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Superior Tribunal de Justiça

HABEAS CORPUS Nº 598.051 - SP (2020/0176244-9)

RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ


IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
ADVOGADOS : FERNANDA CORRÊA DA COSTA BENJAMIM -
SP265935
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
PACIENTE : RODRIGO DE OLIVEIRA FERNANDES
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO
PAULO
EMENTA

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE.


DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À
INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES
CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA.
INGRESSO NO DOMICÍLIO. EXIGÊNCIA DE JUSTA CAUSA
(FUNDADA SUSPEITA). CONSENTIMENTO DO MORADOR.
REQUISITOS DE VALIDADE. ÔNUS ESTATAL DE
COMPROVAR A VOLUNTARIEDADE DO CONSENTIMENTO.
NECESSIDADE DE DOCUMENTAÇÃO E REGISTRO
AUDIOVISUAL DA DILIGÊNCIA. NULIDADE DAS PROVAS
OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE
ENVENENADA. PROVA NULA. ABSOLVIÇÃO. ORDEM
CONCEDIDA.
1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito
fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que "a casa é
asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial".
1.1 A inviolabilidade de sua morada é uma das expressões do direito
à intimidade do indivíduo, o qual, sozinho ou na companhia de seu
grupo familiar, espera ter o seu espaço íntimo preservado contra
devassas indiscriminadas e arbitrárias, perpetradas sem os cuidados e
os limites que a excepcionalidade da ressalva a tal franquia
constitucional exige.
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1.2. O direito à inviolabilidade de domicílio, dada a sua magnitude e
seu relevo, é salvaguardado em diversos catálogos constitucionais de
direitos e garantias fundamentais. Célebre, a propósito, a exortação
de Conde Chatham, ao dizer que: “O homem mais pobre pode em
sua cabana desafiar todas as forças da Coroa. Pode ser frágil, seu
telhado pode tremer, o vento pode soprar por ele, a tempestade pode
entrar, a chuva pode entrar, mas o Rei da Inglaterra não pode
entrar!" ("The poorest man may in his cottage bid defiance to all
the forces of the Crown. It may be frail, its roof may shake, the
wind may blow through it, the storm may enter, the rain may enter,
but the King of England cannot enter!" William Pitt, Earl of
Chatham. Speech, March 1763, in Lord Brougham Historical
Sketches of Statesmen in the Time of George III First Series (1845)
v. 1).
2. O ingresso regular em domicílio alheio, na linha de inúmeros
precedentes dos Tribunais Superiores, depende, para sua validade e
regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que
sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em
questão. É dizer, apenas quando o contexto fático anterior à invasão
permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da
residência – cuja urgência em sua cessação demande ação imediata –
é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do
domicílio.
2.1. Somente o flagrante delito que traduza verdadeira urgência
legitima o ingresso em domicílio alheio, como se infere da própria Lei
de Drogas (L. 11.343/2006, art. 53, II) e da Lei 12.850/2013 (art.
8º), que autorizam o retardamento da atuação policial na investigação
dos crimes de tráfico de entorpecentes, a denotar que nem sempre o
caráter permanente do crime impõe sua interrupção imediata a fim de
proteger bem jurídico e evitar danos; é dizer, mesmo diante de
situação de flagrância delitiva, a maior segurança e a melhor
instrumentalização da investigação – e, no que interessa a este caso, a
proteção do direito à inviolabilidade do domicílio – justificam o
retardo da cessação da prática delitiva.
2.2. A autorização judicial para a busca domiciliar, mediante
mandado, é o caminho mais acertado a tomar, de sorte a se evitarem
situações que possam, a depender das circunstâncias, comprometer a
licitude da prova e, por sua vez, ensejar possível responsabilização
administrativa, civil e penal do agente da segurança pública autor da
ilegalidade, além, é claro, da anulação – amiúde irreversível – de todo
o processo, em prejuízo da sociedade.
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3. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema
280), a tese de que: “A entrada forçada em domicílio sem mandado
judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em
fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori” (RE n.
603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). Em
conclusão a seu voto, o relator salientou que a interpretação
jurisprudencial sobre o tema precisa evoluir, de sorte a trazer mais
segurança tanto para os indivíduos sujeitos a tal medida invasiva
quanto para os policiais, que deixariam de assumir o risco de cometer
crime de invasão de domicílio ou de abuso de autoridade,
principalmente quando a diligência não tiver alcançado o resultado
esperado.
4. As circunstâncias que antecederem a violação do domicílio devem
evidenciar, de modo satisfatório e objetivo, as fundadas razões que
justifiquem tal diligência e a eventual prisão em flagrante do suspeito,
as quais, portanto, não podem derivar de simples desconfiança
policial, apoiada, v. g., em mera atitude “suspeita”, ou na fuga do
indivíduo em direção a sua casa diante de uma ronda ostensiva,
comportamento que pode ser atribuído a vários motivos, não,
necessariamente, o de estar o abordado portando ou comercializando
substância entorpecente.
5. Se, por um lado, práticas ilícitas graves autorizam eventualmente o
sacrifício de direitos fundamentais, por outro, a coletividade,
sobretudo a integrada por segmentos das camadas sociais mais
precárias economicamente, excluídas do usufruto pleno de sua
cidadania, também precisa sentir-se segura e ver preservados seus
mínimos direitos e garantias constitucionais, em especial o de não ter
a residência invadida e devassada, a qualquer hora do dia ou da noite,
por agentes do Estado, sem as cautelas devidas e sob a única
justificativa, não amparada em elementos concretos de convicção, de
que o local supostamente seria, por exemplo, um ponto de tráfico de
drogas, ou de que o suspeito do tráfico ali se homiziou.
5.1. Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o
policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos
marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais
suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da
pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc.
5.2. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos
seguros a legitimar a ação dos agentes públicos – diante da
discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas
criminosas – pode fragilizar e tornar írrito o direito à intimidade e à
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inviolabilidade domiciliar, a qual protege não apenas o suspeito, mas
todos os moradores do local.
5.3. Tal compreensão não se traduz, obviamente, em cercear a
necessária ação das forças de segurança pública no combate ao
tráfico de entorpecentes, muito menos em transformar o domicílio
em salvaguarda de criminosos ou em espaço de criminalidade. Há de
se convir, no entanto, que só justifica o ingresso policial no domicílio
alheio a situação de ocorrência de um crime cuja urgência na sua
cessação desautorize o aguardo do momento adequado para,
mediante mandado judicial – meio ordinário e seguro para o
afastamento do direito à inviolabilidade da morada – legitimar a
entrada em residência ou local de abrigo.
6. Já no que toca ao consentimento do morador para o ingresso em
sua residência – uma das hipóteses autorizadas pela Constituição da
República para o afastamento da inviolabilidade do domicílio – outros
países trilharam caminho judicial mais assertivo, ainda que, como
aqui, não haja normatização detalhada nas respectivas Constituições
e leis, geralmente limitadas a anunciar o direito à inviolabilidade da
intimidade domiciliar e as possíveis autorizações para o ingresso
alheio.
6.1. Nos Estados Unidos, por exemplo, a par da necessidade do
exame da causa provável para a entrada de policiais em domicílio de
suspeitos de crimes, não pode haver dúvidas sobre a voluntariedade
da autorização do morador (in dubio libertas). O consentimento
“deve ser inequívoco, específico e conscientemente dado, não
contaminado por qualquer truculência ou coerção (“consent, to be
valid, 'must be unequivocal, specific and intelligently given,
uncontaminated by any duress or coercion'”). (United States v
McCaleb, 552 F2d 717, 721 (6th Cir 1977), citando Simmons v
Bomar, 349 F2d 365, 366 (6th Cir 1965). Além disso, ao Estado
cabe o ônus de provar que o consentimento foi, de fato, livre e
voluntariamente dado, isento de qualquer forma, direta ou indireta,
de coação, o que é aferível pelo teste da totalidade das circunstâncias
(totality of circumstances).
6.2. No direito espanhol, por sua vez, o Tribunal Supremo destaca,
entre outros, os seguintes requisitos para o consentimento do
morador: a) deve ser prestado por pessoa capaz, maior de idade e no
exercício de seus direitos; b) deve ser consciente e livre; c) deve ser
documentado; d) deve ser expresso, não servindo o silêncio como
consentimento tácito.
6.3. Outrossim, a documentação comprobatória do assentimento do
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morador é exigida, na França, de modo expresso e mediante
declaração escrita à mão do morador, conforme norma positivada no
art. 76 do Código de Processo Penal; nos EUA, também é usual a
necessidade de assinatura de um formulário pela pessoa que
consentiu com o ingresso em seu domicílio (North Carolina v. Butler
(1979) 441 U.S. 369, 373; People v. Ramirez (1997) 59 Cal.App.4th
1548, 1558; U.S. v. Castillo (9a Cir. 1989) 866 F.2d 1071, 1082),
declaração que, todavia, será desconsiderada se as circunstâncias
indicarem ter sido obtida de forma coercitiva ou houver dúvidas
sobre a voluntariedade do consentimento (Haley v. Ohio (1947) 332
U.S. 596, 601; People v. Andersen (1980) 101 Cal.App.3d 563, 579.
6.4. Se para simplesmente algemar uma pessoa, já presa –
ostentando, portanto, alguma verossimilhança do fato delituoso que
deu origem a sua detenção –, exige-se a indicação, por escrito, da
justificativa para o uso de tal medida acautelatória, seria então, no
tocante ao ingresso domiciliar, “necessário que nós estabeleçamos,
desde logo, como fizemos na Súmula 11, alguma formalidade para
que essa razão excepcional seja justificada por escrito, sob pena das
sanções cabíveis” (voto do Min. Ricardo Lewandowski, no RE n.
603.616/TO).
6.5. Tal providência, aliás, já é determinada pelo art. 245, § 7º, do
Código de Processo Penal – analogicamente aplicável para busca e
apreensão também sem mandado judicial – ao dispor que, “[f]inda a
diligência, os executores lavrarão auto circunstanciado, assinando-o
com duas testemunhas presenciais, sem prejuízo do disposto no §
4º”.
7. São frequentes e notórias as notícias de abusos cometidos em
operações e diligências policiais, quer em abordagens individuais,
quer em intervenções realizadas em comunidades dos grandes
centros urbanos. É, portanto, ingenuidade, academicismo e
desconexão com a realidade conferir, em tais situações, valor
absoluto ao depoimento daqueles que são, precisamente, os
apontados responsáveis pelos atos abusivos. E, em um país
conhecido por suas práticas autoritárias – não apenas históricas, mas
atuais –, a aceitação desse comportamento compromete a necessária
aquisição de uma cultura democrática de respeito aos direitos
fundamentais de todos, independentemente de posição social,
condição financeira, profissão, local da moradia, cor da pele ou raça.
7.1. Ante a ausência de normatização que oriente e regule o ingresso
em domicílio alheio, nas hipóteses excepcionais previstas no Texto
Maior, há de se aceitar com muita reserva a usual afirmação – como
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ocorreu no caso ora em julgamento – de que o morador anuiu
livremente ao ingresso dos policiais para a busca domiciliar, máxime
quando a diligência não é acompanhada de documentação que a
imunize contra suspeitas e dúvidas sobre sua legalidade.
7.2. Por isso, avulta de importância que, além da documentação
escrita da diligência policial (relatório circunstanciado), seja ela
totalmente registrada em vídeo e áudio, de maneira a não deixar
dúvidas quanto à legalidade da ação estatal como um todo e,
particularmente, quanto ao livre consentimento do morador para o
ingresso domiciliar. Semelhante providência resultará na diminuição
da criminalidade em geral – pela maior eficácia probatória, bem como
pela intimidação a abusos, de um lado, e falsas acusações contra
policiais, por outro – e permitirá avaliar se houve, efetivamente, justa
causa para o ingresso e, quando indicado ter havido consentimento
do morador, se foi ele livremente prestado.
8. Ao Poder Judiciário, ante a lacuna da lei para melhor
regulamentação do tema, cabe responder, na moldura do Direito, às
situações que, trazidas por provocação do interessado, se mostrem
violadoras de direitos fundamentais do indivíduo. E, especialmente,
ao Superior Tribunal de Justiça compete, na sua função judicante,
buscar a melhor interpretação possível da lei federal, de sorte a não
apenas responder ao pedido da parte, mas também formar
precedentes que orientem o julgamento de casos futuros similares.
8.1. As decisões do Poder Judiciário – mormente dos Tribunais
incumbidos de interpretar, em última instância, as leis federais e a
Constituição – servem para dar resposta ao pedido no caso concreto
e também para “enriquecer o estoque das regras jurídicas” (Melvin
Eisenberg. The nature of the common law. Cambridge: Harvard
University Press, 1998. p. 4) e assegurar, no plano concreto, a
realização dos valores, princípios e objetivos definidos na
Constituição de cada país. Para tanto, não podem, em nome da
maior eficiência punitiva, tolerar práticas que se divorciam do modelo
civilizatório que deve orientar a construção de uma sociedade mais
igualitária, fraterna, pluralista e sem preconceitos.
8.2. Como assentado em conhecido debate na Suprema Corte dos
EUA sobre a admissibilidade das provas ilícitas (Weeks v. United
States, 232 U.S. 383,1914), se os tribunais permitem o uso de
provas obtidas em buscas ilegais, tal procedimento representa uma
afirmação judicial de manifesta negligência, se não um aberto desafio,
às proibições da Constituição, direcionadas à proteção das pessoas
contra esse tipo de ação não autorizada (“such proceeding would be
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to affirm by judicial decision a manifest neglect, if not an open
defiance, of the prohibitions of the Constitution, intended for the
protection of the people against such unauthorized action”).
8.3. A situação versada neste e em inúmeros outros processos que
aportam a esta Corte Superior diz respeito à própria noção de
civilidade e ao significado concreto do que se entende por Estado
Democrático de Direito, que não pode coonestar, para sua legítima
existência, práticas abusivas contra parcelas da população que, por
sua topografia e status social e econômico, costumam ficar mais
suscetíveis ao braço ostensivo e armado das forças de segurança.
9. Na espécie, não havia elementos objetivos, seguros e racionais que
justificassem a invasão de domicílio do suspeito, porquanto a simples
avaliação subjetiva dos policiais era insuficiente para conduzir a
diligência de ingresso na residência, visto que não foi encontrado
nenhum entorpecente na busca pessoa realizada em via pública.
10. A seu turno, as regras de experiência e o senso comum, somadas
às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à
afirmação dos agentes castrenses de que o paciente teria autorizado,
livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio,
franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a
formação de prova incriminatória em seu desfavor.
11. Assim, como decorrência da proibição das provas ilícitas por
derivação (art. 5º, LVI, da Constituição da República), é nula a prova
derivada de conduta ilícita – no caso, a apreensão, após invasão
desautorizada da residência do paciente, de 109 g de maconha –, pois
evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, entre a
invasão de domicílio (permeada de ilicitude) e a apreensão de drogas.
12. Habeas Corpus concedido, com a anulação da prova
decorrente do ingresso desautorizado no domicílio e consequente
absolvição do paciente, dando-se ciência do inteiro teor do
acórdão aos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e aos
Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem como às
Defensorias Públicas dos Estados e da União, ao Procurador-Geral
da República e aos Procuradores-Gerais dos Estados, aos Conselhos
Nacionais da Justiça e do Ministério Público, à Ordem dos
Advogados do Brasil, ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, ao
Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos Governadores dos
Estados e do Distrito Federal, encarecendo a estes últimos que deem
conhecimento do teor do julgado a todos os órgãos e agentes da
segurança pública federal, estadual e distrital.
13. Estabelece-se o prazo de um ano para permitir o aparelhamento
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das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a
adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a, sem prejuízo
do exame singular de casos futuros, evitar situações de ilicitude que
possam, entre outros efeitos, implicar responsabilidade
administrativa, civil e/ou penal do agente estatal.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Sexta Turma, por unanimidade, conceder o habeas
corpus, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Antonio
Saldanha Palheiro, Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Nefi Cordeiro.
Dr. RAFAEL MUNERATTI, pela parte PACIENTE: RODRIGO
DE OLIVEIRA FERNANDES
Exma. Sra. Dra. RAQUEL ELIAS FERREIRA DODGE,
SUBPROCURADORA-GERAL DA REPÚBLICA, pelo MPF

Brasília, 02 de março de 2021

Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ

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HABEAS CORPUS Nº 598.051 - SP (2020/0176244-9)
RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ
IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
ADVOGADOS : FERNANDA CORRÊA DA COSTA BENJAMIM -
SP265935
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO
PAULO
PACIENTE : RODRIGO DE OLIVEIRA FERNANDES
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO
PAULO
RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ:

RODRIGO DE OLIVEIRA FERNANDES alega ser vítima de


coação ilegal em decorrência de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, que negou provimento à Apelação Criminal n.
0020919-64.2017.8.26.0050.

Consta dos autos que o paciente foi condenado à pena de 1


ano e 8 meses de reclusão, em regime inicial aberto, mais multa, com a
substituição da reprimenda por duas restritivas de direitos, pela prática do crime
previsto no art. 33, caput e § 4º, da Lei n. 11.343/2006. Isso porque tinha em
depósito e guardava, para fins de comércio, 72 invólucros plásticos de
maconha, pesando, ao todo, 109,9 gramas.

