Há aí a retomada de já-
ditos sobre a mulher e a maternidade funcionando na
geração de sentidos. Era, portanto, desse modo que se
dava o controle da mulher, confinando-a ao espaço
doméstico, impedindo-a de ocupar outras esferas.

Muitos acreditavam que o trabalho da mulher


fora de casa destruiria a família, tornaria os laços
familiares mais frouxos e debilitaria a raça, pois
as crianças cresceriam mais soltas, sem a
constante vigilância das mães. As mulheres
deixariam de ser mães dedicadas e esposas
carinhosas, se trabalhassem fora do lar; além do
que um bom número delas deixaria de se
interessar pelo casamento e pela maternidade.
(RAGO, 2017, p. 585)

59
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Assim, o controle social de manutenção da mulher
no lar vai sendo difundido pela revista e vai opor dois
tipos de mães: a dedicada e a desleixada, sendo essa
última a que realiza trabalhos fora do ambiente
doméstico, deixando, portanto, de lado sua atividade
como mãe.

Exemplo 8

Fonte: Jornal das Moças (set. 1954)

Exemplo 9

60
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido

Fonte: Jornal das Moças (19 jan. 1950)

Ambos exemplos colocados anteriormente têm um


tom de conselho e indicam como uma mulher deve agir
ao se tornar mãe. O primeiro traz uma citação atribuída
a Goethe que exalta a condição de sacrifício materno,
colocando isso como algo positivo. A mãe verdadeira,
segundo o exemplo, é a que se habitua a não “achar
árduo nenhum caminho”, é aquela para quem “os dias
são como a noite” (JORNAL DAS MOÇAS, 1954). Nesses
trechos se recuperam o discurso do sacrifício materno,
da maternidade como algo santificado e que vale a pena
ser enfrentado. Esse discurso traz em si a ideia de que é
preciso que a mulher seja abnegada e santa para que seja
uma boa mãe. As que não são abnegadas o bastante para
serem consideradas boas mães, portanto, estão no grupo
oposto a esse e devem corrigir seu comportamento.
No outro exemplo, há o conselho às mães que
devem ensinar suas filhas desde pequenas a terem um
lar feliz. E, para isso, indicam que as mães não devem
falar para as filhas sobre os problemas do casamento,
nem devem falar mal sobre os homens. No final,
afirmam que “mulheres felizes que souberam levar uma

61
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
vida tranquila com seu marido, raramente abrem os
olhos das filhas” (JORNAL DAS MOÇAS, 1950). Esse
trecho indica, através dos implícitos, que os casamentos
infelizes são culpa das mulheres, uma vez que estas não
souberam levar uma vida tranquila com seus maridos e,
portanto, são infelizes, e por isso alertam suas filhas em
relação às mazelas do casamento. Esse discurso de culpa
feminina em relação ao fim de um casamento ou à
infelicidade deste também era muito comum no período
analisado. A infelicidade feminina no casamento é vista
como algo sem sentido e, portanto, condenável, pois “se
o marido cumpre suas funções, a esposa não tem do que
reclamar, a mulher tem uma tendência a ser
demasiadamente romântica; a mãe de família deve
sempre colocar o casamento e os filhos em primeiro
lugar”. (PINSKY, 2014, p. 264) A noção de subserviência
e submissão ao marido também eram patentes no
período analisado, tendo respaldo, inclusive, no Código
Civil brasileiro.

O casamento era "[...] instituição


matrimonializada, patrimonializada, patriarcal,
hierarquizada e heterossexual, onde a mulher era
considerada relativamente incapaz para exercer
certos atos da vida civil. Essa condição de
inferioridade perdurou até o advento do Estatuto
da Mulher Casada. Lei 4.121, de 27 de agosto de
1962, que revogou 14 artigos do Código Civil, os
quais mantinham a mulher em inexplicável
posição de dependência e inferioridade perante o
marido. (CANEZIN, 2004, p. 147)

62
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Exemplo 10

Fonte: Jornal das Moças (29 jun. 1950)

O exemplo anterior mostra a questão da culpa


feminina, mais uma vez com foco na culpa materna,
tema recorrente na revista. A maioria das dicas sobre
maternidade e mulher estavam situadas nas páginas do
caderno “Jornal da Mulher”, apêndice da revista Jornal
das Moças, dedicado às mulheres casadas, de modo que
as dicas de maternidade, moda, comportamento e
matrimônio são comuns nessa seção do periódico.
Assim, antes do casamento, da maternidade e do
aprendizado das prendas domésticas, a mulher é moça,
ela só é mulher ao se casar e após cumprir as condições
necessárias para se tornar uma dona de casa. Os
conselhos, como o apresentado no exemplo 10, trazem
conceitos que devem ser seguidos como regras para as
mulheres, geralmente abordando o trato do lar, a relação
matrimonial, o cuidado com os filhos, sempre de acordo
com a moral e com a construção feminina hegemônicas:
a mulher submissa ao marido, rainha do lar e única
responsabilizada pela educação — ou falta dela — dos
filhos.
No trecho “Não castiguemos uma criança sem que
saibamos primeiro quem é sua mãe; quase sempre é esta
a culpada das faltas cometidas por seu filho” (JORNAL
DAS MOÇAS, 1950), confirmamos que a ideologia
materializada no discurso atribui à mulher o cuidado e a

63
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
educação dos filhos, como se fosse tarefa natural e
exclusivamente feminina, mostrando que os sentidos
criados remetem aos já-ditos sobre a mulher, a qual
nasceu para ser mãe, que tem como missão divina
educar e que somente é mulher ao ser mãe. A
maternidade é aqui apresentada como condição
primordial para a realização da feminilidade, logo, ser
mulher é ser mãe. Além de responsabilizar a mulher pela
educação dos filhos, a revista coloca a responsabilidade
dos atos dos filhos exclusivamente para as mães,
culpabilizando a mulher pelas ações de seus filhos, já
que desde Eva, as mulheres tornaram-se consideradas
responsáveis pelos pecados da humanidade.
O termo utilizado, “culpada”, reproduz bem o
sentido de mulher construído pela revista, além de
naturalizar o fato de as mães, e não os pais ou ambos,
serem responsáveis pela educação de seus filhos,
responsabiliza as mães pelas ações dos filhos e apresenta
a suposta falha como delito, culpa, algo que atinge
violentamente a sociedade. Isso faz retomar pela
memória histórica, portanto, o discurso fundador
religioso que atribuiu às mulheres a culpa pelos pecados
que se abateram sobre a humanidade. O funcionamento
da memória, traz, então, pela paráfrase, o sentido de
culpa feminina pelo “pecado” da falta de educação dos
filhos.
Assim, a relação mulher e maternidade é vista como
algo santificado, que pressupõe sacrifícios, mas também
é atribuída à mãe a culpa exclusiva em relação ao mau
comportamento dos filhos, colocando-a como a vilã e
única responsável pela educação familiar.

64
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
2.3
DISCURSO SOBRE TRABALHO

A partir de meados da década de 1950, começam a


aparecer no Jornal das Moças reportagens sobre o
trabalho feminino fora de casa, mas ainda se mantinham
nas páginas das revistas os conselhos em relação ao
trabalho da mulher no lar. Assim, mesmo que de forma
ainda incipiente, era possível encontrar mulheres
trabalhando como secretárias, professoras, enfermeiras,
costureiras, dentre outras. No entanto, esses trabalhos
eram, em sua maioria, realizados por mulheres solteiras,
uma vez que, após o casamento, a tendência considerada
natural na época era as mulheres de classe média
deixarem seus trabalhos para se casarem e dedicarem-se
à vida doméstica: "porém, nos anos 1950, é bem mais
difícil encontrar mulheres casadas dessa classe social
trabalhando fora; é preferível que elas se dediquem
inteiramente ao lar e se preservem da rua”. (PINSKY,
2014, p. 178) Apesar de ocuparem algumas vagas de
trabalho quando solteiras, a carreira feminina era algo
secundário, eram raros os casos em que se viam
mulheres como chefes, principalmente porque elas não
eram aceitas ocupando posições de mando ou se
destacando frente aos homens.
Na reportagem a seguir, há a discussão sobre o
modo como os homens devem tratar as mulheres no
trabalho, o que já indica um estranhamento:

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Exemplo 11

Fonte: Jornal das Moças (8 jul. 1954)

A reportagem inicia-se com uma imagem em que se


retrata uma mulher num escritório, sentada do lado

66
Lei de direitos autorais
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oposto do homem, anotando coisas em um caderno. A
própria imagem já revela um funcionamento ideológico:
o homem, retratado naturalmente como chefe, e a
mulher, como auxiliar do homem, apesar de não estar
mais no ambiente doméstico.
Há duas perguntas que serão respondidas no
decorrer do texto: “Como devem ser tratadas as colegas
de trabalho? De igual para igual ou cerimoniosamente?”
Como já afirmamos antes, a ideologia se materializa no
discurso e o analista do discurso, partindo da superfície
linguística (sequências discursivas verbais e não
verbais), deve chegar ao processo discursivo,
observando, dentre outras coisas, o funcionamento da
ideologia. O fato de haver uma pergunta como essa
mostra, a partir de uma pista linguística (uma pergunta,
uma possível dúvida de como devem ser tratadas as
mulheres), que era incomum uma mulher dividir o
espaço do trabalho com um homem, principalmente
pela sua chegada recente ao mercado de trabalho. Isso
também fica visível no uso da expressão “quando” no
trecho “Quando as mulheres começaram a trabalhar em
escritórios, lojas e fábricas [...] surgiu um problema [...]”
(JORNAL DAS MOÇAS, 1954) A expressão “quando”
indica que a inserção da mulher no mercado de trabalho
ainda era novidade. A palavra “problema” indica o
funcionamento da ideologia que coloca a entrada da
mulher no mercado de trabalho como problemática para
as relações de coleguismo entre homens e mulheres.
Num outro trecho, há o seguinte enunciado:
“quando além de colegas, elas são chefes” (JORNAL
DAS MOÇAS, 1954), aparece mais uma vez a marca do

67
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
funcionamento ideológico. A língua como elemento de
materialização do discurso não é indiferente à ideologia.
Portanto, a partícula “além” indica não apenas a soma
de uma informação (é colega e é chefe), mas também um
estranhamento em relação à condição de destaque da
mulher que quebra uma barreira e vai além do esperado,
ocupando a posição de chefia.
A pergunta colocada como mote para a reportagem
é parcialmente respondida no seguinte trecho, em que se
coloca uma reposta dada por um homem numa enquete:
“As colegas de trabalho são mulheres antes de tudo,
devendo ser tratadas como tais, embora com a
camaradagem permitida entre pessoas que se estimam”.
Mais uma vez a língua traz as marcas do
funcionamento discursivo, presentes na formação
discursiva patriarcal, que coloca os sujeitos “nos seus
devidos lugares”. A expressão “mulheres antes de tudo”
mostra que, apesar de estarem num ambiente de
trabalho, são mulheres e devem ser tratadas como tais.
Tal trecho indica a diferenciação entre os gêneros e os
lugares diferentes ocupados pelas mulheres e pelos
homens. Embora possam ser tratadas com
camaradagem, com certo coleguismo, as mulheres
devem ser colocadas nos seus devidos lugares, não
havendo igualdade de atuação entre elas e os homens,
apesar de ocuparem o mesmo espaço físico desses. O
funcionamento da ideologia indica então a diferenciação
“natural” entre homens e mulheres e os lugares
diferentes ocupados pelos dois no mercado de trabalho,
negando a condição de igualdade em relação ao gênero.

