You are on page 1of 69
carituLo2 Proibigdo, psicandlise e a produgao da matriz heterossexual A mentalidade hétero continua a afirmar que 0 incesto, endo a homossexualidade, representa sua maior interdigao. Assim, quando pensada pela mente hétero, a homossexualidade nao passa de beterossexualidade. Monique Wittig, The Straight Mind [A mentalidade hétero] Houve ocasides em que a teoria feminista se sentiu atraida pelo pensamento de uma origem, de um tempo anterior ao que alguns chamariam de “patriarcado”, capaz de oferecer uma perspectiva imagin4ria a partir da qual estabelecer a contingéncia da historia da opressao das mu- Theres. Surgiram debates ‘para saber se existiram culturas pré-patriarcais; se-eram matfiarcais oumatrilineares em sua estrutura; ese 0 patriarcado teve um.comego e esta, consequentemente, sujéito a um firn. Compreensivelmente, © impeto critico por tras desse tiposde pesquisa buseava mostrar que o argumento antifeminista da inevitabilidade do patriarcado constituia‘uma reificagéo e uma naturali- zagao de um fendmeno histérico e contingente. Embora se pretendesse que 0 retorno ao estado cultural pré-patriarcal expusesse a autorreificagao do patriarcado, 7 PROBLEMAS DE GENERO esse esquema pré-patriarcal acabou mostrando ser outro tipo de reificagao. Mais recentemente, contudo, algumas feminis- tas desenvolveram uma critica reflexiva de alguns construtos reificados no interior do préprio feminismo, A propria nogao de “patriarcado” andou ameagando tornar-se um conceito universalizante, capaz de anular ou reduzir expressdes diversas da assimetria do género em diferentes contextos culturais. Quando 0 feminismo buscou estabelecer uma relagdo integral com as lutas contra a opressao racial ¢ colonialista, tornou-se cada vez mais importante resistir a estratégia epistemoldgica colonizadora que subordina- va diferentes configuragées de dominagao a rubrica de uma nog¢ao transcultural de patriarcado. Enunciar a lei do patriarcado como uma estrutura repressiva e regu- ladora também exige uma reconsideragao a partir dessa Perspectiva critica. O recurso feminista a um passado imagindrio tem de ser cauteloso, pois, ao desmascarar as afirmagées autorreificadoras do poder masculinista, deve evitar promover uma reificagio politicamente problematica da experiéncia das mulheres, A autojustificagao de uma lei repressiva ou subordina- dora quase sempre se baseia‘no histérico de como eram as Coisas antes do advento da leis'e de como se deu seu surgi- mento em sua forma presente ¢ necessaria.' A fabricagao dessas origens tende'adescreye um estado de coisas an- terior a lei, segtiindé uma narragao necessdria e unilinear que culmina na constituigdo da leré desse modo a justifica. A historia das otigens.é; assim, uma tatica astuciosa no interior de-ma natrativa que, por apresentar um relato Unico e autorizado sobre um passado irrecuperavel, faz a construgao da lei parecer uma inevitabilidade histérica. Algumas feministas encontraram tragos de um futuro utépico no passado pré-juridico, fonte potencial de subversdo 72 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ... ou insurreigdo que encerraria a promessa de conduzir A destruigao da lei e a afirmagao de uma nova ordem. Mas, se o “antes” imagindrio é inevitavelmente vislumbrado nos termos de uma narrativa pré-historica — que serve para legitimar 0 estado atual da lei ou, alternativamente, o futuro imagindrio além da lei —, entao esse “antes” esteve desde sempre imbuido das fabricagdes autojustificadoras dos interesses presentes e futuros, fossem eles feministas ou antifeministas. A postulagao desse “antes” na teoria femi- nista torna-se politicamente problematica quando obriga o futuro a materializar uma nog¢ao idealizada do passado, ou quando apoia, mesmo inadvertidamente, a reificagao de uma esfera pré-cultura! do auténtico feminino. Esse recurso auma feminilidade original ou genuina é um ideal nostalgi- co € provinciano que rejeita a demanda contemporanea de formular uma abordagem do género como uma construgao cultural complexa. Esse ideal tende nao s6 a servir a objetivos culturalmente conservadores, mas a constituir uma pratica excludente no seio do feminismo, precipitando precisamente © tipo de fragmentacao que o ideal pretende superar. Em toda a especulagao de Engels, do feminismo socialista e das posicées feministas enraizadas na antropologia estru- turalista, sio muitos os-ésforgos para localizar na histéria ou na cultura momentos.ouestruturas que estabelegam hierarquias de género. Busca-se isdlar-essas estruturas ou periodos-chave.dé maneira,a repudiat as'teorias reaciona- rias que naturalizam ou universalizam a subordinagao das mulheres, Como. esfor¢os'significativos para produzir um deslocamento criticodos gestos universalizantes de opressao, essas teorias Constituem parte do campo tedrico contempo- raneo onde amadurecem novas contestagdes da opressao. Contudo, é preciso esclarecer se essas importantes criticas 73 PROBLEMAS DE GENERO da hierarquia do género fazem ou no uso de pressuposigou, ficticias que implicam ideais normativos problematicos. A antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, inclusiv,. a problematica distingao natureza/cultura, foi apropriad, por algumas tedricas feministas para dar suporte e ely_ cidar a distingao sexo/género: a suposigao de haver un, feminino natural ou bioldgico, subsequentemente trany_ formado numa “mulher” socialmente subordinada, con, a consequéncia de que 0 “sexo” est para a natureza ou “matéria-prima” assim como 0 género estd para a culturg ou o “fabricado”. Se a perspectiva de Lévi-Strauss fosse verdadeira, seria possivel mapear a transformagdo do sexo em género, localizando o mecanismo cultural estavel —ag regras de intercdmbio do parentesco — que efetua esjq transformagao de modo regular. Nessa visdo, 0 “sexo” vem antes da lei, no sentido de ser cultural e politicamente indeterminado, constituindo, por assim dizer, a “maté_ ria-prima” cultural que s6 comega a gerar significagao por meio de e apés sua sujeigdo as regras de parentesco. Contudo, 0 proprio conceito do sexo-como-mateéria, do sexo-como-instrumento-de-significag’ o-cultural, é uma for- magao discursiva que atua como fundagao naturalizada da distingdo natureza/culturaé das estratégias de dominagio por ela sustentadas, A relagao bindria entre cultura e nature- za promove umarelagaa.de hierarquia ¢m que a cultura “im- poe” significado livremente a narureza, transformando-a, consequentemente, num Outre asér apropriado para seu uso ilimitado, salvaguardando.a idealidade do significante ea estrutura de significagao.conforme o modelo de dominagao. As antropologas Marilyn Stratherne Carol MacCormack argumentaram que o discurso natureza/cultura normal- mente concebe que a natureza é “feminina” e precisa ser 74 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ... subordinada pela cultura, invariavelmente concebida como masculina, ativa e abstrata.? Como na dialética existen- cial da misoginia, trata-se de mais um exemplo em que a razdo e a mente s4o associadas com a masculinidade ea acdo, ao passo que corpo € natureza sao considerados como a facticidade muda do feminino, a espera de significagao a partir de um sujeito masculino oposto. Como na dialética mis6gina, materialidade e significado sao termos mutua- mente excludentes. A politica sexual que constréi e mantém essa distincao oculta-se por tras da produgao discursiva de uma natureza e, a rigor, de um sexo natural que figuram como a base inquestionavel da cultura. Criticos do estru- turalismo, como Clifford Geertz, argumentaram que seu arcabouco universalizante nao considera a multiplicidade das configurag6es culturais da “natureza”. A andlise que sup6e ser a natureza singular e pré-discursiva nao pode se perguntar: 0 que se caracteriza como “natureza” num dado contexto cultural, e com que propésito? E o dualismo real- mente necessdrio? Como so construidos e naturalizados, um no outro e por meio um do outro, os dualismos sexo/ género e natureza/cultura? A que hierarquias de género servem eles, e que relagdes.dé subordinagao reificam? Se a propria designacgao_ do sexo.