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trabalho do care Pascale MOLINIER. ‘As teorias do care tém sua origem nas trabalhos de Carol Gilligan no campo da Psi- gia do desenvolvimento moral (GILLIGAN, 1982, 2009). Nos anos 70, Gilligan cons- a existéncia de um viés androcentrado nas pesquisas de Lawrence Kolberg sobre volvimento moral das criancas (com efeito, ele entrevistara somente meninos) Hilelamente, cla criticou a desvalorizagio da moral ¢ dos modos de pensamento das _Com base em pesquisas realizadas junto publico- imajoritariamente constituido de meninas ¢ mulheres, Gilligan evidenciou sténcia de uma voz moral diferente, ou seja, uma forma diferente de resolver dilemas mparcialidade como acontece na ética da jus-_ Outras autoras feministas, especialmente termos - GILLIGAN, 2009) mas as vozes daqueles - ¢ na maioria das vezes daquelas ia experiéncia moral bascava-se em atividades que consistiam em cuidar das outros. Em outras palavras, a ética do care néo emana somente das mulheres nem de todas sp mulheres. ‘Trata-se aqui de um ponto importante, pois ele desnacuraliza duplamente / la voz diferente, primeiramente situando seu surgimento no numa pretensa natureze | ica (das mulheres), mas numa atividade, o trabalho doméstico e de care, e também do divisées sociais no grupo das mulheres. Este grupo nao é homogéneo, as mu- heres ndo esta0 todas igualmente envolvidas cm atividades de car "Trabalho de care” jgna entdo nao somente atividades especializadas, nas quais a preocupacio com os {ros ocupa um lugar explicitamente central, como, por exemplo, o trabalho das enfer- iras e auxiliares de enfermagem, mas também atividades menos profissionalizadas ¢ associadas a nogo de “cuidado” no sentido curativo do terme: o conjunto de atividades 30 Cuidadlo e cuidadoras + Hirata e Guimaraes domésti realizadas no seio da familia ea delegagao destas a babis, empregadas, fa- xineiras. Mais amplamente, care designa também uma dimenséo presente em todas as atividades de servicos. Considere-se aqui a nocdo de servir coma “dar atengio a” Os trabalhos realizados na Franca na perspectiva do care por Sandra Laugier, Patricia Paperman € por mim mesma desde 2005 caracterizam-se pela vontade de nae separar as. abordagens sociolégica e psicoldgica do projeto fileséfico de “uma ética ‘sem ontologia’ deslocada para a exploragdo das praticas ea imanéncia da vida didtia” (LAUGIER, 2005) Analisando os processos psicoldgicos ambivalentes que caracterizam as telac&es do care, a psicolagia permite conjurar o risco de um desvio do care para uma moral dos “bons sen- timentos”. A sociologia, por um lado, permite que estas relagées interpessoais, mais pro- ximas dos corpos e desejos, sejam situadas e interpretadas em funcao da materialidade das relagées sociais de sexo, classe ¢ raya, por um lado, e por outro das politicas piblicas gue organizam os financiamentos e segmentam 08 modos de atendimento, Essa dinamica transdiseiplinar é neeessdria para que possam ser levadas em conta as implicagées politi- cas do care sem desarticuld-las das suas dimensées praticas e éticas. Meus proprios trabalhos abordam a perspectiva do care sob 0 angulo da psicodina- mica do trabalho, privilegiande, entie, uma andlise dos processos psiquicos mobilizados pelo trabalho do care. O mundo sé aparece sob descricées (ANSCOMBE, 1979). Nas descricdes andracen- tradas, o care como ética ou como trabalho € pouco representado ou, quando o €, isso acontece de formas desvalorizantes; atividades subalternas que todos ps sentimentalisme e numucherie, Para tentarmos mel deriam exercer, hor aprender o que significa o care em termos de experigncia vivida, de invengio prética ou de improvisacao moral no terreno movediro do trabalho ¢ das interacdes corriqueiras, abordarei o trabalho do care sob cinco diferentes facetas ou cince descrigées: (1) o care como gentleness, (2) o care como savoir aire discreto, (3) ocare como trabalho sujo, (4) 0 care como trabalho inestimavel, (5) 0 care como Harrativa politica 1 Care como gentleness O que &0 care? Em que ele se distingue do amor, da amizade, da simpatia ou da pie- dade? Em que medida esta ele, intrinsecamente, ligado a uma atividade, ou mesmo a um trabalha? Em 1991, 0 escritor francés Hervé Guibert, doente, contaminado pela AIDS, escreve em O protocola compassional: ‘Outro dia, entrando naquele café da rua Alésia, onde ful dez anos beba de vez em quando alguma coisa no baledo apesar da frieza, sentio da antipatia que os garsons me reservam, tropecel no degrau ao empurrar a porta e fui ao cho de joelhos diante dos clientes senca- dos a suas mesas ¢ que nao foram capazes de ajudar-me a levantar, Aquele brusca instante durou uma cternidade: todos estavam estupefatos ao ver aquele homem jovem arrasado, de Elica € trabalho do care 31 jocthos, sern ferimento aparente mas misteriosamente paralisado. Nao houve traca de pala~ vras, nao precisci pedir ajuda a ninguém, um dos dois garcons que sempre considerara um inimigo aproximou-se de mim, tomou-me em seus braces para me recolocar de pé, come se fosse a coisa mais natural do mundo, Eu evitava cruzar os alhares dos ourres clientes © outro garcon, no balcie, perguntou