68
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
No exemplo a seguir, o trabalho feminino remonta
ao seu sentido derivado da formação discursiva
patriarcal: é discursivizado como “trabalho doméstico”.
Há aí um sentido naturalizado pelo funcionamento da
ideologia: o trabalho feminino tem que ser o trabalho
doméstico. Assim, foi feita uma reportagem indicando o
tempo que uma dona de casa, trabalhadora doméstica,
levava para realizar os serviços do lar. Ao mesmo tempo
que o trabalho fora do lar era fruto de estranhamento, o
trabalho doméstico era exaltado, sendo considerado a
atividade adequada para as mulheres da época. O
exemplo abaixo servirá de base para discutir essa
questão:

Exemplo 12

Fonte: Jornal das Moças (14 jul. 1955)

69
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
No exemplo 12, a revista recorre ao discurso
científico de um sociólogo para ditar as regras de
rendimento do trabalho doméstico feminino. Assim,
retoma os dizeres do capitalismo sobre produtividade e
rendimento para aplicá-lo ao trabalho no lar. As regras
indicam que nos dias de semana as mulheres se
levantem às sete da manhã para a realização das tarefas
domésticas e, nos domingos, nunca devem se levantar
depois das nove, apesar da necessidade de descanso. O
sociólogo trazido na revista, para sustentar o dizer sobre
a necessidade de serem aplicadas regras ao trabalho
doméstico, afirma ainda que essas determinações só
admitem exceção quando houver visitas que perturbem
o andamento natural dos lares, sendo nesse caso,
possível que as mulheres durmam um pouco mais, mas
nunca depois das dez horas.
Assim, pautando-se em regras sobre o trabalho
doméstico feminino, a revista se coloca numa posição
discursiva que considera naturalmente esse tipo de
trabalho como exclusivo das mulheres, esposas e filhas,
enquanto aos homens caberia encontrar um lar
arrumado e limpo no retorno do trabalho fora de casa.
As regras estabelecidas através de um discurso que
retoma a voz de autoridade, nesse caso, a retomada da
voz do sociólogo, indica um ritual que deve ser seguido
para que o trabalho doméstico seja bem realizado,
exigindo, portanto, que a mulher se adéque a tais regras,
circunscrevendo-se no lar, sendo um rito de
normatização das atividades domésticas pela rotina de
horários, repetição e treinamento. Isso é feito, inclusive,
indicando-se o tempo a ser gasto na realização das

70
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Compartilhamento proibido
diferentes tarefas domésticas, tempo esse que foi medido
numa pesquisa realizada na Suíça e a que a autora da
reportagem recorreu a fim de conferir autoridade maior
ao texto.

Exemplo 13

Fonte: Jornal das Moças (14 jul. 1955)

Assim, pelo estabelecimento de horários


determinados para a realização dessas tarefas,
normatiza-se o trabalho feminino no lar, fazendo com
que a mulher seja caracterizada como uma boa ou má
dona de casa, confinando-a no labor doméstico. O
atravessamento do discurso capitalista de
produtividade, aplicado ao trabalho no lar, funcionava
para medir quem eram as boas ou as más donas de casa,
permitindo também cobrança por parte dos maridos,
pais e outros em relação à produtividade do trabalho
doméstico, gerando uma divisão entre as donas de casa

71
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
dedicadas e as desleixadas, cujo comportamento deveria
ser repreendido.

2.4
DISCURSO SOBRE MULHER E HUMOR

O modo de abordagem e as temáticas das piadas


que circulam na revista Jornal das Moças propagam a
ideologia dominante do que é “ser mulher”.
Segundo Sírio Possenti (2001, p. 126), “fazer humor
é basicamente produzir um equívoco, ou, melhor,
desnudar um equívoco possível”. Como já foi
explicitado, vale lembrar que o equívoco não é exclusivo
do humor, mas o humor utiliza o jogo com o equívoco,
com a ambiguidade, para dizer o mesmo de modo a
dizê-lo de forma invertida, nas entrelinhas, utilizando
esse jogo para gerar o riso. “As piadas, produtos do
discurso humorístico, são derivadas de práticas sociais
que trazem consigo o jogo com o implícito, com o que se
diz de modo sutil, com o jogo de palavras, de enunciados
etc.”. (FREITAS, 2019, p. 17)
Trazemos aqui exemplos de piadas colocadas na
seção “Troças & Traços”, uma seção fixa da revista, que
oferecia às leitoras, toda semana, chistes de variadas
temáticas, alguns mais regulares que outros. A
representação da mulher nas piadas ocorre, no período
analisado, de maneira estereotipada e caricaturada,
sendo a mulher retratada de forma pejorativa, fazendo
circular sentidos sobre o “ser mulher” dentro do
discurso humorístico. Segundo Pinsky:

72
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Embora sejam publicadas em uma revista para
mulheres, são raras as piadas que remetem a
imagens femininas favoráveis. Geralmente a
mulher é retratada de forma pejorativa em
contraposição à superioridade e racionalidade
masculinas. Em muitas delas, as mulheres são
fúteis, escravas da moda, extrema e
ridiculamente vaidosas e possuem uma lógica
tortuosa (o “eterno feminino”) que algumas
vezes beira a estupidez. (PINSKY, 2014, p. 29)

Consideramos aqui as piadas como práticas sociais


e, portanto, como elementos de discurso nos quais se
articulam questões linguísticas, posições ideológicas,
condições de produção, historicidade e jogo com as
palavras. O humor é o lugar onde se pode dizer o que
não se poderia dizer em outro contexto. Ele é, por isso, o
lugar da contestação, mas também é o lugar do
deslocamento a partir da caricaturização dos aspectos
negativos de determinado grupo ou sujeito. Nesse
ponto, interessa-nos compreender o que levava, no
material analisado, a mulher a figurar no lugar do
risível. O humor pode ser um instrumento de crítica
social, mas também pode funcionar como prática que faz
circular estereótipos socialmente construídos, conforme
assevera a citação a seguir:

Dessa forma, também podem se revelar poderoso


instrumento de crítica social e de certos modos de
se enxergar a diversidade humana ou, ao
contrário, contribuir para a reprodução de
algumas “verdades” socioculturalmente
construídas acerca do universo feminino e

73
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
masculino, respaldando assimetrias de poder
entre os gêneros. (MOURA; BORGES, 2009, p.
100)

O fato a se destacar é que o discurso humorístico é


o locus de produção de sentidos sobre o “ser mulher” em
oposição ao “ser homem”, numa construção identitária
que deriva da prática discursiva humorística. Esse ponto
nos interessa, uma vez que, como prática social, as
piadas analisadas fazem circular discursos que trazem
em si modos de construção identitária de gênero.
Observemos a piada a seguir:

Exemplo 14

Fonte: Jornal das Moças (25 dez. 1958)

74
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
A piada colocada no exemplo 14, citado
anteriormente, foi publicada em 1958 na seção Troças &
Traços.
Nela, destacam-se na imagem duas mulheres
conversando na frente de um espelho no qual estava
refletida a imagem de um casal sobre o qual as duas
mulheres falavam. No entanto, a referência feita por elas
era à mulher, sobre a qual dizem: “Ela fez de seu espôso
um milionário. Antes de casar-se era êle
multimilionário”. (JORNAL DAS MOÇAS, 1958)
É pela história que os sentidos de mulher como
consumista se desenham e podem ser retomados
quando nos deparamos com esse enunciado da piada,
que coloca a mulher como fonte de destruição financeira
do marido, uma vez que ela o fez decair socialmente de
multimilionário para milionário. Enquanto o homem
saía para trabalhar, a mulher deveria cuidar dos gastos
com as despesas domésticas, controlando-os, no entanto,
muitas vezes, o dinheiro era insuficiente e as mulheres
tinham que pedir mais dinheiro aos maridos. “Como, na
maioria das vezes, o homem é o único que recebe salário
e o entrega à esposa, o dinheiro aparece como sendo
dele, e isso certamente incrementa o poder masculino na
relação conjugal”. (PINSKY, 2014, p. 226)
É pela piada, no entanto, que a ideologia age a fim
de diferenciar os gêneros em relação ao controle
financeiro. É pelo humor que a imagem estereotipada da
mulher gastadeira é difundida e circula, através do riso
e do risível. Em lugares diferentes estão a mulher
(desequilibrada e gastadeira) e o homem (trabalhador e
equilibrado). É à mulher que cabe a destruição financeira

75
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
do marido, sendo a boa esposa, a que sabia se contentar
com a mesada recebida.

A ‘boa dona de casa’ amolda-se à mesada


estabelecida pelo marido de acordo com os meios
que dispõe o casal e jamais o censura pelo fato de
não ganhar o suficiente. O perfil da mulher
‘gastadeira’ contrapõe-se ao da ‘boa dona de
casa’, ajudando a defini-la. Outras imagens que
fazem o mesmo são: a ‘dona de casa mal-
humorada’, a ‘egoísta’ (que solicita a participação
do marido no serviço doméstico) e a ‘preguiçosa’
(PINSKY, 2012, p. 502).

Exemplo 15

Fonte: Jornal das Moças (9 out. 1952)

A piada colocada no exemplo anterior faz circular


sentidos sobre a mulher e o trabalho a partir de marcas
linguísticas. Numa conversa entre o chefe e a
empregada, esta afirma que já conquistou o amor do
gerente e do contador em apenas 15 dias de trabalho. Em
um primeiro momento, destaca-se pelo humor, a
improdutividade feminina, já que ao invés da mulher
estar realizando as tarefas do trabalho, estava se
maquiando e, com isso, perdendo tempo na realização
das atividades laborais. Há também a naturalização dos

76
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
papéis sociais com a representação social da mulher no
trabalho: essa ocuparia, naturalmente, a posição
secundária de subordinação a um homem.
Como o ambiente de trabalho era desaconselhado
às mulheres, as revistas femininas faziam circular
através de contos, reportagens e piadas os aspectos
negativos da inserção feminina no mercado de trabalho.
Dentre esses aspectos estava, inclusive, o risco de
envolvimento sexual entre patrões e empregadas devido
à sedução exercida pelas mulheres. A revista, assim,
utiliza-se do humor para fazer disseminar a ideia de que
a mulher não estava pronta para exercer atividades no
trabalho fora do lar juntamente com homens, retomando
já-ditos de que o trabalho fora de casa seria perigoso
para as mulheres. “A ideia ou situação de um
envolvimento amoroso entre chefes e secretárias está
presente em contos, artigos e piadas da revista. As
secretárias se apaixonam, são assediadas, ou se tornam
amantes do patrão.” (PINSKY, 2014, p. 183)
O exemplo também faz circular sentidos de que a
mulher seria fútil e pouco afeita às questões de
produtividade no trabalho, mas isso vem pelo humor,
pelo riso, pelo escárnio, no qual é permitido se dizer a
partir de implícitos.
As piadas, portanto, dentro do discurso
humorístico fazem circular estereótipos, imagens
cristalizadas e pejorativas das mulheres. Assim, em
relação ao papel da mídia na difusão de estereótipos,

o que ganha saliência é, diferentemente, a relação


entre a mídia e o exercício da dominação, ou

77
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
entre a comunicação midiatizada e a reprodução
da hegemonia. Os estereótipos aparecem como
uma dimensão da imposição, pelos grupos e
estratos de grupos dominantes, de sua visão de
mundo. E a mídia aparece como um instrumento
central de sua propagação. (BIROLI, 2011, p. 73)

Desse modo, assume-se aqui que a cristalização de


determinados sentidos sobre a mulher, difundidos pelo
discurso midiático, gera estereótipos que constroem
discursivamente a ideia do que caracteriza o “ser
mulher” e essa construção é feita na esfera midiática que,
através das piadas, faz circular sentidos cristalizados
sobre sujeitos e grupos sociais, o que implica também na
reprodução e manutenção de papéis sociais.
Pelo humor, são difundidas formas de controle
social da mulher, fazendo-a aderir a um dos papéis a ela
atribuídos. No caso do exemplo em questão, há a mulher
que trabalha representada de maneira estereotipada
como aquela que seduz os colegas de trabalho e deixa-se
seduzir por eles.
Segundo Pinsky (2014, p. 33-34), “[...] o cômico atua
como forma de controle e desaprovação de
determinadas atitudes ou situações e justifica o
pensamento que defende a superioridade do masculino
com relação ao feminino”. Nessa interlocução constante
entre língua, história e ideologia, os discursos
produzidos pelas piadas do Jornal das Moças não têm
apenas o intuito de divertir, mas fazem circular sentidos
que constroem identidades e reforçam papéis sociais.
De modo recorrente, nas revistas analisadas, a
mulher figura no risível pela sua estereotipização; o

78
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
risível é o ridículo dos elementos e atitudes que não são
bem vistas socialmente, que devem ser, por isso,
repelidas.