€ ‘politica, entao o “sexo”, essa que se supde)ser a designagao mais tosca, mostra-se desde sempre “fabricado”, e as disting¢des centrais da an- tropologia estruturalista perecem désmoronar.? Compreensivelmente, o esforgo para localizar uma na- tureza sexuada.antes da lei.parece enraizar-se no projeto mais fundamental de se’ poder pensar que a lei patriarcal nao é universalmente valida e determinante de tudo. Pois se 0 género construido é tudo que existe, parece nao haver nada “fora” dele, nenhuma 4ncora epistemolégica plan- Bi PROBLEMAS DE GENERO tada em um “antes” pré-cultural, podendo servir com ponto de partida epistemolégico alternativo para uma ava, liagdo critica das relagdes de género existentes. Localizay 0 mecanismo mediante o qual o sexo se transforma en género € pretender estabelecer, em termos nao biolégicos, nado s6 o carater de construgdo do género, seu status nay natural e nao necessdrio, mas também a universalidade cultural da opressao. Como esse mecanismo é formulado> Pode ele ser encontrado, ou s6 meramente imaginado? A designacao de sua universalidade ostensiva é menos reif. cadora do que a posigado que explica a opressao universa] pela biologia? A nogao per se de construto s6 se mostra util ao projet politico de ampliar 0 espectro das possiveis configuragdeg do género quando o mecanismo de construgdo do génerg implica a contingéncia dessa construcao. Contudo, se ha uma vida do corpo além da lei, ou uma recuperagio do corpo antes da lei, que assim emerge como objetivo normativo da teoria feminista, tal norma afasta 0 foco da teoria feminista dos termos concretos da luta cultural contemporanea, Os subcapitulos a seguir, sobre psicana- lise, estruturalismo e 0 status ¢ poder de suas proibicdes instituidoras do género, sexconcentrarao precisamente nessa nogdo da lei: qual’é seu status ontoldgico — é ele juridico, opressivo:é reducionista em seu funcionamento, ou cria inadvertidaménte’a possibilidade de sua propria substituigdo cultural? Em que medida.a enunciagao de um corpo anterior ao proprioenunciado contradiz performa- tivamente a si mesma egera alternativas em seu lugar? 76 PROIBICAO, PSICANALISE EA PRODUGAO DA MATRIZ. A permuta critica do estruturalismo O discurso estruturalista tende a se referir 4 Lei, no sin- gular, seguindo o argumento de Lévi-Strauss de que existe uma estrutura universal da troca reguladora que caracteri- za todos os sistemas de parentesco. Segundo As estruturas elementares de parentesco, as mulheres sio o objeto da troca que consolida e diferencia as relagées de parentes- co, sendo ofertadas como dote de um cli patrilinear para outro, por meio da instituigado do casamento.* A ponte, 0 dote, o objeto de troca constitui “um signo e um valor”, o qual abre um canal de intercdmbio que atende nao s6.ao objetivo funcional de facilitar 0 comércio, mas realiza o propésito simbdlico ou ritualistico de consolidar os lagos internos, a identidade coletiva de cada cla diferenciado por esse ato.’ Em outras palavras, a noiva funciona como termo relacional entre grupos de homens; ela nao term uma identidade, ¢ tampouco permuta uma identidade por outra. Ela reflete a identidade masculina, precisamente por ser 0 lugar de sua auséncia. Os membros do cla, invariavelmente masculino, evocam a prerrogativa da identidade por via do casamento, um ato repetido de diferenciagao simbélica. A exogamia distingue.¢ vincula’ patronimicamente tipos especificos de homens. A patrilinearidade égarantida pela expulsao ritualistica,das. mulheres e,.reciprocamente, pela importagao ritualistica de mulheres. Como esposas, as mu- lheres ndo s6 asseguram areproducao do nome (objetivo funcional), mas-viabilizam.o intercurso simbdlico entre clas de homens. Como lugar da permuta patronimica, as mulheres sao e nao sdo o signo patronimico, pois 40 excluidas do significante, do préprio sobrenome que por- tam. No matriménio, a mulher nao se qualifica como 7 PROBLEMAS DE GENERO uma identidade, mas somente como um termo relacional que distingue e vincula os varios clas a uma identidade patrilinear comum mas internamente diferenciada. A sistematicidade estrutural da explicagdo de Lévi- -Strauss das relagdes de parentesco faz apelo a uma logi- ca universal que parece estruturar as relagdes humanas. Ainda que Lévi-Strauss nos revele, em Tristes tropicos, ter abandonado a filosofia porque a antropologia forne- cia uma textura cultural mais concreta para a analise da vida humana, ele todavia assimila essa textura cultural a uma estrutura ldgica totalizante, a qual faz suas analises retornarem de fato as estruturas filos6ficas descontextua~ lizadas que ele teria pretensamente abandonado. Embora seja possivel levantar diversas questdes sobre as presungdes de universalidade da obra de Lévi-Strauss (assim como em Local Knowledge [Conhecimento local], do antropdlogo Clifford Geertz), as quest6es aqui dizem respeito ao lugar das hipoteses identitdrias nessa logica universal, ea relagdo dessa logica identitaria com 0 status subalterno das mu- Iheres na realidade cultural que essa mesma légica busca descrever. Se a natureza.simbdlica da troca é também seu carater universalmente humans, ¢ se essa estrutura univer- sal distribui “identidades” as pessoas do sexo masculino e uma “negacao” ou*falta” reladional ¢ subalterna as mu- theres, entao:a l6gica em-questao, pode ser contestada por uma posicao (ou conjunto.dé posigdes) excluida de seus préprios termos.Como seria uma logica alternativa do parentesco? Até que ponto os sistemas logicos identitarios sempre exigeii qué a construgao de identidades socialmente impossiveis ocupe © lugar de uma relagao nao nomeada, excluida, mas pressuposta e subsequentemente ocultada pela prépria légica? Explicita-se aqui o impeto demarcador 3B PROIBIGAQ, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ... de Irigaray em relagao 4 economia falocéntrica, bem como o grande impulso pés-estruturalista no seio do feminismo que questiona se uma critica efetiva do falocentrismo exige a eliminagao do Simbélico, como definido por Lévi-Strauss. O carater total e fechado da linguagem é presumido e contestado no estruturalismo. Embora Saussure entenda como arbitraria a relagao entre significante e significado, ele situa essa relacdo arbitraria no interior de um sistema linguistico necessariamente completo. Todos os termos linguisticos pressupd6em uma totalidade linguistica de estruturas, cuja integridade é pressuposta e implicitamen- te evocada para conferir sentido a qualquer termo. Essa opiniao quase leibniziana, em que a linguagem figura como uma totalidade sistematica, suprime efetivamente o momento da diferenga entre o significante e o significado, relacionando e unificando esse momento de arbitrariedade dentro de um campo totalizante. A ruptura pdés-estrutu- ralista com Saussure e com as estruturas identitarias de troca encontradas em Lévi-Strauss refuta as afirmagées de totalidade e universalidade, bem como a presungao de oposig6es estruturais bindrias a operarem implicitamente no sentido de subjugar a ambiguidade ¢abertura insistentes da significagao lingufstica’e cultural.* Como resultado, a discrepancia entre significante e’significado torna-se a di- fférance operativa ¢ ilimitada de linguagem, transformando toda referéncia envdeslocamento potencialmente ilimitado. Para Lévi-Strauss, a‘identidadecultural masculina é estabelecida por méiovde,um.ato aberto de diferenciagdo entre clas patrilineares, em que a “diferenga” nessa relagdo é hegeliana — isto é, distingue e vincula ao mesmo tem- po. Mas a “diferenga” estabelecida entre os homens e as mulheres que efetivam a diferenciagdo entre os homens 79 PROBLEMAS DE GENERO escapa completamente a essa dialética, Em outras pa- lavras, o momento diferenciador da troca social parece ser um lago social entre os homens, uma uniao hegeliana entre termos masculinos, simultaneamente especificados e individualizados.’ Num nivel abstrato, trata-se de uma identidade-na-diferenga, visto que ambos os clas retém uma identidade semelhante: masculinos, patriarcais e patrilineares. Ostentando nomes diferentes, eles particu~ larizam a si mesmos no seio de uma identidade cultural masculina que tudo abrange. Mas que relagdo institui as mulheres como objeto de troca, inicialmente portadoras de um sobrenome ¢ depois de outro? Que tipo de mecanismo diferenciador distribui as fungdes do género desse modo? Que espécie de différance diferenciadora na economia he- geliana de Lévi-Strauss aceita e rechaga a negagao explicita da mediacio masculina? Como argumenta Irigaray, essa economia falocéntrica depende essencialmente de uma economia da différance nunca manifesta, mas sempre pressuposta ¢ renegada. Com efeito, as relagdes entre clas patrilineares siio baseadas em um desejo homossocial (o que Irigaray chama de “homossexualidade”),* numa se- xualidade recalcada ¢ consequentemente desacreditada, numa relagao entre homens. que, em ultima instancia, con- cerne aos lacos,entre os homens, masse da por intermédio da troca eda distribuigao heter@Ssexual das mulheres.” Numa passage que révelao.inconsciente homoerd- tico da-eéonomia falocéntrica, Lévi-Strauss apresenta a ligagao entre o,tabudo intesto e a consolidagao dos lagos homoerdticos;“A.ttoca’— e, consequentemente, a regra da exogamia = naé€ simplesmente a da permuta de bens. A troca —e, consequentemente, a regra da exogamia que a expressa — tem em si mesma um valor social. Propicia 0s meios de manter os homens vinculados.” 80 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ... O tabu produz a heterossexualidade exogamica, a qual Lévi-Strauss compreende como obra ou realizacao arti- ficial de uma heterossexualidade nao incestuosa, obtida mediante a proibigdo de uma sexualidade mais natural e irrestrita (hip6tese partilhada por Freud em Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade). Contudo, a relagao de reciprocidade estabelecida entre os homens é a condigao de uma relagao radical de nao recipro- cidade entre homens e mulheres e, também, por assim dizer, de uma no relagao entre as mulheres. A famosa afirmagao de Lévi-Strauss de que “o surgimento do pensamento sim- bélico deve ter exigido que as mulheres, como as palavras, fossem coisas a serem trocadas” sugere uma necessidade que © proprio Lévi-Strauss induz, a partir da posicdo retrospecti- va de um observador transparente, das pretensas estruturas universais da cultura. Mas a expressdo “deve ter exigido” sé aparece como inferéncia performativa; considerando que © momento em que 0 simbdlico surgiu nado poderia ter sido testemunhado por Lévi-Strauss, ele conjetura uma historia necessaria: o relato torna-se assim injungao. Sua andlise induziu Irigaray a refletir sobre o que aconteceria se “os deuses se juntassem” e revelassém a imprevista atuagao de uma economia sexual alternativa. Seu trabalho recente, Sexes e parentés," oferece uma exegese critica de como essa construgao da troca reciproca entre homens pressupde uma nao reciprocidade’entre os sexos que ti40.se pode articular dentro dessa economiay:assim,como'a impossibilidade de nomear a fémea, o feminino ¢.a’sexualidade lésbica. Se existe um dominio sexual que é excluido do Sim- bélico e pode potencialmente reveld-lo como hegeménico, ao invés de totalizante em seu alcance, entdo tem de ser possivel situar esse dominio excluido dentro ou fora dessa 81 PROBLEMAS DE GENERO economia, ¢ pensar sua intervengdo estrategicamente, nos termos dessa localizagao. A releitura, a seguir, da lei estruturalista e da narrativa que explica a produgao da diferenca sexual em seus termos centra-se na fixidez e universalidade presumidas dessa lei, e, através de uma critica genealégica, busca expor seu poder de generati- vidade inadvertida e autoanuladora. Produziria “a Lei” essas posicées, unilateralmente ou invariavelmente? Pode ela gerar configuracées de sexualidade que a contestem efetivamente, ou sdo essas contestagGes inevitavelmente fantasmaticas? & possivel especificar a generatividade dessa lei como varidvel ou até subversiva? A lei que proibe o incesto é 0 locus da economia de parentesco que proibe a endogamia. Lévi-Strauss afirma que a centralidade do tabu do incesto estabelece 0 nexo significante entre a antropologia estrutural e a psicandlise, Embora Lévi-Strauss reconhega 0 descrédito de Totem e tabu, de Freud, no terreno empitico, ele considera esse gesto de reptidio como uma prova paradoxal de apoio 4 tese de Freud. Para Lévi-Strauss, 0 incesto nao é um fato social, mas uma fantasias¢ulturalsnuito difundida. Presu- mindo a masculinidade heterossexual do sujeito do desejo, Lévi-Strauss sustenta que.‘‘o desejo°pela mae ou irma, o assassinato do pai‘é.o arrependimento dos filhos indubi- tavelmente nao,correspondem a fenhum fato ou grupo de fatos'a ocupar.um dado ugar na historia. Mas talvez expressem simbolicamente um sonho antigo € vivedouro”."" Num esfor¢o para afirmar a percep¢ao psicanalitica da fantasia incestuésa inconsciente, Lévi-Strauss refere-se a “magia desse sonho, ao seu poder de moldar ideias que so desconhecidas dos homens [...] os atos evocados [pelo sonho] nunca foram cometidos, porque a cultura se opde 82 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ... a eles em todos os tempos ¢ em todos os lugares”.!? Esta afirmagao deveras surpreendente nos da uma percepcao no s6 da visivel capacidade de negagao de Lévi-Strauss (atos de incesto “nunca foram cometidos”!), mas também da dificuldade central decorrente da suposigio da eficacia dessa proibigao. O fato de a proibicao existir nao significa absolutamente que funcione. Ao invés disso, sua existéncia parece sugerir que desejos, agées e, a rigor, praticas sociais difundidas de incesto sAo produzidos precisamente em virtude da erotizagao desse tabu. O fato de que os desejos incestuosos sejam fantasisticos nao implica de modo algum que deixem de ser “fatos sociais”. A questio é antes saber como tais fantasias sao produzidas e efetivamente insti- tuidas, em consequéncia de sua proibigao. Além disso, de que modo a convicgao social de que a proibigdo é eficaz, aqui sintomaticamente articulada por Lévi-Strauss, renega e, portanto, cria um espago social em que as pra cestuosas ficam livres para se reproduzir sem proscriga0? Para Lévi-Strauss, tanto 0 tabu contra o ato do incesto heterossexual entre filho e mae como a fantasia incestuosa instalam-se como verdades culturais universais. Mas como se constitui a heterossexualidade incestuosa como matriz ostensivamente natural e présartificial dovdesejo, e de que modo se estabelece 0 desejo*¢omo_prérrogativa heterosse- xual masculina? Nessa perspectiva*fundadora do estrutu- ralismo, a naturalizacao tanto-da heéterossexualidade como in- da agéncia sexual masculina sao construgées discursivas em parte alguma explicadas, mas em toda parte presumidas. A apropriagao lacainiana de Lévi-Strauss esta centrada na proibicdo do incesto e na regra da exogamia na reprodu- gao da cultura, sendo a cultura primordialmente entendida como um conjunto de estruturas e significagGes linguisticas. 