simplesmente: “Um café pro senhor?” Sou profun- damente geato a estes dois garcons, de quem nao gostava e que para mim me detestavam, por terem reagido tio espontaneamente € tie delicadamente, sem a menor palavra indtil (GUIBERT, 1991, p. 12). » be Ade Se pensarmos na célebre descrigio do garcon de café feita por Sartre ¢ comentada por Erving Goffman, cm A encenagéa da vida quotidiana, neste caso, os garcons nao se contentam em representar o “papel do garcon de café” (GOFFMAN, 1976, p. 76). Mais exatamente, a queda inesperada de Guibert vem desestabilizar a rotina de uma encena- a0 bem azcitada A superficie, Nesse caso, a naturalidade dos garcons ao adotar a con- duta apropriada, permite-Ihes ao mesmo tempo desprender-se da rotina e utilizé-la para integrar no mundo comum aquele que traz os estigmas de uma doenga assustadora que otorna diferente. Um homem vai ao cho ea resposta dos garcons é adequada a suas necessidades sem que ele necessite pedir auxilio. Essa preocupaei, essa atencio tradurem- -se nos gestos © numa palayra corriqueira que restauram o que se cespedacara de sua dignidade ou de seu pertencimento ao mundo dos bistrés parisienses. Guibert insiste por duas vezes na frieza, na antipatia que caraccerizavam suas relacdes habituais com 9s garcons. Em outras passagens do livra, ele ope a afeic¢ao quase exagerada do Dou- tor Chandi em relagde a ele ~ “Coitado...", diz © médico, durante exames doloridos - & atitude da Doutora Claudette Dumouchel, “a primeira vista [...] uma pessoa rispida”, “camped da dessensibilizacao das relagGes médico-paciente”. A funcie defensiva desta distancia relacional nao escapa a Guibert: ele pensa que Claudette Dumouchel “rompe- riaem prancos a todo momento se ndo se tivesse blindado de uma vez por todas por tras de um toque de insensibilidade aparente” (p, 29). Mas ele também aprecia “o pequeno gesto familiar do indicador”, sua forma de censurar ou brinear, como atengdes que © mantém, cle, este jovem em corpo de ancido, do lado dos vivos, numa rede de relagdes comuns ¢ nao do lado daqueles “jovens cadaveres de olhos em brasa” que ele cruza no hospital Rothschild, apavorados com a prépria imagem, e a quem se faz sentir o horror gue suscitam nos outros e o inevitavel de sua morte proxima, O que se podia interpretar 4 primeira vista como antipatia, frieza ou como cinismo, é ressignificado em termos de atenedo ¢ respeito mdtuo.! Nessas duas situagdes o care aparece como uma atitude adequada que responde sem furtar-se face a fragilidade do outro € sem descitui Jo de seu estatuta de ser humano "A frieza ea antipatia dos gargons, entretanto, nao tém a mesmo sentide quea distancia mantida por Claudette Dumouchel em rela¢do a seus jovens pacientes condenados. Se a primeira acomoda assim sua sensibilidade ¢ aquela de seus paciences, podemos perguntar-nos se, no caso des garcons, esta Frieza nao tem outras Fungdes, como demonstrat uma posigio de dominio (e de masculinidade talver marcada pela homofobia) na relagio dliente-gargon ~ gaigon que serve sem ser servidox. 32 Cuidade e cuidadoras + Hirata © Guimaraes em sua integralidade. Esta atencio particular, ajustada ds necessidades do outro, em sua sutileza, sua capacidade de antecipacdo, sua discri¢do, é solicitada por um trabalho, de gargon de café ou de médico. Duas atividades diferentes, dentre as quais a primeira mpeéde-nos de saida de associar care exclusivamente a nogao de soin, cuidado [curati- vo] - 0 que explica também nossa escolha de nde utilizar esta palavra para traduzir ao francés a palavra care. Talvez os “clientes impotentes” estivessem preocupados com Guibert, mas 0 fato é que eles nada fazem. O care, como resposta adequada & fragilidade do outra, é mabilizado em situagées que envolvem interagées e onde o provedor de care sente-se investido de ura responsabilidade. Expressande esta ideia nas termos de Patricia Paperman, o gargon, ante o cliente caido, “niio pode ‘ndo...”” (PAPERMAN, 2005). Essa responsabilidade é sua em decorréncia de seu trabalho, e ¢ o préprio trabalho que fornece a solugao: “Um café, senhor?", Esta atitude atenciosa ¢ desapegada, “na hora certa”, remete aa que Annette Baier designa pelo termo de gentleness, que sé pode ser considerada em termos, ao mesmo tempo, descritives e normativos, e “resiste 4 andlise em termos de regras” (BAIER, 1985, p- 219). A gentleness ¢ urna resposta apropriada ao outro de acordo com as circunsténcias: ela demanda uma atiude experimental, a sensibilidade a uma certa situagdo e a capacidade de improvisar, de “seguir em frente” ante certas reagdes (LAUGIER, 2005) A gentleness afasta a associagio entre care e amor, entre ferninilidade e care/amor, para abrir uma gama mais extensa ¢ sutil de sentimentos como a generosidade e 0 tato. mnerosidad “Talvez devamos lembrar”, escrevia Everett Hughes que “servir opde-se a “atender’ e que a fronteira que os separa é ténue, indistinta, mével” (HUGHES, 1956). Usilizei para definir care a expressdo “resposta adequada”. Parece-me, com efeito, que a adequa- cao é um critério essencial na definigae de care. Este critério permite superar 0 debate normative que procura opor ou distinguir o que seria um “bom care” de um “mau care” Por exemplo, uma atengao muito marcada nao é um bom care, € todos nés jf nos rebe- lamos um dia contra a solicitude de um adulto que nos queria “bem demais”; cachecéis € chapéus demais, lanches demais, conselhos demais que sufocavam nossos impetos de independéncia ¢ nosso direito ao erro. Uma solicitude exagerada pode ser percebida como excessiva, como quando nos perguntamos sobre uma pessoa demasiadamente solicita ou atenciosa: mas o que é que ela quer comigo? A psiquiatra Héléne Chaignot fala das “geatificagdes indiscretas” para designar um excesso de atengo por parte de membros do corpo médico ern relagao a certos pacientes psiquiatricos. Uma atengao que pode ser interpretada por alguns destes pacientes em seus quadros de delirio como uma ameaca ou um “sinal”. Care é, por defi- nig&o, um gesto ou uma forma de agir (ou de nfo agir) ajustados ou afinados as necessi- dades do destinatdrio, que podem ser, inclusive, marcados pela distancia ou 0 desapego E esta arte do ajuste a situagGes sempre particulares que o caracteriza ¢ que assina a invisibilidade ou a discricao. Etica e trabalho do care 33 rae hoa ‘ 2 Care como um savoir-faire discreto a 7 Um trabalho atencioso, quande bem feito, nfo se 2 val Seu sucesso depende em gran de parte de sua discricio, ou seja, da supressdo de seus rastros. Os savoir-faire discretos encarnam numa postura psiceldgica muitas vezes percebida pelos beneficiaries como gentileza, docura, s patie oo ‘outra qualidade do ser? O ser. custou a quém Gxecutow 6 servigo, tanto mais porque esta pessoa antecipou-se a suas necessidades a clas respondendo antes mesmo que fossem expressas, Por exemplo, se tomarmos 0 caso de uma cnfen dé bloco operatério: servir 0 cirurgiao consiste em Ihe passar os instrumentos de maneira a cansd-lo ou desconcentra-lo 0 menos possivel. Ede que mancira? Antecipande suas necessidades, passando-Ihe 0 instrumento adequa- do antes que ele o solicite. Da mesma forma, a secretaria atenta as necessidades dle seu pairao, filtra a8 Chamadas telefénicas que possam perturbé-lo, adianta-se a preparar os documentos necessirias, sabe guardar segredes ¢ suportar seu mau humor quando ele estd sob 0 stzess de um projeto ou de uma reuniao importante. = Deneficiitio nao sabe 0 quanto Em todas essas situacdes descritas brevemente acima, care designa o wabalho no sentido de servico bem feito, na medicla em que este nunca se resume a uma habilidade técnica, ou seja, care sempre supde este “suplementa” que tornaa relacao de dependéncia suportivel ¢ o Servigo realmente cficaz - pois o cirurglao eu a patric sao dependentes da enfermeira ou da Secretaria. Sua autonomia ¢ uma ficgao sustentada pelo trabalho de apoio e de antecipagio que Ihes é prestado. Esta € uma das complexida plexidades enfrent enfrentadas pase tentar Ievar om consideraca o care, na soul ais de sexo, Trabalh 0 de care a seu § exploram as pessoas que Tea OE 5alh ervico, enquanto, na prati cles dependem deste trabalho: seu conforto, assim como sua eficiéncia, dependem da qualidade do trabalho de care. ad Cada um de nés sabe, alids, como ¢ bom sentar-se confortavelmente ae ouvir “td na mesa”. Habituamo-nos facil e rapidamente a sermos servidos, porque todos nds ja 0 fomos e porque ser servido ¢ atualizar 0 “care primordial”, aquele que nos foi dispensado na infancia. Com excecao das criangas abandonadas que nunca o vivenciaram, ou apenas durante curto tempo, todos foros servidos sem nada ter precisado pedir, ma ma irma, uma avé, quase sempre por mulheres EVs ofamaama de in “cee sem sui" inesgotavel, sem esperar qualquer gratidao, um fantasma magistralmente encenado no filme de Cocteau Ta Belle et ta Béte (A Bela e a Fera) no qual, aqueles que servem, Sao por encantamento reduzidos a seu érgio-funcaa: bracos candelabros, mios servidoras de be- bidas. Este fantasma € uma das chaves psicolégicas da “indiferenca dos privilegiados” nde, A maturalizacdo das competéngias ¢ dos savoir faire do care no registro da feminilidade, ou seja, naquiloque Eesperado das mulheres, post como corolario o fato de que estes saberes, quando exercidos por homens que serio, logo, gentis, pacientes, atenciosos, discretos. delicades ~ sdo muito mais valoriz uma expectativa em relasio a todos as homens, O resultado é que este homer sera considerado uma pessoa lores gratificacées. especial, uma pessoa excepcional que obtend, por conseguince, ma 34 Cuidado ¢ cuidadoras + Hirata e Guimaraes descrita por Joan Tronto ([1993], 2009). “Tenho uma faxineira perfeita”, di Ihev numa entrevista que realizei com patroas feministas francesas que tinham faxineiras a. seu servico: “nem parece que entrou alguém em casa, deixa tudo sempre idéntico”. Maneira de dizer que apés sua passagem pelo domicilio, nfo restava qualquer traco de sua presenga singulat, apenas a limpeza. A mesma pessoa contava que safa de casa antes da chegada da faxineira. “O que eu gostaria, acrescentava, é que tudo fosse feito do meu jeito sem precisar mandar” (MOLINIER, 2009). a uma mus 3 Care como trabalho sujo Nos oficios do care que implicam contato com os humores do corpo e as patologias da alma, a dimensio do trabalho sujo (direy work, no sentido dado & expressdo