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INTRODUCAO A OBRA DE MELANIE KLEIN Alba Licia Arline Barby Titulo original: Introduction to the Work of Melanie Klein. Traduzido da segunda edicfo, revista ¢ aumentada pela autora, publicada em 1973 por The Hogarth Press Ltd. 40 William IV Street, London W.C. 2. Copyright © 1964 e 1973 by Hanna Segal. Editoragao Coordenador: PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA. Traducdo: JOLIO CASTANON, GUIMARAES, Capa: PAULO DE OLIVEIRA 1975 Direitos para a lingua portuguesa adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA,, Av. N. Sra. de Copacabana, 330, 10° andar, tel.: 255-2715, Rio de Janeiro, que se reserva a propriedade desta tradugdo. Impresso ‘no Brasil Printed in Brazil 6 HANNA SEGAL, INTRODUGAO A OBRA DE MELANIE KLEIN Colegao Psicologia Psicanalitica Direcdo de JaYME SALOMAO Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicandlise do Rio de Janeiro. Membro da Associacdo Psiquiatrica do Janeiro. Membro da Sociedade de Psicoterapia Analitica de Grupo do Rio de Janeiro, IMAGO EDITORA LTDA. Rio de Janeiro INDICE Agradecimentos Introdugio 1, A Obra Inicial de Melanie Klein I, Fantasia UL. A Posigéo Esquizo-Paranside IV. Iaveja V. A Psicopatologia da Posigéo Esquizo-Paran6ide V._ A Posigdo Depressiva VII. Defesas Maniacas VIII. Reparagio IX. Os Estédios Primitivos do Complexo de Edipo X. Pés-Escrito Sobre Técnica Glossiio Bibliografia de Melanie Ki Algumas Importantes Contribuigbes para a Abordagem da Obra de Melanie Klein 2 22 36 51 66 80 95 105 117 131 139 144 147 AGRADECIMENTOS Este livro constitui um reconhecimento de tudo quanto devo a Melanie Klein. Asradeco a meus pacientes por sua coo} eragdo no raba- Tho analitico, sobretudo aos que me permit am utiliza” seu A varias geracdes de estudantes do Instituto de Psicané- lise de Londres devo 0 estimulo de suas perguntas, criticas e sugestoes, ‘A primeira edigdo deste livro foi publicada sob os auspi- cios do Melanie Klein Trust, tendo eu recebido valiosa ajuda dos curadores, principalmente de Miss Betty Joseph ¢ do Dr, Elliott Jaques. Mrs, Jean McGibbon preparou o indice remissivo da pri- meira edigio e me auxiliou na versio final do texto, ‘A meu marido agradeco sua ajuda e seu apoio. HS. INTRODUCAO Este livro tem como base uma série de aulas ministradas, no correr de varios anos, no Instituto de Psicandlise de Londres. Solicitada varias vezes pelos estudantes a Ihes fornecer c6pias de minhas notas de aulas, conclui que poderia ser Gtil arganiza- Jas © apresenté-las em livro, © curso destinava-se a servir aos estudantes como introdu- iio as contribuigdes de Melanie Klein para a teoria e a prética psicanaliticas. J4 que ministrado aos estudantes em seu terceiro ano de formagao psicanalitica, pressupée um grande conheci mento de Freud. Em um nimero limitado de aulas, s6 se pode fornecer uma descrigio muito simplificada e esquemitica das contribuigdes tedricas de Melanie Klcin; no entanto, como as derivam da experiéncia clinica ¢ pretendem clinico, confio em que alguns exemplos ransmiti-las de modo mais satisfatério, As aulas querem ser uma introdugao, ¢ ndo um substituto, a0 estudo das obras de Melanie Klein; podem ser utilizadas como um guia de estudo, No texto, nao ha citagoes, porque te- iam de ser muito numerosas; em v de cada isso, € fornecida, ao final uuma lista das obras mais importantes*, Toda- tulo sobre “A Psicopatologia da posicao esquizo-pa- ", abriuse uma excecio, j que.a contribuigio de Bion ‘ocupa, no assunto, posigio tnica; além disso, ria terminologia. No final do volume, encontra-se uma bi completa, em ordem cronolégica, das obras de Mc que podem ser encontradas em ‘inglés, bem como uma erafia selecionada de textos criticos que tratam de sua A ordem dos capitulos 6 a mesma adotada para as aulas. De certa forma, 0 desenvolvimento da teoria psicanalitica ocorre de modo inverso a0 desenvolvimento do individuo. O estudo de neuréticos adultos levou Freud, primeiramente, a descobertas sobre a infancia e, depois, sobre a tenra infancia; cada uma * Serio indicatos apenas. artigos referentes 4 obra de Melanie Klein, pois os estudantes das descobertas sobre os mais primitivos estédios do desenvol- vimento enriquecia ¢ iluminava 0 conhec dos estadios posteriores. De modo anélogo, Melanie Klein, em seu trabalho com criangas, foi levada a descobrit que tanto o complexo de Edipo como o superego ja esto bastante evidentes numa idade muito mais remota do que se presumia; exploragées posteriores Jevaram-na as rafzes primitivas do complexo de Edipo, is suas formulacies sobre a posi¢do depressiva ¢, por fim, sobre a po- sigio esquizo-paranéide. Seguindo-se a ordem cronolégica das contribuigdes de Melanie Klein, as ligagSes de sua obra com a de Freud tornam-se muito mais claras, sendo possivel, além dis- 0, acompanhar cada estadio do desenvolvimento de suas teo- rias, Por outro lado, ha grandes vantagens em comecar pela fincia mais primitiva e tentar descrever 0 crescimento psico- gico do individuo tal como o vemos agora a luz da teoria de Melanie Klein, Partindo-se, porém, desse caminho, ha que co- mecar pelas fases do desenvolvimento nas quais os fendmenos psicol6gicos se revelam os mais distantes da experiéncia adul os mais diffceis de estudar e, portanto e evidentemente, os mais controversos, Decidi, entio, tentar combinar ambas as aborda- zens: no primeiro capitulo, formeso um esboco da obra iniciat de Melanie Klein, procurando mostrar seu desenvolvimento, de modo especial em The Psycho-Analysis of Children, Em segui da, descrevo as implicagdes de sua obra com o conceito de fan- tasia inconsciente, abandonando entio a abordagem histérica a fim de apresentar suas consideragdes definitivas sobre © eresci- mento psicolégico. Acumulamos suficiente conhecimento e nossa teoria é suficientemente abrangente para autorizar uma tenta- tiva de apresenté-la como um todo, ‘A maioria dos capitulos destina-se a uma apresentacio dos fendmenos nas po: 6 ppenso, alids, ser atil, de rar clucidar © termo “posicio” Em certo sentido, a posigio esquizo-paranside e a posigao de- pressiva constituem fases de desenvolvimento, Podem ser con sideradas como subdivisoes do estédio oral, sendo os primeiros trés a quatro meses de vida ocupados pela primeira, e a segunda metade do primeiro ano pela outta, A posigao esquizo-par de caracteriza-se pelo fato de as criangas nao tomarem conheci- mento das “pessoas”, mantendo relacionamentos com objetos parciais, € pela prevaléncia dos processos de divisio (splitting) 10 © de ansiedade parandide, 0 i da posigéo depressiva é mar~ cado pelo reconhecimento da mde como uma pessoa total; ca- acteriza-se pelo relacionamento com objetos totais e pela pre- valéncia da integracio, ambivalénci jedade depressiva ¢ , Melanie Klein escolheu o termo “posicao” para dar énfase a0 fato de que o fendmeno descrito nao era simples- ‘mente um “‘estédio” passageiro ou uma “fase”, como, por ekem- plo, a fase oral; o termo escolhido implica em uma configuracio especifica de relagdes de objeto, ansiedades e defesas, que per= sistem durante toda a vida. A posicio depressiva nunca supera completamente a posigtio esquizo-parandide; a integracao alcan- ada nunca é completa e, além disso, as defesas contra 0 conflito Gepressivo provocam uma regressio 20s fendmenos esquizo-pa- Fandides, de modo que o individuo pode estar sempre oscilando entre as duis posigdes. Nos estadios posteriores, pode-se lidar com os problemas surgidos — como por exemplo o complexo de Edipo — dentro de um padrio esquizo-parandide ou de uum padrio depressivo de relacionamentos, ansiedades e defesas, sendo que as defesas neuréticas podem ser desenvolvidas ‘por uma personalidade esquizo-paranéide ou maniaco-depressiva, O modo como as relagdes de objeto sio integradas na posigio de- pressiva permanece a base da estrutura da personalidade. O que ocorre no desenvolvimento posterior é que as ansieda- des depressivas se modificam, tomando-se gradualmente menos intensas. Algumas ansiedades parandides ¢ depressivas permanecem constantemente ativas na personalidade; no entanto, quando 0 go jé esta suficientemente integrado, tendo estabelecido — du- ante a elaboragio da posi¢ao depressiva — um relacionamento relativamente seguro com a realidade, os mecanismos ne assumem gradvalmente 0 lugar dos psicéticos. Portanto, segun- do Melanie Klein, a neurose infantil constitui uma defesa contra as ansiedades parancides e depressivas subjacentes, bem como uma maneita de vinculé-las e elabors-las. A medida que rosseguimento os processos de integragio, iniciados na p depressiva, a ansiedade diminui, ¢ a reparagio, a sublimacio e ‘a criatividade tendem a substituir os mecanismos de defesa, tanto Psicdticos quanto neuréticos. A OBRA INICIAL DE MELANIE KLEIN As contribuigées de Melanie Klein para a teoria ¢ a técnica psi ccanaliticas podem ser claramente divididas em trés fases distintas >, A primeita fase tem inicio com seu artigo “On the Deve- lopment of the Child” e culmina com a publicagio de The Psy- cho-Analysis of Children em 1932, Durante essa fase, estabe Jeceu os fundamentos da andlise de criangas e delineou o com- plexo de Edipo e o superego até as raizes primitivas de seu de- senvolvimento. > _ A segunda fase conduziu a formulagio do conceito da po- sigio depressiva e dos mecanismos de defes principalmente em seus artigos “A Con genesis of the Manic Depressive States’ and its Relation to Manic Depressive St >A terceita fase ocupou-se do estadio mais primitivo, que ela chamou de posicao esquizo-parandide, formulada princip ‘mente em seu artigo “Notes on some Schizoid Mechanisms’ (1946) e em seu livro Envy and Gratitude (1957)* Hé uma mudanga seu ponto de vista co a partir de sua formulagao do conceito de posigoes em 1934. AUG essa época, se € Abraham, descrevendo suas des- cobertas em tern ios libidinais e da teoria estrutural { do ego, superego ¢ id. Contudo, de 1934 em diante, formulou * suas descobertas pi nente em termos de seu proprio con= ceito estrutural de posicdes. O conceito de “'posieio” nao entra em conflito com 0 conceito de ego, superego ¢ id, mas tem como teor definir a estrutura real do superego e do ego, bem como 0 ter de seus relacionamentos nos termos das posigdes esqui- zo-parandide e depressiva. Desejo dedicat este capitulo a obra de Melanie Klein ante- rior a 1934, a fim de mostrar como ela se desenvolveu a partir da teoria freudiana cléssica, em que pontos comesa a se dife- renciar dela, e como as primeiras idéias prefiguravam as for- mulagdes posteriores Quando na década de 1920 Melanie Klein comecou a ana- lisar eriangas, Jangou nova luz sobre 0 desenvolvimento primi- tivo da crianga, Como ocorre freqiientemente no desenvolvimen- to cientifico, novas descobertas se seguem ao uso de uma nova ferramenta, ainda que possam, por sua vez, conduzir 20 apri- moramento da ferramenta, No caso da anilise de eriangas a nova ferramenta foi a técnica de brincar (play technique). Inspi- ‘ rando-se nas observagdes de Freud (1920) quanto ao brincar da crianga com o carretel, Melanie Klein viu que o brincar da rianga poderia representar simbolicamente suas ansiedades \fantasias, Visto que nio se pode exigir a criangas pequenas que facam associagao livre, ela tratou seu brincar na sala de recreio do mesmo modo como tratou suas expresses verbais, isto é, como expresso simbslica de seus conflitos inconscientes, Essa abordagem forneceu-the um caminho para o incons- ciente da crianga: seguindo de perto a transferéncia e as ansie~ dades, como na anilise de adultos, foi capaz de descobrir 0 rico mundo da fantasia inconsciente © das relagdes de objeto da crianga. Suas observagdes na sala de recreio confirmaram direta- mente, a partir do material infantil, as teorias de Freud sobre sexualidade infantil, Contudo, também puderam ser observados fenémenos que no eram esperados. Pensava-se que 0 complexo de Edipo tinha inicio em torno dos trés ou quatto anos de idade, mas ela observou criancas de dois anos e meio que manifestavam fantasias ¢ ansiedades edipianas que ja tinham claramente uma hist6ria. Além disso, as tendéncias pré-genitais, bem como as genitais, pareciam estar envolvidas nessas fantasias ¢ desempenhar um importante papel nas ansiedades edipianas, No complexo de Edipo de criangas com mais idade, essas tendéncias pré-genitais também pareciam desempenhar um importante papel e contribuir significativamen- te para as ansiedades edipianas. O