A defesa aduz, em síntese, a ilicitude das provas que


embasaram a condenação do réu, porquanto obtidas por meio de invasão
desautorizada do seu domicílio.

Para tanto, argumenta: "pontuaram os policiais militares que o


paciente teria franqueado voluntariamente o ingresso em sua residência.
Porém, objetivamente as regras de experiência comum indicam que o paciente
não teve outra opção a não ser autorizar o ingresso dos policiais em sua
residência, o que afasta a voluntariedade da permissão de acesso ao local" (fl.
5).

Pondera que "não houve qualquer decisão judicial envolvendo


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mandado de busca e de apreensão na residência do paciente" (fl. 6) e defende,
em acréscimo, que "[n]ão havia qualquer suspeita de que o crime de tráfico de
drogas estaria sendo praticado no interior da residência alvo de buscas pelos
policiais militares" (fl. 6).

Subsidiariamente, afirma ser devida a desclassificação da


conduta imputada ao paciente para o delito descrito no art. 28 da Lei n.
11.343/2006, com base, essencialmente, nos seguintes argumentos: a) a
quantidade de substâncias apreendidas não é incompatível com o consumo
pessoal; b) o réu não foi visto vendendo ou entregando drogas para terceiros;
c) o próprio Ministério Público se manifestou para que a conduta fosse
desclassificada.

Requer a concessão da ordem, para que o paciente seja


absolvido. Caso assim não se entenda, pugna pela desclassificação da conduta
a ele imputada para o crime previsto no art. 28 da Lei de Drogas.

Não houve pedido de liminar e, depois de as informações


haverem sido prestadas, o Ministério Público Federal manifestou-se pelo não
conhecimento do habeas corpus.

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HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE.


DOMICÍLIO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À
INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL. EXCEÇÕES
CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA.
INGRESSO NO DOMICÍLIO. EXIGÊNCIA DE JUSTA CAUSA
(FUNDADA SUSPEITA). CONSENTIMENTO DO MORADOR.
REQUISITOS DE VALIDADE. ÔNUS ESTATAL DE
COMPROVAR A VOLUNTARIEDADE DO CONSENTIMENTO.
NECESSIDADE DE DOCUMENTAÇÃO E REGISTRO
AUDIOVISUAL DA DILIGÊNCIA. NULIDADE DAS PROVAS
OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE
ENVENENADA. PROVA NULA. ABSOLVIÇÃO. ORDEM
CONCEDIDA.
1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito
fundamental à inviolabilidade do domicílio, ao dispor que "a casa é
asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem
consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial".
1.1 A inviolabilidade de sua morada é uma das expressões do direito
à intimidade do indivíduo, o qual, sozinho ou na companhia de seu
grupo familiar, espera ter o seu espaço íntimo preservado contra
devassas indiscriminadas e arbitrárias, perpetradas sem os cuidados e
os limites que a excepcionalidade da ressalva a tal franquia
constitucional exige.
1.2. O direito à inviolabilidade de domicílio, dada a sua magnitude e
seu relevo, é salvaguardado em diversos catálogos constitucionais de
direitos e garantias fundamentais. Célebre, a propósito, a exortação
de Conde Chatham, ao dizer que: “O homem mais pobre pode em
sua cabana desafiar todas as forças da Coroa. Pode ser frágil, seu
telhado pode tremer, o vento pode soprar por ele, a tempestade pode
entrar, a chuva pode entrar, mas o Rei da Inglaterra não pode
entrar!" ("The poorest man may in his cottage bid defiance to all
the forces of the Crown. It may be frail, its roof may shake, the
wind may blow through it, the storm may enter, the rain may enter,
but the King of England cannot enter!" William Pitt, Earl of
Chatham. Speech, March 1763, in Lord Brougham Historical
Sketches of Statesmen in the Time of George III First Series (1845)
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v. 1).
2. O ingresso regular em domicílio alheio, na linha de inúmeros
precedentes dos Tribunais Superiores, depende, para sua validade e
regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que
sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em
questão. É dizer, apenas quando o contexto fático anterior à invasão
permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da
residência – cuja urgência em sua cessação demande ação imediata –
é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do
domicílio.
2.1. Somente o flagrante delito que traduza verdadeira urgência
legitima o ingresso em domicílio alheio, como se infere da própria Lei
de Drogas (L. 11.343/2006, art. 53, II) e da Lei 12.850/2013 (art.
8º), que autorizam o retardamento da atuação policial na investigação
dos crimes de tráfico de entorpecentes, a denotar que nem sempre o
caráter permanente do crime impõe sua interrupção imediata a fim de
proteger bem jurídico e evitar danos; é dizer, mesmo diante de
situação de flagrância delitiva, a maior segurança e a melhor
instrumentalização da investigação – e, no que interessa a este caso, a
proteção do direito à inviolabilidade do domicílio – justificam o
retardo da cessação da prática delitiva.
2.2. A autorização judicial para a busca domiciliar, mediante
mandado, é o caminho mais acertado a tomar, de sorte a se evitarem
situações que possam, a depender das circunstâncias, comprometer a
licitude da prova e, por sua vez, ensejar possível responsabilização
administrativa, civil e penal do agente da segurança pública autor da
ilegalidade, além, é claro, da anulação – amiúde irreversível – de todo
o processo, em prejuízo da sociedade.
3. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral (Tema
280), a tese de que: “A entrada forçada em domicílio sem mandado
judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em
fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori” (RE n.
603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010). Em
conclusão a seu voto, o relator salientou que a interpretação
jurisprudencial sobre o tema precisa evoluir, de sorte a trazer mais
segurança tanto para os indivíduos sujeitos a tal medida invasiva
quanto para os policiais, que deixariam de assumir o risco de cometer
crime de invasão de domicílio ou de abuso de autoridade,
principalmente quando a diligência não tiver alcançado o resultado
esperado.
4. As circunstâncias que antecederem a violação do domicílio devem
Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 12 de 6
Superior Tribunal de Justiça
evidenciar, de modo satisfatório e objetivo, as fundadas razões que
justifiquem tal diligência e a eventual prisão em flagrante do suspeito,
as quais, portanto, não podem derivar de simples desconfiança
policial, apoiada, v. g., em mera atitude “suspeita”, ou na fuga do
indivíduo em direção a sua casa diante de uma ronda ostensiva,
comportamento que pode ser atribuído a vários motivos, não,
necessariamente, o de estar o abordado portando ou comercializando
substância entorpecente.
5. Se, por um lado, práticas ilícitas graves autorizam eventualmente o
sacrifício de direitos fundamentais, por outro, a coletividade,
sobretudo a integrada por segmentos das camadas sociais mais
precárias economicamente, excluídas do usufruto pleno de sua
cidadania, também precisa sentir-se segura e ver preservados seus
mínimos direitos e garantias constitucionais, em especial o de não ter
a residência invadida e devassada, a qualquer hora do dia ou da noite,
por agentes do Estado, sem as cautelas devidas e sob a única
justificativa, não amparada em elementos concretos de convicção, de
que o local supostamente seria, por exemplo, um ponto de tráfico de
drogas, ou de que o suspeito do tráfico ali se homiziou.
5.1. Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o
policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos
marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais
suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da
pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc.
5.2. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos
seguros a legitimar a ação dos agentes públicos – diante da
discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas
criminosas – pode fragilizar e tornar írrito o direito à intimidade e à
inviolabilidade domiciliar, a qual protege não apenas o suspeito, mas
todos os moradores do local.
5.3. Tal compreensão não se traduz, obviamente, em cercear a
necessária ação das forças de segurança pública no combate ao
tráfico de entorpecentes, muito menos em transformar o domicílio
em salvaguarda de criminosos ou em espaço de criminalidade. Há de
se convir, no entanto, que só justifica o ingresso policial no domicílio
alheio a situação de ocorrência de um crime cuja urgência na sua
cessação desautorize o aguardo do momento adequado para,
mediante mandado judicial – meio ordinário e seguro para o
afastamento do direito à inviolabilidade da morada – legitimar a
entrada em residência ou local de abrigo.
6. Já no que toca ao consentimento do morador para o ingresso em
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Superior Tribunal de Justiça
sua residência – uma das hipóteses autorizadas pela Constituição da
República para o afastamento da inviolabilidade do domicílio – outros
países trilharam caminho judicial mais assertivo, ainda que, como
aqui, não haja normatização detalhada nas respectivas Constituições
e leis, geralmente limitadas a anunciar o direito à inviolabilidade da
intimidade domiciliar e as possíveis autorizações para o ingresso
alheio.
6.1. Nos Estados Unidos, por exemplo, a par da necessidade do
exame da causa provável para a entrada de policiais em domicílio de
suspeitos de crimes, não pode haver dúvidas sobre a voluntariedade
da autorização do morador (in dubio libertas). O consentimento
“deve ser inequívoco, específico e conscientemente dado, não
contaminado por qualquer truculência ou coerção (“consent, to be
valid, 'must be unequivocal, specific and intelligently given,
uncontaminated by any duress or coercion'”). (United States v
McCaleb, 552 F2d 717, 721 (6th Cir 1977), citando Simmons v
Bomar, 349 F2d 365, 366 (6th Cir 1965). Além disso, ao Estado
cabe o ônus de provar que o consentimento foi, de fato, livre e
voluntariamente dado, isento de qualquer forma, direta ou indireta,
de coação, o que é aferível pelo teste da totalidade das circunstâncias
(totality of circumstances).
6.2. No direito espanhol, por sua vez, o Tribunal Supremo destaca,
entre outros, os seguintes requisitos para o consentimento do
morador: a) deve ser prestado por pessoa capaz, maior de idade e no
exercício de seus direitos; b) deve ser consciente e livre; c) deve ser
documentado; d) deve ser expresso, não servindo o silêncio como
consentimento tácito.
6.3. Outrossim, a documentação comprobatória do assentimento do
morador é exigida, na França, de modo expresso e mediante
declaração escrita à mão do morador, conforme norma positivada no
art. 76 do Código de Processo Penal; nos EUA, também é usual a
necessidade de assinatura de um formulário pela pessoa que
consentiu com o ingresso em seu domicílio (North Carolina v. Butler
(1979) 441 U.S. 369, 373; People v. Ramirez (1997) 59 Cal.App.4th
1548, 1558; U.S. v. Castillo (9a Cir. 1989) 866 F.2d 1071, 1082),
declaração que, todavia, será desconsiderada se as circunstâncias
indicarem ter sido obtida de forma coercitiva ou houver dúvidas
sobre a voluntariedade do consentimento (Haley v. Ohio (1947) 332
U.S. 596, 601; People v. Andersen (1980) 101 Cal.App.3d 563, 579.
6.4. Se para simplesmente algemar uma pessoa, já presa –
ostentando, portanto, alguma verossimilhança do fato delituoso que
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Superior Tribunal de Justiça
deu origem a sua detenção –, exige-se a indicação, por escrito, da
justificativa para o uso de tal medida acautelatória, seria então, no
tocante ao ingresso domiciliar, “necessário que nós estabeleçamos,
desde logo, como fizemos na Súmula 11, alguma formalidade para
que essa razão excepcional seja justificada por escrito, sob pena das
sanções cabíveis” (voto do Min. Ricardo Lewandowski, no RE n.
603.616/TO).
6.5. Tal providência, aliás, já é determinada pelo art. 245, § 7º, do
Código de Processo Penal – analogicamente aplicável para busca e
apreensão também sem mandado judicial – ao dispor que, “[f]inda a
diligência, os executores lavrarão auto circunstanciado, assinando-o
com duas testemunhas presenciais, sem prejuízo do disposto no §
4º”.
7. São frequentes e notórias as notícias de abusos cometidos em
operações e diligências policiais, quer em abordagens individuais,
quer em intervenções realizadas em comunidades dos grandes
centros urbanos. É, portanto, ingenuidade, academicismo e
desconexão com a realidade conferir, em tais situações, valor
absoluto ao depoimento daqueles que são, precisamente, os
apontados responsáveis pelos atos abusivos. E, em um país
conhecido por suas práticas autoritárias – não apenas históricas, mas
atuais –, a aceitação desse comportamento compromete a necessária
aquisição de uma cultura democrática de respeito aos direitos
fundamentais de todos, independentemente de posição social,
condição financeira, profissão, local da moradia, cor da pele ou raça.
7.1. Ante a ausência de normatização que oriente e regule o ingresso
em domicílio alheio, nas hipóteses excepcionais previstas no Texto
Maior, há de se aceitar com muita reserva a usual afirmação – como
ocorreu no caso ora em julgamento – de que o morador anuiu
livremente ao ingresso dos policiais para a busca domiciliar, máxime
quando a diligência não é acompanhada de documentação que a
imunize contra suspeitas e dúvidas sobre sua legalidade.
7.2. Por isso, avulta de importância que, além da documentação
escrita da diligência policial (relatório circunstanciado), seja ela
totalmente registrada em vídeo e áudio, de maneira a não deixar
dúvidas quanto à legalidade da ação estatal como um todo e,
particularmente, quanto ao livre consentimento do morador para o
ingresso domiciliar. Semelhante providência resultará na diminuição
da criminalidade em geral – pela maior eficácia probatória, bem como
pela intimidação a abusos, de um lado, e falsas acusações contra
policiais, por outro – e permitirá avaliar se houve, efetivamente, justa
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causa para o ingresso e, quando indicado ter havido consentimento
do morador, se foi ele livremente prestado.
8. Ao Poder Judiciário, ante a lacuna da lei para melhor
regulamentação do tema, cabe responder, na moldura do Direito, às
situações que, trazidas por provocação do interessado, se mostrem
violadoras de direitos fundamentais do indivíduo. E, especialmente,
ao Superior Tribunal de Justiça compete, na sua função judicante,
buscar a melhor interpretação possível da lei federal, de sorte a não
apenas responder ao pedido da parte, mas também formar
precedentes que orientem o julgamento de casos futuros similares.
8.1. As decisões do Poder Judiciário – mormente dos Tribunais
incumbidos de interpretar, em última instância, as leis federais e a
Constituição – servem para dar resposta ao pedido no caso concreto
e também para “enriquecer o estoque das regras jurídicas” (Melvin
Eisenberg. The nature of the common law. Cambridge: Harvard
University Press, 1998. p. 4) e assegurar, no plano concreto, a
realização dos valores, princípios e objetivos definidos na
Constituição de cada país. Para tanto, não podem, em nome da
maior eficiência punitiva, tolerar práticas que se divorciam do modelo
civilizatório que deve orientar a construção de uma sociedade mais
igualitária, fraterna, pluralista e sem preconceitos.
8.2. Como assentado em conhecido debate na Suprema Corte dos
EUA sobre a admissibilidade das provas ilícitas (Weeks v. United
States, 232 U.S. 383,1914), se os tribunais permitem o uso de
provas obtidas em buscas ilegais, tal procedimento representa uma
afirmação judicial de manifesta negligência, se não um aberto desafio,
às proibições da Constituição, direcionadas à proteção das pessoas
contra esse tipo de ação não autorizada (“such proceeding would be
to affirm by judicial decision a manifest neglect, if not an open
defiance, of the prohibitions of the Constitution, intended for the
protection of the people against such unauthorized action”).
8.3. A situação versada neste e em inúmeros outros processos que
aportam a esta Corte Superior diz respeito à própria noção de
civilidade e ao significado concreto do que se entende por Estado
Democrático de Direito, que não pode coonestar, para sua legítima
existência, práticas abusivas contra parcelas da população que, por
sua topografia e status social e econômico, costumam ficar mais
suscetíveis ao braço ostensivo e armado das forças de segurança.
9. Na espécie, não havia elementos objetivos, seguros e racionais que
justificassem a invasão de domicílio do suspeito, porquanto a simples
avaliação subjetiva dos policiais era insuficiente para conduzir a
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diligência de ingresso na residência, visto que não foi encontrado
nenhum entorpecente na busca pessoa realizada em via pública.
10. A seu turno, as regras de experiência e o senso comum, somadas
às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à
afirmação dos agentes castrenses de que o paciente teria autorizado,
livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio,
franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a
formação de prova incriminatória em seu desfavor.
11. Assim, como decorrência da proibição das provas ilícitas por
derivação (art. 5º, LVI, da Constituição da República), é nula a prova
derivada de conduta ilícita – no caso, a apreensão, após invasão
desautorizada da residência do paciente, de 109 g de maconha –, pois
evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja, entre a
invasão de domicílio (permeada de ilicitude) e a apreensão de drogas.
12. Habeas Corpus concedido, com a anulação da prova
decorrente do ingresso desautorizado no domicílio e consequente
absolvição do paciente, dando-se ciência do inteiro teor do
acórdão aos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados e aos
Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem como às
Defensorias Públicas dos Estados e da União, ao Procurador-Geral
da República e aos Procuradores-Gerais dos Estados, aos Conselhos
Nacionais da Justiça e do Ministério Público, à Ordem dos
Advogados do Brasil, ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, ao
Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos Governadores dos
Estados e do Distrito Federal, encarecendo a estes últimos que deem
conhecimento do teor do julgado a todos os órgãos e agentes da
segurança pública federal, estadual e distrital.
13. Estabelece-se o prazo de um ano para permitir o aparelhamento
das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a
adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a, sem prejuízo
do exame singular de casos futuros, evitar situações de ilicitude que
possam, entre outros efeitos, implicar responsabilidade
administrativa, civil e/ou penal do agente estatal.

