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Sob a diregdo de J.-D. NASIO Introducao as Obras de FREUD e FERENCZI ¢e GRODDECK KLEIN ¢ WINNICOTT DOLTO e LACAN com as contribuigées de A.M. Arcangioli, M.-H. Ledoux, L. Le Vaguerese, J.-D. Nasio, G. Taillandier, B. This e M.-C. Thomas Tradugio: Vera Ribeiro psicanalista Revisio: Marcos Comaru mestre em teoria psicanalitica, UFRJ @ Y ZAHAR Introducao 4 Obra de FREUD J.-D. Nasio A aceitagdo de processos pstquicos inconscientes, 0 reconhecimento da doutrina da resisténcia e do recalcamento ea consideragao da sexualidade e do complexo de Edipo sao os contetidos principais da psicandllise e os fundamentos de sua teoria, e quem ndo estiver em condigdes de subscrever todos eles ndo deve figurar entre os psicanalistas. S. Freud Um século — e que século! — nos separa de Freud, desde 0 dia em que ele decidiu abrir seu consultério em Viena e redigir a primeira obra fundadora da psicandlise, A interpretagdo dos sonhos. Um século € muito extenso; extenso para a hist6ria, para a ciéncia e para as técnicas. Muito extenso para a vida. E, no entanto, é muito pouco para nossa jovem ciéncia, a psicandlise. A psicandlise, admito, nao progride & maneira dos avangos cientificos e sociais. Ocupa-se de coisas simples, sumamente simples, que so também imensamente complexas. Ocupa-se do amor e do édio, do desejo e da lei, dos sofrimentos e do prazer, de nossos atos de fala, nossos sonhos e nossas fantasias. A psicandlise ocupa-se das coisas simples e complexas, mas eternamente atuais. Ocupa-se delas nao apenas por meio de um pensamento abstrato, de uma teoria que registrarei neste capitulo, mas através da experiéncia humana de uma relacaio concreta entre dois parceiros, analista e analisando, mutuamente expostos a incidéncia de um no outro'. Porém um século, mais uma vez, é muita coisa. E, no decurso desses cem anos, os problemas abordados pela psicandlise foram amitide designa- dos © conceituados de diferentes formas. De fato, a experiéncia sempre singular de cada tratamento analitico obriga o psicanalista que nele se engaja a repensar, em cada situacao, a teoria que justifica sua pratica. Entretanto, 0 fio inalterdvel dos principios fundamentais da psicandlise atravessa 0 século, ordena as singularidades do pensamento analitico e assegura o rigor que legitima o trabalho do psicanalista. Ora, qual é esse fio que garante tal continuidade, quais sao os fundamentos da obra freudiana? Esses fundamen- tos foram comentados, resumidos e reafirmados inimeras vezes. Como, entao, transmiti-los aos leitores de uma nova maneira? Como falar de Freud nos dias atuais? Optei por Ihes submeter minha leitura da obra freudiana a partir de uma questo que habitou em mim durante estes tiltimos dias, enquanto eu escrevia este texto. Perguntei-me incessantemente o que mais me impressionava em Freud, o que dele vivia em mim, no trabalho com meus analisandos, na reflexao teérica que orienta minha escuta, ¢ no desejo que me anima, de transmitir e fazer a psicandlise existir, tal como ela existe neste instante em que vocés Iéem estas linhas. O que mais me impressiona em Freud, aquilo em sua obra que me remete a mim mesmo e que, portanto, assim transmite & obra sua atualidade viva, nao é a teoria dele, embora eu lhes va falar sobre isso, nem tampouco seu método, que aplico em minha pritica. Nao. O que me encanta quando leio Freud, quando penso nele ¢ Ihe dou vida, é sua fora, sua loucura, sua forga louca e genial de querer captar no outro as causas de seus atos, de querer descobrir a fonte que anima um ser. Sem diivida, Freud é, antes de mais nada, uma vontade, um desejo ferrenho de saber; mas sua genialidade est4 em outro lugar. A genialidade é uma coisa diferente do querer ou do desejo. A genialidade de Freud estd em ele haver compreendido que, para apreender as causas secretas que movem um ser, que movem esse outro que sofre e a quem escutamos, é preciso, primeiro e acima de tudo, descobrir essas causas em si mesmo, refazer em si — enquanto se mantém o contato com 0 outro que esté diante de nés — 0 caminho que vai de nossos préprios atos a suas causas. A genialidade nao reside, pois, no