33 PROBLEMAS DE GENERO Para Lacan, a Lei que profbe a uniao incestuosa entre o menino ea mae inaugura as estruturas de parentesco, uma série altamente regulamentada de deslocamentos libidinais que ocorrem por intermédio da linguagem. Embora as estruturas da linguagem, coletivamente entendidas como © Simbélico, mantenham uma integridade ontoldgica se- parada dos varios agentes falantes pelos quais atuam, a Lei reafirma e individualiza a si mesma nos termos de toda entrada infantil na cultura. A fala sé emerge em condigdes de insatisfagao, sendo a insatisfagao institufda por via da proibicgfio incestuosa; perde-se a joutssance [o gozo] origi- nal pelo recalcamento primario que funda o sujeito, Em seu lugar emerge o signo que é analogamente barrado do significante, e que busca naquilo que significa a recuperacao daquele prazer irrecuper4vel. Lastreado ne: proibigdo, o sujeito s6 fala para deslocar o desejo pelas substituigGes metonimicas desse prazer irrecuperdvel. A linguagem é 0 residuo ¢ a realizacdo alternativa do desejo insatisfeito, a produgao cultural diversificada de uma sublimagao que nunca satisfaz realmente. Q fato de a linguagem, inevitavel- mente, nao conseguir significaréa consequéncia necessaria da proibigdo que alicerg marca a futilidade de Ses gestosteferenciais, a possibilidade da linguagem e Lacan, Riviere eas estratégias'da mascarada Em termo$lacanianos, perguntar sobre 0 “ser” do género elou do sexo é confupdir o proprio objetivo da teoria da linguagem de Lacan. O autor contesta a primazia dada a ontologia na metafisica ocidental ¢ insiste na subordinagao da pergunta “o que é?” a pergunta “como se institui e loca- 84 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ.., liza o ‘ser’ por meio das praticas significantes da economia paterna?”. A especificagao ontoldgica do ser, a negagao e as relagdes sao determinadas por uma linguagem estrutu- rada pela lei paterna e seus mecanismos de diferenciagao. Uma coisa sé entre elas assume a caracterizagao do “ser” e passa a ser mobilizada por esse gesto ontoldgico dentro de uma estrutura de significagao que, como o Simbédlico, é em si mesma pré-ontoldgica. Nao ha portanto inquirigaéo da ontologia per se, ne- nhum acesso ao ser, sem uma inquiricdo prévia do “ser” do Falo, a significagao autorizadora da Lei que toma a diferenga sexual como pressuposig¢ao de sua prépria inte- ligibilidade. “Ser” o Falo e “ter” 0 Falo denotam posigdes sexuais divergentes, ou nao posicoes (na verdade, posigoes impossiveis), no interior da linguagem. “Ser” o Falo é ser o “significante” do desejo do Outro e apresentar-se como esse significante. Em outras palavras, é ser 0 objeto, 0 Outro de um desejo masculino (heterossexualizado), mas também € representar ou refletir esse desejo. Trata-se de um Outro que constitui nao o limite da masculinidade numa alteridade feminina, mas o lugar de uma autoelaboracao masculina. Para as mulheres, “ser” o:Falo significa refle- tir o poder do Falo, significar essé poder, “incorporar” 0 Falo, prover o lugar’ém que ele penetraye significar 0 Falo mediante a condicao.de “ser” o sew Outro, sua auséncia, sua falta, a confirmagao dialéticade‘sua identidade. Ao afirmar que © Outro a quem falta o:Falo é aquele que é 0 Falo, Lacan sugere claramente que o poder é exercido por essa posi¢do feminina de nao ter, e que o sujeito masculino que “tem” o Falo precisa que esse Outro confirme e, con- sequentemente, seja o Falo em seu sentido “ampliado”.” Essa caracterizagdo ontoldégica pressupde que a aparén- cia ou efeito do ser € sempre produzido pelas estruturas 85 PROBLEMAS DE GENERO de significagio. A ordem simbdlica cria a inteligibilidade cultural por meio das posi¢Ges mutuamente excludentes de “ter” 0 Falo (a posigdo dos homens) e “ser” 0 Falo (a posigao paradoxal das mulheres). A interdependéncia dessas posi- ges evoca as estruturas hegelianas da reciprocidade falha entre o senhor € 0 escravo, particularmente a inesperada dependéncia do senhor em relacdo ao escravo para estabe~ lecer sua propria identidade, mediante reflexao."* Lacan, entretanto, monta este drama num dominio fantasistico. Todo esforgo para estabelecer a identidade nos termos des- sa disjuncdo entre o “ser” € o “ter” retorna as inevitdveis “falta” e “perda” que alicergam sua construcao fantasistica € marcam a incomensurabilidade do Simbélico e do real. Se o Simbdlico é compreendido como uma estrutura de significacdo cultural universal, em parte alguma plena- mente exemplificada no real, faz sentido perguntar: 0 que ou quem significa 0 que ou quem nessa historia ostensiva- mente transcultural? Essa pergunta, contudo, insere-se num contexto que pressupde um sujeito como significante ¢ um objeto como significado, a dicotomia epistemoldgica tradi- cional da filosofia antes'do deslo¢amento estruturalista do sujeito. Lacan quéstiona esse esquema de significagao. Ele apresenta a rélacdo.entre’os sexos’tm-termos que revelam 6 “eu” falante como um efeito nasculinizado do recalca- mento, qué figura como unr Sujeito. autonomo ¢ autorrefe- rido, mas cuja prépria’coeréncia é posta em questio pelas posigdes sextais que’exclai no processo de formacdo da identidade. Para‘L.acan, 0 sujeito s6 passa a existir — isto é, s6.comega a colocar-se como um significante autorreferido no corpo da linguagem — sob a condigao de um recalea- mento primario dos prazeres incestuosos pré-individuados associados com 0 corpo materno (entdo recalcado). 86 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ... O sujeito masculino s6 se manifesta para originar sig- nificados ¢, por meio disso, significar. Sua autonomia apa- rentemente autorreferida tenta ocultar 0 recalcamento que, ao mesmo tempo, é sua base ea possibilidade perpétua de seu deslastreamento. Mas esse processo de constituicao do sentido exige que as mulheres reflitam esse poder masculino e confirmem por toda a parte a esse poder a realidade de sua autonomia ilus6ria. Essa tarefa se confunde, para dizer o minimo, quando a demanda de que as mulheres reflitam o poder aut6nomo do sujeito/significante masculino torna-se essencial para a construgao dessa autonomia, tornando-se, assim, a base de uma dependéncia radical que na verdade solapa a funcao a que serve. Além disso, porém, essa de- pendéncia, ainda que negada, também é buscada pelo sujeito masculino, pois a mulher como signo garante éo corpo materno deslocado, a promessa va mas persistente de recuperar 0 gozo pré-individuado. Assim, 0 conflito da masculinidade parece ser precisamente a demanda de um reconhecimento pleno da autonomia, o qual encerrara — também e todavia —a promessa de um retorno aos prazeres plenos anteriores ao recalcamentoe a individuacao. Diz-se que as mulheres “saa” o Falo no sentido de man- terem o poder de refletir ou representar a.“‘realidade” das posturas autorreferidas do, sujeito masculino, um poder que, se retirado, romperia as ilusoes fundadoras da posigdo desse sujeito..Para “ser” o Faldo, refletoras ou garantes da posigdo aparente:do, stijeito masculino, as mulheres tém de se tornar, tem de™“ser” (no sentido de “posarem como se fossem”) précisamente 0 que os homens nao s4o €, por sua prépria falta, estabelecer a funcdo essencial dos homens. Assim, “ser” 0 Falo é sempre “ser para” um sujeito masculino que busca reconfirmar e aumentar 87 PROIBIGAQ, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ fracassos c6micos, todavia obrigados a articular e encenar essas impossibilidades repetidas. Mas, como as mulheres “parecem” ser 0 Falo, a falta que encarna e€ afirma o Falo? Segundo Lacan, isso se faz através da mascarada, efeito de uma melancolia que € essencial a posi¢éo feminina como tal. No ensaio “A significagao do falo”, ele escreve sobre “as relacées entre os sexos”: “Digamos que essas relagées girarao em torno de um ser e de um ter que, por se reportarem a um sig- nificante, o falo, tém o efeito contrario de, por um lado, dar realidade ao sujeito nesse significante, e, por outro, irrealizar as relagdes a serem significadas.” Nas linhas imediatamente subsequentes, Lacan parece referir-se a aparéncia de “realidade” do sujeito masculino, assim como a “irrealidade” da heterossexualidade. Ele também parece referir-se 4 posiga&o das mulheres (minha intervenc¢ao esta entre colchetes): “E isso pela intervengio de um parecer que substitui o ter [exige-se uma substituicao, sem duvida, pois diz-se que as mulheres nao ‘tém’|, para, de um lado, protegé-lo e, do outro, mascarar sua falta no outro.” Embora nao se explicite aqui propriamente o género gramatical, parece que Lacan ésta descrévendo a posi¢ao das mulheres para quem a.