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VOTO

O SENHOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ (Relator):

O homem mais pobre pode em sua cabana


desafiar todas as forças da Coroa.
Pode ser frágil, seu telhado pode tremer,
o vento pode soprar por ele,
a tempestade pode entrar,
a chuva pode entrar,
mas o Rei da Inglaterra não pode entrar!

(The poorest man may in his


cottage bid defiance to all the forces
of the Crown. It may be frail, its roof may
shake, the wind may blow through it,
the storm may enter, the rain may enter,
but the King of England cannot enter!
William Pitt, Earl of Chatham. Speech,
March 1763, in Lord Brougham
Historical Sketches of Statesmen
in the Time of George III
First Series (1845) vol. 1)

I. Contextualização

Informam os autos que o paciente foi condenado à pena de 1


ano e 8 meses de reclusão, em regime inicial aberto, mais multa, com a
substituição da reprimenda por duas restritivas de direitos, pela prática do crime
previsto no art. 33, caput e § 4º, da Lei n. 11.343/2006.

O Ministério Público assim narrou os fatos em sua inicial


acusatória, in verbis (fls. 15-16, destaquei):

Consta dos inclusos autos de inquérito policial que no dia 17 de março


de 2017, por volta de 18:00 horas, na travessa da rua João José de
Queiroz [...], nesta capital e comarca, o denunciado tinha em depósito
e guardava, para fins de comércio, 72 invólucros plásticos de
maconha, pesando 109,9 gramas, tudo descrito no laudo de
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constatação, conforme fls. do apenso, substância esta que causa
dependência física e psíquica, sem autorização e em desacordo com
determinação legal ou regulamentar.
Segundo o apurado, o denunciado encontrava-se em atitude suspeita,
desviando-se da viatura policial após fitá-la.
Na ocasião, policiais em combate à prática de tráfico de substância
entorpecentes decidiram intervir e abordá-lo e na busca pessoal nada
foi encontrado com ele. Entretanto, interpelado sobre sua
residência, informou estar próximo e franqueou a entrada dos
policiais no local.
No interior da residência, os policiais encontraram dentro do
armário da cozinha uma bolsa com 72 invólucros plásticos
contendo maconha, ocasião em que ele admitiu a posse para venda.

O Juiz sentenciante afastou a apontada ilicitude das provas


obtidas em desfavor do paciente, com base no seguinte argumento (fl. 25):

Primeiramente, afasto a preliminar arguida. Não há prova nenhuma de


que o acusado não autorizou a entrada dos policiais, sendo a palavra
do acusado contra a palavra de dois agentes públicos.

Inconformada com a condenação, a defesa interpôs apelação ao


Tribunal de origem, que também rechaçou a aventada ilicitude das provas que
embasaram a condenação do réu, sob os fundamentos abaixo transcritos (fls.
48-49, grifei):

A preliminar de nulidade da sentença pela utilização de prova ilícita não


merece guarida jurisdicional.
Os policiais civis Renan e Marcos Valério, tanto em sede
policial quanto em juízo, confirmaram que o apelante autorizou o
ingresso na residência onde foram localizadas as drogas
apreendidas, sendo que a negativa do apelante quanto a esse aspecto
remanesceu escoteira nos autos, porquanto não demonstrados
elementos concretos capazes de abalar a versão apresentada pelos
policiais, o que afasta a ilegalidade aventada pela defesa.
Nesse sentido, cabe consignar que é pacífica a orientação
jurisprudencial no sentido de conferir credibilidade ao depoimento dos
policiais, notadamente quando desconhecem a pessoa do apelante, de
sorte que não teriam qualquer interesse na condenação de inocente.

Na sequência, foram opostos embargos de declaração, os quais,


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no entanto, foram rejeitados. Na ocasião, a Corte estadual reforçou a sua
compreensão de que a alegação "de prova ilícita por violação à garantia da
inviolabilidade do domicílio foi devidamente apreciada pelo Acórdão guerreado,
que concluiu pela ausência de ilegalidade no ingresso dos policiais na residência,
na medida em que autorizada pelo embargante, circunstância que dispensa
a exibição de mandado de busca e apreensão, consoante entendimento do E.
Superior Tribunal de Justiça" (fl. 58).

Feitos esses registros, passo ao exame do caso e das questões


jurídicas que suscita.

II. Delimitação da matéria

A análise a ser desenvolvida neste voto propõe-se a enfrentar


questões subjacentes ao tema do direito à inviolabilidade do domicílio,
referentes ao caso ora em exame e a casos similares que aportam neste
Superior Tribunal, comprometido, por missão constitucional, com a
interpretação das leis federais e com sua adequada e uniforme aplicação em
todo o território nacional.

As questões que irei expor e às quais pretendo responder no


voto, relativas ao exame do caso em debate, são as seguintes:

1. Na hipótese de suspeita de flagrância delitiva, qual a


exigência, em termos de standard probatório, para que policiais ingressem
no domicílio do suspeito sem mandado judicial?

2. O crime de tráfico ilícito de entorpecentes, classificado


como de natureza permanente, autoriza sempre o ingresso sem mandado no
domicílio onde supostamente se encontra a droga?

3. O consentimento do morador, para validar o ingresso no


domicílio e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, sujeita-se a
quais condicionantes de validade?

4. A prova dos requisitos de validade do livre


consentimento do morador, para o ingresso em seu domicílio sem mandado,
incumbe a quem, e de que forma pode ser feita?

5. Qual a consequência, para a ação penal, da obtenção de


provas contra o investigado ou réu, com violação a regras e condições legais
e constitucionais para o ingresso no seu domicílio?
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Superior Tribunal de Justiça

Adianto que o ponto de maior relevo do voto diz com a


questão do consentimento do morador, ainda carente, segundo penso, de
abordagem satisfatória pela jurisprudência.

Decerto que já há inúmeros precedentes, do Supremo


Tribunal Federal e deste Superior Tribunal, sobre o tema do ingresso em
domicílio de pessoas suspeitas de práticas criminosas, quase sempre em
situações relacionadas à prática do crime de tráfico de entorpecentes.
Invariavelmente, são situações em que um suspeito, quer por uma denúncia
anônima ou um informante, quer por um comportamento indicador de que
poderia estar envolvido na mercancia ilícita de drogas, vê a Polícia Militar
ingressar em sua residência (em casos raros, geralmente em decorrência da
deflagração de uma operação, o ingresso também é feito pela Polícia Civil ou
pela Polícia Federal, hipóteses em que os agentes estatais geralmente estão
munidos de mandado de busca e apreensão domiciliar, obtido no curso da
investigação criminal).

Quando não identificada justa causa (causa provável,


fundadas razões) para a ação estatal, os Tribunais Superiores têm
invalidado as provas recolhidas no interior de residências devassadas sem
autorização judicial. Boa parte dos casos refere-se a situações em que a
Polícia, fazendo ronda nas imediações da residência do conjecturado
traficante, ou movida por notícia anônima, ingressa na morada porque o
alvo da diligência, ao avistar a guarnição se aproximando, entra apressadamente
em sua casa ou assume uma atitude que, na avaliação subjetiva dos policiais, é
considerada suspeita.

Nesse sentido direcionaram-se inúmeros julgados desta Corte:


HC n. 525.266/PR, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T., julgado em
24/9/2019, DJe 1º/10/2019; AgRg no HC n. 483.887/RJ, Rel. Ministra
Laurita Vaz, 6ª T., julgado em 17/12/2019, DJe 3/2/2020); RHC n.
89.853/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª T., julgado em 18/2/2020, DJe
2/3/2020; RHC n. 83.501/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª T., julgado em
6/3/2018, DJe 5/4/2018; AgRg no HC n. 585.150/SC, Rel. Ministro
Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., julgado em 4/8/2020, DJe 13/8/2020;
HC n. 609.982/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, julgado em 15/12/2020, DJe
18/12/2020; HC n. 609.955/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, julgado em
2/2/2021, DJe 8/2/2021; RHC n. 134.894/GO, Rel. Ministro Nefi Cordeiro,
julgado em 2/2/2021, DJe 8/2/2021; AgRg no HC 609.981/RS, Rel. Ministro
Ribeiro Dantas, 5ª T., julgado em 02/02/2021, DJe 08/02/2021.

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Superior Tribunal de Justiça

Não se tem externado, porém, particular preocupação em exigir,


na investigação iniciada por denúncia anônima, outros elementos que
poderiam conferir maior segurança ao órgão acusador (Ministério Público) e
ao julgador, como, de forma exemplificativa, os metadados da chamada
telefônica da central da Polícia (dia, horário, origem e duração do
chamado), ou outras circunstâncias que possam conferir mais
credibilidade à licitude do encontro de droga no endereço objeto da
denúncia, de sorte a não macular a própria materialidade delitiva (ROSA,
Alexandre Morais da. Mantra do crime permanente entoado para legitimar
ilegalidades nos flagrantes. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2014-ago-01/limite-penal-mantra-crime-permanente
-entoado-legitimar-ilegalidades-flagrantes. Acesso em: 31 ago. 2020).

Sobre o tema, e em abono a tal entendimento, já antecipo que,


na análise do direito comparado e das práticas judiciais de outros países,
nota-se que os tribunais norte-americanos costumam exigir, para considerar
válida e idônea a informação trazida por quem a fornece, dois requisitos:
a) que ao juiz se forneçam dados que expliquem suficientemente como o
informante a obteve; b) que ao juiz sejam ofertados elementos que deem
suporte à veracidade e à confiabilidade da informação (Aguilar v. State of
Texas 378 U.S. 108, 1964), ante a corrente avaliação da causa provável da
diligência, com base no exame da totalidade das circunstâncias
(totality-of-the-circumstances) – Illinois v. Gates, 462 U.S. 213, 238 (1983).

III. Standards de Prova para ingresso em domicilio.


Fundadas razões (justa causa, causa provável).

O Brasil caminha, posto que ainda lentamente, rumo à adoção


da teoria dos standards de prova como meio de fornecer segurança jurídica aos
profissionais do direito, na averiguação da hipótese fática e sua comprovação.
É dizer, “standards de prova são critérios que estabelecem o grau de
confirmação probatória necessário para que o julgador considere um enunciado
fático como provado” (BADARÓ, Gustavo H. Epistemologia judiciária e prova
penal. São Paulo: RT, 2019, p. 236).

Há necessidade de diferenciar, nos diversos momentos


processuais, ou tipos de decisões a se tomar, os respectivos graus de standard
de prova. E, por óbvio, será muito mais difícil preencher os requisitos do
standard probatório para além da dúvida razoável (o patamar utilizado para
poder o juiz condenar o acusado) do que o exigido para uma precária e urgente
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atuação policial (fundadas razões, justa causa ou causa provável) para ingressar
no domicílio onde supostamente esteja sendo cometido um crime.

Despiciendo sublinhar, por oportuno, que toda medida que


restringe direitos fundamentais deve ser fundamentada e racionalmente
controlável, independentemente do momento processual.

Existe, assim, uma expectativa legítima de que o julgador,


especialmente quando venha a restringir direitos fundamentais, atue mediante
parâmetros objetivos de justificação, dos quais se possa extrair a firme
convicção de que a decisão derivou de uma atuação independente, imparcial,
justa e racionalmente demonstrável quanto aos recursos mentalmente
empregados na argumentação, aos dados fáticos e probatórios considerados e à
conformidade do direito aplicável à espécie.

E mesmo quando se trata de outros agentes estatais – como, no


caso, de órgãos da segurança pública – tais critérios legais e axiológicos
devem ser considerados, pois disso dependerá a licitude ou não do
afastamento do direito individual sob tutela.

IV. Inviolabilidade de domicílio – direito fundamental

Feita essa introdução, reitero que o caso ora sob julgamento –


como inúmeros outros julgados por esta Corte – traz a lume antiga discussão
sobre a legitimidade do procedimento policial que, após a entrada no
interior da residência de determinado indivíduo, sem o seu consentimento
válido e sem autorização judicial, logra encontrar e apreender drogas, de
sorte a configurar a prática do crime de tráfico de entorpecentes, cujo caráter
permanente autorizaria, segundo antiga linha de pensamento, o ingresso
domiciliar.

O art. 5º, XI, da Constituição da República consagrou a


regra de que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo
penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

O texto constitucional estabeleceu, no referido dispositivo, a


máxima de que a morada de alguém é seu asilo inviolável, atribuindo-lhe
contorno de direito fundamental vinculado à proteção da vida privada e
ao direito à intimidade. Ao mesmo tempo, previu, em numerus clausus, as
respectivas exceções, quais sejam: a) se o morador consentir; b) em flagrante
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delito; c) em caso de desastre; d) para prestar socorro; e) durante o dia, por
determinação judicial.

Segundo José Afonso da Silva,

O art. 5º, XI, da Constituição consagra o direito do indivíduo ao


aconchego do lar com sua família ou só, quando define a casa
como o asilo inviolável do indivíduo. Aí o domicílio, com sua carga de
valores sagrados que lhe dava a religiosidade romana. Aí também o
direito fundamental da privacidade, da intimidade, que este asilo
inviolável protege. O recesso do lar é, assim, o ambiente que
resguarda a privacidade, a intimidade, a vida privada. [...] Essas
exceções à proteção do domicílio ligam-se ao interesse da própria
segurança individual (caso de delito) ou do socorro (desastre ou
socorro) ou da Justiça, apenas durante o dia (determinação judicial),
para busca e apreensão de criminosos ou de objeto de crime.
(SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo.
28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 437, destaquei).

O domicílio é, portanto, “uma projeção espacial da


privacidade e da intimidade” (ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES
JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo:
Verbatim, 2006, p. 208).

Como anotam e Sáez, já no prólogo de obra monográfica, é a


morada "un reducto inexpugnable sobre el que el individuo despliega su
cotidianeidad, es probablemente el lugar más importante de su vida, su
mayor tesoro… Por eso es inviolable… Por ello, se ha de garantizar al
máximo, que cualquier injerencia o intrusión que se pueda producir esté
rodeada de todas las garantías a nuestro alcance para proteger la intimidad y
derechos de los moradores" (PAGÈS, J.H. e SÁEZ, R.D. (2020). Diligencia
de entrada y registro e inviolabilidad de domicilio. [ebook] Aferre Editor
S.L..
Disponívelem:https://www.perlego.com/book/1984208/diligencia-de-entrada-y-
registro-e-inviolabilidad-de-domicilio-pdf - grifei).

Bem observa Ada Pelegrini Grinover, invocando Pietro


Nuvolone, que “a intromissão na esfera privada do indivíduo, a pretexto da
realização do interesse público, torna-se cada vez mais penetrante e
insidiosa, a ponto de ameaçar dissolvê-lo no anônimo e no coletivo,
como qualquer produto de massa” (GRINOVER, Ada P. Liberdades
Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 24 de 6
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públicas e processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p.
67).

E essa íntima conexão da garantia da inviolabilidade do


domicílio com a esfera da vida privada e familiar salientam Mitidiero et al,

(...) lhe assegura um lugar de honra na esfera dos assim chamados


direitos da integridade pessoal. Já por tal razão não é de se
surpreender que a proteção do domicílio foi, ainda que nem sempre da
mesma forma e amplitude atual, um dos primeiros direitos assegurados
no plano das declarações de direitos e dos primeiros catálogos
constitucionais (MITIDIERO, Daniel; SARLET, Ingo W.;
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de direito constitucional. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 401).

Não é por outro motivo que, na gênese da nação


norte-americana, se instituiu tal garantia, na Quarta Emenda à Constituição
dos Estados Unidos da América (1792) – Fourth Amendment –, que assim
dispôs:

The right of the people to be secure in their persons, houses,


papers, and effects, against unreasonable searches and seizures,
shall not be violated, and no warrants shall issue, but upon
probable cause, supported by oath or affirmation, and particularly
describing the place to be searched, and the persons or things to
be seized. ("O direito do povo de estar seguro em suas pessoas,
casas, papéis e propriedades, contra buscas e apreensões não
razoáveis, não será violado, e nenhum mandado será emitido, mas por
causa provável, apoiado por juramento ou afirmação e particularmente
descrevendo o lugar a ser procurado, e as pessoas ou coisas a serem
apreendidas" – tradução livre).

Por sua vez, a Convenção Americana de Direitos Humanos


(Pacto de São José da Costa Rica) também prevê a proteção domiciliar, nestes
termos:
Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade
2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em
sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.

Em igual sentido o art. 8º da Convenção Europeia dos


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Superior Tribunal de Justiça
Direitos do Homem:

Direito ao respeito pela vida privada e familiar


1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e
familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.

Em verdade, a grande maioria dos povos prevê tal garantia em


suas respectivas Constituições, como, v.g., a da Espanha:

Artigo 18. 2. Ninguna entrada o registro podrá hacerse en él sin


consentimiento del titular o resolución judicial, salvo en caso de
flagrante delito.