por Hu- gles, 1956) esté explicitamente presente, em particular nas tarefas reservadas as au: liares de enferfiagem (esvaziar Trascos dé urina, limpar vomito e evareries BiG) 04 ainda nas atividades de contengio da violéncia em psiquiatria (MOUINTER, GAIGNARI 2007). Segundo Hughes, o trabalho sujo compreende mao somente oficios (ou atividades complexas) considerados pelo conjunte da populacio como a a6 escoamento dos humores sexuais ou corporais, 4 preparacao dos cadaveres ou a eva- cuagio de dejetos da vida quotid ana; mas também a que, em qualquer atividade, pade “ ser definidd como aquilo que se procura nia fazer e, se possivel, delegar a alguém em fy ‘osig&io socioprofissional hierarquicamente inferior (subalterno ou mais jovem, meno: 1 flualificads, pertencente a um grupo discriminado, .).} Uma fronteira invisivel separ 1 as, — pessoas comuns daquelas que fazem o trabalho sujo, como se estas (iltimas estivessem contaminadas pelo contato com os dejetos ou dejegdes, € pudessem, por sua VEZ, conta- minar os outros a seu redor (LHUILLIER, 2005). Seu empenho ¢ seu desempenho em seu trabalho em nada mudam este estigma: as pessoas que realizam tarefas consideradas somo “trabalho suja” tem de viver com esta “me fama” (CROIZET, LEYENS, 2003), O_ ie existe somos “nés", as pessoas normals, € “eles”, as pessoas com quem a maioria fe nés tem tanta dificuldade de identificar-se: “Eu nao poderia fazer 0 que ele/ela faz.” ¢ Num primeiro momento, parece que as profiss s ligadas ao cuidado nao expdem | da mesma forma estigmatizacao social e A segregagdo que outras, como as de lixeiro, trabalhadores das redes de esgoto, empregados de funerdrias, morgues ou guardas de prisdo. Parece que a profissionalizacdo das enfermeiras ¢ auxiliares de enfermagem, ¢ tal- { vez, sobrecudo, 0 reconhecimento do trabalho de care, ¢, logo, da dimensfo nobre destas \. atividades, tenham tirado estas pessoas da ma fama que tiveram durante muito tempo. A enfermeira laica do século XIX era comparada as prostitutas. E possivel, entretanto, * Pava uma reflexfio sobre a pertinéncia de se distinguir “trabalho sujo” (boutot sale) (ou, seja, aquele em que 6 individuo se suja ¢ € considerade fisicamente repugnante) e "teaballio suja” (sale bowlot) (aquele que deixa. as maos limpas mas que sc revela moralmentt discutivel), o fato de que o segundo ndo exponha a estigma- tizacdo social da mesma forma que o primeira, ver o texto introdutério do dossier “boulor sale, sale boulat™ na. revista Fravailler, 24, 2010. a ¢ wabalho do care 35 perguntar-se: a incluso da profissdo de enfermeira no rol de trabalhadores respeisavels ndo tera sido canseguida ao prego de certo tabu social? As dimensdes “impuras” da ati- | |) vidade de enfermeira néo tém sido deixadas de fora dos discursos pablicos, cientificos ou politicos? Essa condenaeao coletiva no deixa de ter sua relacdo com as su peitas recorrentes de maus-tratos, © que sugere que a reputacio das enfermeiras ¢ outros auxiliares de satide é ainda frégil (MOLINIER, 2009, 2010). Apesar de melhor toleradas no espago social, as atividades ligedas aos cuidados de satide continuam pertencendo ao paradigma “trabalho sujo” na medida em que cuidar dos corpos somente seria respeitd- vel A condicao de calar og impulsos destes corpos, as pulsdes, ou entao de m: Tr Se carater perecivel, putrescivel - - -arar Se! Q trabalho sujo ¢ o care encontram-se entéo conceitualmente sab o aspecto da re- lacdo com @ corpo e com a morte. Além disso, cuidar dos outres nao é forgosamente agradavel. Muito provavelmente, trata-se de algo particularmente desagraddvel na caso de policiais ow irabalhadores da saiide ter de comunicar um falec a bem possivel que muitas pessoas nestas horas desaparecam deixando este fardo a cargo de colegas menos propensos a desaparecer. E é preciso que alguém o fara. Serd aquele que “nio pode ‘no..."", Na maioria dos casos, este profissional m0 sera alguém mais atencieso do que os outros nem, ao contririo, mais indiferente ou blindado: ele esta sim- plesmente presente, o que significa que nao pode ausentar-se. Os atores ¢ atrizes do care nada tém de excepeional, para retomar o titulo de um trabalho de Patricia Paperman, eles ido S40 herdis, s40 ambivalentes, delensivos, eivados de contradicées, de conflitas entre seu proprio interesse'e os interesses dos outros. mento a uma familia E J © conjunto do trabalho sujo, incluindo as atividades de cuidadas de saude, levanta a questi do que é preciso fazer e que nao pode ser deixada de lado sem graves desordens para a sociedade pelo simples fato de que somes corpos (com esta dupla condigid: vivos cumortes). Os corpos néio podem ficar sem alimento, ou nus, ou sujos de excrementos; ds cadaveres ndo podem cobrir as Tuas, noss6 Tike nad pode acumvular-s¢ indefinidamen- é... € preciso que alguém se ocupe disso tudo. O “trabalho sujo” nesse sentido & aquilo ‘a.evitar fazer, em que nao Se quereria Hem sequer pensar mas que éda ordem, assim camo o care, das necessidades vitais. Hughes insiste muito na dimensio do esque- )) cimento: delega-se o trabalho sujo, que depois €esquecide, assim como s¢ delega o,care, que é também, posteriormente, esquecido. A segregacio, o