2.5
DISCURSO E CORPO

Falar sobre corpo na perspectiva discursiva


significa extrapolar a ideia de um corpo biológico,
unidade empírica alvo da preocupação de biólogos,
médicos etc. O corpo, entendido como unidade de
discurso é, pois, um lugar de discursividade, onde se
inscreve a ideologia, onde se materializam sentidos. É
esse corpo que nos interessa aqui: o corpo tomado como
elemento simbólico, o corpo como sentido, o corpo como
discurso. Assim, abordaremos o corpo feminino e os
modos de significação desse corpo no periódico Jornal
das Moças da década de 1950, a partir do modo como a
ideologia nele se inscreve. “Corpo desejado, o corpo das
mulheres é, também, no curso da história, um corpo
dominado, subjugado [...]” (PERROT, 2017, p. 76).
Assim, o corpo da mulher é um corpo construído
historicamente pela negação, pela dominação. É um
corpo subjugado porque a ele foi negado se constituir
como tal. Historicamente, a mulher foi negada,
silenciada, dominada e subjugada e seu corpo é
elemento dessa dominação.
Segundo o antropólogo Marcel Mauss (1974), o
corpo é um constructo cultural, tendo dois aspectos
indissociáveis: é matéria-prima e ferramenta da cultura.
Portanto, pode-se afirmar que o corpo, seus gestos, suas

79
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
formas de apresentação e os modos de andar e sentar,
por exemplo, nada têm de natural, mas, ao contrário,
representam uma corporalidade fabricada por normas
culturais coletivas. Desse modo, numa cultura na qual o
corpo deve ser mostrado, tê-lo descoberto torna-se algo
necessário e natural, sem causar estranhamento, ao
contrário do que ocorre numa cultura em que o corpo
deve ser coberto, escondido e reprimido, por exemplo.
Desse modo, muito além de ser uma estrutura biológica
neutra, o corpo é uma construção cultural que se
modifica de acordo com a sociedade e com a época em
que está inserido e construído. No oriente, em algumas
culturas muçulmanas, o corpo da mulher, considerado
fonte de perdição e pecado, precisa ser totalmente
coberto com uma burca, sendo um corpo negado e
submetido ao julgo religioso. Esse corpo carrega
sentidos do que é ser mulher naquela sociedade, do
modo como o poder e a religião agem para controlar e
reprimir o corpo feminino, castrado no silêncio da
interdição simbólica. Um não-corpo em que se
inscrevem os elementos históricos do domínio do
homem sobre a mulher. Observar o corpo como
elemento simbólico, extrapolando sua condição
biológica, interessa-nos porque o corpo concebido como
discurso é um lugar de história e não pode ser visto de
maneira isolada do momento histórico em que se
constitui.
Dessa forma nos perguntamos: de que modo o
corpo feminino é discursivizado na revista Jornal das
Moças? Como ele é construído e quais sentidos
atravessam esse corpo?

80
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Para refletirmos sobre essas questões, tomaremos
alguns exemplos que indicam regularidades sobre o
padrão do corpo feminino que deveria ser almejado
pelas mulheres. O padrão de corpo é indissociável do
padrão de beleza, portanto, o corpo como discurso
indica sentidos do belo e desejável para a época,
trazendo marcas de historicidade que constituem a
mulher do período.

Exemplo 16

Fonte: Jornal das Moças (26 jan. 1950)

O exemplo anterior é um anúncio publicitário de


um remédio para emagrecer denominado vinho Chico
Mineiro. Chama a atenção o enunciado inicial: “Seja
inteligente, não espere engordar demais, tome de hoje
em diante vinho Chico Mineiro que conserva seu porte
elegante”. (JORNAL DAS MOÇAS, 1950) O corpo, já
naquele período, é moldado para ser magro, construído
em um determinado padrão e aquelas que não o
seguirem são consideradas “pouco inteligentes”. O
produto anunciado indica que a perda de peso, em caso
de uso do produto, é uma coisa saudável, afirmando

81
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
ainda que ela é natural e não causa rugas. Os meios de
comunicação e as revistas femininas tiverem e têm papel
importante na difusão de ideias sobre beleza e sobre
corpo bonito. Assim, a divulgação de um remédio para
emagrecimento numa revista feminina visa regular o
tipo de corpo ideal que deve ser fruto e desejo das suas
leitoras. Segundo Mirian Goldenberg (2002), o corpo

cultivado sob a moral da boa forma, surge como


marca indicativa de certa virtude superior
daquele que o possui. Um corpo coberto de
signos distintos que, mesmo nu, exalta e torna
visíveis as diferenças entre grupos sociais.
(GOLDENBERG, 2002, p. 10)

No caso do anúncio em questão, a marca de virtude


seria a elegância, assim, para que uma mulher fizesse
parte da comunidade de mulheres elegantes, era
necessário que tivesse um determinado tipo de corpo,
que a distinguiria de outras mulheres não elegantes e o
produto anunciado vendia esse corpo simbólico.
O corpo ideal, construído pelo anúncio, pressupõe
uma instância simbólica que busca inserir os sujeitos de
uma sociedade ou de um grupo nas comunidades
imaginadas daqueles que possuem o corpo belo e
desejado, a partir de práticas e crenças difundidas pelos
meios de comunicação e outras instituições sociais.
Assim,

[…] os meios de comunicação de massa têm sido


um importante veículo na divulgação e
construção dos padrões de beleza e de exclusão

82
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
social, pois, enquanto dispositivo de poder a
serviço de uma comunicação baseada nas
fórmulas de mercado, atualiza constantemente as
práticas coercitivas que atuam explicitamente
sobre a materialidade do corpo. A mídia, por
meio dos discursos publicitários e jornalísticos,
mostra que para ser considerado belo é
necessário ter um corpo perfeito (lê-se magro), e
para obtê-lo qualquer sacrifício é válido. (FLOR,
2009, p. 268)

No período analisado, a noção de corpo magro era


significada de modo diferente do que é atualmente: o
ideal de corpo belo não era o extremamente magro, com
barriga zero, tal como os padrões atuais, mas se baseava
no corpo meio-termo entre o muito magro e o obeso.
Assim, havia uma outra significação para o corpo magro
uma vez que um corpo muito magro era considerado
símbolo de fraqueza e doença. A partir da década de
1950, com a popularização da televisão e uma maior
influência do cinema, o embelezamento do corpo
feminino começa a tomar como base as belas aparências
das musas do cinema nacional e as atrizes estrangeiras
de Hollywood, além de se basearem na beleza das
vedetes do teatro de revista e do rádio. Todas elas
ensinam dicas e conselhos de beleza.
Além disso, o tom de conselho e ensinamento
trazido por essas revistas femininas agem para ensinar a
construir o corpo ideal. Essa construção passa, inclusive,
pela maneira de andar, pelo cuidado com os braços e
pernas, dentre outras questões que faziam com que a

83
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
mulher se tornasse atraente para o homem e arranjasse
um bom pretendente para o casamento.

Exemplo 17

Fonte: Jornal das Moças (5 jan. 1951)

Havia, ao menos, no período analisado, dois


sentidos para a palavra magreza: um que se opunha à
obesidade e era sinônimo de beleza, outro que
significava doença ou fraqueza. O título do anúncio
Poderoso tônico para mulheres normatiza o corpo
feminino que será moldado para caber no padrão de
corpo com carnes firmes a partir do uso das pílulas
anunciadas. Esse último sentido se ligava
principalmente ao que se considerava como pessoas
muito magras que eram consideradas fracas e as
mulheres muito magras que eram vistas como incapazes

84
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
de gerarem filhos. “Se você está anêmica, nervosa,
magra e sem apetite e deseja ter carnes firmes, formas
graciosas, beleza e saúde, faça um tratamento com as
pílulas rosadas do DR Williams.” (JORNAL DAS
MOÇAS, 1951) Nesse trecho, o anúncio das pílulas liga a
magreza à doença, retomando já-ditos do interdiscurso
que consideravam a magreza como algo negativo,
acionando uma memória sobre o corpo magro. É na e
pela história que esse corpo nem muito magro nem
obeso se constrói na revista, inserindo-se na década de
1950 como sinônimo de beleza. O trecho: “sem excessos
prejudiciais de gordura” indica que o corpo obeso
também não é sinônimo de beleza, assim como não o é o
corpo muito magro. A construção simbólica do corpo
belo e saudável passava por um corpo que estivesse no
meio-termo entre o muito magro e o muito gordo, sendo
as pessoas muito magras e muito gordas consideradas
feias e doentes. Sabe-se que, na Análise de Discurso, as
palavras não possuem um sentido apriorístico, mas, ao
contrário, os sentidos das palavras e enunciados podem
se modificar a depender das condições de produção e
dos sujeitos que os empregam. Assim, a ideia de
magreza colocada no exemplo 17 não tem o mesmo
sentido da ideia de magreza empregada no exemplo 16.
No discurso publicitário, vende-se a silhueta
perfeita e atraente e que o uso do medicamento
anunciado vai conferir à mulher “a magnífica vitalidade
que constitui o verdadeiro encanto feminino”. Desse
modo, o que a propaganda vende não são apenas as
pílulas, mas o corpo prometido no anúncio, um corpo

85
Lei de direitos autorais
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simbólico, nem muito magro nem muito gordo, mas com
“carnes firmes”.
No trecho “As pílulas rosadas do Dr William lhe
darão igualmente essa silhueta atraente de mulher bem
constituída”, o anúncio constrói a imagem de mulher
bem constituída. Tal imagem, passa pelo aspecto do
corpo, pelo modo como este se constitui perante a
sociedade. A mulher atraente é aquela que tem carnes
firmes que proporcionam o “verdadeiro encanto
feminino”.

