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AYN Sena presenca sensivel cuidado e criac¢ao na clinica pSee nel utr) 4 J 4 : ‘| 3 . / i 3. Presenga sensivel. A experiéncia da transferéncia em Freud, Ferenczi e Winnicott Para Chaim Samuel Katz INTRODUGAO Desde os primérdios do emprego do método da associacio livre, Freud situa na relagao analista—analisando o plano decisivo onde ocorrem 0s acontecimentos que definirao os rumos de uma anilise. Em “Sobre 0 inicio do tratamento”,! ensaio que compée seus artigos sobre a técni- ca, Freud compara 0 percurso psicanalitico com um jogo de xadrez, do qual s6 se pode transmitir sistematicamente a abertura € o térmi- no — referidos a instalacao e aos destinos dados a transferéncia —, ficando o intermédio sujeito as varidveis mais inusitadas e indeter- minadas. Assim, 0 curso de uma anilise pode ser definido como o espago e o tempo do manejo da transferéncia, isto é, 0 processo psi- canalitico est4 intimamente relacionado com as vicissitudes da afe- tividade que circula entre analista ¢ analisando. Porém, como € comum se observar, apesar de 0 conceito de trans- feréncia ser um dos mais empregados na literatura psicanalitica, € também aquele do qual, provavelmente, menos se encontra uma uni- vocidade de sentido.? Isso se deve ao fato de que a transferéncia — sua instalacao, manejo e destino —, sendo considerada 0 modus ope- * randi da clinica e estando referida ao plano de afetago que se esta- belece no setting, nado nos deixa esquecer que 0 processo analitico, ndo pode ser reduzido a mera aplicagao de uma técnica ou a aquisi- cdo inteligivel de um saber sobre o passado e seus efeitos no psiquismo do sujeito, o que impde uma série de dificuldades de definigio e de entendimento dos modos como efetivamente opera, segundo a es PRESENGA SENSIVEL especificidade de cada andlise. Nesse sentido, a teorizagio acerca da transferéncia esté intimamente vinculada A qualidade da experiéncia afetiva estabelecida no curso de 1a anilise, o que implica conside- rar 0 contexto no qual #7 autor pratica a psicandlise — sobretudo as formas de sofrimento psiquico nele predominantes — na composi- cdo de seu estilo de psicanalisar. O propésito deste ensaio é, justa- mente, indicar de que maneira a transferéncia aponta para a dimensio estética da clinica, sendo a qualidade do encontro afetivo 0 que pode conduzir & criagao de sentidos na experiéncia psicanalitica ¢ a emer. géncia de concepgées distintas da transferéncia em momentos cruciais da historia da psicandlise. A ATUALIZAGAO DO INCONSCIENTE: A TRANSFERENCIA EM FREUD © conceito de transferéncia emerge cedo na obra freudiana, ainda no século XIX, no tiltimo dos ensaios que compéem a coleranea “Es tudos sobre a histeria” (escrita em parceria com Joseph Breuer), n0 qual as duas principais nogées referentes & clinica sao apresentadas: resisténcia e transferéncia# Frend atribui a descoberta da transferéncia, ainda que indiretamen- te, a0 “fato inconveniente” que Ihe foi revelado por Breuer acerc: do caso da Fraulein Anna O., atendida segundo os principios do mé- todo catartico.* A escuta ofertada por Breuer aos sofrimentos e pa- de Anna O. dera origem ao enamoramento da paciente pelo su médico, conduzindo a um dramatic desfecho no qual Anna O. “sims la” um parto anunciando a chegada do filho do dr. Breuer, levandoo a interromper definitivamente 0 tratamento. A licao extraida & episodio por Freud, que j4 dispunha de uma concepgio psicodinamizt do funcionamento do aparelho mental — da qual 0 conflito ¢ 21° cio de defesa através do recalque eram as pedras fundamentai foi a de que a contrapartida da oferta de escuta sensivel para hist 86 CLINICA E METAPSICOLOGIA rica e da circulagao da palavra que dela derivava é 0 advento de uma modalidade especifica de apaixonamento por parte da paciente, dirigida ao terapeuta. O passo seguinte foi associar a recém-desco- berta resisténcia ao tratamento a esse mesmo apaixonamento, consi derando que na sua génese estava uma transferéncia dos afetos — originalmente dirigidos as imagos parentais e convertidos no sintoma histérico por forca do recalque — para a figura do analista. Teriamos, desse modo, uma “falsa ligagao” nessa transferéncia (Ubertragung) ser acolhida como parte do tratamento, na de afetos, que deve forma de uma resisténcia ao mesmo. Apenas a partir da andlise de Dora, com 0 amadurecimento da teorizacao do complexo de Edipo na constituigdo da subjetividade, Freud? disporia de elementos para conceber a transferéncia ao analis- ta como uma forma de reedi¢ao ou de atualizacao das imagos parentais no “aqui e agora” da sessao analitica. Apesar de confessadamente equivocado em relacdo 4 compreensio da bissexualidade de Dora, a0 identificar sua posicdo na transferéncia a figura paterna, Freud fazia avangar sua concepgao de transferéncia na direg4o do conceito de repeticdo, como se Ié em “A dinamica da transferéncia”, de 1912. Nesse ensaio, a transferéncia ja se encontra assimilada 4 teoria da clinica psicanalftica, nao mais como um mero inconveniente — resistén- cia — que acidentalmente pode ocorrer nas anélises, mas como uma repeticao necesséria ao trabalho de acesso s fantasias infantis recalcadas € a0 complexo de Edipo. Tratar-se-ia, entao, da reedic¢ao dos clichés estereotipicos impressos na constituigao do psiquismo do sujeito na primeira infancia, e sua manifestago configuraria, na situagao clinica, a atualizagdo do inconsciente necessdria ao processo psicanalitico. Afi- nal, “é impossivel destruir alguém in absentia ou in effigie” * A transferéncia poderd se apresentar nas versGes positiva ou ne- gativa. A transferéncia positiva terna é considerada por Freud a maior aliada do tratamento. Por meio dela, o