tabu social, a negagao coletiva. ~ Sio reforcos sociais que permitem a clivagem psicoldgica ¢ sua fungao protetora da satide ) mental. Assim, o prazer de comer carne implica instaurar uma clivagems ene 0 ato de — comer ¢ a percepcae da morte do animal (DIAMOND, 2004), e¢ dispensavel lembrar que qualquer conv qualquer evocagdo dd assunto, como a presenga de um papa-defuntos ), | ou médico legista 8 mesa, por exemplo, por trazerem & lembranga a morte © © compe, * perturbariam a percepéae do prato ¢ revolveriam o estmago. Certamente, 0s convivas de um belo jantar ficarfio menos perturbados pela presenca de uma enfermeira do que de um papa-defuntos, mas 4 condi¢ao que ela respeite a dlivagem entre o mundo comum € | aquele da doenca e da morte, ou seja, que cla nao fale realmente daquilo que faz/sabe. Lb 4 iene Fy “ ‘ ahs 36 Cuidado e cuidadoras * Hirata e Guimaraes 4 — Care como trabalho inestimavel Elsa Galerand ¢ Daniéle Kergoat chamaram a atengao para fato de que, aquilo que | Sunpreende ao se escutar as trabalhadoras do care, é que seu envolvimento com 6 trabalho. “fubsiste, apesar do pouco reconhecimento social, enquanto este trabalho conservar um _/sentida para elas (GALERAND, KERGOAT, 2008). Ghislaine Daniol, mun artigo consa- $rado ao “engajamento paradoxal das auxiliares a domicilio ante situacdes repugnantes” (DONIOL, 2009), mostra que algumas conferem especial valor ¢ um malor sentido as situagSes nas quais precisam intervir junto a pessoas em estado al tamente precdrio e que-vivem no mau cheito ¢ na imundice, pois cm conscléncia de que sao indispenséveis, Se no forem até o domicilio dessas pessoas, o que seré destas? Sew trabalho toma-se =f inestimavel, no sentido dado a este termo por Jean Oury (2008). © trabalho inestimavel_ “a fldo & mensurdvel, especialmente através de métodos de gestdo: com medir um sorriso, \\))\uma preserica? Seu valor ndo tem prego, o que torna altamente compl a questo de sua remuneragda: por que aquilo qué mais valor tem é 0 que menos se remunera? Isto ~ que equivale a dizer-se, igualmente, qué no caso da cuidadora domiciliat taide a a domici- {e), odo trabalho poderia preponderar nao somente sabre o reconhecimento social mas também sobre a gratidao (bastante aleatéria em meio a este tipo de “cliente”), @ que entra em contradicao com muitas ideias prontas sobre o reconhecimento como aguilhdo da motivacio no trabalho Sa — 7 Em verdade, 3 qualidade da envolvimento das trabalhadoras do cave sé seria inespe- tada em relacio a uma teoria do reconhecimento que restringisse esse envolvimento a uma espécie de pantomima na qual “teconhecer” equivaleria a demonstrag6es pontuais SS), | de encorajamento, gratidéo ou parabenizacio. O. reconhecimento do trabalho, por seu. ~ valor estruturante da saiide mental, deve incidir sobre wm trabalko que fenha sentido e um i> valor pare a pessoa que a realiza. O valor do tabalho™= no sentido &tico do termo, nfo no sentido utilitarista — nio € conferido de fora para dentro, por outrem. Ele depende an- tes de tudo do que é importante para nés, em fungio de‘um tecido de experiéncias que y+ no se reduzem aquelas do trabalho assalariado. Este tecido de experiéncias for ma Hossa y mundo, © mundo no qual queremos viver. Ele ganha em consisténcta'e-se amplia cada vez que pode ser compartilhado, quando o trabalho é objeto de um julgamento de beleza, por exemplo. Mesmo que néo.seja decisive no sentido de nossas vidas, mesmo que nao seja condicio para o sentido do que fazemos, tral /Nitucial, na medida em que necessitamos que valor que Ihe atribuimos seja compreer ido ¢ respeitade pare conservar,-wul mals precisamente, para melhorar as condigges de Sua realizagto, Inversamente, sermos reconhecidos por um trabalho que desprezamos ‘ou_que nos desperta powca estima, pode S¢_revelar perigoso para_a saiide mental, No nivel interpessoal, & a admiragao ¢ o respeito reciprocos que selam a dimensao ética do E no Organizacional, o recanhecimento de trabalho mei ncedidos para reali com capricho, 0 que implica um prévie debate com as pessoas que realizam este trabalho price, O-que implica um prev See SAD Etica e trabalho de cave 37 pine (MOLINIER, 2010). E porque falta de forma generalizada este espaco deliberativo na maioria ad jas organizacbes (RIBAULT 2010), aie a negagao do rec conhecmento ur oe Una Bos (RIBAULT, 2010). Pede-s -5e igualmente & as abalhadorad ‘dO care que sejam eficentes, mesmo tempo que flexiveis, Ultrarrépidas ao mesmo léinpo que bem educadas, A qual dade € 0 sentido de seu trabalho so muitas vezes ameacados a rias e muitas s40 aquclas que se cansam ¢ se desmotivam, ou “se bindam defensivamente™ na indiferenca. © care “travado", considerando-se a ambivaléncia dos »g sentimentos mabi- lizados pela relagio de ajuda, pode se degradar no gozo do poder exercido sobre @ pessoa dependence, ou na violencia (acrescente-se, com a devida importancia, que segundo as _ organizagdes do trabalho, é de surpreender que isso nao acontega mais frequentemente), 5 Care como narrativa ética £ preciso, de acordo com Joan Tronto, para darmas ao care uma envergadura univer- sal, retirar-lhe a marca de género, ou seja, dissocié-lo da armadilha da nocdo de “moral feminina”, ou, para expressd-lo em palavras proximas das de Nancy Fraser: é necessari maternizar a politica ¢ desmaternizar as macs! Isso é extremamente acertado do ponto de vista normativo. Entretanto, de um pento de vista concreto, ¢ para os interessados em. psicologia do trabalho, o que se observa € uma maiaria de mulheres, em todas as profis- s6es do cave, desde as enfermeiras até as cuidadoras familiares (auxiliaires de vie), passan- do pelas secretarias, as educadoras de criangas pequenas ou as faxineiras, sem esquecer 0 trabalho doméstico no Seio das familias. No plano metodoldgico, a analisedos conteddos do trabalho do care nao pode prescindir da perspectiva de género. 