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Resumo O artigo, a partir da constatagao. do uso crescente da fonte oral nas pes- quisas em educagio, pretende refletir sobre os usos, possibilidades e limites do trabalho com a fonte oral, recorren- do a uma discussio mais ampla sobre teoria da historia, debrugando-se so- bre o processo de construgo do do- cumento oral e narrando algumas ex- periéncias de pesquisa, Palavras-chave Fonte oral, Hist6ria da Educagao, Hist6ria Oral, Género. Diana Goncalves Vidal Abstract The purpose of this article is to reflect about possiblities and limits of ‘oral source in educational research, by discussing aspects of theory of history, by analysing the process of constructing oral document and by commenting some research experiences. Keywords Oral source, History of Education, Oral History, Gender. EDucacao em Revista, Beto HoRZONTE, N° 27, 10/98, artigos A fonte oral e a pesquisa em Historia da Educacao: algumas consideracdes + Professor da Faculdade ‘de Educacto da USP e do Insiruto de Estudos asletros da USP ‘Depots de trés décadas consagradas @ andlise da externalidade dos pro- ccessos educativos, sublinbando a fon- ga duragdo das suas mudangas ¢ das suas continuidades, chegou 0 tempo de olbar com mais atenséo para a intornalidade do trabalho escolar, nomeadamente os momentos de con- flto ¢ rupsura. O functonamento in- terno das escolas, 0 desenvolvimento do curriculo, a construciio do conbe- cimento escolar, a organtzacgao do cotidicino escolar, as vidas ea expent- Encia dos alunos ¢ dos professores eis algumas das problemdticas que precisam de ser abordadas através de novos {nstrumentos tedricos ¢ meto~ doldgicos” (Novas, 1994, p.5). Nas duas tlimas décadas, a per- cepcao do espaco escolar como um local freqtentado por pessoas vem alterando a8 anilises sobre a escola a escolari- zagio, nao apenas pela introdugio de novos objetos de pesquisa, como também pela producao/incorporacao de outros referenciais tedricos e metodolégicos. De instrumento de media¢ao ou de reproducio da sociedade e de objeto de recepcio ¢ inculcagio de normas sociais, professores (as) ¢ alunos (as) passaram a ser proceso de ensino-aprendizagem, pelas escolhas que efetuam e pelos saberes que produzem istos como atores privilegiados do Investigar a pritica docente, com- preendendo-a ma intersecao do saber da acdo de professores (as), levou pes- quisadores (as) a indagarem-se sobre essa mistura de vontades, gostos, experi- éncias, acasos que foram consolidando gestos, rotinas, comportamentos iden- tificados como docentes: 0 modo parti- cular de organizar aulas, de se movimentar na sala, de se dirigir aos (2s) alunos (as), de utilizar os recursos didéticos e, mes- mo, de organizar a relacio pedagégica Questiona-se de que maneira a re- lacao entre experiéncias de vida e ambi- ente sdcio-cultural afeta o proceso ensi no-aprendizagem; qual o impacto do es tilo de vida do (a) professor (a) dentro e fora da escola, de suas identidades e cul- turas ocultas sobre modelos de ensino e sobre a pritica educativa; qual a influén- cia do ciclo de vida docente nas escolhas da carreira; como incidentes criticos na vida dos (as) profeessores (as) modifica sua percepeao e pritica profissional; como decisdes relativas & carreira podem ser influenciadas por aspectos do proprio contexto profissional; como 0 (a) profes- sor (a) situa-se em relaclo & historia de seu tempo (Goorson, 19928). Ao posar o olhar sobre a inter- nalidade da escola, sensibilizando-se pelo cotidiano escolar, os (as) historia- dores (as) da educagao redescobriram, nos agentes educacionais, homens, mu- Theres ¢ criancas. Compreender o gran- de contingente feminino do magistério, especialmente primario, despontou como um instigante desafio a pesquisa- dores (as). Num primeiro momento, as pesquisas preocuparam-se em focalizar © processo de feminizaga docente Mais recentemente, os estudos