superego apareceu muito mais edo do que seria de esperar a partir da teoria cléssica, © pa- receti possuir caracteristicas bastante selvagens — orais, uretrais 13 ¢ anais. Assim, por exemplo, 0 supereps materno de Erna®, a “Pescadora” e/a “Mulher de Borvacha”, exibia as mesmas a. icas anais e orais que caracterizavam as préprias fanta- sias sexuais de Etna. Rita®, de dois anos e nove meses, em seu Pavor nocturnus, se sentia’ ameagada por uma mie ¢ um pai que morderiam seus drgios genitais e destruiriam seus bebe © medo dessas imagos dos pais paralisava seu brincar e suas atividades. Do mesmo modo, superegos severos foram exibidos por outros pacientes > Seguindo a simbotizagdo © a repeticio da crianga, na trans- feréncia, de relagdes de objeto ¢ ansiedades mais primitivas, ela foi levada a ver que as relagdes de abjeto da crianga se prolon- gavam pelo passado, exatamente até uma relagio com objetos arciais, tais como 0 seio e 0 penis, precedendo a relacao com 65 pais ‘como pessoas totais, Melanie Klein também descobriu que a ansiedade suscitada por essas primitivas relagoes de obje to pode exercer uma constante influéneia nas posteriores © ma forma do complexo de Eaipo, Essas primitivas relagdes de obje~ to eram caracterizadas pela importancia da fantasia. De modo nada surpreendemte, quanto mais nova a crianga, mais estava sob a influéncia de fantasias onipotentes, ¢ Melanie Klein foi capaz de seguir a complexa acio reciproca entre as fantasias como a eri seus objetos externos. O conflito entre ageessividade e libido, da anilise de adultos, provou ser muito lios primitivos do desenvolvimento, ¢ undo s6 que @ ansiedade (de acordo com a tiltima teoria de Freud a respeito de ansicdade) é devida mais & agdo da agressividade do que a da libido, bem como que era primaria~ mente contra a agressividade e a ansiedade que as defesas eram cerguicias. Entre essas defesas, negagio, divisio (splitting), pro- jegio © introjecdo mostraram ser ativas antes que a repfessao se organizasse. Melanie Klein viu que criangas pequenas, tadas pela ansiedade, estavam constantemente tentando dividir Gplit) seus objetos ¢ seus sentimentos, € tentando reter senti- mentos bons e introjetar objetos bons, a0 paso que expeliam Caso relatado em The Payeho-Analysis of Chil 1932), 4 ebjetos maus e projetavam sentimentos maus, Seguindo o des- tino das relagdes de objeto da crianga e a constante ago reci- roca entre realidade e fantasia, divisio (splitting), projegao ¢ introjecdo, ela foi levada a ver como a crianga constréi dentro de si mesma um complex mundo interno. O superego, natural ‘mente, era conhecido como um obieto de fantasia interno: ven- do, porém, como ele € gradualmente construido no mundo inter no da crianga, Melanie Klein viu que aquilo que era conhecido do superego nos estédios g era tao-somente um ii tio de um complexo desenvolvimento, Pode também ser to que nao apenas 0 ego mantém relacbes de diferentes espécies com seus objetos internos, mas que os préprios objetos internos so percebidos pela crianga como tendo relagées uns com os outros. Assim, por exemplo, as fantasias da crianga sobre a se- xualidade dos pais, quando o casal de pais € introjetado, tor- nnam-se parte importante da estrutura do. mundo interno Seu trabalho com criangas ¢ adultos, apresentado em vérios artigos, bem como em The Psycho-Analysis of Children, levou-a a uma formulacao dos estédios primitivos do complexo de Edi- po e do superego em termos de relagdes de objeto. primitivas, com énfase nas ansiedades, defesas e relagdes de objeto tanto quanto total Na fase oral-sddica, a crignga ataca 0 seio de-sua mie ¢ ‘© incorpora, ao mesmo tempo como destruido ¢ como destru- ivo — “um seio interno perseguidor e mau”. Isso, segundo Me- Klein, constitui a raiz. primitiva do aspecto persecutério Jsidico do superego, Paralelamente a essa introjegio, em situa- | S0es de amor e gratificacdo, a crianga introjeta um seio amado © amoroso ideal, que se torna a raiz do aspecto ego-ideal do superego, Logo, e parcialmente sob o impacto da frustracio © da iedade no relacionamento com 0 seio, os desejos € as fan tasies da crianga se estendem a todo 0 corpo de sua mae. O corpo da mae € fantasiado como contendo todas as riquezas, nclusive novos bebés ¢ 0 pénis do pai, Desde que ocorre essa ta para o corpo da mae, quando predominam sentimentos fantasias primitivos, a primeira percepgio que desponta na inca da relagdo sexual dos pais ¢ de natureza oral, sendo a mie concebida como incorporando 0 pénis do pai durante a re- 15 lacio sexual. Assim, uma das riquezas do corpo da mie & esse pénis incorporado ‘A ctianca volta para 0 corpo de sua /( desejos libidinais, mas, por causa da frustra também toda a sua destrutividade, Esses desejos ‘vem objetos fantasiados dentro do corpo da mae, ¢ em relagio 2 eles a crianga também tem desejos libidinais vorazes ¢ fan- tasias de escavi-los ¢ devori-los, ou, por causa de seu 6di inveja, fantasias agressivas de morder, atrancar e destruir — como na fantasia de Erna de fazer “salada de olho” dos con- tetidos do corpo de sua mac. . Em breve, a0 sadismo oral acrescentam-se 0 sadismo ure- tral, com fantasias de afogar, cortar e queimar, € 0 sadismo anal, aque na fase anal primitiva é de tipo predominantemente explo- sivo e que na fase anal posterior se torna mais secreto e vene- noso. Esses ataques ao corpo da me conduzem a fantasias de se tratar de um lugar aterrador, cheio de objetos destruidos e ingativos, entre 0s quais o pénis do pai adquire particular importincia. Foi em conexio com sua compreensio da relacao da ct ga com o corpo da mie que Melanie Klein elucidou a impor- Yancia da fantasia ¢ da ansiedade inconsciente na relagio da crianga com 0 mundo externo, bem como o papel da formacio simbélica no desenvolvimento da crianga. Quando no auge da ambivaléncia oral a crianga penetra em sua fantasia © ataca 0 corpo da mie e seus contetidos, este se torna um objeto de ansie~ dade, que forga a crianca a deslocar seu interesse do corpo da mie para o mundo a volta de si. Uma certa quantidade de ansie~ dade constitui instigagdo necesséria para esse desenvolvimento, * Contudo, se a ansiedade é excessiva, todo o processo de forma- io simbélica vem a se interromper. Em seu artigo “The Imp tance of Symbol-Formation in the Development of the Egi (1930), Melanie Klein descreve uma crianca psicética, Dick, ‘a formagao simbélica foi intensamente impedida; como ido a crianga deixou de dotar o mundo a sua volta de ‘qualquer interesse. Em seu caso, a andlise revelou que 0 ataque 0 corpo de sua mac-levou a uma ansiedade to intensa, que Dick negava todo interesse por ela e no podia, portanto, sim- bolizar esse interesse em outros objetos ou relagdes. A descricio feita por Melanie Klein da fantasia de Dick de penetragio do todos os seus 16 corpo de sua mae, acompanhada por projesio Prefigura suas formulagdes posteriores do mecanismo de identi. cia na pesquisa posterior sobre a natureza dos estados psicdticos, A medida que a crianga se d4 conta das identidades sepa- radas de seus pais e os vé cada vez mais como um casal empe~ nhado numa relacdo sexual — endo como a mie incorporando © pai —. 05 desejos da crianga e seus ataques — quando com raiva e com citime — se estendem ao casal de pais, Esses ata ques sto de dois tipos: a crianga pode fantasiar a si mesm: atacando os pais diretamente, ou projetar sua agressividade e, fem sua fantasia, fazer os pais atacarem um ao outro, dando origem a experiéncia da cena priméria como um acontecimento sddico e terrificante. Assim, tal como 0 corpo da mie, 0 casal de pais se toma objeto de medo, © medo da crianga no auge dessas fantasias pode ser duas vezes maior: trata-se tanto do medo de seus pais externos quan. to do medo de seus pais internos, desde que primeiro a mie © depois ambos os pais sio introjetados, dando origem as imagos internas punitivas ¢ terrificantes. Foi em conexio com essas fan tasias que Melanie Klein primeiramente chamou atengao para a importincia tanto da divisdo (splitting) quanto da acio reci- roca da introjesio e da projecao, que ela observou como sendo mecanismos mentais muito ativos em criangas pequenas. Con- frontada com a ansiedade suscitada pelas figuras internas te ficantes, a erianga tenta dividir (splir) sua imagem dos pais bons, bem como seus préprios sentimentos bons e amorosos, a Partir da imagem dos pais maus e de sua propria destrutividade. Quanto mais sidicas sio suas fantasias referentes aos pais € quanto mais terrificantes, portanto, as imagos deles, mais a erianga se sente compclida a manter esses sentimentos distantes de seus pais bons, ¢ mais-ela tenta introjetar novamente esses ais externos bons. Contudo, a introjegao de figuras mas nao Pode ser evitada, Assim, nos’estédios primitivos de desenvolvi- mento, a crianga introjetaria tanto os bons seios, pénis, corpo da mie ¢ casal de pais, quanto os maus. Ela procura lidar com as introjecées mas que se igualam as fezes pelos mecanismos anais de controle e ejecio. Peet te eee Leb * a / + Segundo Melanie Klein, 0 superego nao apenas precede 0 complexo de Edipo, mas também promove seu desenvolvimen- to. A ansiedade produzida pelas figuras més internalizadas faz a crianga procurar desesperadamente contact com seus pais enguanto objetos externos. Hé um desejo de possuit 0 cor- po da mide nao apenas com propésites libidinais e agressivos, ‘mas também livee de ansiedade para procurar nova seguranga fm sua pessoa real contra a figura interna terrficante. Ha tam- ‘bem o desejo de restituir ¢ reparar a mae real na relagdo sexual real pelo dano feito em fantasia. Do mesmo modo, com 0 pai, © pal real e seu pénis slo uma seguranga contra 0 pénis © 0 pai introjetados internos e terrficantes, Enquanto objeto ibid pal, seu pénis bom € procurado como uma seguranga contra o penis interno mau, e enguanto rival o pai real € muito menos tertificante do que a representacao interna deformada, Assim, a pressio das ansiedades produzidas por objetos internos conduz 2 eriana a uma relagio edipiana com os pais reais. Ao mesmo tempo, as ansiedades do estédio oral ¢ anal-sidico primitivo ineitam a crianga @ abandonar essa posigdo pela genital, que € menos sidica, portantes aspectos, das formulagbes de Freud sobre a sexualida~ de feminina e, em particular, sobre a importincia do estadio fa- Tico. Segundo seu ponto de vista, a menina, afastando-se do seio para o corpo da mie, exatamente como o menino, tem fantasias de escavar ¢ de ela propria possuir todos os contetidos desse ‘corpo, em especial o penis do pai dentro da mae ¢ seus bebés Como 0 menino, desde que suas fantasias s40 muito ambivalen- tes, os contetidos do corpo da mie, incluindo o pénis, podem ser sentidos como muito bons ou muito maus, mas sob o pacto da frustracao ¢ da inveja primitivas ela se volta cada vez mais para o pénis de seu pai, antes de tudo dentro do corpo de sua mie, depois como um atributo externo do corpo de seu pai, de um’ modo oral incorporativo, Melanie Klein observou que, na menina, hé uma tomada de conhecimento primitiva de sua vagina, e a atitude oral passiva se torna transferida da boca para a vagina, preparando o terreno para uma posicao edipiana genital. Nessa atitude primitiva para com sua mae, hd elemen- 18 tos tanto do desenvolvimento heterosexual como do homosse- xual. O superego materno primitivo pode ser muito terrificante para que a menina enfrente a rivalidade com a mae, contribuin- do entao para a homossexualidade, Do mesmo modo, se 0 pénis de seu pai se torna um objeto muito mau, pode levé-la a temer relagdes sexuais com © impacto da culpa e do vas em relagio ao corpo de sua mae podem também se tornar um forte determinante de homosse- da mie € possuir st 19 talhadamente nio s6 0 conflito primitivo entre os instintos de vida € de morte, bem como as ansiedades e defesas a que ele dé origem, O estudo dos objetos introjetados esclareceu, muito detalhadamente do que teria sido possivel antes, a estrutura interna do superego € do ego. > _ Em sua obra inicial, ela nao distingue conceitualmente-entre ansiedade e culpa (exceto em seu artigo “The Early Develop- ment of Conscience in the Child”, 1933), mas vé ambas como sendo elementos que promovem ‘tanto 0 crescimento do ego quanto, em casos patolbgicos, sua inibi¢ao. O estudo da agio reciproca entre agressividade ¢ libido leva & observagio do pa- pel da reparacéo na vida psfquica. Em seu artigo “The Impor- tance of Symbol-Formation in