5 8 7 Continuarei esta andlise baseando-me no material colbido numa pesquisa realizada na Colémbia junto a um grupo de faxineiras pertencentes a uma associacdo de mulheres chefes de familia (cabeza de familia), Apesar dos esforgos, apos uma hora aproximada- mente a colocar palavras ¢ associar experiéncias ao que significa fazer faxina em casa de outrem, Miriam, mulher de uns 50 anos, mae de cinco filhos, comega sua fala da seguinte maneira: “meu filho é pai de quatro eriangas, diz ela finalmente... (entusiasmando-se). Eu digo qua- tro, mas na verdade, dois a mulher fez pelas costas. Podem acreditar, née tem outra explica- Go. Olhem! ~ diz com veeméneia, tomando a grupo por testemunha e se designande com a mao (Miriam tem um rosto que sugere origens mesticas negras, indigenas e brancas) - vo- cés podem ver, nés todos da familia semos merenas! E isso que somes, ¢ vejam sé, uma das ‘Trata-se da associagao Avanzat do distrito dé Bosa. baitro periférice ao sul de Bogota. Realizei esta pesquisa em 2008 com Maria Feroanda Capeda, estudante de antropologia da Universidade Nacional da Colombia, sab a forma de workshop de reflexio coleciva sobre a vivéncia do trabalho de empregada doméstica em casas de particulares. 38 Cuidado e cuidadoras * Hirata e Guimardes: meninas pequenas ¢ preta como carvao. Ora, isse nao é possivel, nao tem familia, ¢ a outra é tudo ae contrario: loirinha de olhos azuis, Claro que também nao temos disso na familia, Aquela vadia (esta india de Saaeha), fez as duas pelas s costas do menino. Na sequéncia de sua narrativa, Miriam conta que a nora apelava seguidamence a ela quando @ jovem casal tinha problemas financeiros ¢ ndo podia alimentar as criangas. Fica- mos sabendo também que uma das filhas de Miriam “que se deu bem na vida” recusa-se a ajudar financeiramente sua mae, apesar desta continuar a educar sozinha, € na miséria, outras criancas, porque imagina que sua mae usaria © dinheiro para ajudar a vadia que seu irmao desposara. “Mas, eu, diz Miriam, tudo bem, eu penso que Ana Mitchell e Dina Luz nao sio do meu filho, mas elas tem fome como os outros, © qué eu vou fazer?” (sublinhado por mim). No momento em que Miriam comeca a falar, sua patrativa parece sem nexo, cheia de um veneno ¢ de um ressentimento familiar que nfo nos permitem antever em que direcdo nos vio levar. Ela “desabafa” e nés nao compreendemos o que aquela histéria sig- nifica, aonde ela quer chegar, compreendemos apenas que ela discorre todos os marizes racializados de insultos para expressar seu desafeto pela nora.’ Entretanto, ela a ajuda Isso nos provocou a mesma surpresa quando uma outra mulher, Marlen, ap6s ter relatado em detalhes os motivos dos rancares nutrides contra a mae por havé-la empregado numa casa como doméstica aos 12 anos, declarou que precisava trabalhar em dois empregos pois ajudava financeiramente os pais. Nem Marlen nem Miriam apelam nem ao amor nem ao dever para justificar 0 que fazem, elas simplesmente, € novamente, “née podem “nao...” Nenhuma das duas vencia isso como uma virtude moral, pois fica claro que, se pudessem, nao 0 Tariam. ‘Alimentar suas filhas ou seus pais idosos ¢ uma preocupacao que as invade, pois-elas sao pobres ¢ cheias de ressentimentos. Apesar de que 0 relato de care esteja enquistado, nos dois casos, no rancor e nas invectivas (a tal ponto que o surgimento da preocupagio ‘em ambos os relatos @ realmente inespetado) ndo 6 0 rancor que se impoe na hora de socorrer, Marlen-e-Miriam_nio s4o “boas”; entretanto, sao devotadas a seus proximos. Flas tém sentimentos muito ambivalentes em relagao aqueles de que cuidam, entretanto, preocupam-se.de verdade. A viruléncia do ressentimento de Miriam em relagdo a sua nora ndo impede sua preecupagaa com as criangas. Pouco importa entao que sejam eu nao sangue de seu sangue, ela se sente responsavel ¢ isso a angustia. Se ao menos o fluxo de acusacées contra sua nora pudesse alivié-la de precisar preecupar-se com todos os netos... visivelmente, entretanto, nao € o que acontece! iE preciso que Miriam encene todo drama familiar € as relagdes que tece com o filho fraco, a nora considerada vadia, a irmd furiosa, sua propria ambivaléneia e as criancas que TTndiando cignifica que a nora seja verdadciramente de tipo indio, ¢ um insulto que data do tempo da colonia: ser india, é ser menos do 4 Soacha, que Miriam pronuncia com despeezo, € o nome de uma velha Cidade da periferia de Bogets, muito pobre e de péssima reputacto, o que reforga ainda mais o