Exemplo 18

Fonte: Jornal das Moças (30 out. 1952)

86
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Os modos de construção do corpo pressupõem
técnicas. Mauss (1974) chama de técnica um ato
tradicional eficaz. Ele traz a noção de técnicas corporais,
indicando que há rituais físicos que são realizados com
o corpo e sugere que uma técnica é passada
culturalmente. Segundo o autor, as técnicas corporais
pressupõem uma adaptação que deriva da educação e
da cultura nas quais o sujeito está inserido. Para Mauss,

esta adaptação constante a um fim físico,


mecânico, químico (por exemplo, quando
bebemos) é perseguida em uma série de atos
montados no indivíduo não simplesmente por
ele mesmo, mas por toda a sua educação, por
toda a sociedade da qual ele faz parte, no lugar
que ele nela ocupa. (MAUSS, 1974, p. 218)

Utilizando a ideia de Mauss, considerarei essa


materialidade do exemplo 18 como uma técnica corporal
do andar. Nesse caso, uma técnica corporal passada pelo
treinamento e repetição que confeririam à mulher um
modo “certo e elegante” de andar.
É por meio dessa técnica, que antes de tudo é
cultural e histórica, que o corpo é construído. No
exemplo anterior, a reportagem traz um tom de conselho
e lista os passos que devem ser dados na direção de um
andar elegante. O título já indica o objetivo ali presente:
fornecer uma receita sobre como andar de modo
gracioso, tornando-se, portanto, atraente a mulher que
seguisse as regras ali propostas. Podemos observar o
funcionamento ideológico que constitui a representação
da mulher, tal funcionamento se destaca logo no trecho

87
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
inicial: “a elegância de uma mulher é marcada pela sua
boa linha, harmonia de toalete e também pelo seu modo
de andar. A importância desse fato não deve escapar a
nenhuma mulher.” Chama a atenção no trecho, o uso do
verbo deve, indicando uma ordem, da qual não se pode
escapar. Tal verbo revela uma marca discursiva em
relação ao sexo feminino, indicando o modo pelo qual é
preciso agir para se tornar mulher elegante, em outras
palavras, para que alguém se constitua como tal, deve
obrigatoriamente se preocupar com a estética e com os
modos de andar, coisa que não deve escapar a nenhuma
mulher. É a ideologia que constitui, então, a ideia de
mulher elegante de verdade (indicando as coisas das
quais ela não pode escapar), condicionando as mulheres
a se colocarem na posição daquelas que fatalmente se
preocupam com os modos de andar. Retomando as
ideias de Pêcheux (2009), a noção de mulher não
equivale aqui àquela que é representante do sexo
feminino, apenas. O sentido de mulher é discursivizado,
ganhando, então, outras nuances: a mulher não é apenas
o ser humano do sexo feminino, mas é aquela que se
preocupa com a beleza, que anda de determinado modo,
que cuida dos problemas estéticos.
Retomamos também, no exemplo anterior, a ideia
de Foucault (1987) sobre a domesticação do corpo, uma
vez que, para alcançar um andar gracioso, a mulher
precisará seguir alguns passos, elencados na
reportagem: “Para ter seus movimentos livres, uma
mulher deve ter as pernas ágeis, os tornozelos leves, os
pés em perfeito estado. Durante a toalete, você fará bem
em esfregar os pés com uma escova, a fim de ativar a

88
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
circulação do sangue e desembaraçar a pele das células
mortas.” Trazendo à tona as ideias de Foucault (1987)
sobre a disciplina, notamos que há no trecho em
destaque todo um ritual que deve ser seguido para
alcançar o objetivo de ter um andar gracioso. O corpo é
coagido a se tornar leve, os pés devem estar em prefeito
estado. Assim, o corpo feminino se constrói também pela
maneira de andar.

Exemplo 19

Fonte: Jornal das Moças (10 ago. 1950)

89
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
O exemplo 19 traz uma propaganda de produto
para cuidados com os seios. No trecho: “De forma
científica, Pasta Russa corrige os seios caídos e flácidos,
dando-lhes aquele encanto e firmeza da adolescência”,
(JORNAL DAS MOÇAS, 1950), o anúncio recorre à voz
de autoridade da ciência para enunciar. Na parte não
verbal, a imagem de uma mulher sorrindo com sutiã se
destaca. Ao lado da referida imagem há ainda o
enunciado: “faça em casa”, indicando que a mulher não
precisa se ausentar do ambiente doméstico que lhe é
considerado natural no período, para usar o produto
anunciado.
Como já foi dito anteriormente, os anúncios
publicitários que colocam a mulher na esfera da estética,
dos cuidados com a beleza, são recorrentes, o que indica
uma naturalização do lugar feminino na sociedade, o
lugar da estética é apresentado como se fosse o outro
lugar simbólico natural a ser ocupado pela mulher, além
do lugar físico da casa. Há também o pressuposto de que
o corpo feminino precisa ser corrigido ou tratado, não
sendo aceito na sua forma natural. No caso do anúncio,
é preciso corrigir os seios caídos. A palavra corrigir
carrega sentidos de que o corpo feminino necessita ser
reconstruído e manipulado para se adequar aos padrões
de beleza e perfeição estabelecidos socialmente.
Segundo Beauvoir,

cuidar de sua beleza, se arrumar é uma espécie


de trabalho que lhe permite apropriar-se de sua
pessoa como se apropria do lar pelo seu trabalho
caseiro; seu eu parece-lhe, então, encolhido e
recriado por si mesma. Os costumes incitam-na a

90
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
alienar-se assim em sua imagem. (BEAUVOIR,
2016, p. 332)

O cuidado com o corpo e a atenção para a beleza


são, portanto, essenciais para a mulher, desde que não se
torne um vício que a impeça de realizar os afazeres
domésticos e isso é corroborado pelos dizeres “faça em
casa”, levando-a a permanecer no lugar considerado
natural ao sexo feminino.
As revistas femininas se colocam como amigas das
mulheres, sendo essas responsáveis por dizerem, em
tom de conselho, o que e como elas devem fazer para se
constituírem como mulheres belas e jovens a fim de, se
solteiras, encontrarem um pretendente para casar e, se
casadas, se manterem bonitas e arrumadas para o
marido. É, portanto, da posição de conselheira que a
revista faz circular os discursos sobre o corpo, a estética,
a beleza, os modos de andar, o trabalho, dentre outros.
Ao utilizar-se da ciência para comprovar a eficácia do
produto anunciado, apontando para uma “fórmula
científica”, a revista busca atrelar-se a um tom de
verdade: o da ciência como imparcial. Assim,
atravessada pelo discurso científico, a revista constitui
seus conselhos sobre o corpo feminino, indicando a
necessidade de corrigi-lo. Segundo Pêcheux (2008, p.
167), o interdiscurso enquanto discurso transverso
"atravessa e põe em conexão os elementos discursivos
constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-
construído, que fornece, por assim dizer, a matéria-
prima na qual o sujeito se constitui como 'sujeito
falante'”. Desse modo, o anúncio objetiva dar

91
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
credibilidade ao produto anunciado, através da
comprovação da sua eficácia retomando o discurso da
ciência.
A Pasta Russa é apresentada como um produto
capaz de “corrigir seios caídos e flácidos dando-lhes
aquele encanto e firmeza da adolescência”. Assim, o uso
do produto não conferirá apenas um seio corrigido, mas
simbolicamente dará à mulher a jovialidade da
adolescência. No período analisado, a beleza estava
ligada à juventude, mas a noção de juventude também
deriva de uma construção sócio-histórica. No período
em análise, uma mulher com a idade de 25 anos passa a
ser considerada como tendo “passado da idade” tanto
para o casamento quanto para ser considerada uma
jovem mulher. Segundo Pinsky (2014, p. 112), “a mulher
solteira com mais de 25 anos recebe o rótulo de
‘solteirona’. [...] acaba ‘solteirona’ a mulher que perdeu
as oportunidades de casamento em razão de ter ‘passado
da idade’.” O corpo maduro e mais velho não era,
portanto, considerado bonito. Cabia às moças mais
velhas corrigirem seus corpos, fazendo-os retornar,
através do uso de diversos produtos, ao corpo da
adolescência.

2.6
DISCURSO, MULHER, NAMORO E CASAMENTO

Como veículo que fazia circular discursos que


forneciam ideias sobre como uma moça deveria se
comportar socialmente, servindo, inclusive, como
material para os pais utilizarem os conselhos ali trazidos

92
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
na educação das meninas, a revista Jornal das Moças
afirmava que o casamento era o destino natural das
moças que deveriam, desde tenra idade ser preparadas
para a vida conjugal. A preparação consistia em
transformar a moça, através da educação fornecida
principalmente pela mãe, em uma moça prendada, que
soubesse realizar serviços domésticos como lavar
roupas, passar, cuidar dos filhos etc.
Assim, havia uma preocupação da revista: fornecer
às moças solteiras dicas de como arranjar um noivo e,
por conseguinte, um casamento. O namoro deveria ser
algo que levaria ao casamento, pois uma moça de família
não deveria ter muitos namorados, portanto, o namoro,
que não poderia ser nem muito curto, nem muito longo,
deveria ser também a porta para o casamento. “Assim, é
dito que, no tempo de namoro, a jovem deve tentar
provar que é ‘boa moça’ — pura, recatada, fiel, cordata,
prendada — como deve ser uma dona de casa — e capaz
de vir a ser uma mãe dedicada e carinhosa.” (PINSKY,
2014, p. 67)
Os exemplos e conselhos são trazidos nas páginas
da revista em forma de reportagens e testes a serem
feitos pelas mulheres para medirem o comportamento
correto nas situações de namoro. O exemplo a seguir é
um teste que pretende responder ao seguinte
questionamento: “ele sairá com você uma segunda vez?”
Através desse teste, a mulher é levada a checar suas
ideias sobre o comportamento feminino aceito ou
condenável pela sociedade e que poderá levar o
pretendente a desistir ou não de um segundo encontro,

93
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
fazendo com que o provável futuro casamento não seja
planejado pelo homem.

Exemplo 20

94
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido

Fonte: Jornal das Moças (5 out. 1955)

95
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
No exemplo anterior, há um teste com 24 perguntas
que visam medir se um homem terá ou não interesse de
sair com a mulher depois de um primeiro encontro. O
teste indica, na verdade, um conjunto de atitudes que
uma mulher de família deve ter ao sair pela primeira vez
com um homem para que houvesse interesse em sair
novamente com ela após o primeiro encontro. Dentre as
perguntas estão: se ela deve ou não pagar a conta; se
deve dirigir-se ao garçom para solicitar talheres caso ele
tenha esquecido de trazê-los, ou se deve esperar que o
homem o faça; se deve ou não aceitar o convite do rapaz
para ir ao apartamento dele após o encontro; se deve
falar de si mesma, dos seus gostos ou falar sobre os
gostos dele etc.
No trecho que introduz o teste, destaca-se o
seguinte:

Ter sucesso com os rapazes sempre nos dá uma


sensação agradável acima de qualquer
coqueteria. Mas porque certas mocinhas têm
inúmeros compromissos e outras, têm as páginas
de seu carnê desesperadamente brancas? Há
mulheres que segundo a expressão corrente são
“boas para se sair" e nem sempre são elas as mais
bonitas nem as mais inteligentes. E qual é o seu
segredo?
O primeiro convite é muito bem uma prova: é
preciso conhecer para avançar a conquista, as
atitudes, os gestos, as palavras que convém e
aquelas que devem ser evitadas. Quando um
rapaz convidá-la para jantar pela primeira vez,
como se comporta você? Mais do que a nossa
beleza ou o luxo do nosso guarda-roupa, eis as

96
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
razões que inclinarão seu futuro admirador a
cortejá-la ou deixá-la de lado. (JORNAL DAS
MOÇAS, 1955)

Tais perguntas conduzem a normas de


comportamentos para mulheres que seriam
consideradas “mulheres de família”, ou seja, as
“mulheres para casar” em oposição ao comportamento
das chamadas “mulheres levianas”, ou seja, as que não
seriam para casar, mas apenas para que o homem
pudesse se divertir.
As respostas ao teste apontadas como corretas
indicam que o comportamento aceito para a mulher é
sempre ser discreta, falar pouco sobre si e deixar que o
homem fale mais sobre ele, não se oferecer para pagar a
conta, deixando essa tarefa para o homem, não
demonstrar muito interesse e nem revelar sensualidade.
Ao contrário, a demonstração de interesse sempre
deveria partir do homem que deveria também indicar
onde iriam jantar, pagar a conta, dirigir-se ao garçom e
andar na frente da mulher. No período em questão,

as jovens solteiras são divididas entre “moças de


família” e “garotas de programa” (não
necessariamente prostitutas). As do primeiro
tipo devem conter sua sexualidade em limites
bem estreitos e serão respeitadas pelos rapazes
principalmente se souberem “fazer-se respeitar”,
não permitindo maiores intimidades e não dando
motivos a fofocas, críticas ou más interpretações.
Só assim poderão ser consideradas candidatas
adequadas ao papel de esposa. As moças de

97
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
família, portanto, não podem ser confundidas
com as levianas (com quem os rapazes namoram
mas não se casam) nem em termos de reputação,
menos ainda em termos de atitudes. (PINSKY,
2014, p. 56)

Na pergunta 23 do teste do exemplo anterior, por


exemplo, indica-se o comportamento adequado da
mulher para que essa não pareça alguém que não está se
“fazendo respeitar” ou seja, uma mulher leviana que não
“serviria para casar”.