desejo de desvendar um enigma, mas em emprestar o préprio eu a esse desejo; em fazer de nosso eu o instrumento capaz de se aproximar da origem velada do sofrimento daquele que fala. A vontade de descobrir, tao tenaz em Freud, conjugada com essa modéstia excepcional de comprometer seu eu para consegui-lo, isso é 0 que mais admiro, ¢ do que jamais Ihes poderei prestar contas plenamente através de palavras e conceitos. A genialidade freudiana nao se explica nem se transmite e, no entanto, nao pode persistir como uma graga inaudita do fundador. Nao, a genialidade freudiana € 0 salto que todo analista é conclamado a realizar em si mesmo, todas as vezes que escuta verdadeiramente seu analisando. FREUD 15 Esquema da légica do pensamento freudiano Freud nos deixou uma obra imensa— ele foi, como sabemos, um trabalhador infatigével —e toda a sua doutrina é marcada por seu desejo de identificar a origem do sofrimento do outro, servindo-se de seu préprio eu. Assim, tentarei apresentar-lhes a esséncia dessa doutrina, os fundamentos da teoria freudiana, sem esquecer que ela continua a ser uma tentativa incessantemen- te renovada de dizer o que nos move, de dizer o indizivel. Toda a obra freudiana é, nesse aspecto, uma imensa resposta, uma resposta inacabada & pergunta: qual é a causa de nossos atos? Como funciona nossa vida psiquica? Eu gostaria, justamente, de fazé-los compreender essencial do fun- cionamento mental, tal como € visto pela psicandlise e tal como se confirma quando o psicanalista est com seu paciente. A concepgio freudiana da vida mental, com efeito, pode formalizar-se num esquema légico elementar, que se nos evidenciou durante nossa releitura dos escritos de Freud. A medida que fomos procurando aproximar-nos mais do cere da teoria, em vez de apreendé-la de fora, vimos que ela se transfigurava. Primeiro, a complexida- de reduziu-se. Depois, as diferentes partes imbricaram-se umas nas outras, para enfim se ordenarem numa épura simples de sua relagdo. Se eu lograr transmitir-Ihes esse esquema, terei realizado plenamente meu propésito de introduzi-los na obra de Freud, porque esse esquema retoma de maneira surpreendente a Idgica implicita e interna do conjunto dos textos freudianos. Desde 0 Projeto para uma psicologia cientifica, redigido em 1895, até sua Ultima obra, 0 Esbogo de psicandlise, escrito em 1938, Freud nao parou de reproduzir espontaneamente, muitas vezes de modo inadvertido, num quase- automatismo do pensamento, um mesmo esquema basico, expresso segundo diversas variantes. E precisamente essa ldgica essencial que agora tentarei expor-lhes. Procederemos da seguinte maneira: comegarei por construir com vo- cés este esquema elementar ¢ o irei modificando progressivamente, & medida que desenvolvermos os temas fundamentais que so 0 inconsciente, o recal- camento, a sexualidade, 0 complexo de Edipo e a transferéncia no tratamen- to analitico. Passemos a nosso esquema bisico. Em que consiste ele? Para responder, preciso lembrar, inicialmente, que ele é uma versao corrigida de um modelo 16 conceitual j4 cléssico, utilizado pela neurofisiologia do século XIX para explicar a circulagao do influxo nervoso, ¢ batizado de esquema do arco reflexo. Esclarego desde logo que 0 modelo do arco reflexo continua a ser um paradigma ainda fundamental da neurologia moderna. O esquema neurolégico do arco reflexo € muito simples e bastante conhecido (Figura 1). Ele comporta duas extremidades: a da esquerda, extremidade sensivel em que o sujeito percebe a excitagdo, isto é, a injeciio de uma quantidade “x” de energia — quando ele recebe, por exemplo, uma leve martelada médica no joelho. A da direita, extremidade motora, transfor- ma a energia recebida numa resposta imediata do corpo — em nosso exem- plo, a perna reage prontamente com um movimento reflexo de extensio. Entre os dois extremos, instala-se, pois, uma tensao que aparece com a excitagéo e desaparece com a descarga escoada pela resposta motora. O principio que rege esse trajeto em forma de arco é muito claro, portanto: receber a energia, transforma-la em agdo e, conseqiientemente, reduzir a tensao do circuito. cegbria 60 A209 ee Qo