tém pro- curado entender 0 magistério como uma Profissao de género feminino, interes- sando-se por destacar as experiéncias pessoais (Neison, 1992) © as estratégias mobilizadas em sala de aula (Rovswanrene, 1994), que asseguram a mulher a per- manéncia profissional. Essas novas abordagens propicia- ram/foram propiciadas a/pela utilizagao de novos recursos tedricos e metodo- légicos, como hist6ria de vida e hist6ria oral temdtica € trouxeram, como pro- blemas aos (as) pesquisadores (as) em historia da educagdo, a elaboracao de referenciais de anilise e a discussio metodolégica Nessa perspectiva, o presente ar ligo dispoe-se a refletir sobre os usos, as possibilidades e os limites do traba- Tho com a fonte oral em educagio, re- correndo a uma discussio mais ampla sobre teoria da hist6ria, debrugando-se sobre 0 processo de construcao do do- cumento oral e narrando algumas expe- riéncias de pesquisa. EpucAGAo fu Rewsta, Beto Homronre, n° 27, u/98 Histéria ¢ histéria oral Uma das contribuigdes a0 trabalho historiografico oferecidas pela Fcole des Annales foi o alargamento da nogao de documento histérico. Tudo aquilo que contava sobre o homem € sua atividade ‘no mundo passou a ser considerado como testemunho da vida humana. © ampla- mente citado texto de Febyre indica-nos essa mudanga, “A bistérta faz-se com documentos escritos, sem diivida. Quando estes cexistom, Mas pode fazerse, deve fa- zer-se sem documentos escritos, (quando nao exstom. Com tudo 0 que 4 babiltdade do historiador the per- ite utilizar para fabricar o seu mel na falta das flores habituats. (..) ‘Numa palavra, com tudo que perien- cendo ao homem, depende do bo- ‘mom, serve 0 homem, exprime 0 bo mem, demonstra a presenga, @atvt- dade, 0s gotos ¢ as maneiras de ser do bomem.” CFasves Apud Le Corr 1984, 7.98). Os documentos escritos, até entao privilegiados no cenirio historiografico, passaram a conviver com a muliplicidace de novas fontes, sendo, muitas vezes, por essas criticados. Contrariando a historia positivista do séc. XIX e do inicio do XX, em que 0 (a) historiador (a) podia, con- fortavelmente, apoiar-se sobre os escri- tos do passado, para compor a andlise historiogréfica ¢ afirmar a cientificidade de seu trabalho — Fustel de Coulanges chegara a dizer que 0 melhor historiador seria aquele que se mantivesse mais pré- ximo 40s textos —, a nova histéria recla- mava a utilizagao de diversas fontes para a elaboracdo historiogréfica. Os horrores da M1 Grande Guerra corroboraram para o alargamento da no- lo de documento histérico. A mone de intelectuais, como Mare Bloch, fuzitado em 1944, por fazer parte da resisténcia francesa, ou Walter Benjamin, que se sui- cidou em 1940, apés ver frustrada sua tentativa de fugir da Gestapo, cruzando a fronteira entre a Franca ¢ a Espanha, eram algumas lembrancas que feriam a crenga na imparcialidade da palavra escrita. Fin- daa guerra, 20s (as) historiadores (as) restava a conviego de que muitas vozes haviam sido caladas. A preocupagio em resgatar’”os relegadios 20 siléncio impul- sionow a explosio documental, claramen- te percebida nos anos 60. Objetos, foto- gtafias, construgdes arquitetOnicas ¢ de- poimentos compuseram parte dessa ex- plosio que revohucionou as formas de ver € fazer hist6ria no século XX. ‘Ao mesmo tempo em que se alarga- va o conceito de documento, ampliavam-se 0s interesses da pesquisa hist6rica, a his- t6ria voltava-se decididamente para o cotidiano, para o particular, ¢alteravam-se 05 compromissos do (a) historlador (a), Sobre seus ombros recafa a responsabili- dade de devolver sos vencidos o que a hist6ria oficial thes havia negado: sua marca no mundo. Nesse contexto, deu- se 0 “nascimento” da historia oral.t Por registrar falas que de outra ma. neira estarfam perdidas para a histo- riografia, através de entrevistas com ato- res de diversos momentos histéricos, so- bre a hist6ria oral repousou a crenca na possibilidade