Pergunta do teste:
23- Se êle tentar abraçá-la antes de ir embora...
a) Você permite?
b) Repele-o com um ar escandalizado?
c) Você desprende-se gentilmente e estende-lhe a
mão? (JORNAL DAS MOÇAS, 1955)

E a resposta considerada correta: “23- Zero para ‘a’


e ‘b’. Não o repila grosseiramente, o melhor é adotar ‘c’”
(JORNAL DAS MOÇAS, 1955).
Nesse caso, a resposta adequada indica que a
mulher deve repelir docemente o homem, não se
mostrando muito interessada em relação à investida
dele, impondo-lhe limites. Esses devem ser impostos de
maneira delicada, para que ela não afaste
completamente o pretendente com quem poderá se
casar. O namoro, apesar de começar a ser mais liberal no
período entre as décadas de 50 e 60, ainda pressupunha
convenções que faziam com que os pais
supervisionassem os encontros amorosos da filha, sem

98
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
deixá-la sozinha com os homens. Assim, o namoro em
casa sob a supervisão dos pais ou do irmão era muito
comum e a imagem a seguir mostra tal situação.

Exemplo 21

Fonte: Jornal das Moças (20 nov. 1958)

Assim,

além de submetidas aos olhares gerais que as


vigiam e julgam, as moças estão diretamente
sujeitas à orientação e disciplina dos pais, aos
quais devem satisfação a respeito dos seus
interesses e escolhas afetivas […] Conforme
determinam seus pais ou responsáveis, em

99
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
ocasiões como bailes, encontros, viagens,
passeios, a “moça de família” deve estar
acompanhada por algum parente ou alguém de
confiança (vizinhos, tias, amigos da mãe etc) que
garanta sua reputação. (PINSKY, 2014, p. 60)

Voltando ao exemplo 20, o teste em questão insere-


se no discurso patriarcal, que mostra que o homem
sempre deveria estar à frente da conquista e a mulher,
estar atenta e sempre em concordância com a vontade do
homem, concordando com o lugar que ele escolhesse
para jantar, com o prato escolhido por ele, ouvindo-o
falar dos gostos dele e mantendo-se calada e discreta. No
exemplo 21, a mulher aparece submetida ao controle do
pai que fiscaliza o seu namoro, com olhar de
desconfiança ao acender uma lanterna para espionar a
filha e o namorado.
Além de aconselhar sobre como a mulher deveria se
comportar no primeiro encontro e no namoro, a revista
também traz conselhos sobre como a mulher deve se
comportar perante o marido. Os conselhos visavam
fazer com que a mulher “vivesse um casamento feliz”,
dentro do discurso de que a felicidade conjugal e a
manutenção da paz no casamento dependiam
exclusivamente da mulher que deveria saber agradar o
marido e fazer as suas vontades.
Os exemplos a seguir fazem parte de uma série de
conselhos publicados no Jornal das Moças cuja
publicação se iniciou em 19 de novembro de 1953. A
série de recomendações, intitulada “Uma boa esposa”
traz dicas sobre como ser uma boa esposa, de maneira

100
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
simples e resumida, fazendo circular sentidos e ideias
sobre a esposa ideal.

Exemplo 22

Fonte: Jornal das Moças (19 nov. 1953)

Na década de 1950, considerava-se que “as


mulheres eram, por natureza, destinadas ao casamento
e à maternidade” (PINSKY, 2012, p. 470). Assim, não
bastava terem conseguido casar-se, era preciso manter o
casamento e, para isso, era necessário ser uma boa
esposa. Mas o que era ser uma boa esposa? As revistas
femininas tratavam de mostrar a partir de sugestões do
que uma boa esposa podia ou não fazer. Com o exemplo
22, o Jornal das Moças inicia uma série de publicações de
dicas sobre o assunto. O exemplo inicia-se dizendo que
as sugestões ali colocadas serão direcionadas às leitoras
da revista, “todas boas donas de casa”. A classificação

101
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
das leitoras como boas donas de casa já indica um
funcionamento do discurso e uma constituição
ideológica sobre ser mulher no período analisado: em
primeiro lugar, deveriam ser boas donas de casa. Já se
viu anteriormente como a realização dos serviços
domésticos era imposta às mulheres que tinham suas
vidas reduzidas ao ambiente do lar, ao cuidado com os
filhos e com o marido. É pela construção histórica da
feminilidade que esse enunciado é gestado: uma mulher,
boa esposa, é, antes de tudo, uma boa dona de casa.
No entanto, o exemplo segue e afirma-se nele que,
mesmo sendo boas donas de casa, todas as mulheres
devem lembrar-se das sugestões ali trazidas. O primeiro
conselho, em tom de sugestão, indica que as mulheres
não devem mexer nos bolsos da roupa do esposo,
quando esse chega cansado de casa, mesmo que seja
para coser. Aliás, se o fizer, será considerada uma esposa
ruim, pois uma boa esposa de verdade deve “verificar
toda a roupa do marido antes de mandá-la para a
lavagem” e, se o bolso de um paletó estiver rasgado,
certamente foi culpa da mulher que não cuidou com
afinco de suas atividades domésticas que incluem a
checagem do estado das vestimentas do marido. É pela
memória discursiva que são resgatados sentidos sobre o
que é ser uma boa ou má esposa. Também é pela
memória discursiva, que, nesse caso, liga-se a uma
formação discursiva patriarcal, na qual a mulher é
submissa ao marido, que se inserem esses dizeres.
Assim, não causava estranhamento circunscrever a
mulher ao lar e aos cuidados com o marido para manter
o casamento. Não causava estranhamento, também,

102
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
responsabilizá-la pelo cuidado com as roupas do
marido.
O exemplo 23 continua a trazer sugestões sobre
como ser uma boa esposa, como se pode ver a seguir:

Exemplo 23

Fonte: Jornal das Moças, 26 de novembro de 1953

Continuando a série de sugestões, no exemplo 23, a


revista indica que uma boa esposa não deve perturbar o
marido com contas de água, luz ou outras quando ele
retorna ou sai para o trabalho. O sentido aí retomado é o
de que os homens, já muito estressados por suas tarefas
diárias de trabalho, não devem ser incomodados com
problemas desnecessários.

103
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
esses manuais se constituem de maneira diversa,
com um objetivo comum: adestrar
comportamentos e disciplinar condutas
femininas, cujo foco era a formação de um
modelo de mulher ideal, capaz de governar o lar,
a família, satisfazer as necessidades do marido e
manter a boa aparência. (TOMÉ, 2013, p. 39)

Assim, moldando os comportamentos femininos, a


revista ia indicando atitudes aceitáveis para que uma
mulher fosse promovida a boa esposa, sendo que, se as
mulheres não tivessem tais comportamentos, seriam
tachadas de más esposas, recaindo sobre elas a culpa de
um lar infeliz, uma vez que todo o cuidado com o lar
deveria ser delas.

Exemplo 24

Fonte: Jornal das Moças (3 dez. 1953)

104
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
O exemplo 24 destaca como uma boa esposa deve
se comportar em relação às visitas que faz ao marido no
seu local de trabalho. O texto diz:

uma boa espôsa não o visita de improviso, no


escritório. É preciso que a espôsa compreenda
que o trabalho de um homem é esfalfante e que
lhe rouba a paciência. Assim, essas visitas o
perturbam e até lhe tiram a atenção do serviço,
muitas vezes comprometendo-o com os chefes e
colegas. Nem mesmo a desconfiança causada às
vezes pelo ciúme, dão-lhe esse direito. (JORNAL
DAS MOÇAS, 1953)

O exemplo diz o que a mulher pode e o que não


pode fazer, como deve se comportar. O comportamento
feminino assim é controlado, a fim de que a esposa não
cause “constrangimentos ao marido”. A mídia,
destacando-se não só como meio divulgador de
informações, mas como veículo construtor de
subjetividades e verdades, vai agindo para normatizar o
comportamento da mulher com base na ideologia que
indica a submissão feminina. Assim, à mulher são
vedados alguns comportamentos, pela interdição e
controle social.

105
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Exemplo 25

Fonte: Jornal das Moças (17 dez. 1953)

No exemplo 25, outra dica em tom de conselho.


Segundo o texto:

uma boa esposa não gasta em demasia na sua


toalete. Mesmo com pouca despesa, ela será
notada e admirada. Todo excesso é vaidade, e a
vaidade fará com que os outros pensem que ela
procura ofuscar o marido por motivos vários,
fazendo cada qual a sua conjetura. Além disso,
tais despesas, mesmo não afetando o orçamento
do espôso, quebram a harmonia, o processo
econômico que êle criou para que a família tenha
um futuro melhor. (JORNAL DAS MOÇAS,
1953)

106
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
O exemplo traz elementos que, inscritos na história,
reclamam sentido. O primeiro deles a destacar é que, no
contexto da década de 1950, em que a saída das mulheres
para o mercado de trabalho era ainda incipiente, o
homem é que era considerado o “provedor financeiro”
da família.
Essa ideia se encontra em outras publicações da
revista, como nos seguintes trechos: “[...] uma vez
casado, deverá fazer face a todas as despesas, já não é
mais dono do seu ordenado” (JORNAL DAS MOÇAS,
1955). Nessa mesma direção, foi publicada na revista
uma coluna chamada “Prefácio do casamento” com
afirmações sobre como deveria ser o casamento, pois,
segundo a revista “este possui uma lista de formalidades
indispensáveis.” Ainda segundo a ideia de hierarquia no
casamento, destaca-se outro trecho da revista: “o marido
é o chefe da família, mas a mulher, segundo a lei, é sua
colaboradora.” (JORNAL DAS MOÇAS, 1955) Nesse
enunciado, a conjunção “mas” não é apenas um
elemento gramatical, é um elemento de discurso que
introduz um outro argumento: apesar do homem ser o
chefe da família, a mulher é sua colaboradora. A
introdução do “mas”, nesse caso, pretende trazer à tona
a mulher, no entanto o faz mantendo o papel de
submissão ao homem, já que ela é colocada na posição
de colaboradora, coadjuvante.
Dentro da afirmação de que a mulher não deveria
gastar muito com a toalete para não desagradar o
esposo, evitando desencadear a desarmonia para o
processo econômico que ele criou para a família, é