Há países, porém, em que a matéria é objeto de regulação pelo


Código de Processo Penal, como na França, onde, com mais detalhamento,
exige-se consentimento expresso da pessoa em cuja casa se der a operação:

Art. 76. Les perquisitions, visites domiciliaires et saisies de pièces


à conviction ou de biens dont la confiscation est prévue à l'article
131-21 du code pénal ne peuvent être effectuées sans l'assentiment
exprès de la personne chez laquelle l'opération a lieu. Cet
assentiment doit faire l'objet d'une déclaration écrite de la main
de l'intéressé ou, si celui-ci ne sait écrire, il en est fait mention au
procès-verbal ainsi que de son assentiment (As buscas, visitas
domiciliares e apreensão de objetos ou bens cujo confisco esteja
previsto no artigo 131-21 do Código Penal não podem ser realizadas
sem o consentimento expresso da pessoa em cuja residência a
operação tem lugar. Este assentimento deve ser objeto de declaração
escrita pela mão do interessado ou, caso este não possa escrever,
deve constar da ata com o seu assentimento – tradução livre).

V. Precedentes e doutrina sobre a necessidade das fundadas


razões para o ingresso no domicílio

A jurisprudência e a doutrina pátria entendiam, até


recentemente, que, por ser o tráfico de drogas de um crime de natureza
permanente, no qual a consumação se protrai no tempo, estaria autorizado o
ingresso em domicílio alheio a qualquer momento e sem necessidade de
autorização judicial ou consentimento do morador, o que decorria de
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Superior Tribunal de Justiça
interpretação literal do permissivo constitucional, que alude a “flagrante delito”
entre as hipóteses de ressalva à inviolabilidade domiciliar.

Porém, o Supremo Tribunal Federal aperfeiçoou esse


entendimento, a partir do julgamento do RE n. 603.616/RO (Tribunal Pleno,
Rel. Ministro Gilmar Mendes, julgado em 5/11/2015, DJe-093), com
repercussão geral previamente reconhecida. Na oportunidade, o Plenário
assentou a seguinte tese, referente ao Tema 280: “A entrada forçada em
domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno,
quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a
posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito,
sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da
autoridade e de nulidade dos atos praticados” (destaquei).

Confira-se a ementa (grifei):

Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão


geral. [...]
2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão
domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente.
Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para
ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime
permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo.
3. Período noturno. A cláusula que limita o ingresso ao período do dia
é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem
judicial. Nos demais casos – flagrante delito, desastre ou para
prestar socorro – a Constituição não faz exigência quanto ao
período do dia.
4. Controle judicial a posteriori. Necessidade de preservação da
inviolabilidade domiciliar. Interpretação da Constituição. Proteção
contra ingerências arbitrárias no domicílio. Muito embora o
flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação
judicial, a medida deve ser controlada judicialmente. A inexistência
de controle judicial, ainda que posterior à execução da medida,
esvaziaria o núcleo fundamental da garantia contra a
inviolabilidade da casa (art. 5, XI, da CF) e deixaria de proteger
contra ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da
Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a posteriori decorre
tanto da interpretação da Constituição, quanto da aplicação da
proteção consagrada em tratados internacionais sobre direitos
humanos incorporados ao ordenamento jurídico. Normas
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Superior Tribunal de Justiça
internacionais de caráter judicial que se incorporam à cláusula do
devido processo legal.
5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma
justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a
constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que
justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que
havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa
causa) para a medida.
[...]

Nossa Corte Suprema, em síntese, definiu que o ingresso


forçado em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo – a
qualquer hora do dia ou da noite – quando amparado em fundadas razões –
na dicção do art. 240, § 1º, do Código de Processo Penal –, devidamente
justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que apontem estar
ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito.

Sobre a delimitação das circunstâncias que indicariam a


existência dessas fundadas razões, assinalou o Ministro Relator que, se o
policial, ao ouvir “gritos de socorro e ruídos característicos de uma briga vindos
de dentro de uma residência”, pode nela adentrar “porque tem fundadas
razões para crer que algum crime está em andamento no ambiente
doméstico”.

Entretanto, aduziu que:

provas ilícitas, informações de inteligência policial – denúncias


anônimas, afirmações de "informantes policiais" (pessoas ligadas ao
crime que repassam informações aos policiais, mediante compromisso
de não serem identificadas), por exemplo – e, em geral, elementos que
não têm força probatória em juízo não servem para demonstrar a justa
causa.

No julgamento desse RE n. 603.616/RO, houve importantes


manifestações dos julgadores, que revelaram o ponto principal, pano de fundo
da causa ali decidida.

Ainda no voto do relator, destacou-se a prática policial de


realizar abordagens em pessoas moradoras de "comunidades em situação de
maior vulnerabilidade social", que são "especialmente suscetíveis de
serem vítimas de ingerências arbitrárias e abusivas em domicílios". E
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Superior Tribunal de Justiça
disse:

Ao respeitar a literalidade do texto constitucional, que


simplesmente admite o ingresso forçado em caso de flagrante
delito, contraditoriamente estamos fragilizando o núcleo
essencial dessa garantia. Precisamos evoluir, estabelecendo uma
interpretação que afirme a garantia da inviolabilidade da casa e, por
outro lado, proteja os agentes da segurança pública, oferecendo
orientação mais segura sobre suas formas de atuação.

O relator trouxe, também, à baila surpreendente depoimento


do ex-Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano
Beltrame. Confira-se o excerto do voto:

A busca e apreensão domiciliar é uma medida invasiva, mas de grande


valia para a repressão à prática de crimes e para a investigação
criminal. Abusos podem ocorrer, tanto na tomada da decisão de
entrada forçada quanto na execução da medida. As comunidades em
situação de vulnerabilidade social são especialmente suscetíveis
a serem vítimas de ingerências arbitrárias em domicílios.
Ilustrativo, sob esses aspectos, o relato do Secretário de Segurança do
Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, em sua biografia –
BELTRAME, José Mariano. Todo Dia é Segunda-Feira. [recurso
eletrônico]. Rio de Janeiro: Sextante, 2014. Formato: ePub. Acesso
em 04.11.2015. Narra ele que, após a ocupação de favelas cariocas,
os policiais faziam buscas nas casas da comunidade, o que levava a
prisões de fugitivos e à apreensão de grandes quantidades de armas e
drogas escondidas pelos traficantes nos barracos. Comentando o
rescaldo da tomada do Complexo do Alemão, escreveu:
“Verificamos praticamente uma a uma, as cerca de 30 mil
residências e todos os becos da região, à procura de drogas,
armas e bandidos. Só depois de executada essa varredura foi
que consideramos a área segura” (posição 1725). Em seguida,
descreve abuso na execução da medida, a prática de “espólio de
guerra”, ou seja, furto de bens que guarneciam as residências:
“Recebi denúncias consistentes de que houve a prática do espólio de
guerra durante a ocupação do Alemão. Alguns moradores se
queixaram de que policiais haviam roubado objetos de suas casas
durante a varredura. Essa era uma preocupação do comando desde o
início, mas, apesar da cautela, houve irregularidades por parte de
pequeno grupo, que acabou alvo de investigação” (posição 1752). RE
n. 603.616/RO (Tribunal Pleno, julgado em 5/11/2015, DJe-093)
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Superior Tribunal de Justiça

Sob essa perspectiva fática, salientou, na conclusão do voto, que


a interpretação jurisprudencial sobre o tema precisa evoluir, mas que já
antevia importante avanço na proposta de definição da exigência da justa causa,
controlável a posteriori, para a busca domiciliar, de sorte a trazer mais
segurança tanto para os indivíduos sujeitos a tal medida invasiva quanto
para os policiais, que deixam de assumir o risco de cometer crime de
invasão de domicílio ou de abuso de autoridade, principalmente quando a
diligência não tiver alcançado o resultado esperado.

Assim, propôs o relator, em arremate,

seja fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem


mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando
amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori,
que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito,
sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da
autoridade, e de nulidade dos atos praticados.

Na mesma direção se posicionaram outros julgadores, como o


Ministro Lewandowski, ao assinalar a “necessidade de se colocar alguma
limitação para o ingresso na residência ou alguma responsabilização para os
agentes estatais”, porquanto “sabemos como as coisas acontecem na vida
real”, ou seja, "a Polícia invade, arrebenta, sobretudo, com casas mais
humildes, e depois dá uma justificação qualquer, a posteriori, de forma
oral, na delegacia de polícia”.

Com igual ênfase se posicionou, nesse julgado, o Ministro


Marco Aurélio, ao provocar a seguinte reflexão:

O próprio juiz só pode determinar a busca e apreensão durante o dia,


mas o policial, então, pode, a partir de capacidade intuitiva, a partir de
uma indicação, ao invés de recorrer à autoridade judiciária,
simplesmente arrombar a casa, entrar na casa e, então, fazer busca e
apreensão e verificar se há, ou não, o tóxico? Creio que estaremos
esvaziando a garantia constitucional prevista no inciso XI do artigo 5º
da Carta.

Tais preocupações se potencializam a partir da constatação de


que a maior parte das prisões relativas ao crime de tráfico de entorpecentes
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Superior Tribunal de Justiça
– delito que, sempre é importante destacar, deve merecer prioridade em seu
enfrentamento pelos órgãos de segurança pública – não decorre, no Brasil, de
investigações policiais, mas de prisões em flagrante realizadas no
policiamento ostensivo das ruas.

Em verdade, a atividade policial brasileira se baseia


fundamentalmente na gestão burocrática da prisão em flagrante, como pontua
Ademar Borges Filho, conclusão que extrai de pesquisa realizada pelo Ipea em
parceria com o Ministério da Justiça entre os anos de 2011 a 2013. E, em
relação ao tema objeto deste writ, no caso dos delitos que envolvem tráfico de
entorpecentes, 91% das prisões são realizadas com a entrada dos policiais
nas residências sem autorização judicial (BORGES DE SOUSA FILHO,
Ademar. O controle de constitucionalidade de leis penais no Brasil. Belo
Horizonte: Forum, 2019, p. 47), o que, seguramente, implica o afastamento de
direitos fundamentais de pessoas que, por sua condição social e
hipossuficiência econômica, habitam moradias nas periferias dos grandes
centros urbanos.

Tome-se, como exemplo, o que conclui relatório produzido pela


ONG Redes da Maré, no qual se destaca que “seguindo o padrão dos anos
anteriores, a invasão de domicílio foi a violação de direito preponderante em
2018, atingindo 37% das pessoas acolhidas” (Disponível em
https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/BoletimSegPublica
2018.final.pdf. Acesso em: 5/12/2020).

É preciso, neste ponto, enfatizar que, ao contrário do que se dá


em relação a outros direitos fundamentais, o direito à inviolabilidade do
domicílio não protege apenas o alvo de uma atuação policial, mas todo o
grupo de pessoas que residem ou se encontram no local da diligência. Ao
adentrar uma residência à procura de drogas – pense-se na cena de agentes do
Estado fortemente armados ingressando em imóveis onde habitam famílias
numerosas – são eventualmente violados em sua intimidade também os pais, os
filhos, os irmãos, parentes em geral do suspeito, o que potencializa a gravidade
da situação e, por conseguinte, demanda mais rigor e limite para a legitimação
da diligência.

Certamente, a dinâmica, a capilaridade e a sofisticação do crime


organizado e da criminalidade violenta exigem postura mais efetiva do Estado.
No entanto, a coletividade, sobretudo a integrada por segmentos das
camadas sociais mais precárias economicamente, também precisa, a seu
turno, sentir-se segura e ver preservados seus mínimos direitos, em
especial o de não ter a residência invadida, a qualquer hora do dia ou da
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noite, por agentes estatais, sob a única justificativa, extraída de apreciações
pessoais destes últimos, de que o local supostamente é ponto de tráfico de
drogas ou de que o suspeito do tráfico ali possui droga armazenada.

Não se desconhece que a busca e apreensão domiciliar pode


ser de grande valia à cessação de crimes e à apuração de sua autoria. No
entanto, é de particular importância consolidar o entendimento de que o
ingresso na esfera domiciliar para apreensão de drogas em determinadas
circunstâncias representa legítima intervenção restritiva apenas se devidamente
amparada em justificativas e elementos seguros a autorizar a ação dos
agentes públicos, sem o que os direitos à privacidade e à inviolabilidade
do lar serão vilipendiados.

A situação versada neste e em inúmeros outros processos que


aportam nesta Corte Superior diz respeito à própria noção de civilidade e ao
significado concreto do que se entende por Estado Democrático de Direito, que
não pode coonestar, para sua legítima existência, práticas abusivas contra
parcelas da população que, por sua topografia e status social, costumam ficar
mais suscetíveis ao braço ostensivo e armado das forças de segurança.

De nenhum modo se pode argumentar que, por serem os crimes


relacionados ao tráfico ilícito de drogas legalmente equiparados aos hediondos,
as forças estatais estariam autorizadas, em relação de meio a fim, a ilegalmente
afrontar direitos individuais para a obtenção de resultados satisfatórios no
combate ao crime. Em outras palavras, conquanto seja legítimo que os
órgãos de persecução penal se empenhem, com prioridade, em investigar,
apurar e punir autores de crimes mais graves, os meios empregados
devem, inevitavelmente, vincular-se aos limites e ao regramento das leis e
da Constituição da República.

Essa percepção é antiga e sedimentada na Corte Suprema.


Cito, para ilustrar, excerto de voto da lavra do Ministro Sepúlveda
Pertence, no HC 79512, julgado no Tribunal Pleno em 16/12/1999 (DJ
16-05-2003, p. 108), onde anotou, com nosso destaque, in verbis:

2. Objeção de princípio - em relação à qual houve reserva de


Ministros do Tribunal - à tese aventada de que à garantia constitucional
da inadmissibilidade da prova ilícita se possa opor, com o fim de
dar-lhe prevalência em nome do princípio da proporcionalidade, o
interesse público na eficácia da repressão penal em geral ou, em
particular, na de determinados crimes: é que, aí, foi a Constituição
mesma que ponderou os valores contrapostos e optou - em
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Superior Tribunal de Justiça
prejuízo, se necessário da eficácia da persecução criminal - pelos
valores fundamentais, da dignidade humana, aos quais serve de
salvaguarda a proscrição da prova ilícita [...]

Nesse sentido tem caminhado a jurisprudência do Superior


Tribunal de Justiça, em diversos precedentes, como o seguinte:

[...] 4. O ingresso regular em domicílio alheio depende, para sua


validade e regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa)
que sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental
em questão. É dizer, somente quando o contexto fático anterior à
invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior
da residência é que se mostra possível sacrificar o direito à
inviolabilidade do domicílio.
[...]
8. Se, por um lado, a dinâmica e a sofisticação do crime organizado
exigem uma postura mais enérgica por parte do Estado, por outro, a
coletividade, sobretudo a integrada por segmentos das camadas
sociais mais precárias economicamente, também precisa sentir-se
segura e ver preservados seus mínimos direitos e garantias
constitucionais, em especial o de não ter a residência invadida, a
qualquer hora do dia, por policiais, sem as cautelas devidas e sob a
única justificativa, não amparada em elementos concretos de
convicção, de que o local supostamente seria um ponto de tráfico de
drogas ou de que o suspeito do tráfico ali se homiziou.
9. A ausência de justificativas e de elementos seguros a
legitimar a ação dos agentes públicos, diante da
discricionariedade policial na identificação de situações
suspeitas relativas à ocorrência de tráfico de drogas, pode
fragilizar e tornar írrito o direito à intimidade e à inviolabilidade
domiciliar. Tal compreensão não se traduz, obviamente, em
transformar o domicílio em salvaguarda de criminosos,
tampouco um espaço de criminalidade. Há de se convir, no
entanto, que só justifica o ingresso no domicílio alheio a situação
fática emergencial consubstanciadora de flagrante delito,
incompatível com o aguardo do momento adequado para,
mediante mandado judicial, legitimar a entrada na residência ou
local de abrigo.
10. Se é verdade que o art. 5º, XI, da Constituição Federal, num
primeiro momento, parece exigir a emergência da situação para
autorizar o ingresso em domicílio alheio sem prévia autorização judicial
- ao elencar hipóteses excepcionais como o flagrante delito, casos de
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Superior Tribunal de Justiça
desastre ou prestação de socorro -, também é certo que nem todo
crime permanente denota essa emergência. 11. Na hipótese sob
exame, havia somente vagas suspeitas sobre eventual tráfico de drogas
perpetrado pela ré, em razão, única e exclusivamente, de informações
de que haveria traficância na rua de sua residência - que, aliás, poderia
muito bem estar sendo praticada inclusive por outro vizinho ou
qualquer outro morador. Não há, contudo, referência à prévia
investigação policial para verificar a eventual veracidade das
informações recebidas. Também não se tratava de averiguação de
denúncia robusta e atual acerca da ocorrência de tráfico naquele local.
[...]
13. A mera intuição acerca de eventual traficância praticada
pela recorrida, embora pudesse autorizar abordagem policial, em
via pública, para averiguação, não configura, isoladamente, justa
causa a autorizar o ingresso em seu domicílio sem o
consentimento do morador - que deve ser mínima e seguramente
comprovado - e sem determinação judicial.
[...]
15. Recurso especial não provido. (REsp n. 1.558.004/RS, Rel.
Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª T., julgado em 22/8/2017, DJe
31/8/2017, grifei).