de uma hist6ria mais pré- xima 20 vivido ou mais democritica. Ape- sar de estarem intrinsecamente ligados 20 documento, alguns (as) historiadores (as), a0 franquearem seus gravadores aos “despossuidas’, “vencidos” ou “excluidos” acreditavam constnuir fatas-verdade, No final dos anos 60, ocome a per- cepcio do documento como monument, isto 6, como “resultado de uma montagem, cons- cionto ow inconsciente, da bistéria, da epoca, da sociedade que 0 produzi- ram, mas também de épocas sucessi- as durante as quats comtinuos a viver, talvex esqpecido, durante as quais con- Hinuou a ser manipulado, ainda que pelo silencio (...) do esforgo das socie- dades bistéricas para impor ao futuro — vohentdria ow involuntariamente — determinada imagem de st proprias" (Le Gow, 1984, p.103), Enucacko em Revista, BE1O HORZONTE, N° 27, 1U1/98 Para uma discussie amplaca sobre 0 surgimento da hisoris coral no nosso secu, ver Wa, 19%. ‘Ou seja, a compreensio de que, mais do que vestigias do passado, os do- cumentos portavam a construgio desse pasado. Iss0 pOs em xeque a intima re- lacao entre documento € fato. De tragos do real, os documentos transformaram- se em elementos construtores da realida- de, Deixaram de significar 0 fato para tor- narem-se produgdes de sentido. A neutralidade do oficio de histo- riador viu-se questionada da mesma for ma que 0 conceito de documento-verda- de. De mero “recolbedor” de pistas, 0 (@) historiador (a) passava a construtor (a) de séries e quadros, conferindo signifi- cado ao passado, a partir de sua experi- éncia, enudicio e/ou do lugar de onde proferia a sua fala (Cerreav, 1992). A his- t6ria indagava-se acerca da cientificidade do trabalho historiogrifico, Se aumentava a quantidade de do- cumentos que se ofereciam a anilise, crescia a responsabilidade do (a) histori- ador (2) como critico interno € extemo das fontes © como sujeito produtor de conhecimento. Nao perceber o documen- to como uma montagem do passadoe nao reconhecer a histéria, ela mesma, como um monumento jf nao se permitia mais a0 (2) pesquisador (a) em hist6ria. Ao ingressar em sua era epistemolégica, a historlografia fechava definitivamente a era da identidade (Nora, 1993, p.20. Os contornos dessa viragem fo- ram-se delineando mais fortemente para @ hist6ria oral nos anos 80, Pouco a pou- Co, © (a) historiador (a) oral foi abando- nando a perspectiva de resgate da vox dos vencidos € compreendendo a falas registradas no gravador em sua dimen- sao discursiva, Recuperar o que aconte- ew realmente no ontem, pelo viés dos exclufdos afigurou-se como uma tarefa historiografica impossivel. O reconheci- mento dos imperativos do hoje na cons- truco dos relatos orais eo proprio di- ‘namismo do rememorar langavam & his- t6ria oral 0 desafio de refletir sobre a ‘meméria como um artefato hist6rico, As criticas 2 defectibilidade da me- méria como fonte & produgo historio- Brifica efetuadas por parte de historia- lores (as) destacavam a fragilidade, frag- mentalidade €, mesmo, © equivoco da meméria individual quando confronta- da a0 documento escrito. Como fonte de exatiddo, afirmavam, a memria deveria ser descartada nos provedimentos histo- riograficos. Tal critica despertou, no entanto, a sensibilidade para a percepcao da dis- tingao entre os tempos do fazer, do rememorar e do narrar, apontando para ‘0 cariter dindmico da meméria: constan- te reconstrugao, “a meméria, longe de ser meramente um receptdculo passive ou um siste- ma de armazenagem, um banco de dados do pasado, 6, isto sim, uma orca ativa, que molda; que é dina- ‘mica — 0 que ela sintomaticamente planeja esquecer 6 téo importante ‘quanto 0 que ela lembra — e que ela 6 dialeticamente relacionada ao pen- samento bistérico, ao invés de ser apenas uma espécie de seu negativo” Suns, 1997, p44) Ao elaborar seu depoimento, nem 0 (a) depoente revivia o pasado, resga- tando intacta a meméria de um aconteci- mento — a integtidade