“falta” € ¢aracteristica, precisando portanto ser mascarada, esque; num. sentido inespecifico, carecem de protegao,.Lacan afirma entag que essa situacao produz “o efeito [de] projetarinteiramente as manifestagdes ideais ou tipicas do comportamento de cada um dos sexos, até o limite do ato'da;copulagao, na comédia” (p. 701). Lacan continua sua exposicdo sobre a comédia heterosse- xual, explicando que esse “parecer” 0 Falo que as mulheres sdo compelidas a representar é inevitavelmente “mma masca- rada. O termo é significativo porque sugere sentidos contra- 89 PROBLEMAS DE GENERO ditérios: por um lado, se o “ser”, a especificagdo ontoldgica do Falo, é uma mascarada, entao isso pareceria reduzir todo ser a uma forma de aparéncia, a aparéncia de ser, com a consequéncia de que toda a ontologia do género é redutivel aum jogo de aparéncias. Por outro lado, mascarada sugere que existe um “ser” ou uma especificagéo ontolégica da feminilidade anterior a mascarada, um desejo ou deman- da feminina que é mascarado e capaz de revelagdo, e que, na verdade, pode pressagiar uma ruptura € deslocamento eventuais da economia significante falocéntrica. Podem-se discernir pelo menos duas tarefas muito diferentes a partir da estrutura ambigua da anélise de Lacan. Por um lado, pode-se compreender a mascarada como a produgao performativa de uma ontologia sexual, uma aparéncia que se faz convincenteé como “ser”; por outro lado, pode-se ler a mascarada como a negagao de um desejo feminino, a qual pressupde uma feminilidade ontoldgica anterior, regularmente nao representada pela economia falica. Irigaray observa nesse sentido que “a mascarada [...] € 0 que as mulheres fazem [...] para par- ticipar do desejo masculino, mas ao custo de abrir mio do delas mesmas”2 A printcira tarefa envolveria uma reflexdo critica sobrecd ontologia,do género como (des) construgao imitativa’e, talyez, buscar as possibilidades moveis da distingao escofregadiaentre “parecer” e “ser”. uma radicalizacaoda dimensao “comica” da ontologia se xual, s6 parcialmenteémpreendida por Lacan. A segunda iniciaria estratégias feministas de desmascaramento para recuperar ou libértar qualquer desejo feminino que tenha permanecido recalcado nos termos da economia falica’S Talvez essas diregGes alternativas ndo sejam tao mutva- mente excludentes quanto parecem, pois as aparéncias sto 90 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAQ DA MATRIZ... cada vez mais duvidosas. As reflexdes sobre 0 significado da mascarada em Lacan e em Womanliness as a Mas- querade [A feminilidade como disfarce], de Joan Riviere, sao muito diferentes, em sua interpretacdo, precisamente daquilo que é mascarado pelo disfarce. E a mascarada a consequéncia de um desejo feminino que tem de ser negado e, assim, transformado numa falta que tem todavia de se manifestar de algum modo? E a mascarada a consequén- cia de uma negacao dessa falta, no intuito de parecer 0 Falo? Constréi a mascarada a feminilidade como reflexo do Falo, para disfargar possibilidades bissexuais que, de outro modo, poderiam romper a construcao sem suturas da feminilidade heterossexualizada? Transforma a mascarada a agressdo e o medo de represdlias em seducio e flerte, como sugere Joan Riviere? Serve ela primariamente para ocultar ou recalcar uma feminilidade ja dada, um desejo feminino que pode estabelecer uma alteridade insubordi- nada ao sujeito masculino e expor o necessario fracasso da masculinidade? Ou sera a mascarada 0 meio pelo qual a propria feminilidade é inicialmente estabelecida, a pratica excludente da formagao da identidade, em que 0 masculino é efetivamente excluido e instalado como externo as fron- teiras de uma posigdo,.com a marca feminina do género? Lacan continua’a citagao.mencionada.acima: Por mais, patadoxal que *possa_parecer essa formulagao, dizemos que é para‘ser.ofalos isto, o significante do desejo do Outro, que’a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade; nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. £ pelo que ela nao é que cla pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada. Mas ela encontra o significante de seu prdprio desejo no corpo daquele a a1 PROBLEMAS DE GENERO quem sua demanda de amor é enderegada. Nao convém esquecer que, sem diivida, o 6rgao que se reveste dessa fungao significante adquire um valor de fetiche (p, 701). Se esse “6rgao” inominado, presumivelmente 0 pénis (tra~ tado como 0 Yahweh hebraico, que nunca é mencionado), é um fetiche, como é possivel que o esquegamos tao facilmente, como presume 0 proprio Lacan? E que “parcela essencial de sua feminilidade” deve ser rejeitada? Tratar-se-ia, uma vez mais, da parte inominada que, uma vez rejeitada, aparece como falta? Ou sera a propria falta que deve ser rejeitada, para que a mulher possa parecer o pr6prio Falo? Eo carater inominavel dessa “parcela essencial” 0 mesmo cardter inomi- navel pertinente ao “6rgao” masculino, o qual nés corremos orisco permanente de esquecer? Nao sera precisamente esse esquecimento que constitui 0 recalcamento situado no cerne da mascarada feminina? Tratar-se-ia de uma masculinidade presumida que tem de ser abandonada, para que parega ser a falta que confirma e, consequentemente, ¢ 0 Falo, ou de uma possibilidade falica que tem de ser negada, para se transformar na falta que-confirma? Lacan esclarece.suia posigd ao observar que “a fungaio da mascara [...;domina aé identificagaes em que se resolvem as recusas‘da demanda.[de amor}” (p?702). Em outras pala- vras, a mascara é-parte da-éstratégia incorporadora da me- lancoliay a assungao.de atributos. do objeto/Outro perdido, na quala perdaé a.consequéncia de uma recusa amorosa.”” O fato dea mascara “dominar” e “resolver” essas recusas sugere que a apropriacao é a estratégia mediante a qual essas recusas sao elas mesmas recusadas, numa dupla negagao que reproduz a estrutura da identidade através da absorgio0 melancélica daquele que é, com efeito, duas vezes perdido. 92 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUCAG DA MATRIZ.. Significativamente, Lacan situa a discussio sobre a mas- cara em conjunto com a explicacgdo da homossexualidade feminina. Ele afirma que “a homossexualidade feminina [...], como mostra a observagao, orienta-se por uma decepcao que reforga a vertente da demanda de amor” (p. 702). Quem esta observando e o que esta sendo observado sio conveniente- mente suprimidos aqui, mas Lacan acha que seu comentario é 6bvio para todos os que quiserem observar. O que se vé por meio da “observagao” é 0 desapontamento fundante do homossexualismo feminino, em que esse desapontamento evoca as recusas dominadas/resolvidas pela mascarada. “Observa-se” também que a homossexualidade feminina esté de algum modo sujeita a uma idealizagao reforgada, uma demanda amorosa perseguida as expensas do desejo. Lacan continua seu pardgrafo sobre a “homossexua- lidade feminina” com a afirmagao parcialmente citada acima: “Esses comentarios mereceriam ter maiores nu- ances mediante um retorno a fungao da mascara, na medida em que ela domina as identificagdes em que se resolvem as recusas da demanda”, e, se a homossexuali- dade feminina é compreendida.como a consequéncia de um desapontamento, “como mostra‘a observagao”, entao esse desapontamento,tem de aparecer, ¢ aparecer clara- mente, para poder ser observado, Se Lacan’ presume que a homossexualidade feminina advém dé uma heterossexua- lidade desapontada, coma;se diz mostrar a observagao, nao poderia ser igualmente claro.para o observador que a heterossexualidade-provémde uma homossexualidade desapontada? E a mascafa da homossexual