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FELIZ ANIVERSÁRIO, DE CLARICE LISPECTOR: UMA RELEITURA DO CONTO

Lucilene Oliveira do Rosário1

RESUMO: Pretende-se recontar o conto “Feliz Aniversário”, de Clarice Lispector, abordando


a questão da hipocrisia presente nos laços sociais e familiares, bem como os conflitos de uma
família de classe média na cidade do Rio de Janeiro. O conto narra a comemoração de
aniversário de uma senhora que completa oitenta e nove anos e, através do seu olhar, percebe-
se o mascaramento que rege as relações familiares. No lugar do afeto, a sujeição a um
compromisso no qual nenhum dos ali presentes se sente confortável. Objetiva-se, assim,
analisar o conto a partir do olhar intrigante da aniversariante e o comportamento dos
convidados, de tal forma a estabelecer uma relação entre as situações narradas e questões
relacionadas à sociedade e família.

PALAVRA-CHAVE: Família; hipocrisia; mascaramento; sociedade.

Clarice Lispector, em 1960, publicou um livro de contos chamado “Laços de família”.


Esta obra é composta por 13 contos, cuja temática central é o cotidiano e a prisão doméstica.
A maioria dos contos tem, como personagem principal, figuras femininas, com exceção de
dois contos em que o protagonista é masculino. As histórias são narradas na cidade do Rio de
Janeiro e ocorre, durante cada narração ficcional, o desfacelamento dos laços familiares ou a
queda brusca do cotidiano. A escritora lança o leitor ao mais profundo de si mesmo, pois há
uma busca de identidade que passa pela busca do outro.
Neste artigo será abordado “Feliz Aniversário”, o quinto conto do livro “Laços de
família”, considerado o mais irônico e um dos mais perturbadores relatos da autora. Este conto
narra a comemoração do aniversário de D. Anita, uma senhora que completa 89 anos. A filha,
com quem mora, prepara uma festa e a família se reúne para parabenizar-lhe, entretanto não há
a presença afetiva dos familiares, e a aniversariante, sentada sempre no mesmo lugar, observa
tudo até um determinado momento em que chega ao seu limite e denuncia, em gestos e
palavras, toda a farsa ali embutida.

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Aluna do curso de Letras Vernáculas e bolsista do projeto de extensão NECLUSO – Núcleo de Estudos da
Cultura dos Países Lusófonos, na UESB / Orientadores: Profs. Dras. Lucia Ricotta e Marília Librandi. Endereço
para correspondência: Avenida Íris Silveira, 600, apartamento 201, bairro Candeias, Vitória da Conquista - BA,
CEP: 45050130. Cel.: (77)81092364.

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A história ocorre na cidade do Rio de Janeiro e se inicia com a chegada de uma das
noras da aniversariante, que reside em Olaria, bairro localizado na zona norte. Ela trazia
consigo os três filhos e trajava-se da melhor forma possível, portando-se de maneira arrogante,
perante a família do marido. Este não fora porque não queria ver os irmãos. Em seguida, chega
outra nora, a de Ipanema, um bairro nobre vizinho à Copacabana. Ambas as noras, a de Olaria
e Ipanema, não se olham, deixando transparecer um conflito entre elas. Os três bairros
cariocas citados no conto representam diferentes espaços sociais da cidade e são
caracterizados pelas ideologias de seus representantes. A festa é realizada em um bairro que se
localiza entre os outros dois. Espaços distintos sócio, geográfico e economicamente se
aproximam nesta comemoração, em que encontram-se nos atos e na clicherização da
linguagem e das relações, a exposição de seu status.
A aniversariante morava com sua filha Zilda, a única entre seis irmãos, e que tinha
espaço e tempo para abrigá-la. Ela, Zilda, arrumara a festa cedo com todos os apetrechos
necessários. Antecipadamente, a homenageada da festa também fora colocada diante da mesa,
arrumada, para esperar os convidados e, conseqüentemente, não atrasar Zilda na organização
da festa. A nonagenária captava, atenciosamente, tudo o que acontecia ao seu redor. Nesse
episódio, a sala é arrumada conforme um teatro de arena, no qual a senhora e a mesa ocupam o
lugar central e, em disposição disso, retoma-se a idéia de origem, cujo desequilíbrio dos
personagens se processa. Além disso, vê-se uma sucessão de monólogos interiores misturados
a diálogos e comentários do narrador, bem como apresenta a protagonista da forma que os
outros a vêem e de como ela se vê.

