You are on page 1of 5
3. A oratéria A oratéria* adquire importancia relevante no século XVII, sendo o ser- mio perspectivado como arte de palco e a base da mais importante ceri- ménia social: a pregacio. O sermao, enquanto discurso de caracter reli- gioso, é uma das armas fundamentais da Contra-Reforma, devendo-se sublinhar: +a dimensao teatral e espectacular da oratéria religiosa (0 pilpito da igreja de S. Roque, em Lisboa, constitui um exemplo da importancia deste elemento arquitecténico na igreja seiscentista); * a transformacao do pillpito num palco e do pregador num actor - a orat6ria jesufta ensinava ao futuro pregador, para além dos preceitos formais, como devia dispor as pregas do habito, os gestos que devia fazer, o tom de voz a empregar, a linguagem facial, etc.; a func&o Nidica do sermao, idéntica a das outras artes de palco do século XVII (0 teatro, a dpera, o ballet, os enterros, as procissdes, as touradas, os autos-de-fé); * o ritual social do sermAo, que o torna, muitas vezes, numa pratica que visa culpabilizar e admoestar os ouvintes, dai a necessidade do carac- ter de deleite intelectual, em que frequentemente se transformou; * a associacao de elementos e rituais inerentes & pratica do serméo, co- moa luze 0 incenso. [no século XVII] o puilpito era um paleo e 0 pregador um actor a tentar | exibir do melhor modo possivel a sua palavra, ajustando as modulagdes da | sua voz aos efeitos visados junto do auditério. (...) a pregacdo era um espec- | taculo, tanto quanto possfvel espectacular. (...) Alids, uma das tradicionais Sfungdes oratérias era o delectare (deleitar), para além do docere (ensinar) e do movere (mover ou influenciar o compartamento do ouvinte), e estava no espirito da Contra-Reforma a captaciio e catequizagéio das multidées néo tanto pela razdo, que se estava cada vez mais revelando perigosa para a religido de entéo, mas antes pela sensibilidade, pelo prazer, pelo puro gozo intelectual, ¢ também pelo terror e piedade que maveriam (movere) os espectadores (0 argumento do inferno era o mais poderoso equivalent ima- gindrio dos autos-de-fé reais). (...) Tudo isto se relaciona com uma época cul- tural que deslocou para muiltiplos palcos — 0 teatro, a opera, o piilpito, 0 auto-de-fé, as procissdes, os enterros - 0 seu sadismo doentio, af o descarre- | gando. (...) Margarida Vieira Mendes, Sermées do Padre Antonio Vieira, Col. Textos Literarios, 3ed., Lisboa, Comunicagao, 1987 (adaptado) | (RES SSAP olde deter * Oratéria — arte de discursar em puiblico, com o objective de persuadir o auditério, 4. A especificidade do texto argumentativo que construir um texto (oral ou escrito) com base em argumentos logi-g O texto argumentativo é tao antigo como o proprio homem, uma vezg camente encadeados esta indissociavelmente ligado a actividad humana. Argumentar, persuadir, convencer, de forma rigorosa e objec. tiva, sempre fizeram parte do discurso humano. Tradicionalmente, alia-se ao texto argumentativo uma estrutura tri- partida, composta por: * Introdu¢ao - apresenta-se a tese/ideia a defender/desenvolver, * Desenvolvimento ~ organiza-se em varias partes, distribuidas por paragrafos, em que se apresentam e exploram os argumentos, os con- tra-argumentos, concretizados através de exemplos; * Conclusao - parte em que a tese inicial é retomada, de uma forma mais incisiva, uma vez que os argumentos apresentados a reforcam. A linguagem a utilizar deve ser clara e objectiva, revelando coerén- cia, coesao, bem como rigor seméntico e sintactico. 