analista pode reconhecer 0 investimento do analisando no doloroso proceso terapéutico, bem 37 PRESENGA SENSIVEL como adquirir a influéncia necessdria para a efetividade das suas in- tervencoes. J4 a transferéncia positiva erética, bem como a transfe- réncia negativa, composta pelos impulsos agressivos ¢ hostis, sio consideradas formas de resisténcia ao trabalho analitico, constituindo os maiores obstaculos ao tratamento. Assim, se a transferéncia é, efe- tivamente, o modus operandi do processo analitico, sendo no campo transferencial que a “vitria” tem de ser conquistada, ¢ também in- discutivel que “controlar os fendmenos da transferéncia representa para o analista as maiores dificuldades”.? Pode-se desde ja perceber que, no percurso freudiano, apesar de a transferéncia ter sido assimilada ao processo analitico, tendo seu manejo se tornado o principal desafio, as dificuldades em aprender 0s sentidos das intensidades afetivas que invadem o espago analitico conduziram Freud a confundi-la ora com a repeticao dos complexos infantis edipianos, ora com a sugestao — pelo uso por parte do ana- lista da sua forma positiva terna —, ora com a resisténcia 4 andlise, nas suas manifestacGes erdticas ¢ negativas, o que culminou nos im- passes de “Observagées sobre o amor transferencial”."? De fato, se por um lado Freud reconhecera 0 primado da afetividade nas anilises, por outro esbarrara nos limites impostos pela sua teoria da clinica. A situagio paradigmatica, que tem como referéncia a clinica da histeria, éa do enamoramento de uma analisanda por seu analista— caracteristica da época. Postulando que essa situagao critica demanda um manejo especffico, ndo devendo a demanda de amor ser atendida, tampouco radicalmente recusada, Freud adverte que as intensidades afetivas sio arriscadas: “Nosso controle sobre nés mesmos nao é tio completo que nio possamos subitamente, um dia, ir mais além do que havfamos pretendido (...) portanto, nao devemos abandonar a neutrali- dade (...) que adquirimos por manter controlada a contratransferéncia (...) 0 tratamento deve ser levado a cabo na abstinéncia.”" Os termos empregados — controle, neutralidade, abstinéncia — remetem inequivocamente a uma concepgao segundo a qual o psica- 388 CLINICA E METAPSICOLOGIA nalista precisa se proteger das intensidades afetivas suscitadas pela transferéncia. Além disso, outra figura crucial referente a relagao ana- lista—analisando é retomada, apesar de pouco explorada por Freud: ada contratransferéncia. Nocdo surgida em sua obra alguns anos antes, em “As perspectivas futuras da terapéutica psicanalitica”” onde fora considerada uma falha humana possivel de ocorrer como contrapar- tida ao impacto dos afetos dirigidos ao analista, a contratransferéncia — seu controle, melhor dizendo — passa a ser considerada decisiva para 0 sucesso do empreendimento psicoterapéutico. No ensaio de 1910, escrito por ocasiéo da fundagao da Associa- cdo Psicanalitica Internacional, Freud indicara que uma anilise s6 avanca até 0 ponto em que avancou a anilise pessoal do psicanalista, destacando o problema da qualidade do encontro afetivo nas andlises € 0 questionamento acerca das faculdades adquiridas pelo analista para 0 exercicio da disponibilidade sensivel que the é exigida pela clinica. Porém, poucos anos depois, em “ObservagGes sobre 0 amor trans- ferencial”, a questao privilegiada passa a ser a do controle, por parte do analista, dos seus afetos e da sua reacio aos afetos do analisando. Assim, a exigéncia de andlise para aquele que quisesse se tornar psi- canalista, que a partir dos anos 1920 seria oferecida e regulada pela associagao internacional recém-criada, foi instituida obedecendo a duas motivagées principais: para que o candidato a psicanalista reco- nhecesse e experimentasse na carne os efeitos do inconsciente, con- vencendo-se, assim, da sua efetividade, o que as curtas andlises desse periodo pouco proporcionavam; e, sobretudo, para que pudesse li- dar com seus pontos cegos e controlar sua contratransferéncia. Nesse sentido, uma nog4o ganharia o estatuto de principio orde- nador da técnica freudiana: a abstinéncia. Se a andlise tem apenas uma regra fundamental, a associagao livre, a liberdade associativa pre- cisaria de limites, em virtude dos constrangimentos impostos pela intensa afetividade que inunda 0 espaco analitico. E verdade que 0 estatuto da abstinéncia na clinica tem uma referéncia ética no sentido 89 PRESENGA SENSIVEL da responsabilizagao do sujeito frente aos impasses do interdito, do desejo irrealizdvel e da castragdo simbélica. Afinal, ha uma tendén- cia, visivel na clinica da histeria, de comprometer o trabalho psiqui- co ¢0 luto exigido pelo processo de elaboragdo, tornando a situacao transferencial uma situagao de gozo pulsional; o amor transferencial servindo, efetivamente, a uma paixdo pela ignorancia. Mas nao se pode esquecer, também, que ha outro fator em jogo nessa problema- tica: a constatagao de que as principais formulag6es técnicas freudianas foram constitufdas antes da chamada “virada dos anos 1920”, na qual a pulsdo de morte e, posteriormente, a segunda t6pica, seriam conce- bidas. O modelo clinico de Freud, ao menos 0 que é apresentado em seus ensaios principais sobre a transferéncia, € ainda devedor da pri- meira t6pica e da primazia do recalcado na estruturagao subjetiva. Assim, a tarefa principal de uma andlise seria promover a recordacao do material recalcado, ainda que para isso fosse preciso lidar com as vicissitudes da repetigao, cujo palco é 0 campo transferencial. principio de abstinéncia foi formulado, e fez a sua fama, justa- mente nesse contexto, no qual o trabalho privilegiado nas andlises era 0 de recordar, ¢ para 0 qual 0 psicanalista contribui fazendo uso do seu instrumento maior, a interpretagao, ainda que para formulé-la seja preciso assistir as repetigdes ¢ As atuagdes (acting-out) nas anilises. Portanto, a técnica freudiana apresentada entre os anos 1910 e 1920 (e €apenas em relagao a essa concepgao que as criticas e os desenvol- vimentos de outros autores deve ser considerada) tem como balizas a regra fundamental da associagdo livre, o principio de abstinéncia re- gulando e controlando o campo transferencial, e a interpretagdo como instrumento privilegiado do qual o psicanalista dispSe para remeter as repetigdes coloridas pela afetividade as recordagées, ou seja, a0 conteiido recalcado e A elaboragio que lhe é sucedanea, como se pode encontrar em “Recordar, repetir e elaborar”."