107
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
possível retomar já-ditos e não ditos. Os já-ditos de que
cabe ao homem ser o sustentáculo da família, inclusive
amparando-a financeiramente, inscrevem-se na
formação discursiva patriarcal, a partir da ideia de que o
homem é o chefe da família e os demais membros,
inclusive a mulher, deveriam obedecê-lo. Tal ideia está
disseminada em vários trechos, reportagens e contos do
Jornal das Moças. Em destaque, um deles:

mulher pode exercer uma profissão ou dirigir


uma firma sem a autorização do marido, mas este
tem o direito de se opor, no interesse do casal. A
mulher neste caso, é autorizada a se dirigir ao
tribunal que julgará, segundo o interesse do
casal. (JORNAL DAS MOÇAS, 1955)

No trecho, indica-se que, apesar de poder trabalhar


ou dirigir uma firma sem autorização do marido, ele
poderia se opor e, nesse caso, a opção dada à mulher
seria recorrer à justiça. O Código Civil de 1916
considerava a mulher casada como incapaz, proibindo-a
de trabalhar sem autorização prévia do marido e
proibindo-a de gerir seus bens financeiros e de,
inclusive, abrir contas bancárias ou gerir sua herança.
Tal determinação só foi derrubada em 1962, apesar da
luta de alguns parlamentares ainda na década de 1950,
quando a ideia de instituir direitos iguais no âmbito
jurídico para homens e mulheres sofreu enorme
resistência. Então, por mais que a revista dissesse que a
mulher poderia reivindicar seus direitos na justiça, tal
atitude seria inócua, uma vez que diante da lei, a mulher

108
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
era considerada incapaz e totalmente dependente do
marido.
Um outro enunciado que traz os saberes da
formação discursiva patriarcal é justamente a ideia de
que, ao ser vaidosa, a mulher desagradaria o marido,
pois daria a entender para a sociedade que ele estaria
sendo ofuscado pela esposa, além de quebrar a
harmonia financeira promovida por ele. Como consta,
"além disso, tais despesas, mesmo não afetando o
orçamento do espôso, quebram a harmonia, o processo
econômico que ele criou para que a família tenha um
futuro melhor” (JORNAL DAS MOÇAS, 1955). Os não-
ditos que significam aí dizem respeito ao fato de a
mulher não trabalhar fora de casa, portanto, não ter o
próprio dinheiro para comprar os produtos de higiene
pessoal, ou até cosméticos. Tal sentido é recuperado
através do dito, pois se a mulher precisa gastar o
dinheiro que é dado pelo marido para a sua toalete, é
porque ela não tem fonte de renda, não podendo,
portanto, usar o dinheiro com independência. Aqui mais
uma vez há a repetição da ideia de que a mulher precisa
ter um comportamento que não desagrade o homem,
cabendo somente a ela a responsabilidade pela
manutenção do casamento. A ideia de superioridade
masculina se pauta na revista, muitas vezes em questões
de diferenciação biológica entre homens e mulheres.

Nas publicações dos anos 1950, a hierarquia de


poderes na sociedade conjugal em que o
masculino predomina, é justificada comumente
por referências às leis da natureza. Mas também
podem servir como argumentos as leis do Estado,

109
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
o costume social, o temperamento do homem
brasileiro (ou do latino) e as inalteráveis leis
divinas, além de ideais cristalizados de harmonia
familiar. (PINSKY, 2014, p. 211)

Exemplo 26

Fonte: Jornal das Moças (24 dez. 1953)

O exemplo 26 traz o seguinte texto:

uma boa espôsa não obriga o marido a esperar


por si quando combinam ir a uma festa ou outra
qualquer diversão. A espôsa tem um grande
papel social na vida e, portanto, seu dever é
evitar que o marido fique constrangido e saia do
seu natural de homem compreensivo e amável.
Quando êle chega do trabalho e vai se preparar
para sair com ela, é ela quem deverá se aprontar

110
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
primeiro e ainda ajudá-lo a arrumar-se.
(JORNAL DAS MOÇAS, 1953)

O exemplo em questão dita normas sobre o


comportamento ideal da mulher em relação ao marido
quando ambos forem sair para algum evento.
Estabelece-se, portanto, que a mulher não deve fazê-lo
esperar quando for se arrumar para sair e que, ao
contrário, ela deve cuidar de si mesma, arrumando-se
com antecedência e, além disso, deve ajudar o marido a
se arrumar. Assim, caberia à mulher a responsabilidade
de não fazer o marido esperar. Desse modo, a revista
surgia como um veículo que controlava o
comportamento social da mulher, a fim de que ela
pudesse, a partir das sugestões ali postadas, caber no
padrão do que seria uma “boa esposa”.
A repetição da ideia de não aborrecer ou
importunar o marido indica um funcionamento
ideológico que vai naturalizando o fato de que cabe à
mulher cuidar para que não haja alterações de humor do
homem e também indica que, se houver tais alterações,
é culpa da esposa que não soube agradar o marido,
recaindo a culpa mais uma vez sobre a mulher. O
exemplo também destaca o que a mulher devia fazer
para manter seu casamento, tornando-se dependente
dos humores masculinos.

É fácil perceber o que algumas mulheres


toleravam para manter o tão desejado casamento:
tornavam-se escravas dos humores masculinos.
Os textos de Jornal das Moças alertam para esse
problema como algo que poderá ocorrer no

111
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
futuro se as mulheres se enganarem em suas
escolhas no tempo do noivado. […] É
significativa, pois a ausência de artigos em Jornal
das Moças que façam menção a maridos
violentos ou autoritários demais, amparando as
esposas que sofrem com esse comportamento
depois de legitimada a união. (PINSKY, 2014, p.
102).

Exemplo 27

Fonte: Jornal das Moças (21 jan. 1954)

O exemplo 27 traz a seguinte ideia sobre ser boa


esposa. Segundo a revista,

uma boa espôsa não obriga o marido a viver sob


o mesmo teto com pessoas que não combinam

112
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
com êle. Costuma-se dizer que essa pessoa é a
sogra. Não! Isso é um erro que, aliás, precisa ter
um fim. Muitas vezes a causa de distúrbios
familiares é uma amizade da espôsa que não sai
de sua casa. Por delicadeza, o marido não lhe
declara peremptóriamente êsse aborrecimento,
preferindo fazer insinuações que a espôsa deve
compreender, em vez de esperar pelo estouro
que, por certo, um dia virá. (JORNAL DAS
MOÇAS, 1954)

Mais uma vez, o conselho dado é o de que a vontade


do homem (marido) deve ser atendida para que ele não
estoure. A mulher casada, portanto, deve viver em
função do marido, servindo-o e procurando não
desagradá-lo.

Acima de tudo, a “companheira perfeita”


procura satisfazer o marido em nome da
almejada harmonia no lar, diante da qual ficam
em segundo plano as diferenças de opinião, os
desejos e as inseguranças femininas. O desenho
que o Jornal das Moças faz da companheira
perfeita remete a revoltas sufocadas, sacrifícios e
submissão da esposa (não se espera o mesmo dos
homens). O homem aparece quase como um
espelho da autoestima feminina: se ele está bem,
o casamento vai bem, a mulher deve alegrar-se.
(PINSKY, 2014, p. 233)

As dicas dadas na revista e ora analisadas fazem


circular o discurso de submissão feminina, indicando
que cabe à mulher abrir mão de suas amizades para
satisfazer os desejos do marido que pode estourar caso

113
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
isso não aconteça. A subordinação feminina aos desejos
do marido, faz com que discursos que pregam a
abnegação da mulher circulem na revista,
condicionando comportamentos femininos, de forma a
não oferecer, espaço de questionamentos em relação a
essa condição que é, antes de tudo, uma condição
histórica.

Exemplo 28

Fonte: Jornal das Moças (25 fev. 1954)

Mais uma vez o discurso da submissão feminina é


difundido e naturalizado retomando saberes da
formação discursiva patriarcal. Segundo o exemplo:

114
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Uma boa espôsa não mostra aborrecimento
quando, vez por outra, o esposo trouxer de
improviso, colegas, já seus conhecidos e homens
de boa conduta, naturalmente, para almoçar. É
lógico que isso não deve ser um hábito do
marido. Todavia, uma descortesia, poderia tirar
do espôso aquêle prazer que ele sente em
almoçar em casa, e nessas ocasiões, ouvir dos
colegas elogios às qualidades de boa dona de
casa que tecerão à sua espôsa. (JORNAL DAS
MOÇAS, 1954)

O matrimônio regulava, portanto, o


comportamento social da mulher a fim de controlá-la e
mantê-la numa condição de impotência perante o
marido e à sociedade, a ponto de abrir mão das suas
vontades e convicções. E, para ser o modelo de dona-de-
casa, era necessário que a mulher tivesse
comportamentos não reprováveis e cuidasse de sua
reputação. Por isso, nesse trecho, a revista indica a
importância da mulher ser reconhecida como boa esposa
pelos colegas do marido e, para que isso ocorra, é
necessário que esteja sempre pronta a não desagradá-lo.
Segundo Pinsky (2014, p. 231), “a revista dá diversos
conselhos à mulher casada para que preserve sua
reputação e não prejudique socialmente o marido com
um comportamento inadequado.” Assim, os conselhos
ali postados ensinam a mulher a limitar sua vida em prol
da do marido, podando sua vaidade, especializando-se
cada vez mais nas tarefas domésticas, não o
importunando com coisas consideradas supérfluas etc.
Cabe, portanto, à mulher estabelecer a felicidade

115
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
conjugal. Trabalhando pela paráfrase, o discurso da
revista visava estabelecer o espaço feminino no lar e no
casamento, construindo identidades de boa esposa a
partir de regras e conselhos a serem seguidos. Segundo
Orlandi (1999), os processos parafrásticos são aqueles
pelos quais em todo dizer há algo que se mantém, isto é,
o dizível, a memória. A paráfrase é a base do sentido,
pois é a partir dela que o sentido pode ser outro, pode
deslizar para se tornar diferente de si mesmo. Nos
dizeres sobre uma boa esposa, o que ser mantém é a ideia
de que ela é a única responsável pela felicidade conjugal
e que cabe a ela manter a harmonia do lar. Essa repetição
parafrástica faz circular uma ideologia de submissão
feminina que se naturaliza nas revistas, sendo difundida
em propagandas, piadas, conselhos, reportagens, contos
etc. A seguir, observaremos o último exemplo desta série
de conselhos publicados na revista:

116
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Exemplo 29

Fonte: Jornal das Moças (6 mai. 1954)

O exemplo 29 traz uma ideia de sacrifício da mulher


em prol do bem-estar do marido e, consequentemente,
em prol da manutenção do casamento. Assim, segundo
a revista, uma boa esposa

não rouba ao marido certos prazeres, mesmo que


êstes a contrariem. Mesmo arriscando-se, por
exemplo, a não poder adormecer, deixe um
abajur aceso para que êle possa ler as notícias dos
jornais, a fim de que possa ficar ao par dos
acontecimentos importantes que lhe possam ser
úteis, tanto para os seus negócios quanto para
estabelecimento de real proveito. (JORNAL DAS
MOÇAS, 1954)

117
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Aqui, o discurso traz novamente a ideia de sacrifício
feminino, pois mesmo que tenha seu sono
comprometido, a mulher deve deixar o abajur aceso para
permitir que o marido assista aos jornais e informe-se
sobre coisas de seu interesse. Como coadjuvante no
casamento, submissa aos desejos do homem, a mulher
deve abrir mão de suas vontades e desejos, ainda que as
vontades e desejos do marido a desagradem. Ela deve
colocar os desejos do marido acima dos seus, uma vez
que é o marido o chefe, o que proporciona também o
sustentáculo financeiro da família.
É, mais uma vez, pela história que a ideia de
submissão feminina vai sendo construída, retomada e
consolidada. A ideia de sacrifício é retomada do discurso
religioso, a partir das figuras do santo e da santa e,
colocado no contexto do conselho à boa espôsa,
normatiza-se o comportamento dela como o de uma
“mulher quase santa”.