aleanee de ineulto, Miriam falard também de uma ourza de suas filhas casada com um fnelio de porqueria (um indio de chiqueiro) que impede esta aura filha de ajudar sua mie, embora esta quisesse fazé-l0, ” Yazem-Ihes feequentemente essa eritica, Como tentei demonstra, “apesar de tuctoclas na” "Abandonaram ninguém pelo camino. No caso de algumas, nem mesmo maridos alco- \.dos & voz difefente, para que ela consiga encontrar passagem em melo as representagOes » estereotipadas da bondade feminina ¢ da oblatividade materna, Pois essas_tepresenta- / 40 Cuidado e cuidadoras + Hirata e Guin ser boa mie, do ponto de vista das mulheres privilegiadas da sociedade colombia- na, é encantar-se com o simples fato da maternidade. Exaltar esta experiéncia incom- parével, aparenta-se a uma forma de “encenacéo” da feminilidade no sentido de Joan Rivigre (1929), que serve para liberar essas mulheres da necessidade de privilegiar sua carreira & imagem do que fazem os homens. As mulheres dos bairros populares nao tén nem tempo nem disponibilidade psiquica pata © enternecimento. Segundo 08 critérios da ideologia dominante, elas podem parecer duras, e seus filhos, alids, segundo algumas, | Slatras e violentos que elas afastaram mas continuam a sustentar!® Acrescente-se a isso gue clas riem de seus sonhos fracassados de carreira ¢ felicidade conjugal. "Vimos para a cidade para estudar e encontrar nossos principes encantados que, depois, se transfor- maram em sapos”, dira Marlen, para a hilaridade geral.’ Uma hilaridade que, novamente, pode surpreender ¢ até mesmo chocar, vindo da parte de mulheres que jé foram surradas pelos ditos “sapos”.* Politizar os relatos do care consiste em encontrar formas adequadas de dar ouvi- cOes posuem-um peso cultural que-semipre podera calar certas vozes aurénticas das tnulheres. As mulheres que tn condi¢es de éxaltar as alegrias da maternidade sio aquelas que contam com seguranga econdmica e ajuda, nao vivent_ quatidianamente 5 tormentos da angtistia de nanhi. Quando seu discurso torna-se norma, ele corre o Tiseo de tornar inaudivel ou de desqualificar outras expresses da maternidade. Jogando com os termos do problema, substituindo, por exemplo, “maternidade” por “wabalho de care doméstico”, encontramos uma porta para uma pluralidade de experiéncias femi- ninas que, sem isso, tem pouco eco na sociedade e nenhuma tradugao positiva em nivel politico. No mais das vezes, as mulheres enfrentam um peso suplementar, o de ser alvo de representagdes pejorativas como, por exemplo, aquelas segundo as quais as maes isoladas seriam responsdveis par todos os males juvenis (delinquéncia, drogas, falta de educacio, gravidez precoce). Como salienta Sandra Laugier, sua elevacao & eategoria de um assunto sensivel da ética € condigao para uma reflexdo sobre o care (LAUGIER, 2005). Essa sensibilidade pode ser definida eticamente a partir “do que importa”, “o que tem importincia” para os sujeitos. Em nao se passando por uma andlise dos relatos do care ¢ por seu emaranhado de razdes, nflo se pode chegar a “forma de vida" e “2 visao moral” das provedoras de care 7 Segundo os parricipances de nossa pesquisa, 08 empreyedores petenciais sabem muito bem que se elas no abendonaram seus filhos quando ainda pequeninos, nunca mais 9 fario. Na entrevista de contratagio, eles st informam, pois, cuidadosamente, sabrea situagao familiar dessas mulheres, uma me de familia fsolada sendo sempre mais facilmente explordvel (posth que pronca a aceicar mas condigdes ates de née conseguir nadia). ‘apo (crapead) em espanthol da Colombia é ura termo muito forte que designa também teaidor. » (Q recurso & capacidade de rit de st préprias come defesa para desdramatizar as dimensGes trauméticas das vivencias € igualmente utilizada nos coletivas de enfermeiras (MOLINIER, 2006} Elica e trabalho do care 41 prefissional ou doméstico, A atengao dada ao que conta, transforma a visdo estereotipada do care coma expressdo do amor (das maes, das familias, até mesmo das cuidadoras) ou sua derrapagem estigmatizanre Fumo a isoladas, cuidadoras que maltratam...) pata interessar-se por vis6es morais particulares onde a preocupacio. com | 08 outros expressa-se através de atividades concretas, mais ou menos agradaveis, quel - solicitam sentimentos ou afetas por vezes penosos, contraditérios, ambivalentes ¢ mar- ~~ cades por defesas. — —_ 1d reputagao “(mae © estilo expressivo dos relatos do care fuzem surgir uma “texcura de ser”, ou seja, “uma realidade instavel, que ndo pede ser estabelecida através de conceitos, ou determi- nados objetos, mas pelo reconhecimento de gestos, de manciras, de estilos” (LAUGIER, 2005). Nossa vida toma forma sob @ alhar atento (LAUGIER, 2005). Na politizagao do care, og textos des pesquisadores t€m um papel de “formalizagéo” ou de “formatagio”. Nio se trata de impor uma visto aos(as) interessados(as), de falar em seu Iugar, mas antes, ao restituirthes este lugar, a partir-de agoes € conexdes que thes-dao-sentido;-de- eduear os leitores para se sensibilizarem a formas de vida ignoradas nes discursos cienti— ficos ¢ para modificar sua atengéio eh Felagdo a0 que alé agora percebiam como detalhes, insignificantes ou