° No entanto, no terceiro capitulo de “Além do principio do pra- zer”," encontramos uma confissio que abre espaco para contribui- 90 CLINICA E METAPSICOLOGIA Ges futuras, através da qual Freud reconhece que a pratica psicana- litica, originalmente uma “arte interpretativa”, frente ao fenémeno da compulsao & repeticao, passaria a privilegiar, lado a lado com a interpretagdo, os afetos vividos na relago transferencial. A experiéncia analitica ficaria, assim, menos referida ao seu registro inteligivel, ¢ mais atenta ao campo do sensivel e do que nele se pode produzir como sentido. Veremos, primeiramente acompanhando o percurso clinico de Sandor Ferenczi, contemporaneo de Freud e seu principal interlo- cutor e colaborador ao longo de quase trinta anos, e depois em alguns desenvolvimentos promovidos por D.W. Winnicott, de que maneira a concepgao do que é a relacao transferencial foi sofrendo transfor- magées e redescricdes, na esteira dos desafios clinicos impostos pela segunda tépica e pela emergéncia de quadros de sofrimento psiquico diferencados das neuroses que mereceram 0s cuidados do criador da psicandlise. A PRODUGAO DE SENTIDO: A TRANSFERENCIA EM FERENCZI — EM WINNICOTT O sentido do percurso teérico-clinico de Sandor Ferenczi esta conden- sado no primeiro pardgrafo do seu Didrio clinico, escrito ao longo do ano de 1932 — Ferenczi morreria no ano seguinte —e publicado apenas em 1985, na Franga, por ébvias razées politicas, dado o seu carater perturbador em fungio do questionamento da técnica psica~ nalitica classica. A nota de 7/1/1932 refere-se a insensibilidade do psicanalista: “maneira afetada de cumprimentar, exigéncia formal de ‘contar tudo’, a atengdo flutuante que, afinal, nao o é e certamente nao € a apropriada para as comunicagées dos analisandos, impregna- das que estdo de sentimentos e freqiientemente trazidas com grandes dificuldades (...)”.!5 Para Ferenczi, essa “insensibilidade” — que aca- bou se configurando a contrapartida do principio de abstinéncia — a PRESENGA SENSiVEL nada mais era do que uma defesa (obsessiva, quando nao esquizdide ou perversa) dos analistas, uma forma de “hipocrisia” ¢ de recusa dos modos pelos quais o analista é afetado ¢ afeta seu analisando no en- contro clinico. Na fase inicial dos seus experimentos clinicos, marcada pelo em- prego da técnica ativa que mercceu os clogios de Freud, Ferenczi ten- tara resolver os problemas causados pela adesividade transferencial ¢ pela conseqiiente estagnacao das andlises nos pacientes mais compro- metidos através do uso de injungées ¢ proibicées, ou seja, da promogio de atos — suscitados pela palavra de ordem emitida pelo analista — que incidiam sobre 0 corpo ¢ sobre o circuito pulsional dos anali- sandos." Sua idéia fora a de produzir, com a radicalizagao até 0 ab- surdo do principio de abstinéncia, um incremento da anguistia que obrigaria o analisando a “trabalhar”, isto é, fazer livre associagao ¢, finalmente, recordar.” Buscando ser mais freudiano do que 0 proprio Freud, Ferenczi rapidamente percebera que, desse modo, produzia apenas maior submissio nos analisandos, que logo se adaptavam aos ios da técnica ativa.™ E verdade que os quadros clinicos graves aos quais atendia nao configuravam, na sua percep¢ao diagndstica, neuroses classicas, 0 que tendia a comprometer a eficdcia da regra fundamental da associagao livre. A inspiragéo para o emprego da técnica ativa adveio da expe- riéncia de Freud com o “Homem dos lobos”, na qual Freud estipula- ra uma data para 0 término da andlise acreditando, assim, produ7ir um atalho para certas recordag6es — no caso, a cena primitiva.'” De fato, em uma conferéncia pronunciada (nao por acaso) no Congres so Psicanalitico Internacional de Budapeste intitulada “Linhas de pro- gresso na terapia psicanalitica”, Freud?? reconhecera que, diante de certos quadros — notadamente fobias ¢ obsessGes graves —, seria ne- cessaria uma outra “atividade” por parte do psicanalista, o que pre parava o solo politico no campo psicanalitico para as inovagdes que seriam apresentadas por Ferenczi. Mas a experiéncia se revelou con- 92 CLINICA E MMETAPSICOLOGIA tra-indicada, j4 que, com o recrudescimento da abstinéncia ¢ 0 ex- cesso de interpretacées que lhe sucedia, a técnica ativa produzia mais efeitos iatrogénicos do que terapéuticos. Revendo esse posicionamento em um ensaio posterior que pode ser considerado um verdadciro divisor de 4guas no campo psicanali- tico, “Elasticidade da técnica psicanalitica”," Ferenczi retoma uma formulagao importantissima de Freud, até entio nao devidamente valorizada: a de que uma interpretacdo cometida sem tato é nao ape- nas inGcua, mas efetivamente patogénica.” Justamente, essa catego- ria sutil — 0 tato — é resgatada para a criagao de um estilo clinico diferencado. Ferencz i remete o tato, cujo sentido Freud nao chegou a aprofundar, a faculdade da empatia (Einfithlung), até entio explora- da apenas no terreno da investigacao estética, ¢ cuja