a“ Excitagdo ean externa descarga externa Pélo sensfvel Pélo motor Figura 1. Esquema do arco reflexo FREUD 7 Cremos que [0 princtpio de prazer] é cada vez provocado por uma tensdo desprazerosa, ¢ assume uma direcao tal que seu resultado final coincide com um rebaixamento dessa lensdo, isto é, com uma evitagdo de desprazer ou uma produgdo de prazer. S. Freud Apliquemos agora esse mesmo esquema reflexo ao funcionamento do psi- quismo. Pois bem, o psiquismo é igualmente regido pelo principio que visa a reabsorver a excitaciio e reduzir a tensdo, exceto pelo fato de que justamen- te, como veremos, o psiquismo escapa a esse principio. Na vida psiquica, com efeito, a tensdo nunca se esgota. Estamos, enquanto vivemos, em constante tensiio ps{quica. Esse principio de redugao da tensiio, que devemos antes considerar como uma tendéncia, e nunca como uma realizacio efetiva, leva, em psicandlise, 0 nome de Principio de desprazer-prazer. Por que chamé-lo dessa maneira, “desprazer-prazer”? E por que afirmar que o psi- quismo esta sempre sob tensao? Para responder, retomemos as duas extremi- dades do arco reflexo, mas imaginando, desta vez, que se trata dos dois pélos do préprio aparelho psiquico, imerso como esté no meio composto pela realidade externa. A fronteira do aparelho, portanto, separa um interior de um exterior que o circunda (Figura 2). No pélo esquerdo, a extremidade sensivel, discernimos duas caract proprias do psiquismo: a) A excitagéo é sempre de origem interna, ¢ nunca externa. Quer se trate de uma excitagdo proveniente de uma fonte externa, como, por exem- plo, o choque provocado pela visio de um violento acidente de automével, quer se trate de uma excitag&o proveniente de uma fonte corporal, de uma necessidade como a fome, a excitacfo continua a ser sempre interna no psiquismo, jé que tanto o choque externo quanto as necessidades internas criam uma marca psiquica, & maneira de um selo impresso na cera. Numa palavra, a fonte da excitaco endégena é uma marca, uma idéia, uma ima- gem, ou, para empregar o termo apropriado, um representante ideativo carregado de energia, também chamado representante das pulsées. Termo este — pulsao — que reencontraremos muitas vezes neste capitulo. b) Segunda caracteristica: esse representante, depois de carregado uma primeira vez, tem a particularidade de continuar tao duradouramente excita- do, como se fosse uma pilha, que qualquer tentativa do aparelho psiquico de reabsorver a excitacao e eliminar a tensao revela-se uma tentativa fadada ao fracasso. Pois bem, essa estimulacao ininterrupta mantém no aparelho um nivel elevado de tensio, dolorosamente vivenciado pelo sujeito como um apelo permanente a descarga. Ea essa tensfo penosa, que o aparelho psfquico tenta em vao abolir, sem nunca chegar verdadeiramente a fazé-lo, que Freud chama desprazer. Temos, assim, um estado de desprazer efetivo e incontor- navel e, inversamente, um estado hipotético de prazer absoluto, que seria obtido se 0 aparelho conseguisse escoar imediatamente toda a energia e eliminar a tensao. Esclaregamos bem o sentido de cada uma dessas duas palavras: desprazer significa manutencdo ou aumento da tensio, e prazer, supressio da tensao, Todavia, nao nos esquegamos de que o estado de tensaio desprazeroso ¢ penoso no é outra coisa sendio a chama vital de nossa atividade mental; desprazer, tensao e vida sao eternamente inseparaveis. No psiquismo, portanto, a tensaio nunca desaparece totalmente, afirmagao esta que pode ser traduzida por: no psiquismo, o prazer absoluto nunca € obtido. Mas, por que a tensdo € sempre premente e 0 prazer absoluto nunca € atingido? Por trés razGes. A primeira, vocés j4 a conhecem: a fonte psfquica da excitacdo ¢ tio inesgotavel que a tensao é cternamente reativada. A segunda razio concerne ao pélo direito de nosso esquema. O psiquismo nao pode funcionar como o sistema nervoso ¢ resolver a excitagio através de uma agio motora imediata, capaz de evacuar a tensdo. Nao, o psiquismo sé pode reagir A excitacao através de uma metéfora da agéo, uma imagem, um pensamento ou uma fala que represente a aco, e nfo a acdo concreta, que permitiria a descarga completa da