feminina que é “observada”, e se assim for, que expressao claramente legivel fornece provas desse “desapontamento” e dessa “orientagdo”, bem como do deslocamento do desejo pela 93 PROBLEMAS DE GENERO demanda (idealizada) de amor? Talvez Lacan esteja suge_ rindo que 0 que € claro para a observa¢ao € 0 status deg. sexualizado da lésbica, a incorporagao de uma recusa Que aparece como auséncia de desejo.”” Mas podemos entender que essa conclusao € 0 resultado necessdrio de uma obser- vacdo realizada a partir de um ponto de vista masculing e heterossexualizado, o qual toma a sexualidade lésbicg como recusa da sexualidade per se, somente porque a ge_ xualidade é presumida heterosexual, ¢ o observador, aqui entendido como heterossexual masculino, esta claramente sendo recusado. Ora, nao seria essa explicag4o a conge- quéncia de uma recusa que desaponta o observador, cujo desapontamento, rejeitado e projetado, € transformado no traco essencial das mulheres que efetivamente 0 recusam? Num deslizamento caracteristico nas posigGes pronomj- nais, Lacan nao consegue deixar claro quem recusa quem. Como leitores, contudo, nds devemos compreender que essa “recusa” flutuante est4 vinculada, de modo significatiyo, A mascara. Se toda recusa € finalmente uma lealdade para com outro lago no presente ou no passado, a recusa € ao mesmo tempo preservagao. A mascara oculta assim essa perda, mas a preserva (eatega) pormeio de sua ocultagio. A mascara tem uma‘dupla futi¢ao, que é a dupla fungao da melancolia. Ela é assumida'pelo processo de incorporagio, que é uma maneira de inscrevét e depois usar uma identi- ficagfio melancolica dentfo ¢ Sobre o-€orpo; com efeito, é a significagao do corpé,no moldedo Outro que foi recusado. Dominada mediante. apropriagio, toda recusa fracassa,e o recusador se torna parte da propria identidade do recusado, torna-se, na verdade, a recusa psiquica do recusado. A per- da do objeto nunca é absoluta, porque é redistribuida numa fronteira psiquica/corporal que se expande para incorporar 94 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ... essa perda. Isto situa 0 processo da incorporagao do género na Orbita mais ampla da melancolia. Publicado em 1929, o ensaio de Joan Riviere Woman- liness as a Masquerade” introduz a nogao da feminilidade como mascarada, nos termos de uma teoria da agresséo e da resolugao de conflitos. A primeira vista, essa teoria parece muito distante da andlise lacaniana da mascarada, em termos de comédia das posigdes sexuais. Ela comeca com um respeitoso exame da tipologia de Ernest Jones do desenvolvimento da sexualidade feminina nas formas hete- rossexual e homossexual. Contudo, concentra sua aten¢ao nos “tipos intermedidrios” que obscurecem as fronteiras entre o heterossexual e o homossexual, questionando implicitamente a capacidade descritiva do sistema classi- ficat6rio de Jones. Num comentario que tem ressonancia com a facil referéncia de Lacan a “observagao”, Riviere busca recorrer 4 percepgao ou experiéncia mundana para validar seu foco nesses “tipos intermedidrios”: “Na vida cotidiana, encontram-se constantemente tipos de homens e mulheres que, embora principalmente heterossexuais em seu desenvolvimento, exibem claramente caracteristicas marcantes do outro sexo.” (p. 35) O.que aqui é mais dbvio. éa classificagéo que condiciona e estrutura a percepgdo dessa mistura de,atributos. Glaramente, Riviere parte de nogées estabelecidas Sobre o qué é exibir caracteristicas sexuais, e como €ssas caractéristicas 6bvias s4o compreen- didas como expressando*ou Tefletindo uma orientagio sexual ostensiva:??;Essa percepgdo ou observacao nao s6 supée uma correlagdo entre caracteristicas, desejos e “orientagGes”,”? mas cria essa unidade por meio do préprio ato perceptivo. A unidade postulada por Riviere entre os atributos do género e uma “orientagdo” naturalizada 95 PROBLEMAS DE GENERO aparece como um exemplo daquilo a que Wittig se refere como a “formagio imaginaria” do sexo. Todavia, Riviere questiona essas tipologias naturalizadag ao fazer um apeloa uma explicagao psicanalitica que situa q significado dos atributos confusos do género na “interagag dos conflitos” (p. 35). Significativamente, ela contrasta essa tipo de teoria psicanalftica com outro que reduz a presen¢a de atributos ostensivamente masculinos numa mulher a uma “tendéncia radical ou fundamental”. Em outras pala, vras, a aquisigao de tais atributos e a consumagao de uma orientagdo heterossexual ou homossexual sao produziday mediante a resolugao de conflitos que tém por objetivo q eliminagao da angistia. Citando Ferenczi para estabelecer uma analogia com sua propria explicagao, Riviere escreve; ais exas Ferenczi ressaltou [...] que 0s homens homossex geram sua heterossexualidade como “defesa” contra sua homossexualidade, Tentarei mostrar que as mulheres que ara de feminilidade para evitar a angiistia, ea temida represalia dos homens. (p. 35) desejam a masculinidade podem colocar uma ma Nao fica claro qual éa forma “exagerada” de heterossexua~ lidade que o homem homossexual pretensamente exibiria, mas 0 fendmeno sob esgrittinie aqui pode apenas ser que Os homens gays simplesinente-podém nao’ parecer muito dife- rentes de seus equivalerites heterossexuais. Essa falta de um estilo ou aparéncia abertamente diferenciadores 86 pode ser diagnosticada como, “défesa” Sintomatica porque o homem gay em questdo ndo*corresponde a ideia de homossexual que 0 analista formou e nutriu a partir de esteredtipos cul- . Uma anilise lacaniana argumentaria que 0 suposto 96 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ.. “exagero” do homem homossexual de quaisquer atributos que figurem como uma heterossexualidade aparente repre- sentaria uma tentativa de “ter” o Falo, uma posigao de sujeito que encerra um desejo ativo e heterossexualizado. De ma- neira semelhante, a “mascara” das “mulheres que desejam a masculinidade” pode ser interpretada como um esforco para renunciar a “ter” o Falo, de modo a evitar a retaliagao daqueles de quem 0 Falo terd sido obtido mediante castragao, Riviere explica o medo da retaliagdo como consequéncia da fantasia da mulher de tomar o lugar do homem, mais precisamente, do pai. No caso que ela propria examina, € que alguns consideram ser autobiografico, a rivalidade com © pai ndo se dé em torno do desejo da mae, como se pode- ria esperar, mas do lugar do pai no discurso piblico, como orador, conferencista ou escritor — isto é, como usuario de signos ao invés de um signo-objeto ou elemento de troca. Esse desejo castrador pode ser compreendido como o desejo de abandonar 0 status de mulher-como-signo, para aparecer como sujeito no interior da linguagem. Ora, a analogia que Riviere traga entre o homem ho- mossexual e a mulher mascarada ndo.