tradugio literal seria “sentir dentro”. Mas o fundamental de “Elasticidade da técnica psicanalitica”, ao contrdrio do que se poderia precipitadamente infe- rir, nao é a proposta de uma identificacao do analista com o analisan- do, ou mesmo, € mais grave, de uma projecao sobre este de contetidos psiquicos do préprio psicanalista. O aspecto decisivo apreendido no curso das formulagées de Ferenczi, que reside no recurso a essa cate- goria empregada pelos estetas do século XIX ¢ inicio do século XX,” éacompreensao do campo transferencial como um plano de compar- tilhamento afetivo que, por meio do encontro liidico, favorece a pro- ducao de sentidos para as experiéncias de cada um dos parceiros da anilise. Porém, para se apreender 0 que est em jogo no estilo clinico assim proposto, € preciso avangar mais lentamente. Na experiéncia ferencziana, na medida em que a fixidez da técnica tornava-se mais eldstica, os analisados passavam a encontrar condigées de expressio afetiva inusitadas, sobretudo pelas manifestagées de hostilidade (transferéncia negativa) agora favorecidas. Segundo Ferenczi,2* se 0 analista se dispuser a ser usado como um “joao-tei- moso”,¥ e se oferecer como suporte das mais intensas manifestagdes afetivas previstas pela transferéncia, ser recompensado com 0 93 PRESENGA SENSIVEL ultrapassamento de muitas das “resisténcias objetivas” impostas pelo tratamento-padrio.?* Assim, a “inovago” de Ferenczi, segundo a sua prépria avaliagio, foi resgatar da regra fundamental a dimensao de liberdade — perdida em grande parte ao longo do processo de instr.- cionalizagio da psicanilise. 21 Acompanhando os ensaios clinicos de Ferenczi, a surpresa revelada stica” foi a de que seus'aali- sandos passaram a se permitir sofrer processos regressivos intensos a partir do emprego da sua “técnica el: nos quais as formas de e pressio apresentadas se aproximavam dar de criangas, tanto em sua dimensao lidica quanto em sua dimensio de dor traumitica. Pode-se contrapor, claro, que as regress6es eram provocadas e nao espontaneas, critica merecida, posteriormente, tari- bém por Winnicott. Inclusive, 0 termo utilizado por Ferenczi para nomiear 0 que ocorria em sua clinica, “neocatarse”, é fértil para pro- yocar equivocos. entanto, é preciso contextualizar essas experiéncias com 0 que se fazia em nome da psicandlise na década de 1920: interpretagao db complexo de Edipo, basicamente. A referéncia de Ferenczi & catar** dos primérdios da psicandlise detém seu sentido maior no resgate di. palavra encatnada e encorpada proferida pelas histéricas de entao. Se ‘0 campo psicanalitico havia erigido, sob 0 Alibi técnico da abstinéncia e da regularidade do enquadre, uma série de defesas obsessivas visan- do ao controle das intensidades na relacao transferencial, era previsv re-histericizar a palavra, ou, na terminologia de Ferenczi,** “soltar as linguas” novamente nas andlises. Mas para isso o analista precisaria evitar comparecer com seu saber excessivo e traumatizante, ficar quie- 10 novamente, como pedia Fraw Emmy von N. a Freud,”’ e promover um “laissez-faire” ou um relaxamento que pudesse favorecer 0 en- contro por meio do qual a experiéncia do inconsciente tem a oportu- nidade de acontecer.*” A interpretacgao excessiva, através do privilégio atribufdo ao campo do inteligivel, inibia certas manifestagdes mais regressivas. Coube a Ferenczi 0 mérito de formular a necessidade do 94 CLINICA E METAPSICOLOGIA acolhimento do infantil em andlise, de forma que novos sentidos pudessem ser criados pelos analisandos para as suas existéncias seve- ramente comprometidas, sobretudo se considerarmos a configuragio subjetiva dos pacientes traumatizados com os quais lidava. Em “Andlises de criancas com adultos”, de 1931, encontra-se uma formulagao que revela o principal objetivo do estilo clinico ferencziano: em vez de falar da crianga que habita o analisando através do instrumen- to interpretativo, seria preciso voltar a falar com a crianga que se ex- pressa em cada paciente em anélise. Mas, para falar com ela, era crucial encontrar uma modalidade clinica para essa comunicagao especifica, nascendo assim a “andlise através do jogo”, inspirada na incipiente psi- candlise de criancas que vinha sendo desenvolvida por Von Hug- Hellmuth, Melanie Klein e Anna Freud. Além disso, era também necessdrio que o psicanalista pudesse produzir enunciados adequados ao encontro ltidico que assim se estabelecia nas anilises, adotando uma modalidade linguageira propria do infantil, a “linguagem da ternura”, bastante distinta da dos enunciados interpretativos de outrora."! No estilo clinico que assim se constituia, as balizas passavam a ser nao mais associacao livre, principio de abstinéncia e interpretacio, porém associacao livre, regressao e jogo (ou brincar — “Spielen”, em alemao, “to play”, no inglés de Winnicott), indicando, segundo os preceitos de uma ética do cuidado, que a aposta principal do trabalho analitico recafa agora na qualidade do encontro afetivo que se esta- belecia na transferéncia.** O problema é que ao se definir 0 modus operandi da clinica por meio do encontro sensivel entre analista e analisando, passava-se a exigir uma enorme disponibilidade afetiva do psicanalista, bem como uma ampliacao dos limites estabelecidos para o campo transferencial. Ferenczi formula, entao, a “segunda regra fundamental” da psicandlise: a andlise do analista, que nao se confunde com anilise didatica institucionalizada.