De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou


outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela
angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o vôo da mosca em
torno do bolo. (LISPECTOR, 1998, p.227)

Após a chegada das noras, de Olaria e Ipanema, o restante da família começa a chegar
e encher a sala, tornando o ambiente ruidoso e inaugurando a festa. Neste instante, a
aniversariante em sua seriedade, não se expressava mais nem com um olhar. José, seu filho
mais velho, anuncia a idade da mãe, mostrando uma admiração para aqueles que se
encontravam na festa. Manuel, irmão e sócio de José, também levantou a voz e anunciou os
oitenta e nove anos que ali se comemoravam, entretanto sua esposa o reprimiu diante da sua

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atitude. Dentre os convidados, nem todos levaram presentes e aqueles que a presentearam,
foram desconsiderados por Zilda. Esta se aproveitava dos presentes para benefício próprio e
resmungava quando algum não lhe servia. Durante o conto, há uma necessidade de mostrar o
quão é imperceptível e desinteressante o fato da senhora estar sendo homenageada. Isso
pressupõe a desvalorização da matriarca em uma sociedade dita matriarcalista, em que os
valores familiares já estão desgastados e eles se reúnem para promover um encontro que seja
simbólico.
As bebidas e comidas eram servidas, Zilda reclamava dos irmãos que não ajudavam-na
e, então, surge Cordélia, a nora mais moça, que se encontrava sentada e sorrindo. Manuel,
aproveitando-se do aniversário, insistia em falar de negócios com José, que o ignorava
constantemente e afirmava em voz alta ser o dia da mãe. A velha permanecia sozinha, como se
abandonada, no mesmo lugar e de forma inexpressiva pisca o olho.

Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que


ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de
uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca. (LISPECTOR, 1998,
p.227)

A partir daqui, pode-se depreender que há duas direções no conto que se interligam, as
de cunho social e as relacionadas às questões existenciais, respectivamente contrapondo a
questão da presença e ausência. Tanto Cordélia quanto a aniversariante encontrariam-se no
mesmo eixo, o da ausência. “E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada sorrindo.”
(LISPECTOR: 228). Ela era a única nora com um nome próprio e sem qualquer tipificação,
apesar de encontrar-se presente na festa, é reconhecida pela sua ausência através de
indagações sobre onde ela possa estar e excertos que indicam esta sua situação.
É chegada a hora de bater os parabéns, todos ficam envoltos à mesa, a luz se apaga e
sobre o bolo, Zilda havia escrito 89 em um pedaço de papel que ninguém, ao menos,
perguntara ou dissera nada a respeito da idéia dela em por a idade daquela forma sobre o bolo.
Na hora dos parabéns, José começou as palmas e devido ao seu olhar autoritário, todos
começaram a cantar. Cordélia volta à cena e olha esbaforida ao ouvir as vozes que cantavam a
canção do Feliz Aniversário em inglês e português, fazendo uma miscelânea. A vela foi
apagada por um bisneto e, logo após, a lâmpada foi acesa e alguns gritavam: “Viva mamãe!”,