Assim, distante da realidade dos homens e


próximo da realidade sagrada, o santo seria, a
partir de sua origem lexical, alguém que se
encontra à parte dos seres humanos comuns e
das vivências profanas. Alguém cuja trajetória de
vida é marcada pela renúncia, pela abdicação e
pelo sacrifício, os quais, juntos, traduzem um
espírito puro e uma conduta marcadamente
cristã. (CARVALHO, 2017, p. 47)

A ideia de mulher quase santa visava normatizar


um comportamento feminino em que a sexualidade era

118
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
negada antes e regulada durante o casamento, a partir
da ideia de reprodução. A ideia de submissão, vista
como natural, também era disseminada em outras partes
da revista, incluindo reportagens, colunas, propagandas
etc. Na coluna “Bom dia Senhorita”, escrita por Roberto
Moura Torres, destaca-se um trecho alusivo a essa ideia:

Exemplo 30

Fonte: Jornal das Moças (8 jul. 1951)

No exemplo anterior, a ideia de submissão feminina


e separação de funções pública e doméstica para homens
e mulheres é colocada como algo próprio das sociedades
civilizadas. Ao trazer pesquisas realizadas pelo
antropólogo Malinowski, em relação à mudança de
papéis entre homens e mulheres num grupo indígena,
quando os homens cuidam dos filhos, de sua
alimentação e outras coisas, e as mulheres não exercem
função subalterna, a revista ressalta que isso é costume
das sociedades primitivas, relegado aos povos que
vivem numa sociedade pouco desenvolvida. Assim, é
pela descaracterização dos povos, cujos papéis fazem
com que homens e mulheres se coloquem em posições

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Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
diferentes, que a revista dissemina as ideias do que é ser
homem e mulher na sociedade da época, moldando
identidades, construindo representações sociais com
base na retomada ou desconstrução de elementos sócio
históricos.

120
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
3
AS PROPAGANDAS E O DISCURSO SOBRE A
MULHER

Como elemento de discurso, a propaganda é uma


das materialidades que fazem circular sentidos e
construir identidades e, uma vez que é um instrumento
midiático que atinge milhares de consumidores, possui
grande inserção na sociedade, objetivando a venda e a
divulgação de mercadorias diversas. Através das
propagandas, há a construção simbólica de tendências
de moda e padrões de beleza, e é também através do
discurso publicitário que se associam sujeitos ao
consumo, identidades a mercadorias, sob o pano de
fundo de determinada ideologia ali difundida. Sendo
assim, pode-se afirmar que o discurso publicitário que
perpassa as propagandas, com o objetivo mercadológico
de vender produtos, contribui para a construção dos
sujeitos na sociedade da informação, sujeitos esses que
passam a ser vistos como consumidores em série.
Como elemento de discurso, a propaganda é
atravessada pela opacidade e pela memória histórica.
Aliás, é porque ela é atravessada pela memória que faz
circular já-ditos, que faz circular a ideologia, que faz com
que ela se inscreva num lugar antes de tudo histórico.
Segundo Sandmann (1999, p. 10), a palavra
“propaganda” possui diferentes compreensões. Para
esse autor, significa aquilo que deve ou precisa ser
propagado, difundido. Enquanto o termo publicidade se
aplica a apenas a peças com objetivos comerciais, a
propaganda é mais abrangente, pois engloba os

121
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
discursos ligados às esferas políticas, religiosas e
também comerciais. Desse modo, utilizaremos aqui a
palavra propaganda para nos referirmos a algo que é
propagado, difundido, veiculado amplamente. Nesse
caso, iremos nos deter às propagandas que circulam na
revista Jornal das Moças e que fazem circular sentidos e
representações sobre a mulher na sociedade.
Desse modo, deslocamos aqui a noção de
propaganda como um gênero neutro e objetivo, cuja
função seria vender produtos diversos, e passamos a
considerá-lo como um elemento de discurso no qual se
inscreve a historicidade, a ideologia e a memória. Assim,

o discurso publicitário não se constitui


unicamente de informações objetivas sobre os
produtos a serem vendidos, mas de um processo
de comunicação social complexo em ressonância
com as forças do imaginário dos indivíduos.
Deste modo, diante de tantos produtos
assemelhados, o discurso publicitário tem o
papel de diferenciá-lo. (COSTA E MENDES,
2012, p. 4)

Assim, de acordo com os apelos comerciais, em


consonância com o imaginário dos sujeitos, com seus
desejos de consumo, a propaganda utiliza diferentes
formas de constituição do discurso, que frequentemente
criam padrões identitários com os quais os sujeitos
consumidores se identificam.
No processo de criação da ideia sobre o produto
anunciado, elas pressupõem uma divinização da
mercadoria, de modo que, ao adquiri-la, o sujeito passa

122
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
a possuir não apenas o produto, mas também as
sensações de liberdade, autonomia, aventura,
modernidade, bem como os padrões de beleza, dentre
outros elementos trazidos por ele. Dessa forma, o sujeito
da sociedade de consumo se subjetiva e constitui-se a
partir da apropriação de bens de consumo, o que
coaduna com a ideologia capitalista do ter e não do ser.
Em relação ao papel do discurso publicitário na
construção das identidades,

[...] a mesma globalização que intensifica as


misturas e pulveriza as identidades, implica
também na produção de kits de perfis-padrão de
acordo com cada órbita do mercado, para serem
consumidos pelas subjetividades,
independentemente de contexto geográfico,
nacional, cultural, etc. Identidades locais fixas
desaparecem para dar lugar a identidades
globalizadas flexíveis que mudam ao sabor dos
movimentos do mercado e com igual velocidade.
(ROLNIK, 1997, p. 20)

Os kits de perfil-padrão são produtos que


constroem identidades padronizadas que são
representações dadas aprioristicamente. No caso da
identidade feminina, o corpo padrão atual é branco,
magro, sem celulite, estrias, com determinado tipo de
cabelo etc. No período em análise das revistas Jornal das
Moças, o kit de perfil padrão correspondia ao corpo
branco, não muito magro nem muito gordo, ao cabelo
liso etc.

123
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Dito de outro modo, as propagandas contribuem
para a construção de identidades sociais e para a
condução dos comportamentos dos sujeitos, os quais
terminam aderindo a este ou aquele mundo criado no
discurso publicitário. Desse modo, apresentando um
produto como novidade total ou como a resolução de
problemas que desagradam os consumidores, a
publicidade constrói argumentos em que o consumo de
determinado produto passa, então a ser uma
"alternativa" para a solução desses problemas, uma vez
que, ao consumir determinada mercadoria, o sujeito
passa a incorporar as características da mesma, a
novidade estampada por ela, as tendências de moda e de
beleza nela anunciadas. Assim, observaremos nesta
seção, algumas propagandas e os modos como essas,
enquanto elementos de discurso constroem identidades
femininas.

124
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Compartilhamento proibido
Exemplo 31

Fonte: Jornal das Moças (6 dez. 1956)

O exemplo 31 é uma propaganda do absorvente


Modess. Como um elemento de discurso, essa
materialidade traz marcas de fatores históricos que
constituem os dizeres e algumas dessas marcas estão nas
palavras e expressões usadas na materialidade em
análise. A expressão “daquela fase” é usada em
substituição à menstruação ou ao período menstrual,

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Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
indicando que há uma palavra interditada, algo que não
pode ser dito abertamente, algo do qual não se pode falar
de maneira clara. Temos aí o funcionamento do silêncio
local, aquele da censura, como postula Orlandi (2007).
Assim, o silêncio local impede que algo seja dito em
determinada conjuntura. Nesse caso, na conjuntura
histórica dos anos 50, falar sobre sexualidade feminina,
sobre corpo e constituição biológica da mulher era um
tabu e tudo relativo à sexualidade feminina era
interditado, proibido, como se fosse algo vergonhoso ou
impuro. A ideia de menstruação como impureza
historicamente pode ser recuperada no discurso
religioso, na Bíblia, já que

uma mulher que tem um fluxo, seu fluxo é


sangue de seu corpo. Ela estará sete dias em sua
incapacidade cúltica devido à sua menstruação, e
quem a tocar, estará impuro (a) até o anoitecer.
Tudo sobre o que ela se deitar menstruada está
impuro, e tudo sobre o que ela se senta, está
impuro. Cada um que tocar seu leito, lave suas
vestimentas e banhe-se em água, e ele estará
impuro até o anoitecer. Cada pessoa que tocar
qualquer objeto sobre o qual ela senta, lave suas
vestimentas e banhe-se em água, e estará impura
até o anoitecer. (BÍBLIA, Levítico, 15, 19-22)

Assim, não usar a palavra “menstruação” indica um


silenciamento desse aspecto da sexualidade feminina,
um não poder dizer regulado pela história. A palavra
menstruação só aparece uma vez no anúncio relacionada
ao discurso didático cujas regras sobre ser mulher eram

126
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
difundidas através de um livro intitulado “Ser mulher e
ser feliz” distribuído gratuitamente pela Johnson &
Jonhson, empresa fabricante do Modess. O fato de haver
um enunciado que diz: “verá como o fato é normal, como
é fácil passar por aquêles dias” já indica a presença de
um outro enunciado, inscrito na história e retomado pelo
discurso religioso, de que o período menstrual não era
normal nem natural, portanto, o anúncio afirma a
normalidade da menstruação em um tom didático, algo
ensinado pelo livrinho gratuitamente distribuído.
Um outro aspecto que marca a historicidade dessa
propaganda é a oposição entre o modess e as “toalhas
comuns” trazidas no texto do anúncio. Os absorventes
descartáveis chegaram ao Brasil na década de 1930, mas
nesse período ainda eram pouco usados pelas mulheres,
que costumavam utilizar toalhinhas de pano no período
menstrual, costuradas por elas mesmas, uma a uma. As
toalhinhas eram dobradas em três partes e deveriam ser
constantemente trocadas para segurar o fluxo, por isso,
elas eram lavadas e reutilizadas. No trecho: “é mais
higiênico que as toalhinhas comuns pois é usado uma só
vez”, o anúncio traz marcas da historicidade, na
construção discursiva de oposição entre o velho e o
novo, apresentando o absorvente descartável como uma
novidade proveniente da vida moderna.
O exemplo a seguir traz agora um outro aspecto de
construção da imagem feminina, como poderemos
notar:

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Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Exemplo 32

Jornal das Moças (26 set. 1957)

O exemplo é uma propaganda de um programa da


Rádio Mundial, cuja chamada é: “Uma mensagem de
alegria para todos os LARES”. (JORNAL DAS MOÇAS,
1957) A existência de um programa intitulado
“Programa das donas de casa”, já dialoga com os
aspectos históricos e sociais do período no qual a função
mais adequada para que uma mulher exercesse seria a
de dona de casa, mãe, mulher e esposa. A propaganda
anuncia ainda um concurso intitulado “Rainha das
costureiras” que visava escolher a melhor costureira.