* Ainda nesse sen- tido propée, no “Diario clinico”,5 a expressao da “contratransferéncia ional” real” — e nao de uma “pseudocontratransferéncia profi 95 PRESENGA SENSIVEL asséptica — por parte do analista. Dessa maneira, o psicanalista dc,. xaria de se defender da sua implicagao afetiva no espaco analiticgo — seja controlando de maneira hipécrita “a contratransferéncia”, seja bus. cando dela se apropriar imaginariamente para construir uma 1: pretacdo—, sem contudo abandonar a reserva necesséria a0 sea‘. A obra de D.W. Winnicott, construida ao longo das décadas ane sucederam 0 desaparecimento de Ferenczi, em 1933, desenvolve ¢ nics- mo esclarece muitos aspectos do estilo clinico ferencziano. Suas con- tribuigées mais originais esto, a nosso ver, justamente nos sentidos dados a regressio e ao jogo — ao lado da associagao livre — uly, balizas da experiéncia psicanalitica. | Em relacao a regressio, Winnicott enfatiza que, sobretudo no casy dos pacientes severamente traumatizados, a possibilidade de regressio ao estado de dependéncia caracterfstico da relagao primordial entre a mie ¢ 0 bebé é condicao sine qua non para a instauragao de um pr cesso psicanalitico. Essa formulagio, que s6 pode ser compreendida em referéncia as suas concepgées acerca do desenvolvimento emoci nal primitivo é, no entanto, objeto de sucessivos mal-entendidos, » principal deles o que confunde a direcaio da clinica por ele praticada e teorizada com uma suposta maternagem benevolente e complacente, na qual a agonistica e o 6dio nao teriam qualquer participagao. Em “Aspectos clinicos ¢ metapsicolégicos da regressio”°” encon- tra-se duas importantes indicagdes, que correspondem a ampliacao, j4 visivel na época, do espectro de atuagao dos psicanalistas, da qual a clinica com criangas cra apenas uma vertente (bastante importante, certamente, a ponto de atrair jovens pediatras como Winnicott para a formagio psicanalitica): a de que o “processo” psicanalitico nao pode ser reduzido a uma técnica-padrao, sendo cada analisando, segundo a sua singularidade, quem indica o “ritmo” ¢ os “rumos” a serem se- guidos; além disso, que para cada “categoria” de sofrimento psiqui- co 0 psicanalista € convocado de modo diferengado. 96 CLINICA E METAPSICOLOGIA Assim, se para os analisandos que apresentam um constituicao narcisica integrada, cujas dificuldades residem na gestao dos relacio- namentos interpessoais, os principios estabelecidos por Freud para a pratica psicanalitica persistiam adequados, para os analisandos cujo sofrimento se refere especialmente ao “est4gio do concernimento” e a aquisicao da posigao depressiva (recordemos a influéncia de Melanie Klein sobre a psicandlise da época), 0 laco transferencial se mostra bem mais delicado, sendo a “sobrevivéncia do psicanalista” a hostili- dade do analisando o elemento privilegiado. Jé para a terceira e tilti- ma categoria descrita por Winnicott — certamente a mais relevante para as suas elaboracGes teérico-clinicas—, a dos analisandos severa- mente traumatizados, cuja integragdo egéica se encontra comprome- tida, a andlise devera lidar com os estgios iniciais do desenvolvimento emocional primitivo, e a énfase recaird sobre o “manejo”, o “traba- lho analitico normal deixado de lado por longos perfodos”, enten- dendo-se por trabalho “normal” aquele fundado no principio de abstinéncia e na interpretacao do recalcado. (idem). Tratar-se-ia, nes- ses casos, de criar as condigées de confiabilidade para que a regressao a dependéncia seja possibilitada. O “manejo” winnicottiano nao equi- vale, portanto, 4 concepcao freudiana de manejo na neurose de trans- feréncia, por meio do qual o analista busca dosar 0 quantum étimo de frustragéo de maneira a dar prosseguimento a associagio livre. Refere-se, ao contrario, a possibilidade de o analista adaptar-se sufi- cientemente bem aos modos de subjetivagao do analisando, criando um “contexto analitico” adequado. E£ interessante constatar que a teorizagio da adaptacdo ativa do ambiente A crianca — inaugurada no campo psicanalitico por Ferenczi,# tornando-se a pedra angular da concepgao winnicottiana do desen- volvimento emocional primitive — tem como contrapartida a adap- tagdo do psicanalista ao ritmo e aos rumos do processo de subjetivagao do analisando, bem como a adaptagdo da propria psicandlise as for- mas de sofrimento psiquico e As demandas de intervencao clinica PRESENGA SENSIVEL impostas pelo contexto cultural — como no caso da psicanillise de criangas e do tratamento de pacientes traumatizados, borderlines psicéticos, matrizes clinicas que cunharam o pensamento de Ferenczi ede Winnicott. As maiores resistencias 4 andlise se encontrariam, nessa leitura, do lado do psicanalista incapaz de se adaptar ao analisando, acolhendo as vicissitudes do seu processo terapéutico. Na teoria winnicottiana do desenvolvimento emocional primiti- vo, a énfase recai sobre a importancia primordial da adaptagao do ambiente as necessidades e ao gesto criativo do bebé, condi¢ao paraa continuidade da sua existéncia e a sua conseqiiente expansao psiqui- ca, Nesse momento do desenvolvimento humano, ha uma efetiva dependéncia absoluta do bebé a mae que, através das competéncias “técnicas” adquiridas pelo estado de sensibilidade exacerbada carac- teristico do puerpério, nomeado “preocupacao materna priméria”, possibilita os cuidados necessérios aos processos de integracao do ego ¢ de personalizacio — a experiéncia psfquica de habitar um corpo unitério. Posteriormente, no momento préximo do desmame, a desa- daptacdo gradual da mae possibilitar4 0 processo de realizacao, refe- rente & aquisi¢ao do sentido de realidade e da dependéncia relativa, rumo a independéncia, que seré também sempre relativa. ‘A modalidade de funcionamento psiquico do periodo da depen- déncia absoluta caracteriza-se pela “ilusdo de onipoténcia”, isto é, ndo havendo ainda um efetivo destacamento entre 0 eu ¢ a alteridade, 0 bebé teria a experiéncia de criar o seu préprio ambiente cuidador. O objeto que desse modo se constitui € nomeado por Winnicott “ob- jeto subjetivo”, € se encontra sob 0 controle magico do bebé. Para fins ilustrativos, seio da mée seria, em um primeiro momento, uma ctiacdo onipotente do bebé, parte de si mesmo, e ndo um objeto auté- nomo. Para Winnicott," a experiéncia de onipoténcia é a base da inte- gracio do self, sobre a qual poderdo ocorrer as futuras experiéncias da desiluso — gradualmente proporcionadas pela mae segundo o ritmo do bebé—, do desmame e da aquisigao do sentido de realidade. 