the Development of the Ego” (1930), Melanie Klein descreveu o papel da ansiedade e da culpa em relagdo aos ataques ao corpo da mie, e o impeto de fazer reparacao, como importante fator no impulso criativo — um tema que veio a ser elaborado plena e satisfatoriamente quando cla formulou as caracteristicas da posigo depressiva, Melanie-Klein obteve acesso @ compreensio da estrutura interna da ctianga seguindo a transferéncia e o simbolismo do brincar desta, Essa compreensio do brincar da crianga como sendo a simbolizagdo de suas fantasias levou-a a se dar conta de que no apenas o brincar mas todas as atividades da crian- ga — mesmo a mais realisticamente orientada —, simultanea- mente com sua funcio de realidade, serviram para expressar, conter ¢ canalizar a fantasia inconsciente da erianga através de meios de simbolizacéo. O papel fundamental desempenhado no desenvolvimento da crianga pela fantasia inconsciente e por sua iat € a reformular 0 conceito 20 BIBLIOGRAFIA SioMUND FREUD: Beyond the Pleasure Principle (1920), Standard Eaic tion, 18 (Londres: Hogarth). MELANIE KteIN: “The role of school in the libidinal development of J. Psycho-Anal,, vol. § (1824), rations reflected in a work of an”, Int, ‘ho-Anal, vol. 10 (1929) The importance of symbol formation in the development of the ego", Int. J. Psycho-Anal, vol. 11 (1930). The Psycho-Analysis of Children (Londres: Hogar 192). FANTASIA Mencionei no capitulo anterior a abservagio de Melanie Klein sobre a importincia da fantasia inconsciente dindmica na vida mental da crianga, A importincia que ela atribui a isso Tevou-a jar ¢ a reformular 0 conceito de fantasia inconsciente, Penso que a elucidagiio do uso que ela faz desse conceito é so de suas teorias, e que ela pode ajudat a evitar varios equivocos comuns (por exemplo, quanto A natureza dos Yobjetos ‘ou da identificagdo projetiva). Alguis psic6logos costumavam fazer objegdes a descrico da mente feita por Freud, com o pretexto de que era antropo- mérfica — estranha objegio, parece-me, j4 que a psicanilise se cocupa da descrigdo do homem. O que eles queriam dizer era que Freud, ao descrever conceitos como o de superego, parecia ver a estrutura mental como se ela contivesse objetos que eram antropomérficos ou semelhantes a0 homem. A compreensio do conceito de fantasia inconsciente poderia ajudar muito na re~ dessa objecdo, Freud, em sua descri¢ao do superego, nfo quer dizer que nosso inconsciente contém realmente um peque- no homem, mas que isso € uma de nossas fantasias inconscien- tes sobre 05 contetidos de nosso corpo ¢ de nossa psique. Freud nunca se refere especificamente a0 superego como sendo uma fantasia; contudo, deixa claro que essa parte da personalidade 6 devida a uma introjecio — em fantasia — de uma figura dos ais, uma figura dos pais fantasiada deformada pelas proprias projegdes da crianca, © mesmo tipo de eritica foi di tas A des- logo, esses \dos no corpo ou na ido por psicanal ‘De modo a psique; como Freud, Mé ineonscientes que as pessoas tém sobre o que elas préprias con- Na obra de Melanie Klein, 0 conceito freudiano de fan- tasia inconsciente recebeu maior peso e foi bastante ampliado. ‘As fantasias inconscientes so, em todos os individuos, u © sempre ativas, Isto é, sua presenga nfo € mais indicai 22 doenga ou de falta de sentido de realidade do que a presenca do complexo de Edipo, O que determinara o cardter da psico- Jogia do individuo € a natureza dessas fantasias inconscientes, € 0 modo como elas esto relacionadas com a realidade externa, Susan Isaacs, em seu artigo “On the Nature and Function of Phantasy", desenvolve a opi relago entre fantasia ineonscient tais. Afirma que a fantasia pode ser co sentante psiquico 0 instintos, Ja nstincts a de que Freud hesita entre du 0, descreve o instinto como “um cor enire 0 mental € @ somatico, 0 representante psiquico dos e: mulos que se originam de dentro do organismo ¢ alcangam a mente”, ou, em outro artigo, como “o conceito na fronteira entre © representante psiquico das forgas orgi- achey diz o seguinte: instintos € mecanismos men- ada como o repre- a expresso mental dos i ao artigo de Freud sentante psiquico”. Aparentemente considerava 0 proprio instinto como sendo o representante psiquico de forcas somiticas, Se agora, contudo, passarmos aos artigos ulte- riores dessa série, teremos a impressdo de que Freud traga uma distinggo muito acentuada entre o instinto e seu re- presentante psiquico. Strachey prossegue plo, 0 artigo sobre s, citando, por exem- Um instinto jamais pode tornar-se um objeto da conscién- cia — somente a idéia que representa 0 instinto 6 que pode, Mesmo no inconsciente, além disso, um instinto do pode ser representado de outta forma sendo por uma idéia, os e suas Vicissitudes"; ver Fuigio Standard Brasi- Paicolégicat Completa: de Sigmund Freud, vol, XIV, 1974, (N. do T-) 0 Inconsciente”; ibid. (N. do 7.) 23 Parece-me que 0 modo como Susan Isaacs usa 0 conceito de fantasia elimina o hiato entre os dois modos como Freud into seriam stinto, sob esse ponto de vista, & expressa e representada na vida mental pela fantasia da satisfagao desse instinto por um objeto apropriado, Visto. que 05 instintos agem a partir do nascimento, pode-s¢ Presumir que alguma grosseira vida de fantasia exista 2 part do nascimento. A primeira fome e o esforgo instintual para s: fazer essa fome so acompanhados pela fantasia de um obje- to capaz de satisfazé-la, Como as fantasias derivam diretamente de instintos na fronteira entre 0 somitico e a atividade ‘essas fantasias originais so experimentadas tanto como sométi~ ‘eas quanto como fenémenos mentais. Contanto que o principio de prazer-sofrimento esteja em ascendéncia, as Fantasias so oni potentes e nao existe diferenciacdo entre fantasia e experiéncia da realidade. Os objetos fantasiados e a satisfagio deles deriva- da io experimentados como acontecimentos fisicos. Por exemplo, um bebé ao adormecer, fazendo satisteito baruthos de sucgio © movimentos com sua boca ou chupando, seus préprios dedos, fantasia que esté realmente sugando ou incorporando 0 seio, dorme com a fantasia de ter realmente, dentro de si, 0 seio que dé o lite, De modo andlogo, um bebé faminto ¢ furioso, gritando © esperneando, fantasia’ que esti realmente atacando 0 stio, rasgando-o e destruindo-o, © expe- rimenta seus préprios gritos que 0 rasgam e © machucam como se 0 scio rasgado o estivesse atacando dentro dele proprio. Por tanto, no s6 exp as também pode sentir 0 sofrimento de dor e seus proprios gritos como um ata~ Que persecutério ao seu interior. A formagao da fantasia & uma fungio do ego. A concepgio intasia como expresso mental de instintos por m: Pressupde tim grau de organizago do ego muito m rente postulado por Freud, Pressupde que o ego, to, € capaz de formar — e, de fato, & impul intos e pela ansiedade a formar — relagdes de objeto na fantasia e na realidade. A partir do momento do nas- , 0 bebe tem de lidar com o impacto da realidade, co- mecando com a experi cimento € passando a icacao e frustracao de seus desejos. Essas experiéncias da realidade influenciam imediata- mente a fantasia inconsciente © so por esta influenciadas, A fantasia no ¢ simplesmente uma fuga da realidade, mas um constante ¢ inevitével acompanhamento de experiéncias reais, com as quais esté em constante interacZo. ‘Um exemplo de fantasias que influenciam a reagio a rea- lade pode ser visto quando um bebé {aminto ¢ furioso, a0 The ser oferecido o seio, em ver de aceité-lo, afasta-se d quer mamar. Nesse caso, o bebé pode ter tido a fantasia de ter atacado e destruido 0 seio, e sente que cle se tornou mau e que © est atacando, Portanto, 0 seio externo verdadeiro, quando a alimentar 0 bebé, no é sentido como um bom seio que alimenta, mas ¢ deformado por essas fantasias em um persegui- dor terrificante, Tais fantasias podem ser facilmente observadas no brincar de criangas ainda bastante pequenas, bem como no brincar e na fala de criangas um pouco maiores. Podem per- sistir no inconsciente tanto em criangas quanto em adultos, do origem a dificuldades na alimentagio. Alguns analistas pensam que essas fantasias surgem tarde © que sio projetadas retrospectivamente nos primeitos meses de vida, Trata-se, sem divida, de uma hipétese adicional esnecesséria, em especial porque hd uma acentuada concordin- cia entre 0 que podemos observar no comportamento dos bebés — em fantasias que sao realmente expressas uma vez dos 05 wear ¢ da fala — € 0 material anal do. consul Em casos mais sofisticados, & possivel ver como, ainda que a realidade possa ser percebida e observada com acuidade, as fantasias inconscientes podem determinar 0 tipo de seqliéncia causal atribuida aos acon pico desse caso € a crianga cujos pais tém realmente um relacionamento mau e brigam muito, Na andlise, geralmente transparece que a crianga sente que esse ‘elacionamento é resultado de seus Proprios desejos de que os pais brigassem, e que seus ataques urindrios e fecais atrapalharam e estragaram o relacionamento dos pai Se a fantasia ineonsciente est constantemente influencian- do € alterando a percepgio ou a interpretagao da realidade, o contrério também € verdade: a realidade exerce seu impacto 25 sobre a fantasia inconsciente. E experimentada ¢ incorporada, € exetce forte influéncia sobre a prépria fantasia inconsciente Tome-se, por exemplo, 0 bebé q) it fome ¢ que vence essa fome por uma alucinagio onipotente de ter um seio bom que alimenta: sua situagdo sera radicalmente diferente, se for alimentado logo, da que acorrera se for deixado com fome por muito tempo. Na primeira situacio, 0 seio real que € ofere- cido pela mac sera, na exp ido com 0 seio foi fantasiad ri de que sua pré- bondade e bom sio fortes e duraveis, No se- inado pela fome e pela raiva, € em sua fantasia a experiéncia de um objeto mau e perseguidor se tornaré mais forte, com a implicacZo de que sua propria raiva € mais poderosa do que seu amor, e a de que © objeto ‘mau & mais forte do que o bom, Esse aspecto do inter-relacionamento entre fantasia incons- iente e realidade externa verdadeira 6 muito importante quan- do se tenta avaliar a importincia comparativa do ambiente no desenvolvimento da crianga. O ambiente tem, naturalmente, efeitos extremamente importantes na tenra infancia € na inf cia posterior, mas que, sem um ambiente mau, ndo existiriam fantasias e ansiedades agressivas © perse- cutérias, A importincia do fator ambiental s6 pode ser corre- tamente avaliada cm relacio ao que ele significa nos termos dos préprios instintos e fantasias da crianga, Como foi exposto, € quando o bebé esteve sob 0 dominio de fi vosas, ‘acando o seio, que uma experiéncia ma verdadeira se tornd nite, visto que confirma nao apenas sev sen- lo externo é m: também a prépria maldade e da onipoténcia de malévolas. As experiéncias boas, por outro a raiva, a modificar as experiéncias persecutétias ¢ a mobilizar o amor e a gratidao do beb, bem como sua crenca em um objeto bom. temos dado énfase ao papel da fantasia como tal dos instintos, em contraposigio & opi que a fantasia é apenas um realidade externa, Contudo, as funcdes da fantasia sio multiplas e complicadas, ¢ cla possui um aspecto defensivo pres 26 que deve ser levado em conta. Vist tasia consistem em satisfazer os impulsos instintuais, prescindin- do da realidade externa, a gratificagao derivada da fantasia pode ser encarada como uma defesa contra a realidade externa da Privacdo. E, no entanto, mais do que isso: € também uma de- fesa contra 'a realidade interna, O individuo, produzindo uma fantasia de satisfacdo de desejo, nfo esta apenas evi frustragéo © o reconhecimento de uma realidade exter gradivel; esta também — o que inclusive € mais importante — defendendo a si mesmo contra a realidade de sua propria fome @ raiva — sua realidade interna, As fantasias, além do mai podem ser usadas como defesas contra outras fantasias. Exem= plo tipico sfio as fantasias man principal finalidade € repelir fantasias depressivas subjacentes, Uma fantasia mania- ca tipica € a do eu (self) que contém um objeto ideal devora- do cuja “radiancia"* cai sobre o ego; trata-se de uma defesa contra a fantasia subjacente de co ravelmente destruido ¢ vingativo © ego. A consideragio do uso da fantasia inconsciente como uma defesa levanta o problema do estabelecimento de qual € sua exata relagio com os mecanismos de defesa. Em resumo, a dis- fingao reside na diferenca entre 0 processo verdadeiro.e sua re- Presentagio