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“Viva vovó!”. Surge, também, um “Viva d. Anita”, dito pela primeira vez no conto e pela
vizinha, uma pessoa fora da rede de parentesco.
É chegada a hora de partir o bolo e, então, foi sugerido que D. Anita o partisse.
Repentinamente, com força, dá a primeira talhada fortemente no bolo. Com este ato, a nora de
Ipanema foi tomada por um sentimento de horror e Zilda esclarece o quão forte a mãe era há
um ano atrás. Após a primeira talhada, todos se aproximaram da mesa para pegar seu pedaço
de bolo e juntos, através de cotoveladas, fingiam animação. Quando perceberam, D. Anita já
estava terminando de “devorar” sua parte do bolo. Cordélia se manifesta com um olhar
ausente, assim como D. Anita que passa a significar silêncio, não apenas pelo jogo da
linguagem, mas para deixar-se levar às questões existenciais que serão estruturadas a partir da
ausência e silêncio.
A senhora permanecia passiva até vir a cortar o bolo e neste momento, ela rompe sua
imagem de mulher digna. A associação feita entre o cortar e matar assemelha o aniversário a
um funeral, bem como a organização das cadeiras e as limitações dos personagens expostas,
ao longo do conto. A aniversariante, através de um monólogo interior, mostra o seu desprezo
por ter gerado seres marcados pela insensatez e pensa “como se cuspisse”, denotando uma
maneira grosseira de se pensar a família. Então, surge Rodrigo, filho de Cordélia e neto de D.
Anita, também pertencente ao eixo da ausência, o único por quem ela sentia carinho.

Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e,
impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles filhos e
netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como
se cuspisse. (LISPECTOR, 1998, p.230)

À medida que o desprezo sentido pela senhora vai aumentando, as imagens da trama
vão se assimilando ás instituições que ela desafia. Ao manifestar-se contra sua perda de poder
e desvalorização perante aqueles por ela gerados, sabe-se que a senhora é vítima da velhice. O
termo presilha, utilizado na citação acima, refere-se à quando ela foi arrumada por Zilda tal
qual os objetos que compõem a decoração da casa. A relação entre mãe e filha passa a ser
marcada pela inversão e por um elemento que pode ser interpretado como um elo sufocante
entre as duas.
A senhora relembra do seu casamento e do orgulho que poderia sentir dos seus filhos,
pois eles haviam nascido de uma união rica em valores. Entretanto, via a falsidade estampada

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no rosto de cada um deles. De repente, D. Anita cospe no chão e este é o momento em que
chega ao seu limite, expondo um reflexo da desestruturação familiar em seu extremo. Após
este ato, Zilda se exalta e diz que a mãe nunca tinha feito isso, percebendo que todos
consentiam, ela assumiu o fato da velha estar agindo deste modo constantemente. A escritora
supõe que a matriarca possui um papel falseado na sociedade, que abarca tanto as mulheres
quanto as suas famílias.
De súbito, a velha pede um copo de vinho e isso causa surpresa a todos. A neta negou-
lhe perguntando se não iria fazer mal, enfurecida respondeu-lhe agressivamente.

- Que vovozinha que nada! Explodiu amarga a aniversariante. Que o diabo vos
carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de vinho,
Dorothy!, ordenou. (LISPECTOR, 1998, p.231)

A neta então deu-lhe o vinho. Depois que recebeu o copo, permaneceu com um olhar
fixo e silencioso, esta atitude foi considerada um ato infantil da nonagenária, manifestado
através das risadas. A concepção ideológica da velha ser vista como criança traz pontos
considerados fundamentais, tais como a questão do nascimento/vida em tensão com a morte.
A festa estava acabada. Alguns se encontravam sentados e reflexivos, as crianças
continuavam brincando e a tarde caía. Cordélia reaparece trazendo em si um segredo não
revelado pela autora, algo que também evidencia a sua ausência diante do conto. Um dos
convidados, ao percebê-la ausente, questionou o que ela tinha, mas não obteve resposta. As
luzes foram acesas, as crianças começaram a brigar e o crepúsculo de Copacabana entrava
pelas janelas “como um peso”, exemplificado que tudo naquela ocasião de aniversário era
penoso, o que relembra e retoma as circunstâncias de um funeral.
A aniversariante recebe um beijo de cada um como se fosse uma estranha perante
aquele grupo que ali se reunia. A noite chegara, as crianças estavam histéricas e D. Anita
pensava se o jantar seria servido. Ela encontrava-se sentada com o punho fechado sobre a
mesa. Cordélia a olhou espantada, pois via nela o dissabor da vida e a verdade apenas era vista
quando a olhava profundamente.