de um momento —, nem recuperava as emogdes, os sen- limentos e os saberes que aquele instan- te lhe provocou originalmente — como ressurgidos pelo gosto da pequena mada- lena —, apenas materializava em discur- so suas reminiscéncias, construindo reel boragdes no presente sobre o pasado. O ontem nao renaseia na narrativa memo- fialistica, mas era produzido pelo olhar ‘que de hoje the langava © (a) rememo- rador (a), ctivado por influéncias varias, que cabia ao (@) historiador (a) decifrar: imagens veiculadas pelos meios de comu- nicacio de massa ou pela propria histo- riografia, ou processos psivolégicos de auto-afirmagio ou negagao, dentre ovtras, Na historiografia do final dos anos 90, parece estar-se operando um novo deslocamento dos estucos sobre a me- métia: do histérico ao psicolégico, do social ao individual. Alerta Pierre Nora Epucagio ex Revista, Beto Honzonre, n° 27, sU/98 (1993, p-7): “fala-se tanto de meméria porque ela néio existe mais.” Para cle, a historiografia, ao romper com a nogio de continuidade historica em favor da descontinuidade, tornou futuro imprevi- sivel, transformando o passado em rup- tura, Assim, a histéria, procurada na con- tinuidade da meméria, cedeu lugara uma meméria que se projeta na descon- tinuidade de uma histéria; e 20 (@) histo- riador (a) foi delegado um novo papel impedir a histéria de ser somente hist6- ria (Nowa, 1993). Esse deslocamento tal- vez explique 0 crescimento de trabalhos ‘em hist6ria oral preocupados em incor- porar referenciais psicanaliticos. A construgao do documento oral As discusses anteriores colocam ‘como problema para historia oral, a0 meu ver, refletir sobre a prépria construcao do documento oral e sobre 0 oficio do (a) historiador (a): questOes que se interpe- netram, Por isso, partindo do pressupos- to de que o documento oral é produzido nna interacZo entre, no minimo, dois su- jeitos: 0 (a) pesquisador (a) e 0 (a) depo- ente (Vioni, 1990), pretendo discorrer so- bre quatro momentos de sua elaboracao, entrelagando aspectos técnicos € teéricos. © primeito momento de constru- ao do documento oral é o que poderi mos denominar de preparagao da entre- vista, Deve, inicialmente, o (a) pesquisa dor (a) delimitar 0 objeto de seu interes- se, percorret uma bibliografia inicial, de forma a estar habilitado (a) a explorar as informagdes que irao surgi a0 longo da entrevista, selecionar os (as) depoentes, efetuar os contatos iniciais € elaborar 0 roteiro de entrevista. Tais procedimentos slo necessitios para assegurar 2 entre- ‘vista um certo “sucesso”, Um (a) pesqui- sador (a) que desconhece 0 tema, nao possui qualquer informacdo sobre o (a) entrevistado (a) € no esté municiado de ‘um conjunto minimo de indagacées ¢ in- capaz de romper a inércia da situacao de ‘entrevista, Nao basta um gravador na mao e a desculpa de que apenas se vai registrar 2 voz do outro — ja vimos que essa ques- tho no se coloca mais para a historio- grafia oral. Nem o gravador nem o (a) pesquisador (a) sao elementos neutros da entrevista, Como outra atribuigao do (a) pes- quisador (a) nessa primeira fase de estruturagao da entrevista estio os cui- dados técnicos com os equipamentos a serem utilizados. Pode parecer, talvez, uma preocupac4o menor ao (2) historia- dor (a) diante dos procedimentos anterio- res que visa assegurar o registro do con- terido da fala. Mas, a propria qualidade € durabilidade desse registro €, portanto, sua conservacio, sto colocados em xe- que, se no forem resguardadas condicoes minimas, como gravadores, filmadoras € fitas cassete € de video de boa qualidade, microfones extemos, pilhas novas e ilu- minagao adequada em casos de filmagens, além dos constantes cuidados com 2 es- colha do ambiente para a realizacio da entrevista, em fungo do nivel de nuido de sua agradabilidade ao (8) depoente. Es- 525 questées tornam-se ainda mais rele- vantes se pensarmos que 0 documento produzido nao deve servir