mental especifica e detalhada, Por exemplo, é pos- sivel dizer que um individuo, em dado momento, esté usando 08 processos de projecdo e introjecdo como mecanismos de de- fesa. Os préprios processos, porém, serio experimentados por ele em termos de fantasias que expressam 0 que ele sente estar colocando para dentro ou para fora, 0 modo como ele faz. isso € o8 resultados que sente terem essas ages, Os pacientes, fre- Giientemente, descrevem sua experiéncia do processo de repres- sto falando, por exemplo, de uma ropresa dentro deles, a qual pode romper sob a pressfo,de algo semelhante a uma torrente. cai sobre K. Abraham: “A Short Study of the Develo 17) ** 8, Freud: “Mourning and Melanch tion, 14, p. 249. (Luto e Melancolia"; publicado no volume correspon dente da Edigio Standard Brasileira, IMAGO Editor, 1974. IN. do T]) nent of the Libi- 21 ‘© que um observador pode descrever como um mecanismo & experimentado e descrito pela propria pessoa como uma fan- tasia bem detalhada Um exemplo mais complicado pode ser visto no seguinte ‘material: um paciente que havia comecado recentemente sua andlise estava quase sempre atrasado, geralmente faltava as ses- ses, ¢ esquecia regularmente grande parte da anélise. Durante alguns dias podia ser feito um trabalho analitico bastante van- tajoso e, depois, ele aparecia com ponca lembranga consciente 4o trabalho e sem quaisquer efeitos desse trabalho em sua per- sonalidade, como se todo o processo e seus resultados tivessem sido obliterados. Era bastante claro tanto para mim como para ‘meu paciente (e 0 processo podia ser nomeado) que ele estava usando os mecanismos de divisio (splitting) de negagio como defesa na situagao analitica. Um dia, chegou atrasado, perden- do exatamente metade de sua sessio, e disse que se tinha per= dido em Loudoun Road, uma rua perto de minha casa, € que fora ali que tinha passado a primeira metade da sessio. Ele associou Loudoun Road com “Bruxas de Loudun” (“Loudun Witches"); parecia que tinha dividido (split) a situagio anali- tica, de modo que pudesse preservar um relacionamento bom comigo durante metade da sessio, enquanto o relacionamento mau e expelido (split-off) com uma bruxa analista “ma” fora afastado de mim para Loudoun Road. Alguns dias depois, sur- agiu uma oportunidade de dar a esse paciente uma interoretacao sobre seu relacionamento com o scio, e, nese momento, ele teve uma fantasia bastante vivida, Subitamente, ele se viu pe- gando uma grande faca, cortando meu seio e jogando-o na rua. AA fantasia era tao vivida, que 0 paciente experimentou, no mes mo momento, uma grande ansiedade, Podia-se entdo compreen- der que 0 que fora falado em termos de um proceso de Sio (splitting) © negacao, era na verdade experimentado por cle como uma fantasia extremamente vivida. O processo de di- Visto (splivting) foi realmente sentido por cle como se pegasse uma faca e expelisse (splitting off) — cortasse — um dos scios de sua analista, 0 qual ele jogava na rua e que assim se tornava a “bruxa” em Loudoun Road. A negagio do sentimento per- secutério em relagao a sua analista era experimentada como um corte do vinculo entre os dois seios, o bom e © mau, Apés essa sessio, a divisio (splitting) e a negacio. diminufram conside- 28 ravelmente € ele se tornou capaz de comparecer a anélise com regularidade, Essa experiéncia, como varias outras, acentua o fato de que etpretagio dos mecanismos de defesa é em geral ineficar, até que ocorra uma oportunidade para interpreti-los de mode gue sejam significativos para o paciente em termos do que cle realmente sente que faz a0 analista na transferéncia, a seus outros objetos ou a partes de seu ego, quando esté recorrendo 0 uso desses mecanismos de defesa. Algumas vezes, pode-se observar claramente essa relacdo entre fantasia inconsciente e mecanismos de defesa nos sonhos dos pacientes. Eis aqui dois sonhos descritos por uma paciente durante a sesstio anterior as iro sonho, @ paciente estava num cdmodo escuro que continha duas figu: as humanas de pé, uma perto da outra, e também outras pes- soas menos bem definidas. As duas figuras eram exatamente ‘guais, com excegao de uma delas, que parecia apagada e escura, 0 paso que a outra estava iluminada, A paciente estava cert de que apenas ela podia ver a figura iluminada — invisivel para 8 outras pessoas no sonho. Essa paciente fazia largo uso dos Gplitting), negagio © idealizacao, Ela tivera a oportunidade, nessa mesma semana, de me ver numa sala cheia de pessoas, uma situagdo fora do comum para ela, € sua associagao com © somho foi a de que as duas figuras representavam a mim. Uma era a pessoa que todo mundo podia ver a, mas a outra era “sua analista”, sua posse especial, Ela sentiu que no iia importar-se com as férias mais do que se importara ou ficara com ciime quanto a me ver com outras pessoas, pois tinha essa relagio especial comigo, a qual era Ginica e perma nentemente dela, Nesse primeiro sonho, € claro que ela lida com seu citime, provocado tanto pelo fato de me ver com outras pessoas quanto pelas fé avés da divisio (sp ting) © da negasio: iminada ¢ idealizada, que ninguém pode tomar dela, No segundo sonho, a paciente sonhou que havia uma me- nina sentada no chao, cortando papel com uma tesoura, A me- nina estava guardando o pedago recortado para si; 0 chao esta va coberto com os pedacos de papel postos de lado, 0s quais eram laboriosamente recolhidos por outras criancas,, Esse ‘se 29 gundo sonho constitui uma versio mais completa do primeico: mostra como essa divisio (splitting) e idealizagio eram de fato sentidas pela paciente. A divisio (splitting) & expressa no cor tar. Ela € a menina que cortou de sua analista a figura recorta- da que, como a figura iuminada no primeiro sonho, é a parte boa de’sua analista. As pessoas que podiam ver apenas a figura da analista apagada sao representadas no segundo sonho pelas criangas que tém apenas os pedacos postos de lado. A divisio Gplitting) vista no primeito sonho & claramente experimentada no segundo como um ataque, como um verdadeiro corte de sua analista em uma parte ideal € uma parte sem valor; € 0 que é representado no primeiro sonho como idealizagio é experimen- tado no segundo como furtar ¢ reter para si mesma os melhores pedagos cortados de sua analista. O segundo sonho deixa claro ‘que, para essa paciente, os processos de divisio (splitting) e idea- \¢40 eram sentidos Como uma atividade agressiva, vo- raz e culposa. ‘Quando consideramos 0 relacionamento entre fantasia e os mecanismos de introjeco € projegio, podemos comegar a lan- ‘car alguma luz sobre a complexa relagao entre fantasia incons- iente, mecanismos e estrutura mental, Susan Isaacs ocupou-se da discussio sobre a derivacao de fantasias a partic da matriz do id, bem como da relago que ela abre para os mecanismos mentais. Tentarei estabelecer dois vinculos nexiio entre fantasia e estrutura da person: tasia © fungdes mentais mais elevadas, como 0 pensar. Freud descreveu 0 ego como um “precipitado de catexias objetais abandonadas"*, Esse precipitado consiste em objet introjetados. O primeiro desses objetos descrito pelo proprio Freud € o superego. A andlise de primitivas relagdes de objeto projetivas e introjetivas revelou fantasias de objetos introjetados no ego a partir da mais tenta infancia, comegando pela introje- io dos stios ideal e persecut6rio. Inicialmente, so introjetados Objetos parciais, como o seio, ¢, posteriormente, o pénis; depois, objetos totais, como a mac, 0 pai, o casal de pais, Quanto mais Primitiva a introjegao, mais fantasticos so os objetos introjeta- = S. Freud: The Ego and the Id (1923), Standard Edition, 19, p29. 30 dos ¢ mais deformados pelo que fieles foi projetado. A medida que prossegue o desenvolvimento, € que o sentido de realidade opera mais plenamente, os objetos internos se aproximam mais estreitamente das pessoas reais no mundo externo, 0 ego se identifica com alguns desses objetos — identifica- ‘80 introjetiva, Fles co tornam assimilades no ego ¢ contribuem Para seu crescimento ¢ suas caracteristicas, Outros permanecem como objetos internos separados, © ego mantém rela¢o com eles (o superego é um desses objetos). Os objetos interns so mbém sentidos como estando em relacio uns com os outros; or exemplo, os perseguidores internos so experimentados como atacando tanto o objeto ideal quanto o ego. Assim, é constr do um complexo mundo interno, A estrutura da personalidade € amplamente determinada pelas mais permanentes das fantasias que 0 ego tem sobre si mesmo ¢ sobre os objetos que contém. fato de essa estrutura estar intimamente relacionada com 8 fantasia inconsciente & extremamente importante: € isso que influenciar a estrutura do ego ¢ 0 superego atra- ise. E analisando as relagdes do ego com objetos, internos e externos, e alterando as fantasias sobre esses objetos, que podemos afetar de maneira substancial a estrutura mais per- manente do ego, sonho que se segue, apresentado por um paciente na pri- meira semana de sua andlise, ilustra a relacdo entre fantasia iade, mecanismos de defesa e estrutura do esse paciente nunca lera qualquer literatura alitica ¢ nunca ouvira falar desses conéeitos; de outra forma, poderia ser ei paciente, oficial de marinha, sonhou com uma pirimide, Na base dessa piriimide havia um grupo de rudes marinheiros, os is sustentavam em suas cabecas um pesado livro de ouro, (guld book). Sobre esse livre estava em pé um oficial de mari nha, do mesmo posto que © paciente, € sobre seus ombros um. almirante. © almirante, disse o paciente, parecia, a seu modo, exercer de cima tio grande pressio e' inspirar tanto temor, quanto os marinheiros que formavam a base da pirimide ¢ que essionavam de baixo para cima, Tendo contado esse sonho, disse: “Este sou eu, este € meu mundo, O livro de ouro repre- a1 senta a regra de ouro (golden mean*), um caminho no qual tento permanecer. Estou esmagado entre a pressio de meus ins- Lintos € aguilo que quero fazer, ¢ as proibigses que vém a mim a partir de minha consciéncia.” Associagées posteriores capaci taram-no a identificer 0 almirante com seu pai. Mas esse almi rante, seu pai, estava muito diferente do pai real. tal como se Iembrava dele, O fato de esse almirante ser to forte e assus- tador como os marinheiros, que representavam os instintos do aciente, deixou claro que a severidade do superego era devida, Ro caso, projegio de seus préprios instintos agressivos em seu pai, Podemos ver aqui a inter-relacio entre fantasia © rea- lidade externa, sendo a realidade da personalidade do pai alte- rada pela projegio, Seu principal mecanismo de defesa, a re- pressio, é representado na fantasia pela pressio combinada do superego-almirante © do ego-oficial de marinha tentando man- {er os instintos dominados. A estrutura de sua personalidade também esta claramente representada pelas trés camadas: os instintos empurrando para cima, o superego pressionando de cima para baixo ¢ seu sentimento de que seu ego esti sendo esmagado ¢ restringido entre os dois, Nesse sonho, também po- demos ver claramente a agio da projego e da introjecao: ele rojeta sua agressividade em seu pai, e a introjecao de seu pai forma seu superego. Tudo isso — estrutura e mecanismos mentais (projecao, introjecdo ¢ repressio) — foi apresentado pelo préprio pi ‘te em seu sonho, E quando disse “Este sou eu, este € meu mun- do”, deixou claro que estava descrevendo fantasias que tinha sobre si mesmo € sobre seu mundo interno. A formagio de fan- tasia é ama fungio primitiva — a fim de compreendermos sua importancia para a personalidade, temos de ver sua relevancia para fungGes mentais mais elevadas, como pensar, A fantasia pertence originalmente ao funcionamento, em termos do principio de prazer-sofrimento, Em “The Two Prin- of Mental Functioning”, Freud diz 0 seguinte: de ouro') que se refere io de moderagi0, 4 uma posigio intermédia entre os exire Com a introducao do principio de realidade, uma espécie de atividade do pensamento foi expelida (split off); foi mantida livre do teste da realidade e permaneceu subor- dinada apenas ao principio de prazer, Essa atividade € o fantasiar, O pensamento, por outro lado, foi desenvolvido a servigo do teste da realidade, primariamente como um meio de sustentar @ tensio ¢ de adiar a satisfagio, Citando o mesmo at Pensar foi dotado de caracteristicas que tornaram pos- sivel para o aparelho mental tolerar uma tensdo intensifi- cada de estimulo, enquanto 0 processo de descarga