€, na opiniio dela, uma analogia entre a homossexualidade masculina e femi- nina. A feminilidade €assumida. pela mulher que “deseja a masculinidade”; mas que temé as consequéncias retaliado- ras de assumir publi¢amente a aparéncia de masculinidade. A masculinidade é assumida pélo homéssexual masculino que, presumivelmente, busca es¢énder — nao dos outros, mas de si mesmo, una feminilidade ostensiva, A mu- lher assume a mascara deliberadamente, para ocultar sua masculinidade da plateia masculina que ela quer castrar. Mas diz-se que o homem homossexual exagera sua “he- terossexualidade” (significando aqui uma masculinidade 97 PROBLEMAS DE GENERO que lhe permite passar por heterossexual?) como “defesa”, inconsciente, porque nao pode reconhecer sua prépriy homossexualidade (ou sera o analista que ndo a reconhy_ ceria, caso fosse sua?). Em outras palavras, o homossexua} masculino chama a sia retaliagdo inconsciente, desejandy e temendo as consequéncias da castraga0. O homossexua} masculino nao “conhece” sua homossexualidade, ainda que Ferenczi e Riviere aparentemente a conhecgam. Porém, conhece Riviere a homossexualidade da mulhe; na mascarada que cla descreve? Quando se trata da contra. partida da analogia que ela mesma estabelece, a mulher que “deseja a masculinidade” s6 é homossexual por sustentay uma identificagdo masculina, mas nao nos termos de uma orientagdo ou desejo sexual. Invocando mais uma vez q tipologia de Jones, como se fosse um escudo falico, ela for. mula uma “defesa” que designa como assexual uma classe de homossexuais femininas compreendida como do tipo mascarado: “Seu primeiro grupo [é] de mulheres homosse- xuais que, embora nao se interessem por outras mulheres, desejam © ‘reconhecimento’ da sua masculinidade pelos homens € afirmam ser 1guals aos homens Ou, em Outras palavras, homens elas proprias.” (p. 37) Como em Lacan, a lésbica é representada aqui.como uma posigado assexual, uma posigao que, a rigorprecusa‘a sexualidade. Para com- pletar a analogia anterior.conr Ferenczi, dir-se-ia que essa descrigao apresenta a“defesa” contra a homossexualidade feminina comosexudlidadé, todaviacompreendida como a estrutura reflexa do “homém: homossexual”. Contudo, nao hé maneira Clara deler’éssa descrigdo de uma homos- sexualidade feminina\que nao concerne ao desejo sexual por mulheres. Riviere queria que acreditassemos que essa curiosa anomalia tipologica nado pode ser reduzida a uma 98 PROIBIGAQ, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ.,, homossexualidade ou heterossexualidade feminina recal- cada. O que se oculta nao é a sexualidade, mas 0 édio. Uma interpretagao possivel 6 que a mulher na mas- carada deseja a masculinidade para entrar no discurso ptiblico com homens e, como homem, como parte de uma troca masculina homoerdtica. E exatamente porque essa troca masculina homoerdotica significaria a castracao, ela teme a mesma retaliacdo que motiva as “defesas” do homem homossexual. Ora, talvez a feminilidade como mascarada deva desviar-se da homossexualidade masculina — sendo esta a pressuposicao erética do dis- curso hegemdnico, a “homo-sexualidade” que nos sugere Irigaray. Em qualquer caso, Riviere nos faria considerar que tais mulheres mantém uma identificagéo masculina nao para ocupar uma posicao na interacado sexual, mas, ao invés disso, para dar continuidade a uma rivalidade que nao tem objeto sexual ou, pelo menos, que nao tem nenhum que ela nomeie. O texto de Riviere oferece uma maneira de reconside- rar a questao: 6 que é mascarado pela mascarada? Numa passagem-chave que marca sei afastamento da analise restrita demarcada pelocsistemayélassificatério de Jones, ela sugere que a “nvascarada” 6°mais do’gue uma carac- teristica do “tipo intermediario”, qtie central para toda “feminilidade”: “OJéitor pode agora perguntar como defino a feminilidade, owondé estabelego a fronteira entre a feminilidade genufnare a ‘mascarada’, Minha sugestao, contudo, é que nao ha tal diferenga; radicais ou superfi- ciais, elas sao a mesnia coisa” (p. 38). Essa recusa a postular uma feminilidade anterior a0 mimetismo € 4 mascara € retomada por Stephen Heath no artigo “Joan Riviere and the Mascarade”, como com- 99 PROBLEMAS DE GENERO provacao da nogio de que a “feminilidade auténtica ¢ est, mimetismo, é a mascarada”, Abragando a postulagao dy libido como masculina, Heath conclui que a feminilidad. € a negaciao dessa libido, a “dissimulagao de uma mascy_ linidade fundamental”.* A feminilidade torna-se uma mascara que domina/resoly.. uma identificagao masculina, pois a identificacdo masculinz produz, na suposta matriz heterossexual do desejo, um de- sejo pelo objeto feminino, o Falo; consequentemente, porta - a feminilidade como mascara pode revelar uma recusa d3 homossexualidade feminina; e, ao Mesmo tempo, a incorpy- racao hiperbélica desse Outro feminino que € recusado — forma peculiar de preservar e proteger esse amor no circulo de narcisismo melancélico e negativo que resulta da inculea psiquica da heterossexualidade compulsoria. Uma leitura possivel de Riviere é que ela tem medo de seu proprio falicismo*® — isto é, da identidade falica que se arrisca a revelar ao longo de seu texto, de sua escrita, a rigor, da escrita do falicismo que seu proprio ensaio oculta e expressa. Contudo, o que ela busca negar e expressa ao tornar-se 0 objeto que ela mesma se proibe de amar pode ser menos sua propria identidade masculina do que o de- inatura. Essa sejo masculino heterossexual que € sua as éa condig&o produzida porsima matriz que explica todo desejo de mulheres, porparte de Sujeitos de qualquer sexo ou género, como,otiginarioede uma posigao masculina, heterossexual. A libido-como-maseilino é a fonte de que brota, presumivelmente, toda Sextialidade possivel.** Aqui a tipologiasdo.généro-é da sexualidade precisa dar lugar A explica¢ao’discursiva da produgao cultural do género. Se o amalisando de Riviere € um homossexual sem homossexualidade, talvez seja porque essa opgao ja ¢ 100 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ recusada a ela; a existéncia cultural dessa proibigao esta no espacgo da conferéncia, determinando e diferenciando sua posi¢ao de oradora e sua plateia principalmente mas- culina. Embora tema que scu desejo castrador possa ser percebido, ela nega a existéncia de uma competi¢ao em torno de um objeto comum de desejo, sem 0 qual faltaria confirmagao e signo essencial a identificac4o masculina que ela reconhece. Ora, sua explicagdo pressupGe a primazia da agressdo sobre a sexualidade, o desejo de castrar e tomar o lugar do sujeito masculino, um desejo admitidamente enraizado numa rivalidade, mas que, para ela, se exaure no ato de deslocamento. Mas seria util formular a questao: a que fantasia sexual serve essa agressao, e que sexualidade autoriza ela? Ainda que o direito de ocupar a posicao de usuario da linguagem seja 0 objetivo aparente da agressao do analisando, podemos perguntar se nao ha um reptidio do feminino, que prepara essa posigao no interior do discurso e ressurge invariavelmente como 0 Outro-Falico que con- firmara fantasisticamente a autoridade do sujeito falante. Podemos entao repensar as préprias nogées de mascu- linidade e feminilidade, entendidas aqui como enraizadas em investimentos homossexuais nao resolvidos. A recusa/ dominaga4o melancélica da homossexualidade culmina na incorporagao do. objeto.do desejo do mesmo sexo e res- surge na construgao de.“naturezas” sexuais distintas, as que exigem € instituem seus opostos por exclusdo. Ainda assim, presumir a primazia da bissexualidade ou a carac- terizagao primaria da libidocomo masculina nao explicaa construcao dessas varias “primazias”. Algumas explicagdes psicanaliticas argumentam que a feminilidade baseia-se na exclusdo do masculino, sendo o masculino uma “parte” da composi¢ao psiquica bissexual. Supde-se a coexisténcia 101 PROBLEMAS DE GENERO desse bindrio, e entdo intercedem o recalcamento e a ex. clusao, para fabricar, a partir dele, identidades de génerg distintas, com o resultado de que a identidade é sempre jx inerente a uma disposigao bissexual que, por meio do re_ calcamento, é separada em suas partes componentes. Nun, sentido, a restrigdo bindria sobre a cultura coloca-se comg a bissexualidade pré-cultural que se divide na familiaridad, heterossexual por via de seu advento na “cultura”. Des_ de © comego, contudo, a restrigao binaria a sexualidady mostra claramente que a cultura nao é de modo algun posterior a bissexualidade que ela supostamente reprime, ela constitui a matriz de inteligibilidade pela qual a propria bissexualidade primaria se torna pensavel. A “bissexuali- dade” postulada como fundagao psiquica, e que se diz ser recalcada numa data posterior, é uma produgao discursivg que afirma ser anterior a todo discurso, levada a efeity mediante praticas excludentes compulsérias e geradoras de uma heterossexualidade normativa. O centro do discurso lacaniano € a nogao de “cisio”, uma cisdo primdria ou fundamental que torna 0 sujeito internamente dividido e estabelece a dualidade dos sexos, Mas por que este foco exclusivo na divisio em dois? Em termos lacanianos, a cisao sempre aparenta ser 0 efeito da lei, e nado uma condigado preexistente sobre a qual a lei atuaria. Jacqueline Rose escreye que, “em ambos os sexos, a sexualidade dita necesSariamente respeito a du- plicidade que mina sua cisao funda mental”,’” sugerindo que a divisdo sexual efetuada:atrayeés do recalcamento, € invariavelmenté minada pelo préprio ardil da identidade. Mas nao se trataria’aide uma duplicidade pré-discursiva a minar a postura‘unfvoca de cada posigao no campo da diferenga sexual? Rose escreve convincentemente que, 102 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ “para Lacan, como vimos, nao ha realidade pré-discursiva (‘Como voltar a uma realidade pré-discursiva senao atra- vés de um discurso especial?’ SXX, p. 33), ndo ha lugar anterior a lei que esteja disponivel e possa ser recuperado”. Numa critica indireta aos esforcos de Irigaray de marcar um lugar para a escrita feminina fora da economia félica, Rose acrescenta: “E nao ha feminino fora da linguagem.”# Sea proibicdo cria a “cisdo fundamental” da sexualidade, ese essa “cisdo” mostra-se dubia exatamente por causa do artificialismo dessa divisdo, entao deve haver uma divisio que resista 4 divisdo, uma duplicidade psiquica ou uma bissexualidade intrinseca que mina todo e qualquer esforgo de separagao. Considerar essa duplicidade psiquica como o efeito da Lei é 0 objetivo declarado de Lacan, mas é igualmente o ponto de resisténcia em sua teoria. Sem diivida, Rose esta certa ao afirmar que toda iden- tificagdo, precisamente por ter uma fantasia como ideal, esta fadada ao fracasso. Qualquer teoria psicanalitica que preceitue um processo de desenvolvimento que pressupo- nha a realizagao de uma dada identificagao pai-filho ou mae-filha funde erroneamente 9 Simbélico com o real, e perde de vista o ponto critico de-incomensurabilidade que exp6e a “identificagao” e a@drama de “ser” e de “ter” o Falo como inyariavelmente fantasistico2? Contudo, o que determina 0 dominio do fantasistico, as regras que regulam a incomensurabilidade do, Simbdélico com o real? Claro, nao basta afirmar que esse drama diz respeito aos habitantes dos lares do capitalismo ocidental recente e que, talvez, em uma époéa ainda a ser definida, algum outro regime simbdlico ira governar a linguagem da ontologia sexual. Ao instituir 0 simbdlico como invariavelmente fantasistico, a “invariabilidade” acaba se modificando em 103 PROBLEMAS DE GENERO “inevitabilidade”, gerando uma descrigao da sexualidage cujos termos promovem um resultado de estase cultur,), A interpretagao de Lacan, que compreende 0 pré-ajc- cursivo como uma impossibilidade, indica uma critica Que conceitua a Lei como proibitiva e generativa ao MesMO tem- po. O fato dea linguagem da fisiologia ou de predisposiygo nao se manifestar aqui ¢ alvissareiro, mas ha que notar que as restrigdes bindrias continuam a operar no sentido ge estruturar e formular a sexualidade, e delimitar de ange- mio as formas de sua resisténcia ao “real”. Ao demaryar © proprio dominio do que esta sujeito ao recalcamenty, exclusao opera antes do recalcamento — isto é, na deli- mitagdo da Lei e de seus objetos de subordinagao. Embora seja possivel argumentar que, para Lacan, 0 recalcamentc cria o recalcado mediante a lei proibitiva e paterna, este argumento nio explica a nostalgia da plenitude perdida gc g0zo que permeia seu trabalho. Ora, a perda nao poderis ser compreendida como perda, a menos que a propria ir recuperubilidade do prazer em questao nao designasse ut passado barrado do presente pela lei interditora. O fato de que nao possamos conhecer esse passado a partir da pos cao do sujeito fundado nao quer dizer que ele no ressyr no discurso deste sujeito como /élure, descontinuidade ow deslizamento metonimico. Assim como a realidade numena mais verdadeira de Kant, 0 passado pré-juridico do gozo « incognoscivel a partir do:interior da lingua falada; isso ni quer dizer, todavia;que esse passado nao tenha realidade A propria inacessibilidadeé do passado, indicada pelo des! zamento metonimicd no discurso contemporaneo, confirm essa plenitude original como realidade tltima. Emerge outra quéstao: que credibilidade pode ser dad a uma explicagao do Simbélico que exige conformidade 104 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ... uma lei que se mostra impossivel de cumprir e que nao abre, para si mesma, nenhum espago de flexibilidade, para sua reformulagao cultural em formas de maior plasticidade? A injungao de tornar-se sexuado nos modos prescritos pelo Simbdlico leva sempre ao fracasso e, em alguns casos, a revelagdo da natureza fantasistica da propria identidade sexual. A afirmagado do Simbélico como inteligibilidade cultural em sua forma presente e hegemGnica consolida efetivamente o poder dessas fantasias, bem como dos varios dramas dos fracassos da identificacao. A alternativa nao é sugerir que a identificagao deva tornar-se uma realizagao vidvel. Mas o que parece realmente acontecer é uma roman- tizagao ou mesmo uma idealizagao religiosa do “fracasso”, uma humildade e limitagao diante da Lei, o que torna a narrativa de Lacan ideologicamente suspeita. A dialética entre 0 imperativo juridico que nao pode ser cumprido e 0 fracasso inevitavel “diante da lei” evoca a rela¢do torturada entre o Deus do Velho Testamento e seus humildes servos, que lhe oferecem obediéncia sem pedir secompensa. Essa sexualidade incorpora hoje esse impulso religioso, sob a for- ma de uma demanda de amor (considerada “absoluta”) que se diferencia tanto da necessidade como do desejo (numa espécie de transcendéncia extatica que eclipsa a sexualidade de modo geral) e que empresta crédibilidade ao Simbélico, como aquilo que funciona, para os stijeitos humanos, como uma divindade inacessivel mas determiinatite. Essa estrutura de tragédia religiosa na teoria lacaniana mina efetivamentequalquer estratégia de polftica cultural para configurar uma*alternativa imagindria para 0 jogo dos desejos. Se o Simb6lico garante o fracasso das tarefas que ele ordena, talvez seus propdsitos, como os do Deus do Velho Testamento, sejam inteiramente niio teleolégicos 105 PROBLEMAS DE GENERO — nao a realizagio de algum objetivo, mas obediénc\, . sofrimento, para impor ao “sujeito” o sentido de sua jj mitagdo “diante da lei”. Ha, é claro, 0 lado cémico dagse drama, o qual é revelado pela descoberta da imposs\}j- lidade permanente da realizagao da identidade. Mas a¢ essa comédia € a expressdo inversa de uma escravizayjo ao Deus que ela afirma ser incapaz de superar. A teoria lacaniana deve ser compreendida como uyyg espécie de “moral do escravo”. Mas como seria refor- mulada apos a apropriacéo do insight de Nietesche, em Genealogia da moral, de que Deus, 0 Simbélico inacessivel, é tornado inacessivel por um poder (a vontade de poder} que institui regularmente sua propria impoténcia?®” Essa representagao da lei paterna como autoridade inevitave) e incognoscivel diante da qual o sujeito sexuado esta fadado a fracassar é na verdade o impulso teoldgico que a motiya, bem como a critica da teologia que aponta para além desse marco. A construgio da lei que garante o fracasso € sinto- matica de uma moral do escravo, que renega Os proprios poderes generativos que usa pata construir a “Lei” como impossibilidade permanente. Que poder cria essa ficgdo que reflete a sujeigdo inevitavel? Qual o interesse cultural de conservar 0 poder nesse circulo de abnegagao, e camo resgatar esse poder das artiadilhas de uma lei proibitiva que é esse poder em stia dissimnulagdo e autossujel Freud e a melancolia do géenero Ainda que Irigaray manténha que a estrutura da fernini- lidade e da melancolia “se reiterem mutuamente”,*"e que, em “Motherhood According to Bellini” [A maternidade de 106

You might also like