unicamente a ‘uma pesquisa individual, a elaboracio de um texto escrito sefa ele académico ou nao, ‘mas que pode transformar-se em um pro- uto pantihado, devolvido ao (a) entre- vistado (a) € gerar outras escritas como videos, ec-roms ou fitas. © (@) depoente, ao ser contactado (@), por sua vez, também se prepara para © encontro, Repensa sua trajet6ria de vida ou 0 momento particular de interesse da pesquisa, revé fotografias, conversa com amigos (as), procura “recordar” eventos, sentimentos, sensagdes, saberes. A situagdo de entrevista constivui- se num segundo momento da construgao do documento oral. Pesquisador (a) € de- poente, ao dela participarem, além da ba- gagem de conhecimentos prévios ¢ da Preparacio anterior, trazem visiveis ele- ‘mentos como sexo, idade, linguagem, vestimenta... Como indices, s40 analisa- dos pelo (@) pesquisador (a) ¢ depoente — a partir de referenciais individuais sociais que thes atribuem sentido — e constantemente so atualizadas essas Eoucaco em Revisrs, BELO HORZONTE, N° 27, 1UL/98 u = De acordo om Bordiew (1996), uma fiega0 psicologica © socal da Uunidade do sujet baseada a indiviculidade Ddiologica 12 anilises durante a producio da entrevis- ta, direcionando/redirecionando o depo- mento, Pessoas iddosas, entrevistadas por jovens, podem imprimir a fala um tom de aconselhamento ou ensinamento. Profes- sores (as) as vezes véem no (a) pesquis dor (@) alunos (as) e transformam o de- poimento em aula. Sto constituintes da producto das falas, também, expressoes de cansaco ou interesse por parte do (a) pesquisadar (a), desejos de valorizacio/ desvalorizacao do passado e caminhos/descaminhos da meméria do (a) entrevistado (a). De- monstragdes de interesse por parte do (a) entrevistador (a) tendem a alongar nar- rativas, enquanto o sentimento de desa- tencdo pode levar ao “enxugamento” de tum relato. Acrescida a esses elementos, 1, ainda, a presenga fisica do gravador, do microfone, eventualmente da camera de video, das luzes, etc. Portanto, & impossivel afirmar 0 depoimento como um documento cons- truido pelo outro e revelador de sua ver- dade ou identidade* E uma construgio: discursiva que, ao se projetar sobre 0 passado, procura conferir-lhe um ou vé- rigs sentidos. Assim, nao se sustentam al- ‘guns purismos como no transcrever a fita, no intervir no telato — 0 que nio significa falar todo o tempo sem deixar 0 (@) entrevistado (a) se expressar ou ante- cipar-se As respostas induzindo direta- mente a narrativa — ou no analisar os dados coletados © documento oral é também um monumento. Se oferece a0 @) historia. dor (a) elementos para a pesquisa, no fala por si. Deve ser objeto da critica do- cumental, interna e extema, Eloquéncias, silencios ¢ esquecimentos devem ser pro- blematizados, bem como narrativas orais devem ser confrontadas 4 documentacio cescrita, Nao com a intengao de denunciar distorgdes, mas com © intuito de perce- ber naneiras como certas representacoes do pasado ¢ do presente foram sendo construfdas individual e socialmente O terceiro momento da construgao documental € 2 transcrigo. Por mais pré= xima que ela esteja da fala, a transcrigao € a passagem da oralidade a escrita, o que de cento constitui uma reelaboragao da entrevista na medida que pausa entonagio, siléncio, ritmo sfio algumas caracteristicas da oralidade dificilmente enquadraveis nas regras gramaticais do escrito. Transcrever, assim, implica em fazer opedes, mais ou menos arbitririas, de ortografia e pontuago. Essas opcdes tomam-se mais complexas se as entrevis- tas foram efetuadas com pessoas que apre- sentam varios vicios de linguagem, ¢x- pressam-se com regionalismos ou possu- em um linguajar proprio a certos grupos, rio se utilizam das normas cultas da lin- gua ou falam outro idioma, impondo tradugio. © aspecto final da transcrigo (traducao®) fica sob responsabilidade do () pesquisador (a), Afirmar a neutralidade do (a) his- toriador (a) na construgio do documen- to oral €, por toda a discussio anterior, uma impossibilidade. E talvex seja essa uma das raz6es da critica 10 documento oral no cenario académico. Se a subjeti- vidade na elaborago historiogrifica pode ser stuportada por historiadores (as), essa subjetividade ligada @ produgio docu- mental gera suspeitas ou constrangimen- tos. A critica interna ao documento fica parcialmente gravada na fita cassete ou de video. A voz do (a) historiador (a) passa a imtegrar 0 cerne do documento. Esses constrangimentos levam a algumas atitudes como nao transcrever a fita na integralidade, mas “S6 nas partes interes- santes’, no socializar 0 documento ou nao submeter 20 (a) depoente a aprova- 20 do depoimento transcrito e autoriza~ do para seu uso. E, aqui, chegamos ao quarto mo- mento da produgio documental, 0 retor- no da transcri¢to ao (@) depoente para andlise, Apesar de conceber o documen- fo como uma construgio discursiva pro- duzida no confronto dos dois sujeitos da hist6ria oral, nao acredito que ao @) de- poente deixe de pertencer a fala registra- da. Os diversos dispositivos que confor- ‘mama produgio do depoimento nao ne- gam aquele (2) que enuncia o direito de autorizar, esiringir ou negar seu. uso ptibli- co. Assim, € necessitio que, apés transcri- taa (9) fita (9), seja oferecida a transcrigao EDUcAGKO a Revista, Beto HoaZzONTe, N° 27, 14/98, a0 (@) entrevistado (a) para leitura, cor- tes e/ou acréscimos. Em caso de altera- es, essas podem ser negociadas, rein- troduzindo trechos cortados ou alongan- do 6 depoimento a partir de uma reescri- 1, conforme o desejo dos sujeitos. Um esclarecimento: se, para mim, o depoi mento pertenceao (a) depoente e somen- te ele (a) pode autorizar seu uso paiblico, ‘a construgao da natrativa hist6rica é de responsabilidad do (a) historiador (2) A operacio de critica documental ¢ a ela- boracio do texto historiogrifico slo cons- tituintes do oficio do (a) historiador (a) que, como alerta Certeau, configura-se a partir das possibilidades e impossibilida- des inerentes a0 lugar de produc do discurso historiografico (1992, p. 77). A versio autorizada da transcricio deve ser conservada como document. Ha historiadores (as) orais que defen- dem a claboragio de transcriacdes. Ne- las, a transcriclo pede importancia ¢ 0 documento final a ser conservado € a narrativa transcriada a partir da relacao de colaboracio entre pesquisador (a) € depoente. O didlogo estabelecido na entrevista € substituido por uma compo- sido Unica. As controvérsias sto subsu- midas 2 reescrita consensual. No entan- to, se entrevista € um embate, polido, uma atualizagio constante das percep ‘cbes dos sujeitos envolvidos em sua pro- dugdo, como explicitado anteriormente, e uma Juta pelo encaminhamento da nar- rativa — muitas vezes, ao (@) pesquisador (@) interessa que 0 (a) depoente esten- da seu relato sobre determinados temas, enquanto o (a) narrador (a) teimosamen- te insiste em discomer sobre outros —, nao preservar a transcrigao primeira, como nao conservar a gravagio dos de- poimentos, significa apagar as marcas dessa constructo discursiva. Essas discussdes acerca da constru- 20 do documento oral nao tem por ob- jetivo invalidar o uso da fonte oral para pesquisas em historia da educacao, mas conferir ao discurso produzido na situa- do de entrevista ¢ na transcrigao um Ii- gat, permitindo assim a historia falar da sociedade eda mone e portanto ser bistiria (Coutzav, 1992, p.77). Experiéncias com uso de histéria oral na pesquisa em educacio Durante 0 doutoramento (Vinal, 1995), interessei-me em analisar 0 cotidi- ano de uma escola de formacio para o magistério, 0 Instituto de Educacio, lo- calizado no Rio de Janeiro, entao capital da Republica brasileira. 