era adiado, (Sob esse ponto de vista, a fantasia aparece tarde na vida do bebé, depois que o teste da realidade foi estabelecido.) Contudo, essas duas atividades mentais tém um importante Ponto em comum. Ambas capacitam o ego a sustentar a tensio Sem uma descarga motora imediata, O bebé capaz de sustentar uma fantasia ndo é impulsionado a descarreger “como um mi de aliviar o aparelho mental de acréscimos de estimulos” Pode sustentar seu desejo com a ajuda da fantasia por algum tempo, até que a satistagdo na realidade seja obtentvel. Se a frus- tragdo € intensa, ou se o bebé tem pouca capacidade para man- ter sua fantasia, a descarga motora ocorre, geralmente acom- Panhada pela desintegragio do ego imaturo. Entio, até que o teste da realidade © os processos de pensamento estejam bem estabelecidos, a fantasia preenche, na vida mental primitiva, algumas das funsécs pusteriormente assumidas pelo pensar. Numa nota de rodapé a “The Two Principles of Mental Functioning", Freud diz 0 seguinte: Seré corretamente objetado que uma organizagao que foi escrava do principio de prazer ¢ que negligenciou a rea. Jidade do mundo externo néo poderia manter-se a si mes- ma viva pelo menor espago de tempo, de maneira que de modo algum poderia chegar A existéncia, O emprego de 33 uma fics%o como essa é, porém, justificado quando se considera que o bebé — ‘desde que se inclua com ele 0 euidado que recebe de sua mie — deve quase realizar um sistema psiquico desse tipo. Dou énfase & palavra “quase” porque, a partir de muito cedo, ‘0 bebé sadio tem alguma tomada de conhecimento de suas ne- ‘essidades e a capacidade de comunicé-las a sua mie. A partir do momento em que o bebé comeca a interagir com o mundo externo, ele esté empenhado em testar suas fantasias no cenério a realidade, (Esse ponto de vista depende naturalmente do conceito de fantasia primitiva que precede 0 desenvolvimento do pensamento.) Quero sugerir aqui que a origem do pensa- mento reside nesse processo de testar a fantasia contra a reali- dade; isto é, que o pensamento ndo apenas contrasta com a fan- tasia, mas nela se baseia e dela deriva ‘0 principio de realidade, como sabemos, é apenas o prin- cipio de prazer modificado pelo teste da re: poderia ser encarado como uma modificagao da fantasia incons- Ciente, uma modificagdo efetuada de modo semethante pelo teste da realidade. A riqueza, a profundidade ¢ a acuidade do pensar de uma pessoa dependerao da qualidade ¢ da maleabilidade da vida de sua fantasia inconsciente e de sua eapacidade para sub- meté-la ao teste da realidade, 34 BIBLIOGRAFIA from Exptence (Lon: eiemann, 1964), thee Vistas” CIS), Sandan = Hogarth). > a NUNS), Stand Ee Stout 14 (Londres: son the Two Prnsples of Mental Fu ‘Editon, 12" (Londres. Hogarth) tions of intojection ad_priection in cy", Developments tn Prycho-tnaly se (Ca s eae Klein ¢ outros (Hogarth, 1952). ie usu Isuics? “The natore and function of phantasy", Developments i Psycho-Analysis (Capitulo ‘Melanie ne ‘outros i Pochowdnayss (Capilo. 3), Melanie hich hiton (Horan Metaste Keene: “On the development of mental fon Peyeho-Anal, vol, 39 (1958) oun Rivene: “On the genesis ‘Developments in Paychond to the Sympos Psycho-Anal,, vol. 44 (1963). a Capitulo IT A POSICAO ESQUIZO-PARANOIDE jor, sugeri que 0 uso feito por Melanie Klei ntasia inconsciente implica um grau de orga- nizagio do ego mais elevado do que o suposto por Freud. A controvérsia entre analistas sobre o estado do ego nos primeiros meses da infancia nao é uma questo de matuo desentendimento se de uma contro- vérsia importante e real sobre questdes de fato, e, naturalmente, quaisquer pontos de vista sobre 0 que € experimentado pelo bebé devem basear-se num quadro do que é o ego em cada esti- dio, Qualquer descrieao significativa dos processos envolvidos deve comesar pela descrigao do ego. Segundo Melanie Klein, no nascimento j& existe ego sufi- ciente para experimentar ansiedade, usar mecanismos de defesa e formar relagdes de objeto primitivas na fantasia e na realidade. Esse ponto de vista ndo esta inteiramente em discordancia com © de Freud, Em alguns de seus conceitos, ele parece infer existéncia de um ego primitivo, Descreve também um mec: mo de defesa primitivo, isto é, a deflexdo do instinto de morte, que ocorre no inicio da vida; seu conceito de realizagio de de- sejo alucinatério implica um ego capaz de formar uma relagio de objeto na fantasia, Presumir que o ego tem, desde o comeso, a capacidade de experimentar ansiedade, usat mecanismos de’ defesa e formar relagdes de objeto, nao é dar a entender que 0 ego, no nascimen- to, seja semelhiante, de modo bastante acentuado, a0 ego de um bbebé bem integrado de seis meses de idade, pata nao falar de uma crianga ou de um adulto plenamente desenvolvi imente, o ego primitivo é amplamente desorganizado, embora, de acordo com toda a tendéncia do crescimento fisio” éeico e psicol6gico, ele possua desde o comeco uma tendéncia a integracao. As vezes, sob o impacto do instinto de morte e de cia é afastada © ocorre uma qual falarei mais & frente. Por- vos de desenvolvimento, 0 ego desintegracio defensiva, sobs tanto, nos estédios mais p 36 € 1abil, em um estado de fluxo constante, variando dia a dia, ou mesmo de momento para momento, seu grau de integracdo. ego imaturo do bebé & exposto, desde 0 ni lade provocada pela polaridade inata dos i conflito imediato entre o instinto de vida e 0 assim como é imediatamente exposto ao impacto da reali- dade externa, que tanto produz ansiedade, como o trauma do nascimento, quanto Ihe dé a vida, como 6 calor, o amor ea alimentacdo recebidos de sua mae, Quando confrontado com a ansiedade produzida pelo instinto de morte, 0 ego 0 deflete, Essa deflexdo do into de morte, descrita por Freud, consiste, segundo Melanie Klein, em parte numa projeeio ¢ em parte na conversiio do instinto de morte em agressividade. O ego se di- vide (splits) e projeta essa sua parte, que contém o instinto de morte, para fora, no objeto externo original — 0 seio, Assim, © scio, que é sentido como contendo grande parte do instinto de morte’do bebe, & sentido como mau e como ameacador para 0 ego, dando ento de perseguicao. Dessa ma- I do instinto de morte é transformado em medo de um perseguidor. A intrusio do instinto de morte no seio é geralmente sentida como dividindo-o (splitting) em varios pedacos, de modo que 0 ego € confrontado com uma multidao de perseguidores, Parte do instinto de morte, permanecendo no eu (self), € convertida em agressividade dirigida contra 08 per- seguidores. ‘Ao mesmo tempo, é estabelecida uma relago com 0 objeto ideal, Assim como o instinto de morte é projetado para fora, a fim de evitar a ansiedade despertada por conté-lo, assim também a libido € projetada, a fim de criar um objeto que ira satisfazer © esforgo in: ‘corre com 0 stinto de morte € 0 qiie permanece ¢ usado para estabelecer uma relacZo libidinal com esse objeto ide bastante cedo, 0 ego tem uma relacio com dois objetos; 0 obje- © seio, é, nesse estadio, dividido (split) em duas partes: 0 scio ideal eo scio persecutério. A fantasia do objeto ideal funde-se com as experiéneias gratificantes de amor e ali- mentagao recebidos da mae externa real, e é confirmada por essas experiéncias, ao passo que a fantasia de perseguicio fun- de-se, de modo semelhante, com experiéncias reais de privacio a7 enko, as quais so atribuidas pelo beds aos objetos per res, A gratificagio, portanto, nfo apenas preenche a necessidade de conforto, amor ¢ nutrigao, mas também € neces- siria para manter encurralada a perseguiglo tertificante; ea privagdo se torna nfo apenas uma falta de gratificagao, mas também uma ameaca de aniquilacio por perseguidores. O' obje- tivo do bebé ¢ tentar adquirir, manter dentro e identificar-se com © objeto ideal, que ele vé como algo que Ihe da vida e como aigo protetor, bem como manter fora 0 objeto mau e aquelas partes do eu (self) que contém o instinto de morte. Na posigao esquizo-parandide, a ansiedade predominante é a de que o objeto ou objetos perseguidores entrardo no ego e dominario ¢ aniquilardo tanto o objeto ideal quanto 0 eu (self). Essas carac- terfsticas da ansiedade e das relagdes de objeto experimentadas durante essa fase levaram Melanie Klein a chamé-la de posigio esquizo-parandide, jé que a ansiedade predominante é parandide € j que o estado do ego e de seus objetos é caracterizado pela Givisto (spliting), que & esquizdide. > Contra a esmagadora ansiedade de aniquilago, 0 ego de- senvolve uma série de mecanismos de defesa, sendo provavel- mente 0 primeiro um uso defensivo da introjegio e da projecao, Vimos que, tanto como expresso de instintos quanto como me- dida de detesa, o ego esforca-se para introjetar 0 bom e para Projetar o maul. Esse, porém, nfo € 0 tinico uso da introjecao © da projecdo. Ha situagdes em que o bom é projetado, a fim de manté-lo a salvo do que é sentido como uma esmagadora maldade interna; bem como situagSes em que perseguidores so introjetados e mesmo identificados, muma tentativa de obter controle sobre eles. A caracteristica permanente € que, em si- tuaydes de unsiedade, a divisdo (spit) é ampliada e a projecao € a introjecdo s4o usadas a fim de manter os objetos persegui- dores ¢ ideais afastados 0 méximo possivel uns dos outros, man- tendo-os também sob controle. A situacSo pode flutuar rapida- ‘mente e os perseguidores podem ser sentidos ora fora, produzin- do um sentimento de ameca externa, ora dentro, produzindo temores de natureza hipocondriaca. A divisio (splitting) esta ligada a idealizagao erescente do objeto ideal, a fim de manté-Io bem distante do objeto persegui- dor ¢ de torné-lo impermeavel a0 mal, Essa extrema idealizagio também esté em conexdo com a negacio magica onipotente. 38 Quando a persegui¢ao & muito intensa para ser suportada, ela pode ser completamente negada, Essa negagio magica bascia-se numa fantasia de total aniquilacdo dos perseauidores. Outro modo como a negagio onipotente pode set usada contra a per- seguico excessiva é através da idealizacdo do préprio objeto perseguidor, que é tratado como ideal. Algumas vezes, 0 eg0 se identifica com esse objeto pseudo-ide: Esse tipo de idealizagio e de negacio onipotente da perse- guicio ¢ visto geralmente na anilise de pacientes esquizéides, os quais apresentam uma histéria de terem sido “bebés perfeitos”, ica protestavam e nunca gritavam, como se todas as ex- tivessem sido experimentadas por eles como boas. Na a, esses mecanismos conduzem a falta de discrimina-~ gio entre bom e mau, e a fixaglo em objetos maus que tém de ados. A partir da projecio original do instinto de morte desen- volve-se outro mecanismo de defesa, extremamente importante nessa fase do desenvolvimento, ou seja, a identificagio projetiva. Na identificagdo projetiva, partes do eu (self) e objetos internos sio expelidos (split off) ¢ projetados no objeto externo, 0 qual entZo. se torna possuido e controlado pelas partes projetadas, identificando-se com elas. > A identificagao projetiva tem miltiplos objetivos: pode ser dirigida para o objeto ideal a fim de evitar separacio, ou pode ser dirigida para 0 objeto mau a fim de obter controle sobre a fonte de perigo. Varias partes do eu (self) podem ser projetadas, com varios objetivos: partes més do eu (self) podem ser proje- tadas a fim de se livrar delas, bem como para atacar e dest © objeto; partes boas podem ser projetadas para evitar se eGo, ou para manté-las a salvo de coisas mAs internas, ov, ainda, para melhorar o objeto externo através de uma espécie de pri- Tepatacao projetiva. A identificacdo projetiva tem inicio quando a posigio esquizo-parandide € primeiramente estabele- ciida em relacéo ao seio, mas persiste ¢ em geral se intensifica quando a mie é percebida como um objeto total ¢ todo o seu corpo & penetrado por identificagio projetiva, ‘Um exemplo tomado da andlise de uma menina de cinco anos ilustra alguns dos aspectos da identificacdo projetiva. J4 perto do final de uma sesso que ocorreu algumas semanas antes 39 de uma longa interrupeao, a menina comecou a passar cola no chao da sala de recreio e em seus sapatos, Nessa época, ela esta- va particularmente preocupada com a gravidez. Interpretei que la queria colar-se no chdo, de modo a nao ser mandada em- bora no fim da sessio, 0 que representava a interrupeao de seu tratamento, Ela confirmou essa interpretacéo verbalmente, © nto comecou a passar a cola de modo muito mais desorde- nado e