4.1. A arquitectura do serm4o vieiriano O sermio religioso do século XVII constitui um exemplo paradigma- tico do texto argumentativo, cujas principais regras o proprio Vieira teorizou no seu Sermdo da Sexagésima: * centrar-se no essencial e nao no acessério; apolar os argumentos na razao e em exemplos da Sagrada Escritura; » afastar-se da linguagem obscura dos pregadores gongorizantes; « exortar & aplicacéo da conclusao final. O Sermao da Sexagésima foi proferido em Lisboa, na Capela Real, em 1655, dirigindo-se Padre Antonio Vieira contra os pregadores gongorizan- tes, em especial contra o dominicano Frei Domingos de S. Tomas. O ora- dor censura a adopcao de uma linguagem e de um estilo obscuros na maior parte dos sermées e preconiza uma estética de simplicidade, de acordo com o espirito evangélico. Condena, no fundo, as extravagincias da linguagem eo estilo recheado de processos cultistas e conceptistas. Fabula tem duas significagdes: quer dizer fingimento e quer dizer comé- dia; e tudo sao muitas pregacées deste tempo. Sao fingimento, porque sdo | sutilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; sdo comédia, | porque os ouvintes vem a pregacdo como a comédia; e ha pregadores que | vém ao piilpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre | as do tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas nao | foi assim, Nao se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao pill- | pito. (...) E nds que € 0 que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, | assim naqueles trajos, uma voz muito afectada e muito polida, e logo come- | car com muito desgarro, a qué? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, | a requintar finezas, a lisonjear precipicios, a brilhar auroras, a derreter cris- | tais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades | destas. Nao é isto farsa a mais digna de riso, se nao fora tanto para chorar? | Na comédia o rei veste como rei, e fala como rei; 0 lacaio, veste como lacaio, | e fala como lacaio; 0 ristico veste como nistico, 2 fala como ristico; mas um | pregador, vestir como religioso e falar como... ndo 0 quero dizer, por reve- | réncia do lugar. Ja que o piilpito € teatro, e 0 serio comédia se quer, nao | faremos bem a figura? | | | Serméo da Sexagésima in Margarida Vieira Mendes (org), Sermides do Padre Anténio Vieira, Col. Textos Literarios, 3.*ed., Lisboa, Comunicacéo, 1987 (texto com supressio} Contudo, 0 préprio Sermao da Sexagésima emprega, do inicio ao fim, artificios préprios da elaboracao conceptista. Segundo Antonio José Saraiva, “o interesse de Vieira como escritor decorre do facto de ter prati- cado com virtuosismo incomparavel a arte da palavra no estilo concep- tista, como denominam os manuais de literatura; mas utilizou-o com fins praticos, porque para ele a palavra era um instrumento de acco”. Ffectivamente, a linguagem de Vieira consegue, pela sua clareza, ser convincente e atingir ptiblicos tao diversificados como homens da corte e colonos analfabetos das aldeias brasileiras. Parafraseando o proprio ‘Antonio José Saraiva, para Vieira “nada Ihe era mais estranho do que o conceito da «arte pela arte»”, ou seja, as palavras deveriam representar, objectivamente, a realidade e nela intervir. Para além do estilo demasiado obscuro, Vieira critica 0 estilo dos pre- gadores seus contemporaneos por abordarem varios assuntos ao mesmo tempo, tomando-se, por isso, a sua pregaco ineficaz. Em vez de agradar ®a Deus, os pregadores apenas agradavam aos homens. SSSAP Odea deer + antonio José Saraiva, O Discurso Engenhoso ~ Ensaios sobre Vieira, 1*ed., Lisboa, Gradiva, Marco de 1996 Vieira, apresenta, assim, aquele que considera ser o método a utilizar na arte de pregar: Ha-de tomar o pregador uma so matéria; hd-de defini-la, para que se co- nheca; hd-de dividi-la, para que se distinga; hd-de provd-la com a Escritura; hd-de declaré-la com a razéo; hd-de confirmé-la com 0 exemplo; ha-de ampli- | ficd-la com as causas, com os efeitos, com as circunstdncias, com as conve- niéncias que se hdo-de seguir, com os inconvenientes que se devern evitar; ha-de responder as diividas, ha-de satisfazer as dificuldades; ha-de impug- | nar e refutar com