4 escola chamou minha atengio porque, pela primeira vez no Brasil, em 1932, 0 preparo docente para atuar no ensino primério foi elevado a nivel superior. Instalou-se a primeira Faculdade de Educacio, naquele momen- to, denominada Escola de Professores, numa referéncia explicita aos Teachers Colleges americanos. Para construir momentos dessa historia da formacio docente, utilizei- me de documentos textuais, fotogr: cos € orais, procurando perceber a es- cola na sua intemalidade, como produ tora de uma cultura propria; ou seja, in- dagando-a na sua singularidade. Os dados coletados em entrevistas foram comparados &s informacées recolhidas em escritos e fotografias. Finalizado o trabalho, 2 constata- ‘ca0 de que a freqiiéncia & escola era mas sivamente feminina (mais de 90% dosalu- ‘nos era mulher) langou-me no questio- namento sobre como essas mocas, re- cém-formadas, ingressavam na carreira, ‘© que me fez voltar a campo, novamente recolhendo depoimentos e levantando documentagao textual € iconogréfica (iow, 1997). Entrevistei unicamente antigas alu- nas do curso de formagio para o magi tério, egressas entre o fim dos anos 20 ¢ infcio dos 40. Nao obtive depoimentos de antigos (as) professores (as), j4 fale- cidos (as). Poucas foram as entrevistas gravadas, uma vez que apenas oito en- trevistadas permitiram-me usar o grava- dor, num total aproximado de 20 horas de gravagio.? Ao analisar 0 material coletado, comparando as diversas fontes, desper- taram-me algumas indagacdes sobre a representagao das relagdes entre a pro- ji Eoucacio en Revises, Beto HORZONTE, N° 27, sU/98 uma entrevistads permits sravacto. Duss outras antiga professors Iimitaramese 2 conversar cotnigo por telefone. 13 “As reflexdes apresentadas 4 seguir encontramse ampladas no anigo “Malicia: sexvalidade © docénca feminina 10 fensino pamaitio (he de Janeiro, 1980-40)" a ser pubicado pela Fundacto Catios Cnagas/Pundaga0 Ford, em edicao especial juno outros resultados dp pesquisa do programa elazées de Génere na Sociedade Brasileira U Programa de incentvo de Farmaco on Pesuisa soime a Mulber € Relays de Ginero Uilizo os concetas de ca e eseategin ce, ‘coma: (1989. 14 fessora primdria, a profissio docente, 0 espaco urbano € escolar como neutras € naturais e sobre elas esboco, aqui, alguns rapidos comentérios.« A cidade emergiu nos documen- tos orais e escritos como um espaco sexuado € de dificil circulagao. O cresci- mento urbano € a conseqliente horizon- talizacao do Rio de Janeiro, nas primei- ras décadas do nosso século, repercuti- ram na instalacao de escolas em regides cada vex mais distantes do centro. As aalunas recém-formadas eram convidadas a iniciar 0 magistério em escolas de zona rural e suburbana. Freqiientar assentos dos trens de subtirbios ao lado de militares de bai- Xo escalio, sair de casa ainda de ma- drugada, viajar solitariamente pela ci- dade, enfrentar longos percursos em variados tipos de transporte para atin- gir as escolas eram atitudes requeridas ‘a essas novas professors para o desem- penho de sua fungtio docente. A cidade apresentava-se como um espa fiador, que colocava em xeque 05 com- portamentos tidos como femininos, na Gtica das classes médias. Propaganda 10 des: ‘em revistas de grande circulagdo, como a Careta, no Rio de Janeiro, indicavam as professoras que portassem armas em suas bolsas como medida de precaugio contra ataques de" malfeitores" (Canes, 1919 e 1920) A escola, por outro lado, nao re- presentava 6 porto seguro dessa viagem desafiadora pelos (des)caminhos da ci- dade. Distante da concepgdo assexuada de espaco escolar, a escola surgia na fala dessas ex-professoras repleta de questoes ligadas a sexualidade infan- Ul, adolescente € adulta. Casos de a sédio sexual por parte de superiores hi- erarquicos masculinos, ou de desenhos ‘obscenos realizados em aula ou, ain- da, de intimidagao por alunos mais ve Ihos apareceram nas falas sempre de maneira enviezada. O relato de um evento ou epis6- dio levava o discurso para reas peri- gosas onde tais temas emergiam. Des- taque-se, entretanto, que os indicios dessa