sujo, dizendo com grande satisfagao: “Mas € um vomi- ém, bem no seu chao”, Interpretei que ela queria colar- se ndo apenas no interior da sala, mas também no interior de ‘meu corpo, onde novos bebés cresciam, bem como desarrumé-lo ¢€ sujé-lo com 0 vémito, No dia seguinte, trouxe-me um grande gerinio vermetho. Apontou para a haste e para os vérios brotos ‘a seu redor, e disse: “Vocs esti vendo? Esses bebés todos saem da haste, £ um presente para vocé”. Interpretei que agora ela queria dar-me o pénis e todos os bebezinhos que saem dele para compensar a desordem que sentia que havia feito com meus bebés ¢ no interior de meu corpo no dia anterior. Mais tarde, na mesma sessio, a paciente pegou novamente a cola e disse que ia desenhar um’ animal no chao — uma ‘“de- daleira” (foxglove). Entdo hesitou e disse: “Néo, a dedaleira (Foxglove) € uma flor". O que cla realmente queria dizer era Faposa (fox). Ela nao sabia como se chamava a flor que me tinha dado. “Pode set uma dedaleira (foxglove) também.” En- quanto pintava a raposa (fox) no chao, usando a cola como inuava a tagarelar sobre raposas (foxes). “Elas en- tram furtivamente, sem que ninguém perceba, Tém bocas Gentes grandes e comem pintinhos e ovos”, Disse também, com grande satisfagdo: “Esta era uma raposa (fox) muito esquiva, Porque ninguém a veria no chao € as pessoas iriam escorregar € Quebrariam suas perna: Assim, a flor “dedaleira” (foxglove) que ela me oferecera era uma expresso da parte “raposa esquiva” (slippery fox) de sua personalidade, Era a parte “raposa esquiva” (slippery fo), mé, nociva, de si mesma (identificada também com o pénis de seu pai), que cla queria introduzir esquivamente em mim, de modo que continuasse a viver dentro de mim e destruisse meus fovos e meus bebés. Assim fazendo, conseguia livrar-se de uma parte de si mesma, de que ndo gostava ¢ pela qual se sentia culpada; ao mesmo tempo, apossava-se do corpo de sua analista- 40 mae ¢ destruia os outros bebés exatamente como fizeta com seu ‘Vomito na sessio anterior. Desde que se livrara de sua propria arte mé, podia sentir que era boa, a boa menina que ufeiccia ‘uma flor’a sua analista, quando, na realidade, estava prejadi- cando-a dissimuladamente. A “raposa esquiva”, que ninguém Podia ver, ento se tornava também um simbold de sua hipo- ccrisia, Na sesso seguinte, estava temerosa de entrar na sala; en- trou cautelosamente, examinou 0 chio e relutou em abrir gaveta, Esse era um comportamento fora do comum nesse esti dio de sua andlise, ¢ lembrava um periodo anterior, quando se mostrava temerosa do ledo de brinquedo que havia em sua gaveta, A fantasia envolvida na identificagao projetiva era muito real para ela. No dia seguinte aquele em que pintara a raposa esquiva, a sala de recreio e a gaveta — que representavam meu corpo — se tornaram um lugar que continka um animal peri- +2050. Quando isso foi interpretado para ela, admitiu que tivera tum pesadelo em que aparecera um grande animal, Sua ansiedade diminuiu ¢ ela abriu a gaveta, Até esse ponto, eu era sentida como contendo uma parte da qual agora ela se sentia completa- mente dissociada; suas associagdes com seu sonho também mos- ‘traram que, pouco depois, eu me tornara verdadeiramente @ ra- posa perigosa, Isso foi visto, mais tarde, na mesma sessio, quando ela disse que 0 animal perigoso em seu sonko tinha “6culos, como vocé, € a mesma boca grand No exemplo acima, a identificagio pro} uma defesa contra uma separacao iminente e como um meio de controlar 0 objeto e de atacar rivais — os bebés nao nascidos. A parte projetada, o vomito ea “raposa esquiva”, € temente a parte mé, voraz e destrutiva, sendo que a “raposa es- quiva” também ¢ identificada com o pénis introjetado mau, que forma a base de um relacionamento homossexual mau, Como resultado dessa projecdo, a analista, de inicio, era sentida como contendo e como sendo controlada por essa parte ma, € pouco a Pouco se tornou totalmente identificada com ela, Quando os mecanismos de projecio, introjeco, divisio (splitting), idealizagio, negagio e identificagio projetiva e in- ‘rojetiva no conseguem dominar ansiedade, e esta invade o aL ego, entdo a desintegracic do ego pode ocorrer como medida defensiva. O ego se fragmenta se divide (spliis) em pequenos pedacos a fim de evitar a experiéncia da ansiedade, Esse meca- nismo, que prejudica totalmente 0 ego, via de regra aparece ‘combinado com identificagao projetiva, sendo as partes fragmen- tadas do ego imediatamente projetadas. Esse tipo de identifica Ho projetiva, se usado em toda a sua extensio, é patol6gicos sera tratado de modo mais completo no proxiino capitulo, ‘Varios mecanismos de defesa so usados para proteger 0 © bebé, primeiramente, de experimentar 0 medo da morte a partir de dentro, e, depois, de perseguidores, internos ou exter- hnos, quando 0 instinto de morte é defletido, Contudo, todos, por sua vez, produzem ansiedades préprias. Por exemplo, a projecdo para fora de sentimentos maus e de partes mas do eu (self) produz. perseguigio externa. A reintrojecio de persegui- dores da origem a ansiedade hipocondriaca, A projecio para fora de partes boas produz.a ensiedade de ser esvaziado de bon- Gade e de ser invadido por perseguidores. A identificagio pro- jetiva produz varias ansiedades. As duas mais importantes so fas seguintes: o medo de que um objeto atacado retalie igual- mente por projecio; a ansiedade de ter partes de si mesmo apri- sionadas e controladas pelo objeto no qual foram projetadas. Essa wltima ansiedade € particularmente forte quando foram projetadas partes boas do eu (self), produzindo um sentimento de ter sido roubado dessas partes boas e de ser controlado por outros objetos. ‘A desintegracdo é a mais desesperada de todas as tentativas do ego para afastar a ansiedade; a fim de evitar sofrer a ansie dade, 0 ego faz 0 maximo para nfo existir, tentativa que dé origem a uma ansiedade aguda especifica — a de se desintegrar em pedacos e de se tornar atomizado, ‘© material que se segue, apresentado por um paciente nlio- psicético, mostra alguns desses mecanismos esquizdides. O pa- ciente, um advogado de meia idade, comegou a sessio comen- tando que eu estava alguns minutos atrasada. Acrescentou que, nas poticas ocasides em que isso acontecera antes, ele notara que eu estava atrasada ou para a primeira sessio da manha ou para fa sesso que se seguia a0 almogo. Disse que se eu estava atrasa- da era, portanto, porque minha folga se prolongava pela sesso 42 analitica, Ele préprio nunca se atrasava com um cliente devido uma ocupagio particular, mas freqiientemente se attasava por ermitir que a hora de um cliente invadisse a de outro. Nesse contexto, deixou bem claro que sentia que meu comportamento, nesse aspecto, era mais recomendével do que o dele; e fez vat observagdes solic su incapacidade para enfrentar a agressi dade de seus clientes ¢, portanto, sua incapacidade para termni- nar as entrevistas na hora. Ambos estivamos bastante familia- rizados com sua incapacidade de conduzir seus negécios, bem como com seu sentimento de inocéncia prejudicada de que mun- ca fazia nada para seu proprio bem — era invariavelmente alguns de seus clientes interferindo com outros, Pouco depois esses comentérios, disse que tivera um sonho que realmen tinha a ver com atraso. Disse que sonhara com “fumantes (Havia pouco tempo, esse paciente se relacionara profissional- mente com delingilentes, quando se comportara de modo muito onipotente, Obtivera bastante sucesso € lucro financeiro nesses negécios, mas posteriormente sentiu que esse sucesso era mes~ Quinho, 'e se sentiu culpado e envergonhado, Alguns desses clientes delingiientes fumavam muito, ¢ ele, ocasionalmente, se referia a eles como “os fumantes”.) No sonho, seu apartamento © 0 escritério con invadidos por grupos de fumantes. Estes fumavam e bebiam por toda parte, deixando tudo desarrumado;, queriam sua compa- hia € o solicitavam constantemente, De repente, no sonho, ele tomou conhecimento de que havia um cliente em sua sala de espera, para 0 qual havia marcado hora, e se deu conta de que no poderia receber esse cliente por causa dos fumantes que haviam invadido seu apartamento, Irritado ¢ desesperado, co megot_a enxotar os fumantes © a expulsé-los, de modo’ que pudesse atender seu cliente na hora marcada, Acrescentou que Seu sentimento, agora que.estava relatando a sonho, era de que provavelmente tinha posto gs fumantes para fora do apartamen- ensava que conseguira atender seu cliente na hora. Num nado momento do sonho, sua esposa entrou e Ihe disse que tinha ido a analista em seu lugar, pois estava claro que cle io poderia enfrentar os fumantes, atender o cliente que estava na sala de espera e também ir A sessfo de andlise na hora mar- ada, Isso, no sonho, deprimiu-o consideravelmente, Suas 2850 ciagdes com 0 sonho eram, em particular, sobre os fumantes 43 ‘Comentou 0 modo voraz ¢ incontido como eles fumavam e be- iam, seu desleixo, sujeira e desconsideracio, e a desordem que fizerarm em seu apartamento, Estava certo de que esses fumantes representavam a parte dele mesmo que — com sua avidez por sucesso, dinheiro e satisfagao barata — atrapalhava sua vida e ‘Contado, em suas associagbes, apesar de auténticas, havia ‘uma omissio ébvia: nao se referiu ao fato de que eu fumava muito, apesar de isso ter surgido freqilentemente em sua andlise, ‘com 0s fumantes tendo-me representado muitas vezes, no passa do, como uma perigosa mulher filica Nao relato os outros detalhes da sesso porque o sonho em si é bastante claro e € em seu aspecto tedtico — a ilustragao de certos mecanismos — que estamos interessados. Os fumantes representavam primariamente uma parte de mim, No sonho, 0 objeto do paciente — eu, representando a figura dos pais — estava dividido (split), Por um lado, havia a analista, & qual ele queria ir para ter sua sesso; por outro, havia o grupo de fu- mantes que invadiram seu apartamento e impediam sua vinda. Na medida em que eu era um objeto bom, era representada como na figura, sua analista, e possivelmente também como 0 clien- te que aguardava em sua sala de espera € com quem ele sentia que podia lidar. A parte ma de mim, contudo, nao era repre- sentada por um fumante, mas por um grupo de fumantes. Isto 6, 0 objeto mau era percebido como estando dividido (split) em uma multidéo de fragmentos perseguidores. A divisao (split) entre meu bom e 0 aspecto do fumante foi mantida to rigidamente, que em suas proprias associagées 0 paciente no fez conexdo dos fumantes comigo. Essa divisio (split) no objeto do paciente era acompanha~ da por — e de fato produzida por — uma divisio (split) em seu proprio ego. A parte boa era representada pelo paciente que, no sonho, queria vir & sua sesso — também o paciente gue, como um bom advogado, queria atender seu cliente na hora. A parte mé de si mesmo, que era descontrolada, voraz, exigente, ambiciosa e desordeira, ele nao podia toleré-la. Ele @ dividiu (split) numa multiplicidade de pedagos € projetou-a em rim, com isso dividindo-me (splitting) também em uma grande quantidade de pequenos pedagos; € como nao podia suportar a Perseguigdo resultante e a perda de sua analista boa, expeliu 44 (split off) ainda minha parte fragmentada mé e deslocou-a para “os fumantes” — com isso preservando-me parciaimente como um objeto bom. Esse material deixa bem claro por que ele jamais podia sait-se bem com seu trabalho e com seus clientes, Seus clientes nao eram, de fato, semtidos por ele como pessoas. Cada cliente representava para ele partes expelidas (splir off) de uma figura de pais mé, que eu representava na transferéncia, Essa figura continha pedagos dele mesmo, expelidos (split off) e projetados. Na verdade, nao podia lidar com seus clientes, assim como no fora capaz de lidar com essas partes mas de si mesmo. A luz de seu sonho, torna-se também claro por que o fato de eu me atrasar ap6s meu perfodo de folga era sentido pelo paciente como recomendavel, em comparacio com o fato de ele S6 se atrasar por culpa de outra pessoa, embora isso esteja de acordo com sua negaco da minha falta real de estar atrasada, © que ele estava tentando transmitir, era que sentia que eu era capaz de assumir a responsabilidade por meu proprio compor- tamento mau, sem projeté-lo. Eu poderia expressar minha vo- racidade, meu descontrole ou minha agressividade, assim sentia ele, ¢ poderia também assumir toda a responsabilidade; a0 passo que ele sentia que era to voraz, tio destrutivo e tio