toda a forca da eloquéncia os argumentos contrarios; ¢ | depois disto hd-de colher, hd-de apertar, ha-de concluir, hd-de persuadir, ha- de acabar. Isto é serméo, isto é pregar; e o que nao ¢ isto, é falar de mais alto. Nao nego nem quero dizer que o sermao ndo haja de ter variedade de dis- | cursos, mas esses hdo-de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma drvore tem raizes, | tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim hd-de ser o serméo: hd-de ter ratzes fortes e sdlidas, porque hd-de ser fundado | no Evangelho; hd-de ter um tronco, porque hd-de ter um s6 assunto e tratar | uma 86 matéria; deste tronco hao-de nascer diversos ramos, que séo diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hao-de ser secos, sendio cobertos de folhas, porque os discursos héio-de ser ves- | tidos e omados de palauras. Ha-de ter esta drvore varas, que sao a repreensdo dos vicios; hé-de ter flores, que sdo as sentencas; e por remate de tudo, hd-de ter frutos, que é 0 fruto e o fim a que se hd-de ordenar o sermao. Sermo da Sexagésima in Margarida Vieira Mendes (org), Sermées do Padre Anténio Vieira, | Col. Textos Literdrios, 3*ed,, Lisboa, Comunicacio, 1987 As partes constitutivas do método que Vieira advoga e que adopta nos seus sermées sero, entio, as seguintes: ¢ Definir a matéria, sendo s6 uma. * Dividir a matéria, para que se distinga * Confirmar a matéria com a Escritura. * Declarar a matéria com a razao.. * Amplificar a matéria, dando exemplos e respondendo as objeccées, aos “argumentos contrérios” * Persuadir e exortar. Em suma, o sermio seiscentista obedece & maxima “docere, delectare, ‘movere”, ou seja, ensinar, deleitar (através da linguagem e dos exemplos apresentados) e mover (levar & adopgao de comportamentos adequados).. A oratéria classica defende uma estrutura rigida para o sermao, que deve integrar quatro partes: * Ex6rdio ou intrito — apresentacéo do tema e captacaio da atengSo do puiblico —“benenvolatio captatione”; +» Exposicéio - apresentacao pormenorizada da matéria a desenvolver; * Confirmagao — defesa da tese, através da apresentacao de argumentos que podem ser de varia ordem: argumento com base num exemplo (cf. Peixe de Tobias); argumento por analogia (¢f. 0 recurso a imitac&o de Santo Anténio); argumento de autoridade/citacao (cf. referéncias a Cristo ou a Santos Doutores da Igreja, e citagdes biblicas); * Peroraciio ou epilogo — sintese do que foi desenvolvide e apelo a que os ouvintes ponham em pratica os ensinamentos apresentados. © esquema mais comum dos Sermées de Vieira parte geralmente de um passo das Escrituras, como conceito predicavel, que depois demonstra como irrefutavelmente aplicdvel as condigdes da sua época; um dos aspectos mais validos, pois, dos seus Sermées podemos dizer que consiste na actualizagao dq Sagrada Escritura, cujas verdades, para Vieira, sao eternas e intempo- rais: “conceitos predicaveis” faria Leonor Carvalho Buescu, Apontamentos de Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1993, Q Sermao de Santo Anténio aos Peixes obedece 4 macro-estrutura do sermio seiscentista, como se pode visualizar no quadro apresentado Estrutura do Serm&o [cepiloees| Contetido tematico | | do Sermao 1 | | | » Conceito predicével - “vos estis sal terrae”; | | | | + Exploracao do te tir da metdfora do sal; Exérdio Capitulo 1 ere ee raha ede | | + Blogio a Santo Anténio como modelo a seguir; | | + Invocagdo & Virgem Maria - “Ave Maria” Capttulo it | Louvores aos peixes > em geral “capitulo M_| + Louvores aos peixes -> em particular | | Exposigao e Confirmagao | Capitulo IV v_| + Repreensdes ane ee = pena Capitulo V | Repreensdes aos peixes > em particular yess ne ee deen | gas a Deus de vos livrar deste perigo (...)” | * Louvor a Deus - cf. repeticao anaférica “Louvai | Deus” Peroragao Capitulo VI CCRES SAPO Hes deer

You might also like