Mais recentemente, e ainda ao propósito de exemplificar,


citem-se os seguintes julgados: HC n. 499.163/SP, Rel. Ministro Rogerio
Schietti Cruz, 6ª T., julgado em 9/6/2020, DJe 17/6/2020; REsp n.
1.593.028/RJ, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª T., julgado em
10/3/2020, DJe 17/3/2020; REsp n. 1.787.855/MG, Rel. Ministro Nefi
Cordeiro, 6ª T., julgado em 23/4/2019, DJe 3/5/2019; no mesmo sentido, HC
n. 512.418/RJ, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª T., julgado em 26/11/2019,
DJe 3/12/2019; RHC n. 126.092/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da
Fonseca, 5ª T., julgado em 23/6/2020, DJe 30/6/2020; AgRg no HC n.
483.887/RJ, Rel. Ministra Laurita Vaz, 6ª T., julgado em 17/12/2019, DJe
3/2/2020; HC n. 494.547/MA, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T.,
julgado em 13/8/2019, DJe 4/10/2019; HC n. 586.474/SC, Rel. Ministro Nefi
Cordeiro, 6ª T., julgado em 18/8/2020, DJe 27/8/2020; HC n. 591.741/SP,
Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª T., julgado em 18/8/2020, DJe 2/9/2020; HC
n. 609.072/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., julgado em
6/10/2020, DJe 15/10/2020; HC n. 609.982/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro,
julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020; HC n. 609.955/SP, Rel. Ministro
Nefi Cordeiro, julgado em 2/2/2021, DJe 8/2/2021; RHC n. 134.894/GO,
Rel. Ministro Nefi Cordeiro, julgado em 2/2/2021, DJe 8/2/2021; AgRg no
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Superior Tribunal de Justiça
HC 609.981/RS, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª T., julgado em 02/02/2021,
DJe 08/02/2021.

Não se há de admitir, portanto, que a mera constatação de


situação de flagrância, posterior ao ingresso, justifique a medida. Ora, se o
próprio juiz (um terceiro, neutro e desinteressado) só pode determinar a busca
e apreensão durante o dia e, mesmo assim, mediante decisão devidamente
fundamentada, após prévia análise dos requisitos autorizadores da medida, não
seria razoável conferir a um servidor da segurança pública total
discricionariedade para, a partir de avaliação subjetiva e intuitiva, entrar
de maneira forçada na residência de alguém para verificar se nela há ou não
alguma substância entorpecente.

Aliás, releva destacar que os tribunais, em regra, tomam


conhecimento dessas ações policiais apenas quando delas resulta a prisão do
suspeito, ou seja, quando atingem o fim a que visavam. O que dizer, então,
das incontáveis situações em que agentes do Estado ingressam em
domicílio, muitas vezes durante a noite ou a madrugada – com tudo o
que isso representa para os moradores da residência – e nada encontram?

Quem poderá avaliar o constrangimento, o temor, o trauma


mesmo que uma ação dessa natureza causará a pessoas – crianças e idosos,
inclusive – que sofrem tamanha invasão em suas intimidades e tranquilidade,
as quais imaginavam e esperavam estar preservadas dentro de seus respectivos
lares?

Sobre esse risco de ocorrerem abusos no ingresso de


domicílios de suspeitos, Arion Escorsin de Godoy e Domingos Barroso da
Costa advertem:

Sabe-se que o flagrante autoriza a violação de domicílio, mas essa


relativização do direito fundamental previsto no inc. XI do art. 5º
da Constituição não significa abertura a ações policiais que mais
se assemelham a apostas lotéricas, em que o prêmio –
dependente da sorte do jogador – é o encontro de indícios da
prática de tráfico de drogas e a consequente prisão de quem
possa ser seu autor. Desconstruindo a afirmativa que deve ser
analisada frente às narrativas comuns aos autos de prisão em flagrante
por tráfico de drogas, descobre-se que, em regra, não há uma situação
de flagrância comprovadamente constatada antes da invasão de
domicílio, o que a torna ilegal, violadora de direito fundamental.
Porém, como em um passe de mágica juridicamente insustentável, por
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Superior Tribunal de Justiça
uma convalidação judicial, a apreensão de objetos ou substâncias que
sejam proibidos ou indicativos da prática de crime e a prisão
daquele(s) a quem pertença(m) travestem de legalidade uma ação
essencialmente – e originariamente – violadora de direito fundamental.
(Desconstruindo mitos: sobre os abusos nas buscas domiciliares
ao pretexto de apuração do delito de tráfico de drogas. Boletim do
IBCCRIM, e 7/6/2012. Disponível em:
https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/5797/. Acesso em:
27/2/2021. Destaquei)

Assim, em qualquer outra situação além das que se encontram


positivadas na Carta Maior, é vedado ao agente público, sem o consentimento
válido e inequívoco do morador, ingressar na residência deste, sob pena de,
no campo processual, serem consideradas ilícitas as provas obtidas. Vale dizer,
a “consequência resultante do desatendimento dos critérios estabelecidos pela
Constituição Federal é que a prova obtida em situação que configure violação
do domicílio tem sido considerada irremediavelmente contaminada e ilícita,
ainda que o Poder Público não tenha participado do ato da invasão” (SARLET,
Ingo Wolfgang et al. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016,
p. 461).

O contexto fático, portanto, deve servir de suporte para


justificar a ocorrência de uma das situações de flagrante que autorize a
violação de domicílio. Em outros termos, as circunstâncias que antecederem
a violação do domicílio devem evidenciar, quantum satis e de modo objetivo,
as fundadas razões que justifiquem o ingresso no domicílio e a eventual prisão
em flagrante do suspeito, as quais, portanto, não derivem de mera desconfiança
policial, apoiada, v. g., na fuga de indivíduo de uma ronda ostensiva,
comportamento que pode ser atribuído a vários motivos, não,
necessariamente, o de estar o abordado portando ou comercializando
substância entorpecente.

Pense-se, como explicações para tal comportamento, na


situação em que esteja o suspeito com medo de ser vítima de uma
arbitrariedade, ou com receio de ser preso por estar sem documentos ou por
ostentar um registro criminal em sua folha de antecedentes, ou, ainda, por estar
descumprindo alguma medida judicial restritiva (prisão domiciliar, v. g.) etc.
Tais hipóteses, ou outras a se imaginar, permitiriam a abordagem e até
eventualmente a detenção momentânea da pessoa, mas não justificariam o
ingresso em seu domicílio.

Assim, a menos que se possa inferir a urgência da drástica


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Superior Tribunal de Justiça
medida contra a inviolabilidade do domicílio, que afastaria a necessidade da
obtenção do mandado judicial, não haverá razão séria para a mitigação dessa
garantia constitucional, mesmo que haja posterior descoberta e apreensão
de drogas no interior da residência – circunstância que se mostrará
meramente acidental –, sob pena de esvaziar-se essa franquia constitucional
da mais alta importância.

O entendimento de nossa Suprema Corte – e do Superior


Tribunal de Justiça – se alinha, portanto, ao que vem decidindo, com
detalhamento muito maior, sua homóloga Corte norte-americana, que
tem deixado clara sua preferência pelo uso do mandado de buscas (warrant
preference), de modo a submeter os pedidos de oficiais da Polícia ao escrutínio
de um magistrado (scrutiny of a magistrate), de forma imparcial e
desinteressada (cfe. WEAVER, Russel L. et al. Principles of criminal
procedure, 2. ed., St. Paul: Thomsom West, 2004, p. 64).

Veja-se o que a Suprema Corte decidiu em Illinois v. Gates,


462, U.S. 213, 238 (1983), no sentido de que, para justificar a emissão de um
mandado de busca domiciliar, “o Governo deve estabelecer uma fair
probability de que os específicos itens procurados são a prova de uma
atividade criminal e que aqueles itens estão presentemente localizados no
específico lugar descrito no formulário de mandado de busca” (WEAVER,
Russel L. et al. op. cit., p. 68).

Maior ainda há de ser o rigor na avaliação do ingresso domiciliar


sem mandado judicial. Ao comentar a legislação espanhola, Iñaki Esparza
Leibar anota:

Ningún funcionário de policía podrá efectuar un registro sin la debida


orden que lo autorice, excepto se acredita fehacientemente no sólo que
existe una probable causa que fundamente eventualmente una orden
de registro, sin que también deberá mostrar la existencia de
circunstancias urgentes que impiden la obtención de una orden
de registro sin grave riesgo de pérdida, daño o destrucción de la
evidencia que se pretende lograr, en el tiempo que transcurrirá
hasta la efectiva obtención de la orden (LEIBAR, apud
PITOMBO, C. A. V. B. Da busca e da apreensão no processo
penal. São Paulo: RT, 1999, p. 124).

VI. A urgência da intervenção policial, a autorizar a


dispensa do mandado judicial
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Partindo-se, portanto, da compreensão de que é necessária, para


o ingresso domiciliar não autorizado e não consentido, a existência de
elementos mínimos (justa causa, fundadas razões, causa provável) que
indiquem a prática de crime sendo cometido no interior da residência, é
impositivo delimitar, então, se toda e qualquer situação de crime de
tráfico de drogas pode legitimar o sacrifício do direito à inviolabilidade
do lar, por ação de agente de segurança pública.

Para tal delimitação, releva rememorar que o crime de tráfico de


drogas, por seu tipo plurinuclear, enseja diversas situações de flagrante que
não devem ser confundidas, nem mesmo identificadas quanto à respectiva
dinâmica delitiva. A título meramente exemplificativo, mencione-se o caso em
que determinado indivíduo, surpreendido comprovadamente
comercializando certa quantidade de drogas, empreende fuga para o
interior de sua residência e, imediatamente, é perseguido por policiais, que
buscam sua prisão em flagrante delito. Ou a situação em que agentes estatais,
realizando campana defronte a uma casa, registram o movimento de
ingresso e saída de pessoas, após curto período de permanência, sugerindo o
comércio de drogas, em confirmação a notícia anterior recebida. Nessas
situações, há evidências muito consistentes de que um crime está sendo
cometido no interior da morada, que poderia, em tese, justificar a invasão
de domicílio.

Todavia, nem sempre o suspeito age de modo a ser possível


antever que sua conduta se insere em alguma das dezoito alternativas típicas
que justificam o flagrante. Um exemplo é a simples - e isolada - informação,
fornecida por usuário, de que adquire regularmente sua droga na casa de
determinado fornecedor, sem que com o usuário tenha sido apreendido
entorpecente logo após sua aquisição.

É preciso, nessa última hipótese (e outras similares),


ponderar sobre que tipo de ação preventiva, e mediante qual procedimento,
se pode autorizar o ingresso no domicílio onde, supostamente, esteja sendo
armazenada a droga para fins de comércio ilícito.

Seria, portanto, válido, em algumas situações, dispensar o


mandado judicial, ante a perspectiva de que, no intervalo de tempo para a
obtenção da ordem, ocorra a destruição do próprio corpo de delito. Nada
obstante, como tal quadro não é tão corriqueiro, melhor seria termos o trabalho
policial bem feito, primando pela segurança de suas ações e não transigindo
com a preservação das liberdades públicas.
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Superior Tribunal de Justiça

Logo, a autorização judicial é o caminho a tomar, de sorte a


evitar situações que possam, a depender das circunstâncias, comprometer
a licitude da prova e, por sua vez, ensejar possível responsabilização
administrativa, civil e penal do(s) agente(s) da segurança pública
autor(es) da ilegalidade, além, é claro, da nulidade – amiúde irreversível – de
todo o processo, até mesmo transitado em julgado, com evidente prejuízo não
apenas ao Poder Judiciário, mas, especialmente, à sociedade.

Gisela Wanderley, em notável dissertação de mestrado na


Universidade de Brasília, com muita acuidade pontuou que:

[A] situação de flagrante delito, em especial nos casos de


crimes permanentes, não necessariamente configura uma
hipótese de urgência, a qual justificaria o excepcional ingresso na
residência a qualquer tempo e sem controle prévio de legalidade. Com
efeito, especialmente em virtude da proliferação de tipos penais de
perigo abstrato na legislação, diversas situações de flagrante delito não
implicam perigo nem mesmo potencial a bem jurídico. Assim, é crucial
notar que há crimes cuja situação de flagrância implica situação de
urgência e crimes cuja situação de flagrância não implica situação de
urgência. Nessa esteira, pode ser particularmente elucidativo o
contraste entre os crimes de sequestro (CP, art. 148) e de posse
de entorpecentes em depósito (Lei 11.343/2006, art. 33), ambos
crimes permanentes passíveis de cometimento em ambiente domiciliar.
No primeiro caso (sequestro), o dano ao bem jurídico tutelado pela
norma incriminadora (liberdade individual) se prolonga ao longo da
execução do crime e justifica a entrada imediata no domicílio a fim de
cessar a prática delitiva. No segundo caso (posse de entorpecentes
em depósito), não se verifica uma situação de dano, nem de
perigo concreto, nem de perigo potencial, configurada pela mera
presença de substâncias entorpecentes no interior da residência.
Não há situação de urgência, portanto, que dispense o controle
prévio da legalidade da medida. Não por outra razão, a própria Lei
11.343/2006 (cf. art. 53, II) 9) autoriza o “flagrante diferido” na
investigação dos crimes de tráfico de entorpecentes, exatamente
porque se trata de crime cuja prática não desencadeia situação
de dano ou de perigo concreto. Assim, como a prática delitiva não
demanda a sua interrupção imediata a fim de proteger bem jurídico e
evitar dano, permite-se que, mesmo diante de situação de
flagrância, a investigação seja diferida no tempo a fim de
angariar elementos de informação mais robustos e abrangentes.
É curioso notar, no ponto, que o flagrante diferido somente pode ser
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realizado com a devida autorização judicial prévia, acrescida da oitiva
de membro do Ministério Público. Trata-se de importante previsão
legal, que submete o acompanhamento policial diuturno das
rotinas dos suspeitos a escrutínio judicial, evitando-se a
banalização da devassa da vida privada, ao arrepio do disposto no
inc. X do art. 5.º da CF/1988. Torna-se evidente, assim, que a
situação de flagrância não apenas não constitui hipótese de
obrigatoriedade da intervenção policial, como também não
constitui hipótese impeditiva do controle judicial de validade da
intervenção policial orientado à proteção dos direitos
fundamentais dos suspeitos. Nesse contexto, é forçoso concluir que
a situação de flagrância, diante dos atuais termos da legislação penal e
processual penal vigente, não equivale a uma situação de urgência. Ao
contrário, a própria legislação infraconstitucional indica a não
coincidência entre flagrância e urgência ao permitir a
postergação da prisão em flagrante em casos determinados, em
que a melhor instrumentalização da investigação justifica o retardo na
interrupção da prática delitiva. Assim, constata-se que a mera situação
de flagrante delito, nos termos em que definida pela legislação
infraconstitucional (CPP, art. 302 c/c 303), não é suficiente para
justificar a excepcional dispensa de autorização judicial prévia para a
prática de busca domiciliar, a qual se restringe apenas aos casos de
urgência, nos quais se inviabiliza o controle prévio de validade do ato.
No ponto, reitere-se que, em especial nos casos de crimes de perigo
abstrato, que ora se disseminam na legislação pátria, a prática delitiva
não implica perigo concreto ou dano ao bem jurídico que justifique a
intervenção policial imediata. Assim, não há empecilho a que o
policial requeira autorização judicial para a entrada forçada em
domicílio. Nessa trilha, torna-se evidente que a presunção de
urgência nos casos de flagrante delito não pode ser interpretada
como absoluta, sob pena de se viabilizar o esvaziamento do
direito fundamental à inviolabilidade domiciliar por meio da
legislação penal infraconstitucional. (Liberdade e suspeição no
Estado de Direito: o poder policial de abordar e revistar e o
controle judicial de validade da busca pessoal. Dissertação
(Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
Disponível em:
https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/24089/3/2017_GiselaAguiar
Wanderley.pdf. Acesso em: 4/10/2020, destaquei).

No mesmo sentido, inclusive com similar exemplo, é o


pensamento de Celso Delmanto, ao anotar que o flagrante que autoriza o
ingresso domiciliar, sem mandado judicial, é o que traduz uma
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Superior Tribunal de Justiça
“verdadeira emergência”. Confira-se:

Seriam hipóteses, por exemplo, de flagrante de crimes permanentes


como a extorsão mediante sequestro, em que há a necessidade de
prestar-se socorro imediato à vítima que corre perigo de vida etc., o
que não se verifica em casos de crimes permanentes como a
simples posse de entorpecentes ou de armas ilegais. [...] Não
obstante se possa alegar que esse entendimento poderia obstaculizar a
ação policial, este é o preço que se paga por viver em um Estado
Democrático de Direito, que deve tomar todas as medidas para
restringir, ao máximo, a possibilidade de arbítrios e desmandos das
autoridades policiais por mais bem intencionadas que possam elas
estar. (DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 6. ed. atual.
e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 324, destaquei).