desordeiro, que nao podia assumir a responsabilidade pelo controle dessa parte de si mesmo — tinha de projeti-la em outras pessoas, na maior parte em seus clientes, Esse sonho mostra uma série de mecanismos esquiz6ides; a io (splitting) do objeto ¢ do eu (self) numa parte boa e numa parte mé; a idealizagio do objeto bom ¢ a divisio (splitting) da parte mé do eu (self) em pequenos fragment projeco das partes més no objeto com 0 sentimento resultante de ser perseguido por uma grande quantidade de objetos maus, do de projetar partes mis do eu (self) dividido (s ides, cra carac- grande niimero de pequenos japoneses — seus inimigos. Suas associagdes mostraram que os japoneses representavam sua uri~ na ¢ suas fezes, nas quais colocava partes de si mesmo de que queria desfazer-se; urina e fezes eram entio projetadas nesses objetos. Em outra ocasido, escreveu para um jornal estrangeiro um artigo que, como veio a se dar conta em sua anilise, ele 45 sentia que teria um mau efeito moral em seus leitores, Conso- lou-se com 0 fato de que isso se passaria “muito longe” e que as conseqiiéncias, portanto, ndo poderiam alcangé-lo, Num sonho posterior, o artigo era representado como “um pequeno pedago de merda na China”. Esse paciente usava mecanismos esquizsides principalmen- te como uma defesa contra ansiedades da posigao depressiva, em particular culpa; a defesa, porém, no sonho sobre os fumantes, era apenas parcialmente bem sucedida, porque a projecao de seus impulsos maus nos fumantes no era completa, Mesmo no proprio sonho, o paciente se sentia responsével pelos fumantes, ceulpado quanto a sua relacao com seu cliente na sala de espera € comiigo, bem como agudamente ciente do sentimento de perda de seu objeto bom. Essa culpa, porém, tal como a sentia no sonho, nfo era sentida diretamente em relagao a sua voracidade, ambigao, ete Era sentida como culpa em relagéo A sua fraqueza; deciarou isso no infcio da sessdo, dizendo que sempre se alrasava pot ‘causa de sua fraqueza ao lidar com seus clientes, Essa fraqueza, que era consciente e intensamente sentida, estava relacionada com a projegio para fora de sua prépria parte agressiva, proje- gio esta que o fazia sentir-se indefeso ante a perseguicao pelos Pedagos projetados de si mesmo, os quais ndo podia renegar, € que, ao mesmo tempo, o fazia sentir-se fraco e indefes0, por. que ele sentia que seu ego fora esvaziado até mesmo pela pro- jecdo do que ele sentia serem suas proprias partes mas Deserevendo a posi¢do esquizo-paranide, dei énfase as an- siedades ¢ as defesas a elas associadas. Isso’ poderia fomecet uma visio enganadora dos primeiros meses do bebé. Deve set Tembrado que um bebé no passa a maior parte de seu tempo em estado de ansiedade. Ao contrério, em circunstancias favo- veis, passa a maior parte de seu tempo dormindo, alimentan- experimentando prazeres reais ou alucinatétios e, assim, assimilando gradualmente seu objeto ideal e integrando seu ego. ‘Todos os bebés, porém, tém periodos de ansiedade, ¢ as ansie~ dades e defesas que constituem o micleo da posigio esquizo- paranéide sio parte normal do desenvolvimento humano. Nenhuma experiéncia no desenvolvimento humano jamais & posta de lado ou obliterada; devemos lembrar que no mais nor 46 mal dos individvos havera situagdes que despertario as mais primitivas ansiedades e que colocardo em funcionamento os mais, primitivos mecanismos de defesa, Além disso, numa personali- dade bem integrada, todos os estédios de desenvolvimento esto inclufdos, nenhum & expelido (split off) © rejeitado; © certas, realizagbes do ego, na posigdo esquizo-parandide, sao realmente ‘muito importantes para o desenvolvimento posterior, cuyas bases sio por clas estabelecidas. Essas realizagdes tm um papel a desempenhar na mais madura e integrada das personalidades Uma das realizagdes da posicao esquizo-parandide & a di- visio (splitting). E ela que permite ao ego emergir do caos € ‘ordenar suas experigncias, No inicio, essa ordenacao da expe- riéncia, que ocorre com 0 processo de divisio (splitting) em um objeto bom ¢ um mau, pode ser excessiva e extrema; orden, contudo, 0 universo das impresses emocionais sensoriais da crianga, e constitui uma precondiggo da integracio posterior. Trata-se da base do que mais tarde s¢ torna a faculdade de dis- criminagao, cuja origem € a diferenciacao primitiva entre bom € mau. Hé outros aspectos da divisdo (splitting) que petmanecem € que sto importantes na vida madura. Por exemplo, a capaci- dade de prestar atengdo ¢ de suspender a propria emocdo a fim de formar um juizo intelectual néo seriam alcancadas sem a ca- pacidade de divisio (splitting) temporitia reversivel. A divisdo (splitting) 6 também a base para o que mais tarde se toma repressio. Se a divisi mere e0) Assim, a divisio (splitting), desde que no seja excessiva © que no conduza & rigidez, € um mecanismo de defesa extre- mamente import: mecanismos post mas também coni toda a vida. Com a divisio (splitting) estio em conexio a ansiedade persceutdria ¢ a idealizacdo, Naturalmente, ambas, se retidas e1 sua forma original na vida adulta, deformam o juigamento. mas alguns elementos da ansiedade persecutoria e da ideatizagio snos primitivos, como a repressio, ‘3 a funcionar, de forma modificada, por 47 esto sempre presentes © desempenham um papel nas emogdes adultas. Um certo grau de ansiedade persecut6ria é precondigao para que se seja capaz de reconhecer, apreciar ¢ reagir a situa- ges verdadeiras de perigo em condigées externas, A idealizagio 6 a base da crenga na bondade de objetos e na prépria bondade, © € precursora de boas relagdes de objeto. A relacio com um objeto bom geralmente contém um certo grau de idealizagio, e essa idealizagao persiste em varias situagSes, tais como apaixo- nar-se, apreciat a beleza, formar ideais sociais ou politicos — emogdes que, embora possam no ser estritamente racionais, aumentam a tiqueza e a variedade de nossas vidas, ‘A identficago projetiva também tem seus aspectos valio- sos, Antes de tudo, trata-se da forma mais primitiva de empatia, € € sobre a idemtificagao projetiva, bem como sobre a identifica- so introjetiva, que se baseia a capacidade de “colocar-se no lugar do outro”. A identificago projetiva também fornece a base da forma mais primitiva de formacio simbélica. Pela pro- jesdo de partes de si mesmo no objeto e pela identifeagio de partes do objeto com partes do eu (self), © ego forma seus pri- meiros € mais primitivos simbolos. Devemos, portanto, olhar os mecanismos de defesa usados na posigdo esquizo-paranside ndo apenas como mecanismos de defesa que protegem 0 ego de ansiedades imediatas e esmaga- doras, mas também como etapas graduais no desenvolvimento, Isso nos leva a questio de saber como o individuo normal trapassa a posicio esquizo-parandide. Para que a posigiio es- quizo-parandide dé lugar gradualmente, e de modo suave ¢ rela~ tivamente imperturbado, & préxima etapa do desenvolvimento — a posigio depressiva —, a precondicao necesséria é que haja predominncia das experiéncias boas sobre as mas, Fatores in- teros ¢ exteros contribuem para essa predominancia, Quando ha predominancia de experiéncia boa sobre expe- rigncia mé, o ego adquire crenca na prevaléncia do objeto ideal sobre 03 objetos persceutérios, bem como na predominineia de seu prOprio instinto de vida sobre seu préprio instinto de morte. Essas duas crengas, na bondade do objeto e na bondade do eu (self), caminham juntas, de uma vez que o ego projeta conti- nuamente para fora seus proprio instintos, deformando assim 05 objetos, € também introjeta seus objetos, identificando-se 48. com eles, O ego se identifica repetidamente com o objeto ideal, adquirindo desse modo maior forca e maior capacidade para en: frentar ansiedades, sem recorrer a mecanismos de defesa viow lentos. © medo dos perseguidores diminui, assim como dimi a divisao (split) entre objetos perseguidores ¢ ideais, Petmite-se & aproximagio dos objetos perseguidores ¢ ideais, que assim ficam mais bem preparados para a integracio. Simultancamente, a divisio (splitting) no ego diminui, quando este se sente mais forte, com maior fluxo de libido. Ele esta mais estreitamente relacionado com um objeto ideal, ¢ menos temeroso de sua propria agressividade e da ansiedade que esta desperta; torna-se possivel a aproximacdo das partes boas e mas do ego. Ao mesmo tempo que a divisdo (splitting) diminui e que 0 ego adquire maior tolerdncia em relagio a sua propria agressividade, a ne- cessidade de protegio diminui e 0 ego se torna cada vez mais sapaz de tolerar sua propria agressividade, de senti-la como Parte de si mesmo, néo sendo impulsionado a projeté-la em seus objetos, Desse modo, o ego se prepara para inlegrar seus ‘objetos, para se integrar; através da dimimuico de mecanismos projetivos, ha uma diferenciagao crescente entre o que € eu (self) € 0 que € objeto, Assim, prepara-se o caminho para a posigio depressiva, Contido, a situagao € muito diferente se ha predo- minancia de experiéncias més sobre experiéncias boas, situagao que descreverei ao tratar da psicopatologia da posigo esquizo- arandide. 49 BIBLIOGRAFIA Metante KLEIN: “Notes on some Schizoid Mechanisms", Developments in Peycho-analysie (Capitulo 9), Int, J. Psychondnal., vol. 277 (1946), Melanie Kiein © outros, 1 Hden pitulo 13), Melanie Ki Essays (Capitulo 3), Melanie Klein Hawwa SEGAL: “Some Schizoid Mechanisms Unde! ‘mation, Int. J. Payclo-dnal., vol. 35 (1958) ing Phobia For em 0 Sentiment de Solidéo jagio". (N. do T.) Capitulo 1V INVEJA No capitulo anterior, disse que € essenclal para o desenvolvi- mento favordvel do bebs, na posi¢&o esquizo-parandide, que as esperiéncias boas predominem sobre as més, O que € a expe igncia verdadeira do bebé, depende de fatores tanto externos quanto internos, A. a gratificaglo; mas, ainda que o am rigncias gra impedidas por fatores internos, io a expe: fcantes, estas podem ser modificadas ou mesmo ‘Melanie Klein descreve a inveja primitiva com um desses fatores, atuando a partir do nascimento e afetando substancial- mente as mais primitivas experiéncias do bebé. A inveja, natu- ralmente, hé muito tempo vem sendo reconhecida na toria ¢ deu grande atencio a inveja do pénis nas mulheres. No entanto, 2 importincia de outros tipos de inveja posses © da posigéo femininas, a inveja que as mulheres tém umas das outras — no tem sido to especificamente recont ica, ena descrigao de-casos, a inveja de- fapel, mas, com excegdo do caso espe- usio que na tinguagem coti- diana, onde inveja é comumente chamada de ciime. Por outro Jado, € realmente muito raro o citime ser descrito como inveja; a nguagem cotidiana — e isso se reflete também na linguagem "a — parece evitar ovconceito de inveja ¢ tender a subs- titui-lo pelo de citime. Melanie Klein, em Inveja e Gratiddo, estabelece uma ade- ‘quada distingao entfe as emogées de inveja e de citime. Conside~ ra a inveja como sendo a mais primitiva das duas, mostrando que € uma das emogées mais primitivas e fundamentals, A inve- ja primitiva deve ser diferenciada do ciéme ¢ da voracidade. Bt c > Occitmé baseia-se no amor e visa a posse do objeto amado € A remogao do rival. Pertence a uma relacao triangular e, por- tanto, a um perfodo da vida em que os objetos sfo claramente > Feconhecidos e diferenciados uns dos outros. A inveja, por sua vez, 6 uma relagao de duas partes, na qual © sujeito inveja o objeto por alguma posse ou qualidade; nenhum outro. objeto ~ vivo precisa entrar nessa relacio. O ciime € necessariamente uma relacZo de objeto total, a0 passo que a inveja é experimen- tada essencialmente em termos de objetos parciais, embora per- sista em relagées de objeto total. A voracidade visa & posse de toda a bondade que possa ser extrafda do objeto, sem qualquer consideragao das conseqiién- cias; isso pode resultar na destruicéo do objeto e na danificago de sua bondade, mas a destruigo & incidental & aquisigao desa- 7 Piedada. A inveja visa a que se seja tio bom quanto o objet mas, quando isso é sentido como impossivel, visa a danificar a bondade do objeto, para remover a fonte de’sentimentos inve- sos, E esse aspecto danificador da inveja que é tdo destrutive Para o desenvolvimento, visto que a prépria fonte de bondade da qual o bebé depende é tornada mi, e, portanto, introjegées ‘boas nao podem ser alcancadas. A inveja, embora surgindo a partir de amor e admiracao primitivos, tem um componente libi- inal menos forte do que a voracidade, ¢ é impregnada de