128
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Durante toda a primeira metade do século XX, as
meninas foram ensinadas a realizar trabalhos manuais,
dentre eles, corte e costura. Assim, a partir da sociedade
patriarcal, as moças precisavam ser prendadas e
aprender as atividades que pudessem auxiliá-las a
realizar tarefas domésticas e o corte e costura estão entre
essas atividades, pois, a partir deles, as mulheres
poderiam, ao casarem, costurar as próprias roupas e as
roupas dos filhos e maridos. Desse modo, “as imagens
femininas, historicamente e culturalmente, se
adaptaram aos papéis sociais que lhes foram tributados,
a partir das representações sociais provenientes de um
sistema patriarcal.” (SCHOLL, 2012, p. 36)
Os trabalhos com agulha fizeram, inclusive, parte
do currículo escolar da escola para moças, em ensinos
técnicos e profissionalizantes, por exemplo. A educação
técnica voltada para mulheres no período visava formar
“moças prendadas que se tornavam “competentes
donas-de-casa” e “operárias capacitadas”, para atuar no
âmbito das demandas emergentes das indústrias
urbanas ou como artífices (modistas, costureiras,
chapeleiras, floristas etc.), em oficinas, casas de moda ou
no próprio âmbito doméstico.” (SCHOLL, 2012, p. 146)
Assim, o trabalho de costureira era
majoritariamente realizado por mulheres e essa
atividade era aceita socialmente, uma vez que indicava
habilidades femininas. Muitas mulheres realizavam as
atividades de corte e costura como complemento da
renda, outras as realizavam profissionalmente, por isso
o fato de haver um concurso para a escolha da rainha das
costureiras, dentro de um programa de rádio voltado

129
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
para donas de casa, retoma uma historicidade que
definia o lugar da mulher.

Pode-se dizer que o papel da mulher brasileira


esteve influenciado pelo discurso ideológico da
“costura” como “coisa de mulher”, que
permeado por ideias educacionais rígidas
reafirmavam os papéis indissociáveis de mãe,
esposa e dona-de-casa exemplar, a quem a
atuação profissional consistia em trabalhos que
poderiam ser realizados no seio do lar, como
maneira de servir aos filhos e marido e em último
caso, de complementar a renda da família.
(FRASQUETE; SIMILI, 2017, p. 270)

Assim, o anúncio do exemplo anterior se insere na


historicidade do período analisado e a mídia funciona
como difusora da ideia de naturalização da costura como
coisa feminina, uma vez que essa prática poderia manter
a mulher no lar, permitindo-a realizar pequenos
trabalhos de complementação da renda, mas mantendo-
a ainda na esfera privada. Vejamos o exemplo a seguir:

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Exemplo 33

Fonte: Jornal das Moças (2 jan. 1959)

As prendas domésticas eram exigidas às mulheres


da década de 1950, de modo que

ser mãe, esposa e dona de casa era considerado o


destino natural das mulheres. Na ideologia dos
Anos Dourados, maternidade, casamento e
dedicação ao lar faziam parte da essência
feminina; sem história e sem possibilidades de
contestação. (PINSKY, 2008, p. 609)

Dessa forma, as prendas domésticas eram


requeridas para que a mulher conquistasse a felicidade
na sociedade, inclusive atraindo um bom partido para o
casamento. É dentro dessa conjuntura que o anúncio
anterior se inscreve: trata-se de anúncio de livros que

131
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
ensinam a fazer bolos artísticos e salgados. O fato desse
anúncio estar circulando numa revista feminina não é
aleatório, uma vez que a mulher era educada desde tenra
idade nas artes culinárias, de forma que cabia a ela
dominar tais artes para manutenção da felicidade
conjugal e familiar.
A realização das tarefas domésticas, inclusive da
cozinha, tinha, porém, um corte de classe: as mulheres
brancas de classe média eram as que muitas vezes
supervisionavam as tarefas domésticas realizadas pelas
mulheres pobres (empregadas domésticas).

O trabalho doméstico sempre fez parte da vida


feminina. As expectativas indicam, embora não
seja regra geral para todos os casos, que, atuando
como donas-de-casa e/ou como profissionais
remuneradas, a cozinha constitui o lócus de
atuação das atividades da mulher, ao longo de
sua vida. Tradicionalmente, o trabalho na
cozinha foi, muitas vezes, determinado pelas
questões econômicas e sociais: as mulheres
brancas e de famílias abastadas encontravam o
sustento na casa dos pais e, depois, na casa do
marido e o seu trabalho doméstico consistia na
organização e comando da criadagem, no
cuidado com os filhos, na prática do bordado, do
piano, da pintura; às mulheres pobres, cabia o
trabalho doméstico na casa e o remunerado como
empregadas domésticas, exercido
profissionalmente, com o intuito de sustentar ou
complementar a renda familiar. (SANTOS, 2011,
p. 116)

132
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
Assim, um anúncio de livros de culinária, fosse para
a prática profissional ou doméstica, estava inserido
numa conjuntura que colocava as mulheres na esfera da
cozinha. Aliás, a cozinha era, muitas vezes, considerada
o espaço mais importante a ser ocupado por uma mulher
em casa. Era nela que a dona de casa deveria preparar as
comidas que proveriam o sustento físico e biológico para
o restante da família, cabendo a ela dominar as receitas
para produção de alimentos. Por meio desse anúncio,
dirigido à mulher através da revista feminina, a
publicidade faz circular sentidos sobre os espaços
legítimos a serem ocupados por homens e mulheres na
sociedade.

Exemplo 34

Fonte: Jornal das Moças (jan. 1957)

O exemplo anterior é uma propaganda de


liquidificador e nela se inscrevem elementos históricos e
ideológicos que constituem as condições de produção do
discurso. Apesar de ser um anúncio de liquidificador,
não é ele que aparece em destaque, mas sim a imagem

133
Lei de direitos autorais
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de uma mulher sorrindo dentro de uma cozinha, tendo
o liquidificador apenas ao fundo.
Longe de ser apenas um elemento secundário e
decorativo, a imagem também é produtora de sentidos,
pois, como assevera Pêcheux (1985, p. 51), a imagem
seria “um operador de memória social, comportando no
interior dela mesma um programa de leitura, um
percurso escrito discursivamente em outro lugar”. Nela
se inscrevem discursos, inscreve-se historicidade,
inscreve-se a opacidade. Portanto, o fato de haver uma
mulher sorrindo em destaque na frente de uma cozinha
não é aleatório. Antes de tudo, essa imagem, como
operadora de memória social, traz discursos sobre a
mulher e o lar que indicam a felicidade e a realização
femininas na esfera doméstica, como se a inserção dela
nesse espaço fosse fruto de alegria e felicidade naturais.
O liquidificador, ao fundo, secundariamente colocado
no plano de trás da imagem, passa a ser um coadjuvante
da mulher na realização de suas tarefas e de sua missão
doméstica. O que é vendido na propaganda não é apenas
o liquidificador, mas a ideia de realização feminina
através do trabalho doméstico que será facilitado pelo
uso do produto anunciado.
Retomando Pêcheux (2010), “a memória como
acontecimento a ler”, inferimos que esta imagem do
anúncio aciona uma memória histórica, que, como
acontecimento, restabelece os implícitos: a ligação entre
a mulher e a cozinha, a mulher e o lar.
Assim, a imagem presente na propaganda do
exemplo anterior traz em si uma série de já-ditos que
constituem o dizer sobre a mulher. Podemos trazer na

134
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
cadeia histórica alguns enunciados como: “lugar de
mulher é na cozinha” e “a verdadeira felicidade
feminina é o cuidado com o lar”, que são retomados
nessa imagem para gerar um sentido sobre a mulher.
Juntamente com a imagem, a parte verbal que
descreve o produto anunciado indica também um
funcionamento ideológico que confere à mulher o lugar
doméstico. O texto, dirigido às mulheres, indica que o
liquidificador Long life é “o que existe de melhor para seu
lar”. Assim, ao direcionar o texto à mulher, desvela-se o
funcionamento ideológico que naturaliza o lugar
feminino como sendo na cozinha. Dessa forma, a parte
verbal complementa a não verbal na tecitura do discurso
que incide sobre o ser mulher nas condições de produção
ora analisadas.

135
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido

136
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
4
ALGUMAS ÚLTIMAS PALAVRAS

Finalizamos este trabalho com a certeza de que não


pretendemos esgotar essas discussões e de que é
importante sempre retomarmos o debate sobre a
representação da mulher nas revistas e na publicidade,
uma vez que tais debates reverberam questões sócio-
históricas importantes para compreensão dos diversos
papéis sociais ocupados pelos sujeitos.
As mulheres, sempre constituídas como o outro na
história, uma vez que sua constituição histórica ocorre a
partir da representação primeira do homem, esses
considerados os líderes naturais, foram subjugadas,
tendo seus direitos cerceados, sendo submetidas aos
seus pais, irmãos ou maridos, sendo consideradas
legalmente incapazes. Nesse contexto, as revistas
femininas, funcionando como um instrumento de
construção de identidades e, portanto, como um
elemento discursivo, tiveram um papel importante na
disseminação de ideias do que era ser mulher na
sociedade, fazendo circular sentidos, estereótipos que
vão colocar a mulher em determinada posição na
sociedade.
Em tom de conselho, as revistas femininas
indicavam regras de comportamento, construindo as
ideias do que viriam a ser “mulheres de família”, “moças
levianas”, “boas ou más donas de casa”, “boas ou más
esposas” etc. Essas representações, funcionando pela
paráfrase, eram repetidas e retomadas durante toda a
revista Jornal das Moças, por exemplo, uma vez que

137
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
eram disseminadas em piadas, propagandas, contos,
reportagens, receitas, imagens etc.
Reiteramos aqui a ideia de que as revistas, muito
mais do que elementos de informação e entretenimento,
passam a constituir-se como elementos de discurso,
fazendo ecoar já-ditos, retomando aspectos da memória
histórica na constituição de sentidos e da ideologia que
constitui os dizeres e naturalizam representações de
gênero.
A mulher no papel da revista é aquela que, antes de
tudo, deve aceitar sua submissão, naturalizando-a,
inserindo-se numa comunidade imaginada de
“mulheres de verdade”. Retomamos na e pela história a
figura da Amélia, a “mulher de verdade” “aquela que
não tinha menor vaidade” cantada por Mário Lago, cuja
figura foi construída, cultuada e disseminada durante
vários anos como ideal de mulher no Brasil. Entre as
Amélias da década de 1950, havia jovens podadas em
seus sonhos e ideias, mulheres subjugadas, submetidas
a casamentos infelizes, apontadas como incapazes de
segurarem os relacionamentos conjugais. São as
Amálias, as Rosálias, e outras anônimas mulheres que se
constituem na e pela história, através da submissão
imposta pelo patriarcado que se desdobrava, inclusive
na esfera jurídica.
Através das reflexões apontadas aqui, as quais
foram possibilitadas por termos recorrido ao arcabouço
teórico da Análise de Discurso de vertente pecheutiana,
buscamos compreender que as noções de gênero são
construções sociais e culturais e que a mídia na década
de 1950 funcionou como impulsionadora dessas

138
Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido
construções sociais, havendo menor espaço para o
questionamento dos papéis naturalmente atribuídos a
homens e mulheres. Esperamos que essas reflexões
possam engendrar outros questionamentos e
desdobramentos de novos estudos na problematização
dos papéis e representações da mulher na sociedade.

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Lei de direitos autorais
Compartilhamento proibido

140
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Compartilhamento proibido
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