energia. No psiquismo, toda resposta é inevitavelmente mediatizada por uma representagdo, que s6 pode efetuar uma descarga parcial. Do mesmo modo que pusemos no pélo esquerdo o representante psiquico da pulsao (excitacao pulsional continua), colocamos no pélo FREUD 19 direito 0 representante psfquico de uma ago. Por isso, 0 aparelho psiquico permanece submetido a uma tensio irredutivel: na porta de entrada, 0 afluxo das excitages é constante ¢ excessivo; na saida, ha apenas um simulacro de resposta, uma resposta virtual, que efetua somen- te uma descarga parcial. Mas hi ainda uma terceira razao, a mais importante e mais interessante para nés, que explica por que o psiquismo est sempre sob tensao. Ela consiste na intervengao de um fator decisivo, que Freud denomina de recalcamento. Antes de explicar 0 que € 0 recalcamento, convém eu esclarecer que entre 0 representante-excitagdo e o representante-a¢do estende-se uma rede de muitos outros representantes, que tecem a trama de nosso aparelho. A energia que aflui e circula da esquerda para a direita, da excitagiio para a descarga, atravessa necessariamente essa rede intermediéria. Entretanto, a energia nao circula da mesma maneira entre todos os representantes (Figura 2). Se imaginarmos o recalcamento como uma barra que separa nosso esque- ma em duas partes, a rede intermediaria ficard assim dividida: alguns repre- sentantes, que reunimos como um grupo majoritério, situado A esquerda da barra, sdio muito carregados de energia se ligam de tal modo que formam o caminho mais curto e mais rapido para tentar chegar descarga. As vezes, organizam-se & maneira de um cacho e fazem toda a energia confluir para um tinico representante (condensacao); noutras vezes, ligam-se um atrs do outro, em fila indiana, para deixar a energia fluir com mais facilidade (deslocamento).” Alguns outros representantes da rede — que reuniremos como um grupo mais restrito, situado a direita da barra — sao igualmente carregados de energia e também procuram livrar-se dela, mas numa descarga lenta e controlada. Estes se opdem a descarga rapida, pretendida pelo primeiro grupo majoritério de representantes. Instaura-se, pois, um conflito entre esses dois grupos: um que quer de imediato o prazer de uma descarga total — o prazer & soberano, nesse caso —, € outro que se opée a essa loucura, * Essa visio econémica do movimento e da distribuigdo da energia pode traduzir-se numa visio “semistica”, segundo a qual a energia investida numa representagdo corresponde & significagdo da representacao. Dizer que uma representacZo é carregada de energia equivale a dizer que uma representagao é significante, portadora de significagao. Assim, 0 mecanismo de condensagio de energia corresponde a figura da metonfmia, segundo a qual uma tinica representagao concentra todas as significagées; e o mecanismo do deslocamento corresponde a figura da metdfora, na qual as representagdes se véem atribuir sucessivamente, uma por uma, todas as significagdes. Observe-se, por outro lado, que essa relagdo se inverte para Lacan: a condensagao € da algada da metéfora, ¢ o deslocamento, da algada da metonimia. OUISINDISA Op OJUAWELOPUNY OF OpEdT{de Oxeyar OoIe Op BUIONDSy “7 vans vuod Pd sor Se paajssodun a Ss Oynjosqn sazD1g ogse ep aruequasaiday oppsapou sa201g <—____e Temoojoru opeprany oayngysqns a porsand 4azDLg OuULNad < ovsind op odoy FREUD 21 lembra as exigéncias da realidade e incita 8 moderag%o —nele, a realidade 6 soberana. O principio que rege esse segundo grupo de representantes chama-se Principio de realidade. O primeiro grupo constitui o sistema inconsciente, que tem por missao, portanto, escoar a tensdo o mais depressa possivel ¢ tentar atingir 0 prazer absoluto, Esse sistema tem as seguintes caracteristicas: compde-se exclusi- vamente de representantes pulsionais, como se o representante do pélo esquerdo se multiplicasse em muitos outros. Freud os denomina de “repre- sentagoes inconscientes”. Essas representagdes, ele também as chama “re- presentagées de coisa”, por elas consistirem em imagens (actisticas, visuais ou tacteis) de coisas ou de pedagos de coisa impressas no inconsciente. As representag6es