sexualizagio das relagdes sociais na escola foram esparsos, impondo, muitas vezes, uma leitura as avessas da documentacio. As depoentes, por exem- plo, quando indagadas sobre questoes sexuais, invariavelmente, negavam sua existéncia no espaco escolar. $6.9 ou- vido paciente ¢ a continuidade da en- trevista permitiam que, ao comentar de- terminado episddio, algumas ocorrén- cias de atitudes sexuadas na escola fos- sem registradas. Com todos esses desafios, era dif cil as professoras manterem-se na profis- so. AS que permaneciam optavam por uma carreira de géneto masculino (Dewagrist € Avrunss, 1993). Apesar de no imaginirio social da época apresentar-se a docéncia como uma tarefa complemen- tar 2o trabalho de esposa € mae, € inte- ressante ressaltar que a maioria das pro- fessoras entrevistadas, que permaneceu nna carreira até a aposentadoria, ou ca- sou-se tarde, ou manteve-se solteira, ou postergou a maternidade em prol da as- censio profissional, Assim, muitas mulhe- res mantiveram-se no magistério talvez por que tenham encontrado uma brecha tatica para agir de forma masculina num Universo estrategicamente® pensado como feminino, segundo os parimetros das classes médias. Diferentemente do discurso nostil- gico que apresenta a escola brasileira dos ‘anos 30 como lugar de uma relagao paci- fica entre alunos (as) e professores (a8), as entrevistas destacaram os conflitos € as titicas de subverso postas em circu- ago no interior da escola. ais, antificios e disfarces eram ‘mobilizados por alunas para burlar a vie gilincia interna na Escola de Professo- res do Instituto de Educacao. Sinais, por exemplo, indicavam a aproximacio da inspetora ¢ a necessidade do ajuste da saia do uniforme ao cumprimento regu- lamentar. Burlas 4 vigilincia faziam-se pelo artificio de meter-se um romance dentro do talvez fastidioso livro de maté- tia, amenizando a hora de freqiiéncia obri- gat6ria 2 biblioteca da escola. Fugas ‘eram realizadas pelo disfarce de trocar © uuniforme por roupas comuns, dificultando Epucagio em Revista, Beto HORZONTE, N° 27, 1U/98 co reconhecimento da aluna pelo zelador do prédio escolar. Ao recompor momentos do coti- diano escolar, atentando para titicas de subversao € apropriagto postas em cir- culacao pelas educandas, professoras e alunos ¢ alunas e estratégias de mode- lag2o impostas por professores € profes- soras € administradores (as), a institui- cao escolar emergiu. como um lugar de luta e conflito, oferecendo indicios para a compreensio da escola como produ- tora de uma cultura propria (Foroum, 1992 € Juus, 1993). Finalmente, gostaria de ressaltar a importincia da utilizagao de diversas fontes na produgao do trabalho histozio- grifico. As entrevistas apontaram novas pistas a serem seguidas, como também © fizeram os documentos escritos ¢ as imagens, complementando informacSes ‘ou contradizendo dados, mas, principal- mente, aportando diferentes olhares sobre © momento, matizando e enricque- cendo as anilises. Narrativas imagéticas diferem de narrativas orais © de narrativas escritas. Logicas diversas organizam a construgio dessas linguagens. A especificidade de cada fonte documental, assim, requer uma metodologia singular e impde uma andlise distinta, Nesse sentido, a comple~ mentaridade das fontes no se restringe 20 acréscimo de dados a pesquisa, mas informa sobre a diversidade de percep- 96es dae sobre a época estudada, Referéncias bibliogrdficas. BORDIEU, Pierre. “A ilusio biografica’. in: FERREIRA, MH. AMADO, |.Usos eabu- sos da Histéria Oral. Rio de Jancieo: Editora da Fundagio Getto Vargas, 1996, p. 183-192 CARETA, 14 jun.1919 © 09 out.1920. CERTEAU, Michel de.A invencao do cott- ‘diano. Petropolis: Vores, 1994, Aescrita da bist6ria. Rio de Janci- ro: Forense-Universitiria, 1992, DEMARTINI, Zeita le Brito Fabri e ANTUNES, Pitima. “Magistério: profisio feminina, carreira masculina”. 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