ins- linto de morte, Porque ataca a fonte dé vida, pode ser conside- ada como sendo a mais primitiva externalizacao do instinto de morte. A inveja surge logo que 0 bebé se dé conta do seio como fonte de vida e de experiéncia boa; a gratificagao real que ele cexperimenta no scio, reforgada pela idealizagio — tio poderosa a fonte de na tenra infancia —, faz com que sinta que o seio todos os confortos, 'fisicos e mentai Ihoso obje- jor e seu desejo de possui-lo, pre- ‘a mesma experiéncia, porém, também des- no bebé 0 desejo de ele proprio ser a fonte de tal perfeicao; ele experimenta penosos sentimentos de inveja, os quais acarre- tam o desejo de danificar as qualidades do objeto que Ihe pode entos penosos, pode fundir-se com jo de esgotar inteiramen voracidade, conduzindo a e 0 objeto, nao apenas a fim , de possuir toda a sua bondade, mas também para esvaziar inten- ionalmente 0 objeto, de modo que ndo contenha nada de inve- javel, £ a mistura de inveja que freqiientemente torna a voraci- dade tdo danificadora ¢ aparentemente to intratvel na andlise. A inveja, porém, nao se limita a esgotar 0 objeto externo. O proprio alimento que foi recebido, na medida em que é perce- bido como tendo sido parte do seio, € em si mesmo objeto de ataques inVejosos, que se voltam também para o objeto interno, A inveja opera também por projec, ¢ freqiiente © principal- mente por esse meio. Quando se sente cheio de ansiedade e maldade, o scio como sendo a fonte de toda bondade, o bebé, em sua inveja, deseja danificar o seio, projetando nele suas pr6- prias partes més e danificadoras; assim, em fantasia, ataca 0 seio cuspindo, urinando, defecando, soltando flatos, € pelo olhar projetivo e penctrante (0 mau-olhado). A medida que pros- segue o desenvolvimento, continuam esses ataques, em relacao a0 corpo da mie € a seus bebés, e ao relacionamento dos pais. Em casos de desenvolvimento patolégico do complexo de Edipo, a inveja do relacionamento dos pais desempenha um papel mi importante do que os verdadeiros sentimentos de citime. Se a inveja primitiva é muito intensa, interfere na_acio normal dos mecanismos esquizdides. © processo de divisio (splitting) em_um objeto ideal e outto perseguidor, tao impor- tante na posicao esquizo-parandide, nio pode ser mantido, ten- do-se em vista que é 0 objeto ideal que da origem a inveja € que € atacado e danificado. Isso conduz a confusio entre 0 bom ¢ 0 ‘mau, interferindo na divisto (splitting). Como esta ndo pode sec ‘mantida e como um objeto ideal nfo pode ser preservado, ocorre uma grave interferéncia na introjecio de um objeto ideal e na §dentificagdo com este. Com isso, o desenvolvimento do ego tem, necessariamente, de sofrer. Fortes sentimentos de inveja condu- zem ao desespero. Um objeto ideal néo pode ser encontrado e, portanto, ndo hd esperanca de amor ou de qualquer ajuda. Os Objetos destrufdos so fontt de perseguicdo intermindvel e, pos- teriormente, de culpa, Ao mesmo tempo, a falta de introjecio bboa priva o ego de sua capacidade de crescimento e de assimila- G0, a qual diminuitia o sentimento de uma tremenda brecha entre si mesmo ¢ 0 objeto; surge entio um cfrculo vicioso, no gual a inveja impede a introjecao boa; isso por sua vez aumenta a inveja, 53 Na raiz de reagdes terapéuticas negativas ¢ de tratamentos ntermindveis, encontra-se muitas vezes uma poderosa inveja inconsciente; trata-se de algo que pode ser observado em pa- cientes que tém uma longa histéria de tratamentos anteriores fracassados. Isso apareceu claramente em um paciente que veio i anilise depois de muitos anos de variados tratamentos psi- Quidtricos e psicoterapéuticos. Cada tratamento produzia uma melhora, mas, depois de terminado, iniciava-se a deterioragao, Quando’ comegou sua anélise, logo apareceu que o principal problema era a forca de sua reacdo terapéutica negativa, Eu Tepresentava principalmente um pai bem sucedido € pot seu Gdio € rivalidade em relacio a essa figura eram ta0 que a andlise, representando minha poténcia como analista, e: inconscientemente atacada e destruida repetidas vezes. A’ pri- meira vista, isso parecia uma rivalidade edipiana direta com 0 Pai; faltava, porém, um elemento importante nessa situaclo edipiana, ou seja, um forte amor ou atragio por mulheres. As mulheres eram desejaveis como posses do pai, nao parecendo ser valorizadas por si mesmas, Se pudesse possui-las, ele, em sua mente, as danificaria e destruirie, do mesmo modo como ten- tava: danificar ¢ destruir as outras posses de seu pai, tais como seu pénis ou suas realizagdes. Nessas circunstincias, nao podia introjetar a poténcia de seu pai e identificar-se com ela, também nao podia introjetar, preservar ou fazer uso de m interpretagoes, ‘No primeiro ano de sua anilise, sonhou que punha no por- ta-malas de seu pequeno carro fertamentas que pertenciam meu carro (maior do que 0 dele); quando, porém, chegou a seu destino e abriu o porta-malas, todas as ferramentas estavam despedacadas. Esse sonho simboliza seu tipo de homossexuali- dade; queria tomar o pénis paterno em seu anus e roubé-lo, mas, hese proceso, seu ddio do pénis, mesmo quando introjetado, era tal, que ele o despedacaria e seria incapaz de fazer uso dele. Do mesmo modo, as intetpretagdes que sentia como completas e titeis eram imediatamente despedacadas e desintegradas, assim, era em especial depois de boas sessdes que the traziam alivio que cle comecava a se sentir confuso e perseguido, j& que as inter~ retagoes fragmentadas, deformadas e Jembradas pela metade o confundiam e atacavam internamente, Em breve, foram encon- trados ataques invejosos em relacdo ao casal de pais — qual- 54 ‘quer unido entre duas pessoas, qualquer que fosse seu cardter © qualquer que fosse o sexo do castl, representava para ele a invejada relagao sexual dos pais, a qual tinha de ser atacada e destruida, Isso levava & dificuldade de manter um vinculo sig- nificativo comigo ou, internamente, um vinculo entre pensamen- idgias e sentimentos. A medida que prosseguia sua anélise, a transferéncia materna passou cada vez mais para o primeiro plano, com inveja desesperada em relagio a figura materna, aos ‘Srgios genitais e ao orgasmo femininos, a gravidez e, em espe- cial, 208 seios Um de seus mais antigos sintomas era a incapacidade de comer em companhia de outras pessoas e, em especial, de co- mer os alimentos preparados por sua esposa. Fregiientemente soffia delirios de que sua comida estava contaminada e envene- nada, ou estragada por ter sido deixada muito tempo fora da geladeira, Se sua esposa ou sua empregada falavam enquanto estava comendo, sentia isso como se o estivessem atacando a mordidas, e imediatamente desenvolvia uma aguda dor géstrica. Na transferéncia, ele sempre sentia que eu estava tomando 0 partido de sua esposa, ignorando a agressividade dela, e que, interpretando para ele, eu repetia os ataques fit esposa. Nao tardou a se tornar claro que a mulher que o ali- mentava, mesmo quando ela 0 estava gratificando, era objeto de tal inveja, que a comida dela era imediatamente atacada com urina e fe2es, e, portanto, contaminada tio logo entrava em contacto com Esses_ataques invejosos a seus objetos bons — pai, casal 4de pais, mae que alimenta — interferiam em todos os seus pro- cessos introjetivos. Como resultado, sofria dificuldades de apren- der, pensar, trabathar ¢ alimentar-se, Suas dificuldades intelec- tuais eram’ particularmente penosas para ele, visto que, de de acordo com seu caréter invejoso, sofria de imoderada ambi- ‘lo, a qual jamais podia: satisfazer. Todos esses problemas atingiram seu. ponto culminante quando, depois de varios anos de andlise e de considerével me- hora, ele teve, pela primeira vez, de apresentar a seus colegas alguns resultados de sua pesquisa de laborat6rio, Em sua mente, isso era um acontecimento de abalar o mundo, Tinha a esperan- ca de que sua pesquisa arruinaria ¢ encheria de inveja 0 chefe 55 de seu departamento, que ele admirava € invejava enormemente. Ao mesmo tempo, estava aterrorizado com a possibilidade de se tornar objeto de ridiculo e desprezo. Na transferéncia, 0 aconte- cimento futuro as vezes era visto como um grande sucesso, arqui- tetado para me mostrar que ele era muito mais criador do que eu ¢ para me encher de inveja; as vezes, seria um desastre com- pleto, que demonstraria a0 mundo © dano que eu tinha feito a ele © que me desacteditaria para sempre, Ao mesmo tempo. estava ciente de que no poderia completar e apresentar seu tra- balho sem ajuda anal como ele mesmo dizia, migo. Nessas ocasides, 0 trabalho era sentido como sendo feito por mim dentro dele. Alguns dias antes da data em que devia apresentar seu tra- batho, fui capaz de lhe mostrar que, de fato, ele parecia incapaz de visualizar a reunigo ou de prever realisticamente que tecep- ¢¢a0 seu trabalho teria. Ele entdo se deu conta de que nao podia fazer isso, porque sentia que de um modo ou de outro acabaria ucura. Ele sabia que a idéia de um sucesso moderado nao existia para ele. Se sua pesquisa fosse bem sucedida — ¢ uma Palavra de clogio, vinda de qualquer pessoa, seria suficiemte Para sentir que sua pesquisa cra o mais importante trabalho jamais feito no assunto —, temia que ndo houvesse meio de con- ter sua grandiosidade e que enlouquecesse com delirios de gran- deza. Por outro lado, a falta de sucesso — e, novamente, sabia que uma simples observagio critica seria tomada por ele como um desastre completo — levaria a tal depressao e perseguicio, que cometeria suici No dia seguinte, relatou este sonho: estava andando em Londres de mios dadas com um dinossauro; Londres estava completamente vazia, nao havia uma alma sequer pelas ruas. © dinossanro estava faminto e voraz, e 0 paciente o alimentava ‘com pedagos de algo que tirava de seu bolso, com grande ansie- dade de que, quando acabasse 0 alimento, 0 dinassauro 0 co- messe. Pensou que Londres talvez estivesse vazia porque 0 di- nossauro ja tinha comido todos os outros habitantes, A primeira associagdo era a de que o dinossauro devia representar sua vai- dade ilimitada, Estabeleceu uma conexdo entre 0 sonho e 0 fim da sesso anterior, ¢ pensou que ele representava seu dilema em relago a scu trabatho. Tinha de alimentar sua vaidade ou 56 ela o mataria; mas, se a alimentasse, ela apenas cresceria mais ainda € se tomaria mais perigosa. Sua vaidade era 0 anverso de sua inveja, uma expresso desta, bem como uma defesa con- tra cla. Tinha produzido um vacuo’ volta dele, visto que todos ‘95 seus objetos eram por ela devorados, ¢ ela era uma ameaca constante a sua prOpria vida, Posteriores associagdes com 0 s0- nho deixaram bem claro que, ao tentar satisfazer sua inveja, ele era torturado por solidio, remorso, culpa e perseguicio, ¢ sua inveja crescia porque ele era infeliz. Se nao a satisfazia, ‘enchia-se de inveja destrutiva e devoradora, que o destrufa e 0 Como a inveja forte em relagio ao objeto primério dé ori- gem a sofrimento ¢ falta de esperanca tio agudos, poderosas detesas so mobilizadas contra ela. A danificagdo, que descrevi ‘como objetivo da inveja, € parcialmente uma defesa contra cla, jd que um objeto danificado nao suscita inveja. Pode ser redu- Zida para desvalorizagio, a fim de proteger o objeto de di $40 ou desvalorizagio esté geralmente em conexdo com a po- derosa projecio, no objeto, de sentimentos invejosos. ,2_Em contraste com a desvalorizagio e com a projecio da inveja, uma rigida idealizagdo pode ser us de preservar algum objeto ideal. Contudo, tal to precdiia, ja que quanto mais ideal o objeto, mais intensa é a inveja. Todas essas defesas contribuem para incapacitar 0 ego. Essas defesas eram bastante claras no paciente acima des- tito. Por exemplo, a andlise posterior do sonho com 0 dinos- sauro mosttou que © dinossauro também representava a mim, que por minha vez tepresentava o pai internalizado, Quando o Paciente sentia qualquer sucesso, sentia que estava enchendo seus objetos com sua propria inveja monstruosa. Assim, seu superego era sentido como sendo invejoso ¢ danificador, ata- cando todo o seu traballio, suas realizagdes e a bondade que possuisse. . Ao mesmo tempo, © paciente tentava proteger-se, nessa situagio desesperada, por alguma tentativa de diviséo (splitting) ¢ idealizago. Em algum ponto de seu material, sempre apare- cia um objeto idealizado, que ele podia introjetar e com o qual podia identificar-se parcialmente, Esse objeto se alterava € mu- 37

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