O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio
amava talvez pela última vez. É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a
vida é curta. Que a vida é curta. (LISPECTOR, 1998, p.233)

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Cordélia encontrava-se entre os dois pólos, a morte e a vida, por parecer decifrar o
mistério da senhora. Mas esta, em sua fixidez, não nos diz mais nada porque “a verdade era
um relance” e diante disso, através de uma linguagem gestual, Rodrigo, o neto preferido da
velha e que representa a vida, a puxou pelo braço e ao olhá-la novamente, a aniversariante era
uma velha à cabeceira da mesa. Acabou-se, então, esta visão rápida de quem era D. Anita e ela
passou a ser uma velha sentada como os outros a viam. A senhora é narrada pela dualidade
entre conhecimento total e parcial, pois é tomada pelos aspectos exteriores e pelo silêncio.
Portanto, ela vai sendo construída e revelada gradativamente pelo deslocamento dela com
relação aos objetos e aos personagens.
Todos os anos era Jonga, o filho mais velho e que havia falecido, a fazer os discursos,
mas desta vez quem o faria era José. No início do discurso, surgiram algumas brincadeirinhas
que se dissiparam rapidamente. José não sabia o que dizer, aguardava uma frase “Que não
vinha”. Todos esperavam o discurso que se alongava silenciosamente, tendo como única fala,
a falta que Jonga fazia. José, então, disse “Até o ano que vem” e Manoel complementou “No
ano que vem nos veremos diante do bolo aceso!”, houve um certo receio em tais palavras, mas
tudo se saiu bem. A sociedade, neste episódio, reconhece-se tal como uma encenação teatral,
em que há a falência da linguagem verbal através do esforço de falar e do seu resultado.
José repete “No ano que vem nos veremos, mamãe!” e ela acarinhada grita que não é
surda, e intimamente, que não é idiota. Desceram, seguidamente, a escada estreita do prédio
onde Zilda morava. Na hora de despedida, alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros sem
receio e faltava-lhes a ultima palavra, que não sabiam dizer qual era. Não sabiam, mas
olhavam sorrindo uns para os outros. “Até o ano que vem” era a única coisa que sabiam dizer.
A fala final dos personagens e convidados da festa era apenas mais um clichê e caracterização
a falta de comunicação da família, assinalando que entre os familiares não havia “laços”, no
sentido de união e sim de uma prisão.
Alguns pensavam que a nonagenária não agüentaria a impaciência e o nervoso de
Zilda. A nora de Ipanema pensara “Para completar uma data bonita”, esquecendo-se do valor
de se completar mais um ano. Enquanto isso, D. Anita permanecia sentada e ereta em sua
cadeira, pensando se o jantar ainda seria servido.
A expressão “Feliz Aniversário” é uma ironia perante a narrativa do conto, pois a
situação de completar mais um ano de vida deveria ser de alegria e satisfação para a família.

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Neste caso, ocorre justamente o oposto porque as relações entre os familiares acontecem de
maneira forçada e tudo funciona no plano do “parecer ser”, i.e., na base das aparências.
Encontra-se relatado, neste conto, um reflexo da sociedade atual em que as pessoas mantêm-se
afastadas umas das outras, independente de constituírem laços de família. Percebe-se também
uma crítica clara ao sistema matriarcalista e à velhice, bem como ao modo de vida nas grandes
cidades, tais como o Rio de Janeiro.

REFERÊNCIAS

PEIXOTO, Marta. Ficções Apaixonadas. Gênero, narrativa e violência em Clarice Lispector.


Trad. Maria Luiz X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Vieira e Lent, 2004.

SANTOS, Roberto Corrêa de. Lendo Clarice Lispector. São Paulo: Atual Editora, 1987.

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.

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