de coisa so de natureza principalmente visual e fornecem a matéria com que se moldam os sonhos e, em especial, as fantasias. Acrescen- temos que essas imagens ou tragos mnémicos sé so denominados de “representages” sob a condicao de estarem investidos de energia. Por isso, um representante psiquico € a conjuncao de um trago imajado (um trago deixado pela inscrig&io de fragmentos de coisas ou acontecimentos reais) com a energia que reaviva esse trago. As representagées inconscientes de coisa nao respeitam os limites da razao, da realidade ou do tempo — 0 inconsciente nao tem idade. Elas atendem a uma tinica exigéncia: buscar instantaneamente © prazer absoluto. Para esse fim, o sistema inconsciente funciona segundo os mecanismos de condensagio e deslocamento, destinados a favorecer uma circulagdo fluente da energia. A energia é chamada livre, uma vez que circule com toda a mobilidade e com poucos entraves na rede inconsciente. O segundo grupo de representantes também constitui um sistema, 0 sistema pré-consciente/consciente. Esse grupo busca igualmente o prazer, mas, diferindo do inconsciente, tem por missao redistribuir a energia — energia ligada e escod-la lentamente, seguindo as indicagées do Princfpio de realidade. Os representantes dessa rede so chamados “repre- sentagGes pré-conscientes e representagGes conscientes”. As primeiras sao representages de palavra; elas abarcam diferentes aspectos da palavra, como sua imagem actistica ao ser pronunciada, sua imagem grafica ou sua imagem gestual de escrita. Quanto as representagGes conscientes, cada uma € composta de uma representagiio de coisa, agregada a representagao da palavra que designa essa coisa. A imagem actistica de uma palavra, por exemplo, associa-se a uma imagem mnémica visual da coisa para Ihe conferir um nome, marcar sua qualidade especifica e, assim, torné-la consciente. 22 Sublinhemos: os dois sistemas buscam a descarga, ou seja, 0 prazer; mas, enquanto o primeiro tende ao prazer absoluto ¢ obtém apenas, como veremos, um prazer parcial, o segundo, por sua vez, visa a obter e obtém um prazer moderado. Isto posto, podemos agora perguntar-nos: que é 0 recalcamento? Dentre as definigdes possiveis, proporei a seguinte: o recalcamento é um espessamento de energia, uma capa de energia que impede a passagem dos contetidos inconscientes para o pré-consciente, Ora, essa censura nao ¢ infalivel: alguns elementos recalcados vao adiante, irrompem abruptamente na consciéncia, sob forma disfargada, e surpreendem o sujeito, incapaz de identificar sua origem inconsciente. Eles aparecem na consciéncia, portanto, mas permane- cem incompreensiveis e enigmaticos para 0 sujeito. Essas exteriorizagdes deturpadas do inconsciente conseguem assim descarregar uma parte da energia pulsional, descarga esta que proporciona apenas um prazer parcial e substitutivo, comparado ao ideal perseguido de uma satisfagaéo completa e imediata, que seria obtida por uma hipotética descarga total. A outra parte da energia pulsional, a que nao transpde 0 recalcamento, continua confinada no inconsciente e realimenta sem cessar a tensdo penosa. Tinhamos dito que o aparelho psiquico tem por fungdo reduzir a tensiio e provocar a descarga de energia. Sabendo, agora, que a estimulacdo end6- gena ¢ ininterrupta, que a resposta é sempre incompleta, e que o recalcamen- to aumenta a tensdo e a obriga a buscar expressdes deturpadas, podemos concluir, portanto, que existem diferentes tipos de descarga proporcionado- res de prazer: e Uma descarga hipotética, imediata e total, que provocaria um prazer absoluto. Essa descarga plena aparenta-se com o caso do desaparecimento da tensao quando de uma resposta motora do corpo. Ora, para o psiquismo, como sabemos, essa solugao ideal é impossivel. Todavia, quando abordar- mos 0 tema da sexualidade, veremos como esse ideal de um prazer absoluto mantém-se como referéncia incontornavel das pulsdes sexuais. e Uma descarga mediata e controlada pela atividade intelectual (pensa- mento, meméria, julgamento, atengao etc.), que proporciona um prazer moderado. E, por fim, uma descarga mediata e parcial, obtida quando a energia e os FREUD 23 