Essa percepção, quanto à não coincidência entre situação de


flagrante delito e situação de emergência, a dispensar a providência padrão
de uma ordem judicial de ingresso no domicílio do suspeito, fora também
destacada por Ingo Sarlet, ao pontuar que somente situações que exigem uma
urgente intervenção policial autorizam o ingresso domiciliar sem mandado:

Nesse diapasão, a prova colhida sem observância da garantia da


inviolabilidade do domicílio é ilícita, não necessariamente porque
ausente mandado de busca e apreensão, mas sim, porque ausentes, no
momento da diligência, mínimos elementos indiciários da ocorrência do
delito cujo estado flagrancial se protrai no tempo em face da natureza
permanente e, assim, autoriza o ingresso na residência sem que se fale
em ilicitude das provas obtidas ou em violação de domicílio. Acresce
que, sendo o perigo na demora vetor decisivo para que o
flagrante autorize a entrada no domicílio, nos crimes
permanentes a intensidade desta razão diminui, já que, em tese,
viável socorrer-se de mandado judicial, diferente da intervenção
para evitar-se a consumação de um delito instantâneo, como um
homicídio. (SARLET, Ingo W. Posição do Supremo sobre violação
de domicílio é prudencial. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2015-dez-04/direitos-fundamentais-posicao
-supremo-violacao-domicilio-prudencial. Acesso em: 4/10/2020,
destaquei).

Oportuno, a esse respeito, o alerta quanto à prática de dispensar


mandados de busca e apreensão em nome de uma conjecturada urgência da
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prova do crime:

[...] Como entender urgente o que se protrai no tempo? É possível,


graças à presença diuturna do judiciário guardião da lei, requerer e ser
atendido em pouco tempo, o direito constitucionalmente previsto de
entrar em domicílio. A facilidade do arguir-se urgência é forma
espúria de desconhecer direitos, é subterfúgio para o exercício
de força, é descumprimento do dever de acatar as diretrizes
políticas assumidas pelo Estado. Impossível legalizar o ilícito.
Deve, nestes crimes chamados permanentes, especificamente
por durarem, não se reconhecer a urgência do flagrante próprio,
pois nem se evita sua consumação, nem se impede maiores
consequências, e, sobretudo, arrisca-se sequer determinar a autoria,
interesse maior nesses casos. O argumento de urgência deve
fundamentar pedido à autoridade judiciária, inclusive, modos legais
de realização (TÔRRES, Ana Maria Campos. A busca e apreensão e
o devido processo. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 153-154).

Vale a menção ao direito norte-americano, em especial a


exceção das exigent circumstances, que permite as buscas independentemente
de mandado judicial, que é a regra, evidentemente, quando se trata de obter
prova de crime dentro de um local habitado. Assim, a Suprema Corte autoriza
a busca e apreensão domiciliar quando a Polícia, sem mandado, depara com
certas circunstâncias, como, por exemplo, quando se ouvem gritos por ajuda
de dentro de um imóvel. A Corte entende que essas circunstâncias
autorizadoras do ingresso no domicílio incluem a necessidade de “assist
persons who are seriously injured or threatened with such injury” (ajudar
pessoas gravemente feridas ou ameaçadas de sofrer tal lesão), ou a
necessidade de intervir “para prevenir a destruição de provas”, ou no curso
de perseguição a um criminoso perigoso em fuga (“dangerous fleeing
felon”) e não seja possível, cercando a casa, aguardar o mandado para
nela ingressar. (WEAVER, Russel L. et al. Principles of criminal procedure.
2. ed. St. Paul: Thomson West, 2007).

Nesse sentido, Roxin e Schunemann lembram que


el peligro en la demora debe estar fundado en hechos que se
relacionan con el caso concreto. Una presunción que se basa
únicamente en la mera intuición criminalística cotidiana, independiente
del hecho, no es suficiente. Los funcionarios de la persecución penal
deben, en lo esencial, intentar primero dirigirse a un juez competente,
antes de emplear su competencia para casos de urgencia (BVerfGE
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Superior Tribunal de Justiça
103, 142, 155) (ROXIN Claus, SCHUNEMANN, Bernd. Derecho
Procesal Penal. Buenos Aires: Didot, 2019, p 432, destaquei).
É preciso, assim, avaliar, com mais rigor, o ingresso em
domicílio alheio com as usuais justificativas de ser urgente a situação
porque havia indícios fortes de que existia droga na residência onde se deu a
operação e de que eventual atraso poderia comprometer não apenas a prisão do
suspeito como também a apreensão do corpo de delito do crime previsto na Lei
Antidrogas.

VII. Avaliação do suposto consentimento do morador


para o ingresso policial na residência

Neste ponto reside a questão que, a meu aviso, mais demanda


posição firme dos tribunais pátrios na análise dos autos de prisão em
flagrante decorrentes de ingresso em domicílios pelas polícias.

E é também este o ponto central do voto, i.e., o que propõe


nova e criteriosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento
do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais.

Isso porque, não há, nem no âmbito normativo, nem na


jurisprudência pátria, previsão de requisitos ou condições a serem
observados para minimizar o risco de abusos em buscas domiciliares –
salvo a formal advertência constante do art. 248 do CPP, de que “Em casa
habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do
que o indispensável para o êxito da diligência” – derivadas de suposto
flagrante por crime de tráfico de entorpecentes, na hipótese em que, pelo
auto flagrancial, informa-se ter havido autorização do morador ou do próprio
suspeito para o ingresso no domicílio.

A jurisprudência, mesmo dos Tribunais Superiores, ainda não


firmou clara posição a esse respeito. Aqui no STJ, há precedente de 2017 em
que se propõem critérios similares aos adotados pelo Tribunal Supremo da
Espanha – conforme mencionarei adiante – para a validação do consentimento
do morador (REsp n. 1.558.004/RS, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª
T., julgado em 22/8/2017, DJe 31/8/2017); no Supremo, o pioneiro voto do
Ministro Gilmar Mendes, no RE, já sinaliza essa necessidade de enfrentamento
do tema, o qual, todavia, não foi ali desenvolvido porque escapava do objeto
da impugnação. Confira-se:

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Superior Tribunal de Justiça
Outra questão não apreciada é a validade do consentimento do
morador. As hipóteses concretas podem revelar
desdobramentos complexos, seja quanto à prova do
consentimento, seja quanto a sua validade e suficiência. A
Suprema Corte dos Estados Unidos vê com desconfiança o
consentimento do morador obtido pelo agente estatal “sob autoridade
governamental” (under government authority) ou “sob as cores do
uniforme” (under color of office) – respectivamente, casos Amos v.
United States, 255 U.S. 313 (1921) e caso Johnson v. United States
333 U.S. 10 (1948). Já houve algum debate sobre o assunto no HC
79.512, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 16.12.1999. O
tema em julgamento, no entanto, não se presta a resolver a questão
(RE n. 603.616, Relator: Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado
em 5/11/2015, DJe-093).

Como se nota, a matéria não foi enfrentada com desejados


vagar e aprofundamento, o que acaba por perpetuar situações frequentes –
objeto de inúmeros julgados desta Corte – em que a Polícia ingressa em
domicílios de moradores da periferia à busca de drogas, armas ou fugitivos,
sem fundadas razões a justificar tal excepcional providência.

Essa ausência de definição pelos Tribunais Superiores – visto


que a lei nada diz sobre como deve ocorrer o consentimento do morador e
como aferir sua validez e voluntariedade – acaba por permitir a continuação
de violações a direitos fundamentais inscritos na Lei Maior.

Ainda me valho da pesquisa de Gisela Aguiar – apoiada em


trabalhos paralelos de igual temática – que evidencia o componente racial e
social das abordagens policiais em grandes centros urbanos. Confira-se o
seguinte excerto:

Batitucci et al. (2014, p. 14) notam então que a suspeição policial se


ampara em dois tipos de indicadores interligados entre si:
“características do indivíduo (roupas, atitudes, reação à aproximação
da polícia), bem como características relacionadas aos lugares ou
territórios (alta criminalidade, grande disponibilidade de alvos, horário,
etc.)”. Nenhum dos dois indicadores possui correlação com as
condutas criminalizadas ou proibidas na ordem jurídica. Nesse
contexto, não há impedimento a critérios preconceituosos para a
abordagem, embasada não no “uso da informação investigativa livre de
preconceitos”, mas no “consenso de que determinadas características
humanas se apresentam incompatíveis com alguns ambientes
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Superior Tribunal de Justiça
específicos” (COSTA, 2013, p. 42). [...]
Nesse cenário, em um país marcado por alta desigualdade social
e racial, a construção da suspeita com base em critérios
subjetivos e no senso comum tende a se amparar na
estigmatização de grupos e tipos marginalizados como potenciais
criminosos, cristalizados como tipos ideais de suspeitos. A suspeição
repousa assim sobre uma conjunção de fatores subjetivos
considerados de risco, tais “como idade, gênero, cor, classe
social, geografia, vestimenta, comportamento e situação de
policiamento” (TERRA, 2010, p. 78). Por isso, as abordagens
tendem a voltar-se contra grupos já objetos de exclusão, a qual é
então reproduzida pela repressão policial.
Contudo, ainda que a prática da filtragem racial seja negada entre os
interlocutores, muitos dos elementos que compõem a chamada
fundada suspeita remetem a um grupo social específico, caracterizado
pela faixa etária, pertença territorial e que exibe signos de um estilo de
vestir, andar e falar que reivindica aspectos da cultura negra, e que é,
em muitos casos, também constituinte de uma cultura “da periferia”.
Conforme atestam os depoimentos, a vestimenta e a postura corporal
são consideradas indícios empíricos a fundamentar a suspeita policial
(MOTA; SILVA; OVALLE, 2014, p. 9). (WANDERLEY, Gisela
Aguiar. Filtragem racial na abordagem policial: a “estratégia de
suspeição generalizada” e o (des)controle judicial da busca
pessoal no Brasil e nos Estados Unidos. RBCCRIM, v. 135, set.
2017, p. 189-229, destaquei).

A avaliação da douta pesquisadora encontra eco no quotidiano


nacional, que compromete a necessária aquisição de uma cultura
democrática de respeito aos direitos de todos, independentemente de
posição social, condições financeiras, profissão, local da moradia, cor ou
raça. Basta, para confirmar essa avaliação, realizar uma breve pesquisa em
periódicos ou mídias eletrônicas para se colher inúmeros exemplos de busca
domiciliar sem mandado judicial, coincidentemente, sempre nos bairros
periféricos. Esse fenômeno, que se repete Brasil afora, de norte a sul, de leste
a oeste, pode ser ilustrado com os três seguintes casos, veiculados em órgãos
de imprensa escrita ou digital.

O primeiro exemplo ocorreu em um bairro da zona norte de


Recife, onde policiais militares visualizaram, em ronda por um bairro, uma
mulher entrando em um veículo de aplicativo com “atitudes suspeitas”. Na
abordagem, surpreenderam-na com cocaína e maconha. Como a flagranteada
afirmou ter saído da residência de uma pessoa chamada Sara, os policiais
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Superior Tribunal de Justiça
empreenderam diligências na propriedade, ocasião em que apreenderam crack e
cocaína com outros dois indivíduos. A defesa de Sara – cujo flagrante foi
convertido em prisão preventiva, apesar de ser mãe de uma menina de 5 anos
de idade e estar grávida em plena pandemia de COVID-19– afirma que ela
estava em casa, dormindo, quando a polícia invadiu a residência. (Notícia
publicada no Diário de Pernambuco em 22/6/2020. Disponível em
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2020/06/manifesta
cao-no-recife-contesta-prisao-de-ativista-por-suspeita-de-tra.html. Acesso em:
4/10/2020).

O segundo caso que se traz a título de exemplificação vem da


cidade de São Paulo, onde moradores de um prédio na região do Glicério
foram surpreendidos, em plena tarde, por policiais militares da ROTA entrando
em apartamentos sem mandado judicial, bem como realizando revistas pessoais
aleatórias nos corredores do edifício. A reportagem apurou que a operação
começou por volta das 14h, quando a polícia usou um cão farejador para
abordar moradores. Um deles – usuário de maconha – relatou que “bateram na
porta, eu abri e eles já colocaram a arma na minha cara, perguntaram se
poderiam entrar na minha casa para ver se tinha alguma coisa [drogas]”,
salientando, ainda, que “não tinha nem como dizer não ou argumentar”.
Segundo a matéria jornalística, o modus operandi repetiu-se por inúmeros
apartamentos, e algumas pessoas que chegaram no prédio no momento da
operação tiveram mochilas e bolsas abertas e revistas pelos policiais [que
vestiam toucas ninja] e foram impedidas de usar o elevador, mesmo sendo
moradores”. Procurada pela reportagem, a PMSP, em nota, informou que
recebeu uma denúncia e, por isso, foi ao local: “Por volta das 15h35 desta
sexta-feira (23), recebemos uma denúncia que um suspeito envolvido com
tráfico de drogas foi localizado na Rua Helena Zerrener. Equipes da Rota
(Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio
de Motocicletas) se deslocaram para averiguação, mas nada foi constatado”.
(Matéria veiculada em no site Ponte. Disponível em
https://ponte.org/rota-entra-em-apartamentos-sem-mandado-e-revista-moradore
s-no-centro-de-sp/. Acesso em: 4/10/202).

O terceiro exemplo ocorreu em uma noite de domingo, por


volta das 23h, quando, após o recebimento de várias denúncias acerca da
traficância em uma residência no Bairro Cedros, em Camboriú (SC), a Polícia
Militar deslocou-se até o endereço, momento em que um menor de idade
evadiu-se pelos telhados das residências vizinhas, deixando cair um pote
contendo 25 pedras de crack. Após breve perseguição a pé, o adolescente foi
apreendido na posse de 2 pedras de crack e R$ 40,00 em espécie.
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Superior Tribunal de Justiça
Imediatamente, a polícia realizou uma varredura na casa em questão, quando
abordou uma mulher, em cujo colchão encontrou uma pochete com a quantia
de R$ 316,00 em notas miúdas e três pedras de crack. (Matéria publicada em
6/4/2020, no site Camboriú News. Disponível em
https://camboriu.news/mulher-e-presa-por-trafico-de-drogas-e-corrupcao-de-me
nores-em-camboriu/, Acesso em: 4/10/2020).

Os exemplos poderiam ser multiplicados, mas basta que nos


reportemos mais uma vez ao que disse, sobre certa operação policial no
Complexo do Alemão, o ex-Secretário de Segurança do estado do Rio de
Janeiro, José Mariano Beltrame, conforme reproduzido em voto do Ministro
Relator do RE 603.616, Gilmar Mendes: “Verificamos praticamente uma a
uma, as cerca de 30 mil residências e todos os becos da região, à procura
de drogas, armas e bandidos."

VIII. O tratamento do consentimento do morador no


Direito Comparado

Em outros países trilhou-se caminho judicial assertivo na


definição das hipóteses de autorização para ingresso no domicílio alheio, ainda
que, como aqui, não haja normatização detalhada nas respectivas Constituições
e leis, geralmente limitadas a anunciar o direito à inviolabilidade da intimidade
domiciliar e as possíveis autorizações para o ingresso alheio.

Sem dúvida alguma, os Estados Unidos nos fornecem mais


subsídios para a análise desse tema. Já houve, nos precedentes citados acima
(RE n. 603.616, no STF; REsp n. 1.574.681/RS, DJe 30/5/2017), alusão a
alguns dos casos julgados pela Suprema Corte daquele país, nos quais se
assentou a necessidade do exame da causa provável para o ingresso policial em
domicílio de suspeitos de crimes. Resta, agora, enfrentar outro ponto dessa
temática: a validade do consentimento do morador para a entrada de agentes
estatais em sua residência.

De maneira geral, a compreensão da doutrina e da


jurisprudência norte-americanas sobre o consentimento do morador é a de
que, para ser válido, “deve ser inequívoco, específico e conscientemente
dado, não contaminado por qualquer truculência ou coerção (“consent, to
be valid, ‘must be unequivocal, specific and intelligently given,
uncontaminated by any duress or coercion’”). (United States v McCaleb, 552
F2d 717, 721 (6th Cir 1977), citing Simmons v Bomar, 349 F2d 365, 366 (6th
Cir 1965).
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Superior Tribunal de Justiça

Em Scheneckloth v. Bustamonte, 412 U.S. 218 (1973), a


SCOTUS estabeleceu algumas orientações sobre o significado do termo
“consentimento”. Decidiu-se que as buscas mediante consentimento do
morador (ou, como no caso, do ocupante do automóvel onde se realizou a
busca) são permitidas, “mas o Estado carrega o ônus de provar ‘que o
consentimento foi, de fato, livre e voluntariamente dado’”. O
consentimento não é livre quando de alguma forma se percebe uma coação da
sua vontade. A Corte indicou que o teste da “totality of circumstances” deve
ser aplicado mentalmente, considerando fatores relativos ao próprio
suspeito (i.e., se ele é particularmente vulnerável devido à falta de estudos,
baixa inteligência, perturbação mental ou intoxicação por drogas ou álcool) e
fatores que sugerem coação (se estava detido, se os policiais estavam com
suas armas à vista, ou se lhe disseram ter o direito de realizar a busca, ou
exercitaram outras formas de sutil coerção), entre outras hipóteses que
poderiam interferir no livre assentimento do suspeito (ISRAEL, Jerold H.;
LAFAVE, Wayne R. Criminal procedure. Constitucional limitations. 5. ed.
St. Paul: West Publishing, 1993, p. 139-141).

