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(© Oficio do Filisof Essien, » dup regiseto do dicutso da Sioa O Officio do Filésofo Estéico, o duplo registro do discurso da Stoa Rachel Gazolla Por Thiago de Oliveira Barbatho © livro de Rachel Gazolla, que faz paste da colegio “Leituras Filos6ficas’, promovida pelas Edigées Loyola, antes de qualguce -a da filosofia estdica, defende uma nova leitura do es- toicismo antigo. A partir das fontes doxogrificas, Gazola tece uma tese espe interpretacio dos principais conceitos estdicos que os isola de todos cos maus-olhos da tradiga0 ocidental, a qual mais se tem preocupado com apontar incoeréncias no estoicismo grego do que em revonhecer 1 quanto desse pensamenco ainda carregamos em nossas caracteris- ticas, sejam elas filoséficas ou priticas. Nao obstante, 0 livro néo esti preocupado com as idéias estéicas em relacio a modernidade, mas é cxatamente esse © seu mérito: a obra consiste numa leitura ccenttada to somente nas informagées mais antigas sobre a doutrina ‘em questio. Diégenes Laércio é uma das referéncias mais freqtientes 1no texto de Gazolla, mas estio presentes também todos os autores que Johannes Von Arnim reuniu naquela que é considerada a obra primordial para qualquer pesquisa minimamente sétia sobre 0 es- toicismo grego: 0 Stoicorum Veterum Fragmenta — sem teaducio em lingua portuguesa, vale saliencar. ‘Além de trazcr 3 tona os fragmentos para o letor brasileiro, O Oficio do Filisofo Exssico, a0 reconhecet os limites das interpretagées sobre suas fontes, traga um esclarecimente pioneiro em lingua portuguesa sobre fundamentais conceitos gregos da Stoa que influenciaram a filo- sofia pés-helenistica, tais como logos e physis — que, na falta de termos mais apropriados, podemos momentaneamente traduzir, respectiva- mente, por “lei” e “natureza”. E isso é mais do que reunir fragmentos Filosofia Antiga de textos arcaicos. £, enfim, reestruturar os fragmentos estdicos numa tunidade que recompde um auténtico sistema filoséfico. A partir da articulacio e da relacio entre os textos originais, 0 livro explora a nogio do ligos no seu aspecto humano: é dada bastante atengio ao problema da acio moral ¢ das paixées dentro do ambito dos ensinamentos éticos estéicos. Hi no livro uma perspectiva historica que situa a Stoa no mundo sgrego em que os valores haviam se dissolvido — na época em que escolas fechadas de filosofia se consolidaram, isoladas do cotidiano das pragas puiblicas. Nessa situagao, 0 estaicismo legitima nao mais 0s valores de uma sociedade, mas a autarquia como principio de agéo humana como vinculo do homem com o cosmo. Assim, uma re- lagio origindtia é pensada encre © homem e a physi, relacio esta em que © homem se nota dentro do sentido (Uégos) da realidade césmica. E.ai que o légos exerce 0 seu papel: 0s estdicos pensam entéo numa lei natural expressa nos homens como manifestacio imediata da phys. Em contrapartida, 0 némos seria a caboracio “artificial” (Feita com 0 labor humano) de aormas. Com isso, outra dificuldade surge ¢ € tratada pela autora: a cisio centre 0 campo humano ¢ 0 campo césmico. Gazolla detém-se entao nesse dualismo entre “totalidade césmica” — onde entram as questdes da fisica, da ética ¢ da légica -, € a “totalidade histériea” ~ elaborada pelas particularidades humanas e suas ages no mundo -, procuran- do provar que tais dualidades néo sio incocréncias dentro do sistema cst6ico, e sim dois patamares de uma mesma tematica ontolégica. Frente a essa dficuldade, Gazolla declara que o discurso estéico pos- sui um duplo registro — e assim se esclarece 4 subtitulo do livro. O discurso da Stoa é totalmente perpassado pelo registro do cardter di- vino € humano do mundo, pelo légos totalizante ¢ pela acio moral enquanto constituinte dessa toralidade, pela physis abarcadora e pela sua expressio peculiar enquanto racionalidade (igo). © cosmos tem intimeras maneiras de se manifestar em nds. Participamos de sua logica por via de nossas necessidades tanto quan- © Oficio do isola Estéico, o uplo regi do dscuro da Stoa 449 to de nossas agées. © humano e 0 divino é um s6 0 tempo todo. Contudo, pode-se ou nio viver de acordo com esse todo, na aceitagio ou nfo de suas maneiras e de suas lutas naturais, Uma vida em de- sacordo com a phyisis se debate contra o irrecuperivel, contra aquilo que 0 cosmos conspira a favor tal qual uma necessidade légica do universo, Tudo participa desse jogo, mas hi, sem duivida, uma vida mais sibia do que outras (um tipo de sabedoria por exceléncia,jé que essa vida se identifica com o todo em harmonia). O sibio é 0 que & porque, como diria Herdclito, ouve o ligos e aceita sua ordem. E nesse trabalho sobre o carter césmico € ético das agées, sobre 0 di- vino no homem, que os stéicos fundaram um novo ponto de partida para avaliar a agio humana ~ e Rachel Gazolla reconhece esse pon to -, dando-Ihe atengio central 20 longo do livro. £ uma analise néo apenas do carter fisico-histérico das decisées humanas, mas também do seu cariter ontolégico. Fundem-se, com isso, o campo do sensivel com o do tepresentativo. Ora, seo sensivel & tido como instincia da fisica e da légica (H4 que os estéicos véem 0 mando como um todo cheio de corpos em cons- tante contato), tem-se que a ordem do fazer estard intrinsecamente ligada a do conhecer: a acio se liga & representagio, o movimento dos corpéreos se conecta ao juizo moral. A partir das sensagbes, surgem as representag6es €, com isso, a racionalidade encontra sua Aylé: a reflexio e a valoracio dadas na representagio chegam & matéria mes- ‘ma das corpos através das acées que esses processos representativos cengendram, porque as acées humanas geralmente se dio a partir de ‘um processo intelectivo de decisio e, portanto, de racionalidade. £ a0 reflexirc discernir sobre suas representagbes que a vida do sibio se dé dle acordo com a racionalidade, instincia humana do ligos. Outro ponto relevante para desmistificar 0 modelo ests © fato de que esse modelo consiste num modo de exerci téncia, ¢ N30 num ideal que devesse ser alcangado mais & frente. O modo de vida estéico se fat no exercicio constante do Légos manifesto no homem. Dito de outro modo, a vida sibia, segundo o estoicis- mo, é aquela que, ao accitar © /égos, assume seus lagos com a physis Filosofia Amiga « afirma-se em cada ato através de sua capacidade representativa ¢ racionalizante. E por toda essa elucidagio dos problemas da doutrina estéica grega € por despir tais aporias de qualquer descriminagéo € mesmo de toda a interpretagio tardia que tende a esquecer suas bases fisioldgicas, que 0 Oficio do Filésofo Estico constitu leitura relevance ranco no estudo da filosofia antiga quanto no esclarecimento de uma filosofia arcaica que inaugura pensamentos em vigor até nas reflexdes filoséficas mais modernas.

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