98 Sums CLINICA E METAPSICOLOGIA Mas a desilusdo da onipoténcia nao implica o fim das experiéncias de ilusao. O bebé que teve a oportunidade de viver a ilusdo de onipo- téncia pode, doravante, constituir nas relagées com o mundo um es- paco de ilusao através do qual a experiéncia da criatividade tera continuidade. Com 0 inicio da distingao entre o eu e a alteridade, preserva-se uma terceira 4rea da experiéncia — nem mundo interno, nem mundo externo —, o espaco transicional, no qual a experiéncia do viver criativo poderd ser exercida, seja na forma do brincar solita- rio e do brincar compartilhado, seja na forma da experiéncia cultural propriamente dita — arte, religido, invengao... Uma falha desastrosa do ambiente no momento da dependéncia absoluta provocada pelo abandono ou pela intrusao perturbadora do gesto espontaneo caracteriza uma ruptura na continuidade do ser ea incidéncia do trauma, ao qual o bebé reage defensivamente. A reacao defensiva — ao contrdrio das reagdes espont4neas as falhas ambientais suportaveis nas formas da queixa ou mesmo da raiva — esté na origem de toda a psicopatologia winnicottiana — neurose, psicose ou disso- ciagdo egdica —, e expressa 0 assujeitamento aos imperativos de um ambiente precdrio ou hostil.*! O bebé que precisa estar atento de- mais ao ambiente termina, em busca de controle, mimetizando os adultos a sua volta e constituindo um falso se/f protetor com base na submissdo — 0 que Ferenczi, por sua vez, nomeara “progressao trau- matica” —, comprometendo o seu viver criativo e acarretando o sen- timento de “inutilidade” ou de “irrealidade” sobre 0 qual a clinica quer intervir. Nesse sentido, a regressdo em anilise seria justamente a contra- partida clinica de uma progressao traumatica defensiva. Seria preciso promover um retorno a “situagdo bem-sucedida original do narcisismo primdrio”, permitindo o “descongelamento” dos pontos do desen- volvimento emocional nos quais o analisando ficou fixado em fun- ¢40 da falha do ambiente, dando origem a um “novo inicio”, agora afinado com o seu gesto criativo, bem como a sua agressividade pri- 99 PRESENGA SENSIVEL miria, incapaz de expressdo na ocasiao do trauma? Finalmente, com a retomada do desenvolvimento emocional ¢ da sua constituicéo egéica, 0 analisando pode experimentar, muitas vezes pela primeira vez, tanto a alegria do viver criativo quanto o édio e a raiva referentes a situaco da falha na adaptacéo ambiental origindria. Para Winnicott, a expresso da raiva € fundamental para a continuidade do amadure- cimento do analisando em direcdo a sua independéncia do analista.* Em “Formas clinicas da transferéncia”, Winnicott aponta alguns problemas suscitados pela clinica com pacientes traumatizados refe- rentes a concepgao freudiana de neurose de transferéncia. Se a neu- rose de transferéncia se caracteriza pela atualizacao do inconsciente, isto é “o passado vem ao consultério”, na situagao de regressio 4 dependéncia seria mais adequado dizer que “o presente retorna 20 passado, e é 0 passado”.* A qualidade do encontro promovido pela constituicéo do contexto ambiente — individuo remete, efetivamen- te, a dupla dependéncia do par amamentante. Justamente por isso, nesses casos, a experiéncia da raiva do analisando seria “objetiva”, dirigida as falhas do analista, ndo podendo ser caracterizada como a transferéncia negativa da andlise dos neuréticos, na maior parte das vezes associada por Freud as resisténcias a andlise. Dessa maneira, a concepcao de regressao a dependéncia deve ser entendida como a possibilidade de 0 analisando vivenciar, no seu encontro com o psicanalista hospitaleiro, experiéncias afetivas com- partilhadas que despertem ou promovam impulsos de vitalidade, li- vrando-o da compulsao a reagir defensivamente e da submissdo aos imperativos ditados pela tirania do outro.** Porém, esse plano de afe- taco é habitado nao apenas por uma dimensao primeva do amor in- condicional maternal, mas também pela possibilidade de expressao do édio, condicio para a constituigao da sua singularidade e para 0 amor do concernimento. Para Winnicott (assim como para Ferenczi, como vimos), a autenticidade do encontro clinico € determinada pela qualidade da presenga sensivel do psicanalista, sendo que o analisan- 100 CLINICA E METAPSICOLOGIA do nao poder confiar em alguém incapaz de discernir e admitir a sua propria ambivaléncia e o édio na contratransferéncia. “Quando o paciente esta a procura de um édio legitimo, objetivo, ele deve ter a possibilidade de encontra-lo, caso contrario nao se sentird capaz de alcangar 0 amor objetivo”, escreve Winnicott.” Em seu processo de realizacao e gradual aquisicao de independén- cia, o bebé precisa “destruir” seus objetos subjetivos, de modo a colocé- los fora do seu controle onipotente, adquirindo, assim, a capacidade de “uso” dos objetos no espaco da realidade compartilhada. Porém, a destruigéo do objeto subjetivo por parte do bebé tem como condi- goes necessarias a capacidade de sobrevivéncia da mée, sem retalia~ cdo. A negacao do édio por parte do adulto denota uma inibigao do seu proprio gesto espontaneo, quando no a instauracdo de um ma- soquismo empobrecedor do seu viver criativo, o que compromete