Como sintetizado por Rachel Karen Laser (Unreasonable


Suspicion: Relying on Refusals to Support Terry Stops. The University of
Chicago Law Review, v. 62, n. 3 (Summer, 1995), p. 1.161-1.185), “traços
subjetivos, incluindo a idade do suspeito, nível de educação, inteligência, a
duração da detenção e a natureza do interrogatório são considerados em uma
avaliação de voluntariedade da ‘totalidade das circunstâncias’”. (“Subjective
traits, including the suspect's age, education level, intelligence, the length of
detention, and the nature of the questioning are all considered in a ‘totality
of the circumstances’ assessment of voluntariness.")

Em geral, portanto, “quando um promotor se apoia no


consentimento para justificar a legalidade de uma busca, ele tem o ônus
de provar que o consentimento foi, de fato, dado livre e voluntariamente”
(“when a prosecutor seeks to rely upon consent to justify the lawfulness of a
search, he has the burden of proving that the consent was, in fact, freely and
voluntarily given" (LASER, Rachel Karen, op. cit.).

São as seguintes, portanto, as diretrizes construídas pela


Suprema Corte para aferir a validade do ingresso domiciliar por agentes
policiais:

1. Número de policiais: a presença de vários agentes do lado


de fora da residência é um fator intimidante e, portanto, anula a voluntariedade
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Superior Tribunal de Justiça
do consentimento (People v. Michael (1955) 45 Cal.2d 751, 754; U.S. v.
Washington (9a Cir. 2004) 387 F.3d 1060, 1068; Orhorhaghe v. I.N.S. (9ª Cir.
1994) 38 F.3d 488, 494; U.S. v. Conner (8th Cir. 1997) 127 F.3d 663, 666;
State v. Ferrier (Wash. 1998) 960 P.2d 927, 928);

2. Suspeito cercado de policiais: é considerado coercitivo que


policiais cerquem ou fiquem ao redor do suspeito enquanto buscam
consentimento (U.S. v. Washington (9ª Cir. 2004) 387 F.3d 1060, 1068;
Orhorhaghe v. I.N.S. (9a Cir. 1994) 38 F.3d 488, 494, fn. 8);

3. Atitude dos policiais: a maneira de se apresentar e de


buscar o consentimento pode comprometer a validade da busca se o morador é
confrontado de tal modo que a Polícia não aceitará um não como resposta à
solicitação (EUA v. Tobin (11ª Cir. 1991) 923 F.2d 1506, 1512; Orhorhaghe v.
I.N.S (9ª Cir. 1994) 38 F.3d 488, 495-6; People v. Boyer (1989) 48 Cal.3d
247, 268);

4. Exigência da busca: o consentimento é involuntário se tiver


sido dado depois que os policiais disseram ou sugeriram que tinham um
mandado ou algum outro direito legal de realizar uma busca imediata, ou se
disseram que, se não permitissem o ingresso, eles obteriam um mandado
(Bumper v. Carolina do Norte (1968) 391 U.S. 543, 550); Lo-Ji Sales, Inc. v.
Nova York (1979) 442 U.S. 319, 329; People v. Challoner (1982) 136
Cal.App.3d 779, 781; People v. Baker (1986) 187 Cal.App.3d 562, 564;
Pessoas v. Byrd (1974) 38 Cal.App.3d 941, 944; People v. Rupar (1966) 244
Cal.App.2d 292, 298; People v. McClure (1974) 39 Cal.App.3d 64, 69; People
v. Ruster (1976) 16 Cal.3d 690, 701; People v. Jenkins (1980) 28 Cal.3d 494,
503, fn.9]; People v. Gurtenstein (1977) 69 Cal.App.3d 441; People v. Ward
(1972) 27 Cal.App.3d 218; People v. Goldberg (1984) 161 Cal.App.3d 170,
188);

5. Ameaças ao suspeito: o consentimento para entrar ou


procurar não será considerado voluntário se resultar da ameaça de um policial
de, por exemplo, ser preso se não cooperar (U.S. v. Washington (9ª Cir. 2004)
387 F.3d 1060, 1069; Wilson v. Tribunal Superior (1983). Da mesma forma, o
consentimento poderá também ser considerado involuntário se o policial disser
ao morador que poderia interpretar uma recusa em consentir com a busca
como uma confissão (Crofoot v. Tribunal Superior (1981) 121 Cal.App.3d
717);

6. Hora da diligência: a presença de policiais fardados e


armados na porta da residência é algo em si assustador, especialmente se os
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Superior Tribunal de Justiça
ocupantes estiverem dormindo. Como observou o Tribunal de Apelações dos
EUA, a lei reconhece a “vulnerabilidade especial” das pessoas “despertadas à
noite por uma invasão da polícia em sua morada”, o que exige ainda maior
cautela no exame de sua validade (US v. Jerez (7ª Cir. 1997) 108 F.3d 684,
690; US v. Ravich (2ª Cir. 1970) 421 F.2d 1196, 1201).

Em países europeus também se encontra essa preocupação,


embora sem a riqueza jurisprudencial da Corte estadunidense.

Cite-se o exemplo da Espanha, em que julgados do seu


Tribunal Supremo (SSTS. 1803/2002, 261/2006 e 951/2007) interpretaram o
art. 18.2 da Constituição da Espanha de tal modo a construir um rol de
exigências para que se tenha como validamente autorizado o ingresso em
domicílio alheio. A proteção constitucional da morada concretiza, assim, o
resguardo da inviolabilidade do lar como âmbito de privacidade, pela qual
o sujeito é isento e imune a qualquer tipo de invasão a seu espaço por
outras pessoas ou autoridades públicas.

Esse consentimento, “verdadeira fuente de legitimación del


acto de injerencia de los poderes públicos en el domicilio del imputado”,
decorre do próprio enunciado constitucional, como também do art. 12 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, do art. 8 da Convenção de Roma
e do art. 17 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

Segundo a Corte espanhola, são os seguintes os requisitos a


serem considerados para analisar o consentimento autorizado de ingresso no
domicílio:

a) Consentimento por pessoa capaz, maior de idade e no


exercício de seus direitos;

b) A outorga do consentimento deve ser consciente e livre, a


qual exige que: b1) não esteja invalidada por erro, violência ou intimidação de
qualquer modo; b2) não seja condicionada a alguma circunstância periférica,
como promessas de qualquer atuação policial; b3) seja precedida da assistência
de um defensor, do que constará da diligência policial, na hipótese em que a
pessoa estiver presa ou detida (STS 2-12-1998). Isso porque se a assistência
de defensor é necessária para que o conduzido preste declarações, dado o
prejuízo aos seus direitos, o consentimento também o será, consideradas
a "intimidação ambiental" e/ou "a coação que a presença dos agentes da
atividade representa" (STS. 831/2000);

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c) O consentimento pode ser prestado por meio oral ou por


escrito, porém sempre vertido documentalmente;

d) O consentimento deve ser expresso, não servindo o silêncio


como consentimento tácito (SS. 7.3 y 18.12.97 e S. 23.1.98). Sobre este item,
refere o Tribunal Supremo que, embora autorizado o consentimento presumido
pelo art. 551 do CPP espanhol, esse dispositivo "ha de interpretarse
restrictivamente, pues el consentimiento tácito ha de constar de modo
inequívoco mediante actos propios tanto de no oposición cuanto, y sobre
todo, de colaboración, pues la duda sobre el consentimiento presunto hay
que resolverla en favor de la no autorización, en virtud del principio in
dubio libertas y el criterio declarado por el Tribunal Constitucional de
interpretar siempre las normas en el sentido mas favorable a los derechos
fundamentales de la persona, en este caso del titular de la morada" (STS
4761/2013);

e) A autorização deve ser dada pelo titular do domicílio. A


relação jurídica entre o titular do direito e sua salvaguarda deve prevalecer, não
sendo necessária a propriedade. Em caso de várias pessoas terem seu domicílio
no mesmo lugar, não é necessário o consentimento de todos, bastando a
anuência de um dos cotitulares, desde que não haja interesses contrapostos
(STS. 779/2006);

f) O consentimento deve ser outorgado para um caso


concreto, sem que seja usado para fins distintos, ou seja, vigora a
especialidade da busca (STS, sentença de 6 de junho de 2001);

g) São dispensadas as formalidades exigidas no art. 569 da Ley


de Enjuiciamiento Criminal (Tribunal Supremo da Espanha - STS 1803/2002,
4/11/2002).

Semelhante entendimento foi ratificado em novas decisões do


Tribunal Supremo espanhol (Sentencia nº 953/2010 (Sección 1, Rec.
447/2010), de 27 de octubre de 2010; Sentencia nº 296/2011 (Sección 1,
Rec.11021/2010), de 18 de abril de 2011; Sentencia nº 312/2011 (Sección 1,
Rec.10626/2010), de 29 de abril de 2011).

Cleunice Pitombo, acerca do tema, enfatiza que a anuência do


morador para o ingresso alheio em seu domicílio “há que ser real e livre.
O consentimento deve ser expresso. Inadmissível a simples autorização
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tácita. A menos que, de modo muito inequívoco, se possa constatá-la, seja
pela prática de atos de evidente colaboração, ou de ostensiva não-oposição à
entrada. Ocorrendo dúvida, melhor entender que inexistiu o
consentimento, pois ele não se presume” (PITOMBO, Cleunice A. Valentim
Bastos. Da busca e da apreensão no processo penal. São Paulo: RT, 1999, p.
118). E, em nota de rodapé (97), complementa: “Infelizmente, no Brasil e
em outros lugares, em que o povo miúdo desconhece os próprios direitos,
o abuso policial surge manifesto. A polícia invade casas e o morador,
temeroso, tímido, não lhe coarcta o passo”.

Assim, em qualquer outra situação além das que se encontram


positivadas na Carta Maior, é vedado ao agente público, sem o consentimento
válido e inequívoco do morador, ingressar em sua residência, sob pena de,
no campo processual, serem consideradas ilícitas as provas obtidas. Vale dizer,
a “consequência resultante do desatendimento dos critérios estabelecidos pela
Constituição Federal é que a prova obtida em situação que configure violação
do domicílio tem sido considerada irremediavelmente contaminada e ilícita,
ainda que o Poder Público não tenha participado do ato da invasão”
(SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de direito constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2016, p. 461, destaquei).

São, portanto, muitas as variáveis a considerar, e o objetivo


dessa enumeração de situações não é apenas o de ilustrar o voto com indicação
de precedentes de tribunais estrangeiros, mas o de evidenciar como nós
estamos acomodados e deficitários no enfrentamento de um tema que, em
nossa realidade, é ainda mais carente de melhor regulamentação ou delimitação
quanto ao modo de agir das polícias na execução de buscas domiciliares não
autorizadas.

Trago, por oportuno, percuciente avaliação de Salo de Carvalho


e Mariana de Assis Brasil e Weigert, em parecer lançado a respeito do caso de
um jovem negro da periferia do Rio de Janeiro, que teria sido preso e
processado injustamente. Independentemente da veracidade ou não do relato,
colaciono alguns trechos do parecer, nos quais se procura demonstrar, por
observação empírica e dados coletados por institutos de pesquisa, como não se
pode deferir total credibilidade à palavra de policiais militares daquele estado,
quando depõem, como testemunhas, em processo criminal instaurado contra
pessoa objeto da atuação castrense. Dizem os pareceristas:

No exercício da função pública, portanto, supõe-se que o policial


militar atue dentro da legalidade, sendo sua palavra, fundada nos
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Superior Tribunal de Justiça
princípios éticos da boa-fé e da probidade, comprometida com a
veracidade dos fatos, notadamente em razão de validar importantes
atos subsequentes, como indiciamentos, denúncias e decisões judiciais.
[...]
Como referido, é lógico que em situações de normalidade
democrática poderia ser presumido que os atos dos poderes
encontram-se em harmonia com a Constituição, sendo, portanto,
legítimos, idôneos e verídicos. Assim, o seu afastamento ocorreria nos
casos em que haveria prova inequívoca em sentido contrário como,
aliás, é o entendimento dogmático majoritário.
No entanto, esta máxima que regula os modelos ideais típicos
dos Estados de Direito é invariavelmente confrontada na análise
da incidência real dos sistemas penais, isto é, quando colocada a
prova no campo das práticas punitivas. Roberto Bergalli (Bergalli,
Roberto. Fallacia Garantista nella Cultura Giuridico Penale di Lingua
Ispanicain Gianformaggio, Letizia (org.). Le Ragioni del Garantismo:
discutendo com Luigi Ferrajoli. Torino: Giappichelli, 1993, p. 192), a
partir da análise empírica da atuação das agências penais, é
extremamente perspicaz ao demonstrar que historicamente os sistemas
punitivos não observaram os níveis possíveis de legalidade fixados
pelas estruturas normativas. A situação é ainda mais grave na América
Latina, local em que a regra é a inobservância dos níveis mínimos de
legalidade, ou seja, dos parâmetros que dão as condições de
verificabilidade da regularidade dos atos dos poderes públicos
(punitivos). [...]
Assim, podemos perceber que se no âmbito dos direitos sociais, p.
ex., é crível afirmar que a ação dos poderes públicos é “amiga dos
direitos”, tal assertiva não pode ser transposta acriticamente para o
campo da intervenção policial. E não há, nessa afirmação, nenhum
preconceito contra essa atividade. Todavia, seria no mínimo
ingenuidade, mesmo no plano abstrato e teórico, imaginar que a
ação de polícia, que não esporadicamente implica confronto, não
seja uma atividade violenta que restrinja e, no limite, viole os
direitos individuais. [...]
A enorme desconfiança da população em relação às práticas
policiais decorre da percepção concreta dos tipos e das formas
de abordagem realizadas no cotidiano da cidade, sobretudo nos
locais de vivência da população mais vulnerável. Importante
sublinhar que a conclusão não decorre de um mero exercício de
abstração acadêmica – como muitas vezes é adjetivada a crítica
à violência policial, com nítida intenção de desqualificar as
tentativas de visibilização deste problema real. Com o
crescimento do nível de violência por parte da polícia, são cada

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Superior Tribunal de Justiça
vez mais frequentes as notícias de abusos praticados pelas
instituições militares. (CARVALHO, Salo de. Mariana de;
WEIGERT, Assis Brasil e. Agosto de 2017. Parecer sobre
“Depoimentos Policiais e Regras de Experiência no Juízo de
Tipicidade dos Crimes dos arts. 33 e 35 da Lei 11.343/06: o caso
Rafael Braga”). Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2017-dez-11/versao-pm-nao-embasar-co
ndenacao-catador-parecer. Acesso em: 7/10/2020.

IX. Comprovação do consentimento do morador

A par da exigência de um livre consentimento do morador para


o ingresso em seu domicílio, questão de fundamental importância diz com o
registro desse consentimento, para assegurar tanto ao suspeito quanto aos
policiais a higidez do procedimento.

Na França, seu Código de Processo Penal exige o


consentimento expresso da pessoa em cuja casa a visita domiciliar tenha lugar
e ele deve ser feito por declaração escrita à mão pelo interessado ou, se este
não souber escrever, o Código de Processo Penal exige que tal circunstância e
o assentimento prestado constem do processo:

CPP, Art. 76. Les perquisitions, visites domiciliaires et saisies de


pièces à conviction ou de biens dont la confiscation est prévue à
l'article 131-21 du code pénal ne peuvent être effectuées sans
l'assentiment exprès de la personne chez laquelle l'opération a
lieu. Cet assentiment doit faire l'objet d'une déclaration écrite de
la main de l'intéressé ou, si celui-ci ne sait écrire, il en est fait
mention au procès-verbal ainsi que de son assentiment.

Assim também ocorre em Portugal, onde o consentimento deve


ser expresso e documentado, por qualquer forma:

Relativamente à forma do consentimento, parece-nos resultar da lei


que o mesmo não pode ser dado de forma tácita, nem por via de
presunção. A exigência de consentimento expresso pode retirar-se da
circunstância de a lei impor obrigatoriamente a documentação do
mesmo. (...). Já no que respeita à forma de documentação do
consentimento, o Acórdão da Relação de Lisboa de 13 de Janeiro de
2000 veio pronunciar-se no sentido de que a lei processual penal não
exige forma especial (pode ser verbal), bastando que o mesmo seja
prestado anteriormente à busca e fique, de qualquer forma,
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Superior Tribunal de Justiça
documentado. A documentação do consentimento verbal pode ser
efectuada, por exemplo, através de gravação sonora.” (PINTO, Ana
Luísa. Aspectos problemáticos do regime de buscas domiciliárias.
Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n. 3, ano 15, jul.-set. 2005,
apud Dellosso, A.F.A. e BOTTINI, P. P. O consentimento e a
situação de flagrante delito nas buscas domiciliares. In Boletim do
IBCCRIM, outubro de 2014. Disponível em:
https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/6105/. Acesso em:
27/2/2021).
Nos EUA, também é usual a assinatura de um formulário pela
pessoa que consentiu com o ingresso em seu domicílio, para atestar a
voluntariedade de seu consentimento. Obviamente, eventual recusa em assinar
o formulário ou a declaração de assentimento não impede que a busca se
realize, desde que a acusação comprove, por outra forma, que o
consentimento foi voluntário (North Carolina v. Butler (1979) 441 U.S. 369,
373; People v. Ramirez (1997) 59 Cal.App.4th 1548, 1558; U.S. v. Castillo
(9a Cir. 1989) 866 F.2d 1071, 1082).