contetidos do inconsciente transpdem a barreira do recalcamento. Essa descarga gera um prazer parcial ¢ substitutivo, inerente as formagdes do inconsciente. Esses trés tipos de prazer esto representados na Figura 2, na pagina 20. Antes de retomarmos ¢ resumirmos nosso esquema do funcionamento psiqui- co, convém fazer alguns esclarecimentos importantes no que concerne & signi- ficagdo da palavra “prazer” e A fungao do recalcamento. A propésito do prazer, assinalemos que a satisfagdo parcial e substitutiva ligada as formagdes do inconsciente ndo € necessariamente sentida pelo sujeito como uma sensa¢ agradavel de prazer. Muitas vezes, sucede até essa satisfacéio ser vivida, parado- xalmente, como um desprazer, ou até como um sofrimento suportado por um sujeito que esteja as voltas com sintomas neuréticos ou conflitos afetivos. Mas, sendo assim, por que empregar o termo prazer para qualificar o carater doloroso da manifestagao de uma pulsao? E que, a rigor, a nogiio freudiana de prazer deve ser entendida no sentido econémico de “baixa da tenso”. 6 o sistema incons- ciente que, através de uma descarga parcial, encontra prazer em aliviar sua tensdo. Por isso, diante de um sintoma que causa sofrimento, devemos discernir claramente o sofrimento experimentado pelo paciente e o prazer nao sentido, conquistado pelo inconsciente. Passemos agora ao papel do recalcamento e levantemos 0 seguinte problema: por que tem que haver recalcamento? Por que é preciso que 0 eu se oponha 4s solicitagdes de uma pulsdo que apenas pede para se satisfazer e, desse modo, liberar a tensdo desprazerosa que reina no inconsciente? Por que barrar a descarga liberadora da pressao inconscien- te? Qual é a finalidade do recalcamento? O objetivo do recaleamento nao € tanto evitar o desprazer que reina no inconsciente, mas evitar 0 risco extremo que o eu correria por satisfazer a exigéncia pulsional de maneira integral e direta. Com efeito, a satisfagio imediata e total da pressio pulsional destruiria, por seu descomedimento, 0 equilibrio do aparelho psiquico. Existem, pois, duas espécies de satisfagdes pulsionais. Uma, total, que 0 eu idealiza como um prazer absoluto, mas evita — gragas ao recalcamento — como um excesso destrutivo’. A outra satisfacdo é uma satisfagio parcial, moderada ¢ isenta de perigos, que o eu tolera. 24 Podemos agora resumir, numa palavra, 0 esquema légico que perpassa nas entrelinhas a obra de Freud c, assim fazendo, definir o inconsciente. Reportemo-nos a Figura 3 ¢ formulemos a pergunta: como funciona o psiquismo? essencial da Iégica do funcionamento psiquico, considerado do ponto de vista da circulacao da energia, resume-se, pois, em quatro tempos: Primeiro tempo: excitagéo continua da fonte e movimentagao da energia A procura de uma descarga completa, nunca atingida —» Segun- do tempo: a barreira do recalcamento opée-se 4 movimentagao da energia — Terceiro tempo: a parcela de energia que nfo transpée a barreira resta confinada no inconsciente ¢ retroage para a fonte de excitagaéo —> Quarto tempo: a parcela de energia que transp6e a barreira do recalcamento exterioriza-se sob a forma do prazer parcial inerente as formagées do inconsciente. Quatro tempos, portanto: a pressao constante do inconsciente, o obsta- culo que se opde a ele, a energia que resta e a energia que passa. E esse 0 esquema que eu gostaria de Ihes propor, pedindo-Ihes que o ponham a prova em sua leitura dos textos freudianos. Talvez vocés constatem o quanto Freud raciocina de acordo com essa Iégica essencial dos quatro tempos’. Definigdes do inconsciente Abordemos agora 0 inconsciente conforme os diferentes pontos de vista estabelecidos por Freud, levando em conta os vocdbulos particulares que designam os dois extremos do esquema: a fonte de excitagdo (tempo 1) e as formagées exteriores do inconsciente (tempo 4). Cada uma dessas extremi- dades assume um nome diferente, conforme a perspectiva e a terminologia com que Freud define o inconsciente. Definigado do inconsciente do ponto de vista descritivo Se considerarmos 0 inconsciente de fora, isto é, do ponto de vista descritivo

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