sua capacidade de sobrevivéncia aos ataques da crianga. Nesse sentido, Winnicott afirma categoricamente que o “sentimentalismo” nao tem nenhuma utilidade para os pais, j4 que consiste em uma recusa afetiva, sendo prejudicial para a crianca, que se encontra incapaz, em um ambiente sentimental, de admitir a intensidade do seu ddio. Do mes- mo modo, 0 analisando s6 pode tolerar 0 dio pelo analista se a sua sensibilidade indicar que o analista suporta odié-lo e sobrevive aos seus ataques sem a necessidade de retaliagao.” Assim, no capitulo de O brincar e a realidade intitulado “O uso de um objeto e relacionamento através de identificagdes”,° encon- tra-se a idéia de que, no curso do processo analitico, o psicanalista comparece tanto como presenga sensivel quanto como alteridade radical, a experiéncia transferencial configurando um espaco de compartilhamento afetivo no qual a criacao é possibilitada, Primei- ramente, deve-se proporcionar ao analisando traumatizado a regres- so a dependéncia e a relacdo de objeto, esta iiltima equivalente 3 concepgao tradicional de relacao transferencial — projecio dos afe- tos do analisando atualizados sobre a figura do analista. Porém, com 101 PRESENGA SENSIVEL o ganho de independéncia do analisando ea percepgao de que o psi canalista se encontra fora da area do seu controle onipotente, ha uma passagem da capacidade de relacionar-se com 0 objeto para a capaci- dade de uso de wm objeto com 0 qual se pode brincar e, brincando, entidos compartilhados inéditos para a experiéncia de si ¢ ' “9 objeto, se é que produzi do campo de objetalidade. Lemos em Winnicott: tem que ser usado, deve ser necessariamente real, no sentido de fazer parte da realidade compartilhada, ¢ nao um feixe de projegdes.” A experidncia da transferéncia em Winnicott configura, sem dii- deixar vida, um arriscado desafio, no qual é preciso poder odiar ¢ odiat/destruir, sobrevivendo a esse movimento emancipatério do ana- lisando, sem abandono nem retaliagao. O desafio consiste em poder desapegar-se dos sentidos de si jé constitufdos para habitar junto com oanalisando a “terceira érea da experimentagao”, que faz do encon- tro afetivo criagio. Nao se trata, portanto, como se poderia supor, somente de ocupar, na relagio transferencial, um lugar especifico se- indo — no caso, yadas do anal gundo as imagos inconscientes atual de assumir privilegiadamente uma postura materna, em oposi¢ao ao que seria uma suposta postura paterna freudiana —, mas de poder fazer contato com a crianga que habita também o psicanalista, pro- movendo 0 encontro hiidico ¢ criativo inerente a concepgao da anilise através do brincar.? “Dessa maneira”, descreve Winnicott,™ “cria-se um mundo de realidade compartilhada que 0 sujeito pode usar ¢ que pode retroalimentar a substancia diferente-de-mim dentro do sujeito”. F justamente 0 encontro com a alteridade que esté no horizonte do enigma que cerca os destinos da transferéncia no final da andlise. De fato, na concepgao winnicottiana, a dupla dependéncia do par mie-bebé nao tem como destino uma suposta independéncia abso- luta — que poderia sugerir uma cultura de narcisos suficientes ¢ iso- lados para os quais 0 outro nao é mais objeto de concernimento. Ao contrario, o que se coloca em jogo na aventura psicanalitica € a dis- solucdo da ambicao de um ego auténomo e bem-acabado — o mito 102 CLINICA E METAPSICOLOGIA individual do neurético — para dar lugar ao self capaz da experiéncia da nao-integragao criadora e da capacidade para ficar s6 na presenca do outro, condigéo para a amizade ¢ matriz da prépria experiéncia cultural.55 H4, na concepgao winnicottiana da constituigao subjetiva, a for- mulacio de um nticleo do self ou self central — considerado o self verdadeiro — que é essencialmente secreto e incomunicével, ao qual 0 sujeito recorre permanentemente, sobretudo nos estados de relaxa- mento e de nao-integragao, de modo a preservar a autenticidade do seu gesto no curso do 4rduo trabalho imposto pelo contato com a alteridade.** O transito com o nicleo do self é facilitado, no desen- volvimento psiquico do bebé, pela aquisigéo da capacidade de ficar s6, promovida pela presenga de um outro acolhedor e nao intrusivo. O retraimento defensivo ou a constituigado de graus extremados de falso self revelam, por seu turno, tentativas de proteger 0 niicleo do self, evitando a comunicagao com o que é ndo-eu. Na experiéncia transferencial sio muito valorizados, portanto, os momentos silencio- sos de comunicagao indireta (ndo-verbal) ou mesmo de nio-comuni- cago nos quais 0 analisando, podendo livrar-se do retraimento, tem a oportunidade de estar em contato com seu verdadeiro self na pre- senga sensfvel do analista.‘” Curioso paradoxo: assim como “nao € possivel a um bebé existir sozinho”,** nao é possivel a um analisando criar no isolamento de- fensivo que constitui a fonte do seu sofrimento; entretanto, 0 per- curso analitico indica que, no horizonte do encontro afetivo que ocorre entre analista e analisando est a possibilidade de experimen- tagio da soliddo compartilhada, fonte do gesto criador. E a aquisigao da capacidade para estar s6 0 que permitiré ao analisando manter-se vivo, bem e desperto, objetivos do processo psicanalitico.” PRESENCA SENSIVEL Notas 1, $. Freud, “Sobre o inicio do tratamento” (1913). 2. Cf. M. Plone E. Rondinexo, Diciondrio de psicandlise. 3. 8. Freud, “A psicoterapia da histeria” (1893-1895). 4. §. Freud, “A histéria do movimento psicanalitico” (1914). versio oficiosa desse episédio nos conta que Breuer teria fugido dessa atri- buigio de paternidade agendando uma segunda lua-de-mel com a esposa em Veneza, Nessa viagem teria concebido uma filha. (cf. J. Forrester, Seducdes da psicanalise: Freud, Lacan, Derrida). 