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Um artista da fome - Kafka

O conto Um artista da fome critica a espetacularização da


fome/miséria/pobreza, que é tratada, por diversas vezes, como algo digno de ser
apreciado, valorizado. O conto aborda a história de um artista, que por deveras
íntimo da fome, se utiliza de algo que é tão comum para si, a fim de criar um
espetáculo e tirar uma oportunidade desta situação.

O artista da fome, como gosta de ser chamado, leva muito a sério sua
profissão e procura entreter o público ficando o máximo de tempo possível em
jejum. Juntamente com seu empresário, o artista da fome percorre mundo a fora,
divulgando a sua arte e encantando as pessoas com a sua “habilidade” de ficar
tantos dias sem realizar nenhuma refeição.

O fascínio das pessoas é grande ao observar tamanha determinação,


mulheres e crianças se juntam dos mais diferentes lugares para observar aquele
corpo magro, sofrido, sentado sobre um pedaço de palha. Em diversos trechos,
vemos que o artista da fome orgulha-se de sua condição, ele expõe suas costelas
com orgulho, como quem expõe troféus ao fim de grandes realizações.

Mas o humor do artista da fome nem sempre é estável, o herói do nosso


conto nem sempre mantém o otimismo diante de suas conquistas. Primeiro porque
se sente na obrigação de superar a si mesmo na quantidade de dias que fica sem
comer, e, segundo, porque por motivos que ele mesmo desconhece, muitas vezes
se encontra melancólico e abatido.

A melancolia, já informada, originada da fome, irrita o artista. Deve ser difícil


para ele reconhecer que aquilo que fez dele um artista (fome), também é a origem
das suas instabilidades emocionais. Mas como o herói que a si mesmo se forjou, ao
final de cada apresentação, ele recebe as palmas como reconhecimento pela
batalha que enfrentou.

A miséria personificada no artista, é exposta em gaiola para que todos a


vejam. Com admiração e espanto, muitos se aproximam questionando-se da
capacidade sobrenatural deste indivíduo que se diz ficar tanto tempo sem comer. A
descrença é tamanha, bem como, a preocupação com a veracidade do discurso,
que o artista da fome é submetido a inspeção. Durante os dias que fica em
exposição, pessoas são contratadas para verificar se ele realiza refeições ou não,
de forma acobertada, ou se ele realmente atravessa os dias em religioso jejum.

A descrença dos demais impressiona o artista, logo para ele, que o jejum é
algo tão próximo, não consegue compreender porque as pessoas duvidam de sua
capacidade para tal. Nesse momento, é interessante observar que o espanto
manifestado pela multidão, a descrença na possibilidade de alguém enfrentar tantos
dias sem alimentação, ilustra perfeitamente o espanto que por vezes manifestamos
ao nos depararmos com pessoas vivendo em situações de extrema pobreza. É a
descrença ao observar que em um país rico e em que as pessoas vivem em relativo
conforto, a miséria ao lado por vezes bate à porta para lembrarmos da sua
existência.

Por outro lado, juntamente com a valorização da miséria, temos a valorização


do sofrimento, as pessoas que mais sofrem são tidas como heróis, pessoas de
capacidade sobrehumana, pura e simplesmente por suportarem situações que o
homem-médio, ou pelo menos, o homem-médio que aprecia tal espetáculo, não
seria capaz de suportar. Mas por traz desse discurso de valorização do sofrimento,
do sofrimento como a formação de pessoas melhores, quiçá mais humanas e
capazes de compreender as mazelas da vida, tem o discurso da conformidade, da
aceitação.

Quando eu digo que alguém deve valorizar o sentimento, num discurso


quase que religioso, eu ensino as pessoas a aceitarem a miséria a que estão
exposta, e em muitos casos, que eu proporciono a elas. Note, que era a existência
de curiosos que fomentava o negócio do artista da fome, sem pessoas dispostas a
ver a espetacularização da miséria, não haveria valorização da mesma. O discurso
de aceitação e valorização do sofrimento foi e ainda é muito utilizado por igrejas
mundo afora, é através do sofrimento que eu me aproximo das divindades, que eu
renuncio às minhas naturezas, que eu sou digno de uma vida melhor.

E assim, gerações e gerações de massas a fio são ensinadas a suportar com


paciência e resiliência a dor da fome, a miséria que foram destinados a suportar.
Ironicamente, o contraste entre a vida dos fiéis e dos dirigentes é gritante. Por traz
da oferta sofrida em sinal de gratidão pela vida recebida, vidas miseráveis
alimentam e patrocinam a vida de luxo e conforto de seus dirigentes. Nesse sentido,
convém destacar a figura do empresário como o explorador da fome, aquele que a
promove, que tira lucro dela. Tal qual o empresário que fortalece a crença no jejum
ao artista fome, dirigentes religiosos convencem que o sofrimento é o caminho para
a salvação, que só a vida abnegada pode levar essas pessoas a vida que elas
realmente merecem.

O mais engraçado é que a fome e a miséria (romantizada) que ela representa


é um espetáculo que todos admiram, mas que ninguém quer estar perto, ninguém
quer partilhar. Tal qual as moças que retiram o artista da gaiola, inebriadas pela
euforia parecem tocar um “deus”, temos a repulsa que se mantém ali, presente, e é
manifestada pelo rosto virado da mesma jovem que o carrega nos braços.

Ao virar o rosto, essa jovem deixa claro que as preocupações, bem como, o
esforço para com o combate à miséria tem limites e esse limite é encontrado
quando a pobreza encontra adentra o espaço da vida privada da classe que ela
representa. Em outras palavras, a pobreza, só é motivo de glória, a luta, a
dificuldade só é motivo de fascínio e exaltação quando ela está na vida de outra
pessoa, na minha vida não. Esse distanciamento é importante para delimitar,
também, os espaços a que cada um pertence.

Eu valorizo o seu esforço, eu bato palmas para o seu sofrimento e até


contribuo para que você tenha condições mínimas de sobrevivência, mas a partir do
momento em que a sua existência atravessa a minha, ou põe em risco o mundo que
eu estou acostumado a ter, eu bato panelas e vou reclamar as coisas estão erradas.

Eu me incomodo com a presença de filhos de empregados nas mesmas


universidades que os meus filhos, eu não suporto saber que eles podem vir a
ocupar esse espaço que sempre foi meu. Então, se por um lado eu digo me
preocupar com a pobreza, me digo um defensor e erradicador da mesma, por outro
lado, eu tenho a necessidade de observá-la para lembrar-me de como sou
privilegiado da vida que eu tenho.

Como dito, o fascínio pela desgraça do outro, para além de mover


sentimentos de compaixão, por vezes, os torna gratos por não incorrerem nas
mesmas desgraças. Como resultado, muitas ações em apoio a pessoas menos
favorecidas são transformadas em mega eventos, espetáculos onde o
compadecimento, ora sincero, ora fingido, acalenta o sentimento de gratidão por
não fazer parte deste sofrimento.

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