inexpressividade. Valatizar 0 cave (@ aquelas/aqueles queo praticam) | * | de um ponto de vista cientifice ni io significa, pois, idealizar ou exaltar seus contetidos (el. | _/) supra a idealizacao da maternidade}, mas inscrever seus relatos numa a trama tédrica em busca de mais justera, de mais justiga. Esta, esclarecendo os motivos que Concorrem para a inexpressividade publica do cave @ de scus relatos, permite aprender as formas méveis do que importa pa , esfdigos, Engenhosidade e sensibilidade exigidos para uifha resposta ajustada As necessidades do outro, assim como as incidéncias psiquicas de nossas miultiplas responsabilidades e interdependencias. Conclusao Patricia Paperman, Sandra Laugier e eu mesma adotamos firmemente como op¢ao tedrica nao traduzir care por Cuidado (soi) ou solicieude. xcessiva conotigHo Medica no pensamento francés, especial- © recurso & palavra “cuidado” reproduz as hierarquias aba- (Go © competéncia do cuidador, cragio de uma categoria inflexivel ‘Gempreos s outros). B, sobreiude, quei diz cuidado (mesmo com todas fafa sociedade, ou alguns de seus membros, iden- 68, panies Ao contrario, o care esta do lado da atividade, da werdependéncias. Somos todos provedores ¢ beneficiarios de care ude, vida, da satide e das e, todos, dependentes. ~A solicitude, por sua vez, remete a uma atitude moral compassional, sem referéncia ao trabalho que Ihe di uma verdadeira eficdcia. A ideia de um trabalho ou de uma ativida- de esta ineluida no conceita de care. O care enfim é um trabalho social, no qual diferentes 42 Cuidadee cuidadoras + Hireté ¢ Guimaraes atores acupam posigdes de poder, de decisdo ou de execucdo distintas ¢ conflitivas. Q_ conjunto desse_processo, habitualmente percebido como segmentado, deve poder ser abjeto de uma anélise conjunta. ‘A utilizagio do termo inglés, enfim, permite-nos dar visibilidade & filiago ao pen- samento feminista. Aquila a que chamames “a perspectiva do care” permanece, assim, centrado nas preocupagGes iniciais de Carol Gilligan em termos de ética do care e de Joan ‘Tronto em termos de politica do care, A dimensio ética do cave é fundamental. B a partir das narrativas do care que uma _ outra descrigio da contemporaneidade é suscetivel de-aparecer. A visdo do care, visto ; \ de subalternos, de negros, de mulheres-—comtesta as represtmtagoes elitistas da pés- \ _) .miodernidade em termos de Era do vazio ou do individualismo hedénico-O-vazio ca desafeigao no ganharam completamente 0 jogo ©, coma 6 mostra Arlie Hechschild em scus Ultimos trabalhos sobre o capiialismo emocional, apesar da cuttira do mercado ~ representar um desafio para o surgimento de uma saciedade do care, os "os seres humanos Subvertem as suas formas mercantis. Encretanto, as narrativas das pessoas provedoras de care mostram também a que ponte ‘esse trabalho é dificil ¢ obstaculizado. Joan Tronto chama a atengao para o fato de que a sociedade sv vale desses provedores negando-lhes ao mesmo tempo seu lugar, Babés, cuidadoras (auxiliaires de vie}, faxinciras, ajudantes familiares... compem um exército da sombra, relegado aos bastidores de um mundo da performance, que 08 quer ignorar, Donde a importancia de uma politica do care e de um quadro teérico que permita, camo propée Joan Tronto, pensar nessas responsabilidades relacionais no contexto da globalizagiio. ‘Traducao: Ernesta Xavier Referéncias ANSCOMBE, G. Under the description. In: The collected philosophical papers, 2. (Metaphysics and the Philosophy of Mind), Oxford Basil Blackwell, 1979 63. BAIER, Annette. What do women want ina moral theory? in Nods, 19(1), 1985, p. BONILLA, Maria Elvira (Ed,). Palabras guardadas, 35 mujeres colomblanas frente a sf mismas. Bogotd: Norma, 2007, CROIZET, Jean-Claude: LEYENS, Jacques-Philippe. Mawvaises répututions: réaiités et enjewx de la stig- matisation sociale. 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Contemporaneamente, multiplas formas de trabalho tercidrio ocupam: uma posicéo crescente na vida social. Para a satisfacao de demandas basicas do quotidiano, impoem-se: cada vez mais aos individuos interagdes que se configuram como prestagao de servi¢os, Sendo assim, “qualquer que seje a significacdo fundamental destas interagdes, para seus destinatérios esta claro que o modo como eles so tratados, neste contexto, determinard 9 sentido do lugar dentro da comunidade” (GOFFMAN, 1983, p. 14). Uma caracteristica fundamental do trabalho no setor de servicos, potencializada nas atividades que 0 ato de cuidar envolve, é a interacao entre a trabalhadora® e o individu para quem se produz 0 servico, pois “Todos 08 depaimentos transeritos neste artigo sio excertos de entrevistas reatizadas em diferentes hospitals da cidade de Sio Paulo com dez auxiliares de enfermagem, homens em uiheres. Os nomes so todos ficticios| Essa pesquisa foi possivel gracas ao financiamento abtido no # Concurso Nacional de Pesquisa sobre Génerd da Furilacéo- Carlos Chagas, 4 qual somos muito gratos. ) Vamos utilizar a forma feminina, pois se trata de um setor tradicionalmente feminine onde a maioria dos trabalhadores so mulheres, cot o-objetive de aliviar 0 texto,

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