6, S, Freud (1893-1895 [1980)), op. cit. 7. Idem, Freud, “A dinimica da transferéncia” (1912). 9. Idem. S. Freud, “Observasdes sobre © amor transferencial” (1915 [1914]. 11. Mem, p. 214. S. Freud, “As perspectivas S. Freud. “Recordar, rep ” (1914). . S. Freud, “Além do principio do prazer” (1920). |. §. Ferenczi, Didrio clinico (1932), p. 31. . §. Freud, “Linhas de progresso na terapia psicanalitica” (1919 [1918] 17. S, Ferenczi, “Dificuldades técnicas de uma anilise de histérias” (1919). 18. S. Ferenczi, “Contra-indicagdes da técnica ativa” (1926). S. Fread, “Historia de uma neurose infantil” (1918 [1914]. 20. S, Freud, “Linhas de progresso na terapia psicanalitica” (1919 (1918). 2A. S. Ferenczi, “Elasticidade da técnica” (1928). S. Freud, “Psicanilise silvestre” (1910). . GW. Pigman, “Freud e a historia da empatia”. S. Ferenczi, “Elasticidade da técnica” (1928). - Ou “joio-bobo”, o boneco que oscila de um lado para outro ao ser empurra- do, mas que, pelo fato de nio perder 0 eixo, nio tomba definitivamente, retornando sempre A posigio vertical. Convém notar, mesmo sem desenvolver a questio no espaso deste ensaio, que essas contribuigdes sio herdeitas de uma polémica entre Freud ¢ Ferenczi acer- ca da transferéncia negativa que data do periodo em que Ferenczi foi analisado por Freud, nos anos de 1914 ¢ 1916, Em uma carta tardia, Ferenczi acusara Freud de nio ter dado a devida atensio 3 sua transferéncia negativa, ao que Freud respondeu em “Anilise terminivel ¢ interminivel” (1937/1980), argumentan- do que na época da anslise nio havia sinais dessa transferéncia negativa ... (cf. D. Kupermann, Ousar rit. Humor, criasdo e psicandlise, cap. 5). 108 45. 46. CLINICA E METAPSICOLOGIA S. Ferenczi, “Principio de relaxamento ¢ neocatarse” (1930). S. Ferenczi, “Confusio de linguas entre os adultos e a crianga” (1933). . S. Freud, “Frau Emmy von N.” (1893-1895a). |. S. Ferenczi, “Princij . §. Ferenczi . Tendéncia presente em sua obra, ainda que em estado latente, desde o pionei- jo. de relaxamento e neocatarse” (1930). “Confusio de linguas entre 0s adultos ¢ a crianga” (1933). ro “Transferéncia e introjecdo” (S. Ferenczi, “Teansparéncia e introjecio” (1909). . S. Ferenczi, “Elasticidade da técnica” (19284). . Problemitica herdada por Jacques Lacan (1968/2003), que a tornou o princi pal desafio ético da sua Escola, nos anos 1960: responder acerca dos destinos da transferéncia no final da anélise dos proprios psicanalistas — tarefa que constituiu o procedimento nomeado como “passe”. S. Ferenczi, “Didrio clinico” (1932) . L.C. Figueiredo, “Presenga, implicagao e reserva”. D.W. Winnicott, “Aspectos clinicos ¢ metapsicoldgicos da regressio no contex- to psicanalitico” (1954). . §. Ferenczi, “A adaptagio da familia 3 crianga” (1928). DW. D.W. Winnicott, “Objetos transicionais e fendmetos tran: D.W. Winnicort, “Psicoses ¢ cuidados maternos” (1952). S. Ferenczi, “Confusao de linguas entre os adultos e a crianga” (1933). D.W. Winnicott, “Aspectos clinicos e metapsicolégicos da regressio no contex- to psicanalitico” (1954), p. 384. D.W. Winnicott, “Aspectos clinicos ¢ metapsicolégicos da regress no contexto psicanalitico” (1954); idem, “Formas clinicas da transferéncia” (19: D.W. Winnicott, “Formas cli cia” (1955-56). No belo ensaio “O anjo necessirio: a idealizagio como um desenvolvimento”, Anne Alvarez (Companhia viva) ilustra, por meio do relato de um caso clinico, © modo pelo qual a regressio 4 dependéncia ¢ a experiéncia da ilusio de oni- poténcia na transferéncia pode favorecer a constituigio das instancias narcisicas ideais em um analisando traumatizado. D.W. Winnicott, “O ddio na contratransferéncia” (1947). Ibidem, p. 287. Ao longo da histéria da psicanilise encontramos imimeros exemplos nos quais essa situagdo deixa de se configurar, especialmente no que concerne 20 par transferéncia—contratransferéncia nas anslises diditicas, instirucionalizadas ou nio (cf. D. Kupermann, Transferéncias cruzadas. Uma historia da psicandlise e de suas instituigdes). D.W. Winnicott, O brincar e a realidade (1971). nicort, “Desenvolvimento emocional primitivo” (1945). icionais” (1951). icas da transfer 105 PRESENGA SENSIVEL 51. Ibidem, p. 123. 52. D.W. Winnicott, “Objetos transicionais ¢ fenémenos transicionais” (1951). 53. Sandor Ferenczi, em seu Didrio clinico, j4 havia indicado que em muitas oca- sides se tem a impressio de que o espaco analitico é habitado por duas criangas, —o analisando ¢ seu analista — que compartilham o mesmo estado de desam- stabelecem vinculos de amizade. Sua indagagio: “Deve paro, ligam-se entre s aanélise acabar sob o signo de tal amizade?” (S. Ferenczi, Didrio clinico [1932], p. 91). 54. D.W. Winnicott, “O brincar e a realidade” (1971), p. 131. 55. D.W. Winnicott, “A capacidade para estar s6” (1958). 56. D.W. Winnicott, “Comunicagio e falta de comunicagao levando ao estudo de certos opostos” (1963). 57. Naclinica com adolescentes, em especial, 0 analista € convocado em sua sensi- bilidade para a necessidade de nio-comunicagio ou de comunicagio indireta (D.W. Winnicott, “Comunicagao e falta de comunicagao levando ao estudo de certos opostos” 1963). Sobre a solidio positiva, ver também Chaim Samuel Katz (O coracio distante. Ensaio sobre a solidio positiva). 58, D.W, Winnicott, “Desenvolvi 59. Cf. D.W. Winnicott, “Os objetivos do tratamento psicana ento emocional primitivo” (1945). Bibliografia ALVAREZ, A. Companbia viva. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994. FERENCZI, S. “Transferéncia e introjegio”. In Psicandlise I. S40 Paulo: Martins Fontes, 1991 [1909], —. “Dificuldades técnicas de uma anslise de histeria”. In Psicandlise III. 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