Tenha-se presente, por sua vez, que de nada valerá uma


declaração de consentimento assinada se as circunstâncias indicarem que
ela foi obtida de forma coercitiva ou houver dúvidas sobre a
voluntariedade do consentimento (Haley v. Ohio (1947) 332 U.S. 596, 601
[“Formulas of respect for constitutional safeguards cannot prevail over the
facts of life which contradict them.”]; People v. Andersen (1980) 101
Cal.App.3d 563, 579 [“[A]n assertion that no promises are being made may
be contradicted by subsequent conversation.”].

Dito tudo isso, é de se indagar se essa preocupação com a


salvaguarda de direitos à intimidade e à inviolabilidade do domicílio, tão
marcante em outros povos, não poderia nos induzir a construir algo similar.

Já não é hora de revermos nossa compreensão e frearmos


as violações abusivas de lares da população mais carente, exposta
permanentemente ao risco de ter sua privacidade exposta por ações de
servidores do Estado que, mesmo quando movidos por boa intenção e
subjetivamente direcionados ao esclarecimento e à cessação de atividade
criminosa, não seguem parâmetros mínimos de proteção à intimidade das
pessoas que ocupam a residência, incluído, por óbvio, o suspeito?

O Poder Judiciário, ante a lacuna da lei ou a omissão do


Poder Legislativo, não pode deixar sem resposta situações que, trazidas por
provocação do interessado, se mostrem violadoras de direitos fundamentais do
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indivíduo. E ao Superior Tribunal de Justiça cabe, precipuamente, a função de,
ao prestar jurisdição, buscar a melhor interpretação possível da lei federal,
de sorte a não apenas responder ao pedido da parte, mas também a
formar precedentes que orientem o julgamento de casos futuros similares.

Deveras, estabelecer os parâmetros de aplicação das regras


probatórias do processo penal requer do STJ a clara compreensão sobre sua
razão de ser: conferir unidade ao sistema jurídico, projetando a aplicação do
Direito para o futuro, mediante sua adequada interpretação, a partir do
julgamento dos casos de sua competência. Como acuradamente assere Daniel
Mitidiero (Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do Controle à Interpretação,
da Jurisprudência ao Precedente. São Paulo: Editora RT, 2013, passim), a
decisão recorrida deve ser entendida como meio de que se vale a Corte
Superior para, com base na interpretação adequada do Direito, alcançar o
máximo possível da unidade do direito aplicado em todo o território nacional,
sem renunciar, por óbvio, ao controle de juridicidade das decisões recorridas.

Aliás, sobre a responsabilidade de um Tribunal Superior,


quando enfrenta temas sensíveis e se vê premido a tomar uma posição que
implique a anulação de um processo, a juíza da Corte Suprema dos Estados
Unidos Sonia Sotomayor, em voto dissidente proferido em debate sobre a
licitude de provas (Utah v. Strieff, 579 U.S., 136 S. Ct. 2056, 2016), anotou,
com muita propriedade, que:

When courts admit only lawfully obtained evidence, they


encourage “those who formulate law enforcement polices, and the
officers who implement them, to incorporate Fourth Amendment
ideals into their value system.” Stone v. Powell, 428 U. S. 465,
492 (1976). But when courts admit illegally obtained evidence as
well, they reward “manifest neglect if not an open defiance of the
prohibitions of the Constitution.” Weeks, 232 U. S., at 394.
(Quando os tribunais admitem apenas evidências obtidas
legalmente, eles encorajam “aqueles que formulam políticas de
aplicação da lei, e os oficiais que as implementam, a incorporar
os ideais da Quarta Emenda em seu sistema de valores”. Mas
quando os tribunais também admitem evidências obtidas
ilegalmente, eles recompensam "negligência manifesta, se não
um desafio aberto, às proibições da Constituição” – trad. livre).

X. Providências para a maior tutela da inviolabilidade do


domicílio
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Superior Tribunal de Justiça

Se nesses países, ditos centrais, há tamanha preocupação em


proteger o cidadão contra arbítrios de agentes estatais, o que se dirá em um
país como o Brasil, onde são rotineiras as notícias de violações a direitos de
moradores, especialmente das periferias dos grandes centros urbanos?

Focando apenas no que interessa ao tema ora em exame, chega


a ser, para dizer o mínimo, ingenuidade acreditar que uma pessoa
abordada por dois ou três policiais militares, armados, nem sempre
cordatos na abordagem, livremente concorde, sobretudo de noite ou de
madrugada, em franquear àqueles a sua residência, ciente, pelo senso
comum, do que implica tal situação para a intimidade de um lar.

Recentemente o Supremo Tribunal Federal concluiu julgamento


virtual da ADPF 635 (cognominada ADPF das Favelas), em que se
concederam algumas das medidas cautelares postuladas, ao propósito de
minimizar os efeitos do que se chamou de necropolítica praticada no estado
do Rio de Janeiro, mercê das rotineiras operações policiais nos morros
cariocas, com graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição,
notadamente pela excessiva e crescente letalidade da atuação policial,
voltada sobretudo contra a população pobre e negra de comunidades
periféricas.

Na petição inicial da ADPF, subscrita pelos advogados e


Professores Doutores Daniel Sarmento, João Gabriel Pontes, Ademar Borges,
Camilla Gomes e Pedro Henrique Rezende, pontua-se que,

Além da vida da população e dos policiais, outros direitos


fundamentais de máxima importância são atingidos pela referida
política de segurança pública. A parcela mais pobre da população
fluminense, que vive em favelas, encontra-se submetida a clima
permanente de terror. Incursões policiais nessas regiões são
rotineiramente acompanhadas de tiroteios que ameaçam a integridade
física e psicológica dos moradores de comunidade, bem como do seu
patrimônio. Os abusos cometidos pelas forças de segurança em
tais ocasiões são conhecidos e frequentes, e incluem desde
xingamentos, destruição de bens, invasões de domicílio e subtrações
de pertences, até agressões, abuso sexual, uso inadvertido e
desproporcional de armas de fogo, detenções arbitrárias, além das
execuções extrajudiciais (Petição inicial da ADPF 635, disponível em:
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronic
o/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5816502.
Acesso em: 28/2/2021, destaquei).
Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 57 de 6
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A iniciativa da sociedade civil, por meio dessa ADPF, e a


decisão do STF constituem marco de singular importância na preservação
dos direitos fundamentais de parte da população que, com sua
invisibilidade econômica e social, vê-se em permanente estado de tensão
e, em algumas localidades, até de terror mesmo, ante a perspectiva de que,
a qualquer momento, um morador desavisado seja ferido mortalmente por uma
bala perdida, um adolescente seja executado por criminosos ou por agentes
estatais, ou que uma guarnição policial invada alguma residência, à procura de
drogas, armas ou suspeitos.

Faço lembrar que, ao julgar o HC n. 138.565/SP (relator


Ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, em 18/4/2017, DJe-170), o
Supremo Tribunal Federal analisou a narrativa de que o paciente teria sido
perseguido e detido por policiais apenas pelo fato de acharem que ele estava
filmando uma operação de combate ao tráfico de drogas, o que ensejou sua
condução até sua residência, onde apreenderam 8 g de crack e 0,3 g de
cocaína.

O colegiado confirmou a liminar e determinou o trancamento do


processo, ocasião em que o relator, oralmente, ao comentar o costume de
policiais que dizem ter sido “convidados” a entrar na casa do suspeito, asseriu,
in verbis: “Evidentemente que ninguém vai convidar a polícia a penetrar
numa casa para que ela seja” (conforme noticiado no sítio eletrônico do
STF, em Notícias do STF de terça-feira, 18 de abril de 2017. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/ verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=341024.
Acesso em: 31 ago. 2020).

X.1. Autorização assinada pelo morador

Nessa direção de tutela do direito à inviolabilidade da morada


também foi a intervenção do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento do
RE n. 603.616/TO, ao propor raciocínio paralelo ao que levou o STF à
edição da Súmula Vinculante n. 11, quanto à necessidade de documentar,
por escrito, as razões que justificaram o uso de algemas em pessoa presa. É
dizer, se para simplesmente algemar uma pessoa, já presa – ostentando,
portanto, alguma verossimilhança do fato delituoso que deu origem a sua
detenção –, exige-se a indicação, por escrito, da justificativa para o uso de
tal medida acautelatória, seria de demandar-se, em juízo de
proporcionalidade e de isonomia de tratamento, igual providência para a
Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 58 de 6
Superior Tribunal de Justiça
invasão de um domicílio, quando, a priori, tem-se apenas a suspeita da
ocorrência de um crime.

Desse modo, se qualquer pessoa – inclusive um magistrado da


mais alta Corte do país – não crê ser natural que alguém permita,
voluntariamente, que agentes da segurança pública, armados, ingressem em seu
domicílio para procurar objetos relacionados a um crime de que é suspeito, é
de se exigir, por conseguinte, que o Estado não dê azo a qualquer dúvida
quanto à legalidade da diligência e quanto ao livre assentimento do
morador que permite a busca domiciliar.

Assim como nas legislações estadunidense, francesa, portuguesa


e espanhola, é impositivo que se exija, dos nossos agentes estatais, o registro
detalhado da operação de ingresso em domicílio alheio, com a assinatura
do morador em autorização que lhe deverá ser disponibilizada antes da entrada
em sua casa, indicando, outrossim, nome de testemunhas tanto do livre
assentimento quanto da busca, em auto circunstanciado.

Tal providência, aliás, já é determinada pelo art. 245, § 7º, do


Código de Processo Penal, ao dispor que, “[f]inda a diligência, os executores
lavrarão auto circunstanciado, assinando-o com duas testemunhas presenciais,
sem prejuízo do disposto no § 4º”. Embora se refira, topicamente, ao
cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar, por óbvio que
também deveria aplicar-se o dispositivo a qualquer forma de busca e apreensão
efetuada pelo Estado em domicílios de suspeitos, com ou sem mandado
judicial.

X.2. Diligência integralmente registrada em vídeo e áudio

Além disso, será de fundamental importância que se


registre, em vídeo e áudio, toda a diligência, máxime nas situações em que,
por ausência justificada do formulário ou por impossibilidade qualquer de sua
assinatura, seja indispensável comprovar o livre consentimento do morador
para o ingresso domiciliar.

Com efeito, a validação do processo de recolhimento de


provas com ofensa ao direito à inviolabilidade do domicílio e à
intimidade das pessoas pode comprometer, quando se trata de prática
usual pelas agências de persecução penal, a própria essência do Estado
Democrático de Direito, mormente se expressa um comportamento
discriminatório contra moradores das periferias dos grandes centros
Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 59 de 6
Superior Tribunal de Justiça
urbanos, alvos frequentes de tal prática.

Note-se que já há corporações militares estaduais


compreendendo a necessidade de equiparem seus agentes com câmeras de
áudio-vídeo acopladas ao seu uniforme ou capacete, não só para a
salvaguarda de direitos dos cidadãos, mas também para a própria proteção
do policial, cuja atuação, se registrada por filmagem, o imuniza contra injustas
acusações à sua conduta funcional.

Pioneira, nessa direção, foi a Polícia Militar de Santa


Catarina, que, conforme notícia publicada no portal do Governo do Estado
em 22 de julho de 2019, lançou o programa Câmeras Policiais Individuais,
com a aquisição, em parceria com o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, de
2.425 câmeras, que ficarão implantadas no uniforme do policial militar, de
modo a registrar as ações e as interações da PM com o cidadão durante as
ocorrências, ajudando a colher provas em flagrante e evitando falsas
acusações.

Como referido na notícia, “o uso da câmera aumenta a


transparência e a fiscalização das ações policiais; ajuda a conter a reação das
pessoas abordadas, pela percepção de que estão sendo filmadas, e,
consequentemente, reduz a necessidade de uso da força por parte dos
policiais.” Além disso, “a transparência e a ética nas ações são fundamentais,
tanto para os agentes públicos quanto para os cidadãos. A câmera individual
deve regular essa relação com mais eficiência, resguardando vítimas e
evidenciando possíveis casos de má conduta, isso de ambos os lados”,
ressaltou o governador do estado. (Disponível em:
https://www.sc.gov.br/index.php/noticias/temas/seguranca-publica/cameras-indi
viduais-passam-a-integrar-servico-da-policia-militar-de-santa-catarina. Acesso
em: 1º set. 2020).

Igual medida adotou o Governo do Estado de São Paulo,


movido por episódios de truculência da Polícia Militar em abordagem de
suspeitos. Já foram instaladas 585 câmeras em uniformes da PM da capital e
prevê-se a aquisição de outras 2.500 delas. Conforme nota da Secretaria da
Segurança Pública, “As gravações preservam a atuação dos policiais e os
direitos individuais dos cidadãos, além de fortalecer a produção de provas
judiciais” (Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/
2020/08/01/pms-da-capital-comecam-a-usar-585-cameras-em-uniformes-apos-
casos-de-violencia-policial-durante-a-pandemia-em-sp.ghtml. Acesso em: 31
ago. 2020).

Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 60 de 6
Superior Tribunal de Justiça

Essas iniciativas devem ser elogiadas e, mais do que isso,


seguidas por todos os governos estaduais, de modo a tornar parte do
uniforme de todo policial um equipamento de registro de suas operações, o
que, seguramente, resultará na diminuição da criminalidade em geral – pela
maior eficiência probatória, bem como pela intimidação a abusos, de um lado,
e falsas acusações contra policiais, por outro – e, especialmente no que diz
respeito a autuações em flagrante delito e ingresso no domicílio do suspeito,
permitirá avaliar se houve, efetivamente, justa causa para o ingresso e se,
quando houver sido apontado o consentimento do morador, foi ele
livremente prestado.

Até que se ultime tal providência em todas as unidades


federativas, não haverá óbice algum a que a guarnição policial, com um
aparelho celular dotado de câmera fotográfica, registre a diligência, para sua
segurança e para a segurança dos moradores da residência em que se realizou a
operação, e muito menos se poderá opor qualquer obstáculo a que os próprios
moradores registrem a diligência.

XI. A fragilidade da isolada prova oral para a comprovação


da diligência policial

Tal providência, já implementada em algumas unidades


federativas – ainda que em pequena parcela dos agentes – também é um sinal
de que, em plena Era da Informação, na qual os registros históricos passam a
contar com o auxílio da tecnologia e em que a maior parte dos habitantes do
Planeta está interligada e conectada à internet, o processo penal também
necessita acompanhar essa evolução e progressivamente ir reconhecendo
a importância de outros meios probatórios, muito mais fidedignos em
relação aos fatos e mais confiáveis do que a mera reprodução de
testemunhas, que, como enfatizado linhas atrás, possuem alta dose de
subjetividade e de interferências tanto cognitivas quanto mnemônicas.

Daí por que – mormente em atuação que envolve o afastamento


de um direito tão caro quanto a inviolabilidade do domicílio – é indispensável,
para a própria credibilidade e idoneidade da prova colhida na cena do crime, e
para a maior segurança do Ministério Público (para acusar) e do Judiciário
(para julgar) que a atuação estatal seja devidamente registrada e
testemunhada por pessoas que não apenas os próprios responsáveis pela
diligência da qual resulta a prisão em flagrante do suspeito.

Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 61 de 6
Superior Tribunal de Justiça

A esse respeito, trago à baila o Relatório Final da Pesquisa


Sobre as Sentenças Judiciais por Tráfico de Drogas, realizada pela
Defensoria Pública do Rio de Janeiro, a partir do exame de um total de
2.591 sentenças prolatadas pelos juízos da Capital e Região Metropolitana do
Rio de Janeiro, no período entre agosto de 2014 e janeiro de 2016,
relacionadas ao cometimento de crimes de tráfico de entorpecentes em geral. A
pesquisa permitiu concluir, no tocante à prova oral produzida, que, em 62,33%
dos casos o agente de segurança foi o único a prestar testemunho nos
autos.

E, tendo em vista a expressiva quantidade de sentenças em que


a única testemunha ouvida foi o agente de segurança, apurou-se que, em
53,79% dos casos, o depoimento do agente de segurança foi a principal
prova valorada pelo juiz para alcançar sua conclusão. E com base em um
universo de 1.979 casos em que a condenação foi baseada principalmente
no depoimento dos agentes de segurança, foi possível observar que em
71,14% as únicas testemunhas ouvidas na instrução penal foram os
próprios agentes de segurança. (Disponível em
http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4fab66cd44ea468d9df83d091
3fa8a96.pdf. Acesso em 8/10/2020).

A pesquisa não detalha em quantos desses casos de condenação


por crime de tráfico, nos quais a palavra dos agentes policiais foi determinante,
derivaram de ingresso no domicílio do acusado, mas, seguramente – pelas
regras de experiência decorrentes do exame de milhares de processos dessa
natureza aqui no STJ – a grande maioria das condenações tomou como
referência principal, senão exclusiva, o depoimento dos policiais militares
que, ao ingressarem na residência do suspeito, ali encontraram drogas.

E conquanto não se possa, a priori, desmerecer a credibilidade


e autenticidade de depoimentos prestados por quaisquer pessoas, especialmente
quando são servidores públicos, há de se ter certa cautela em hipóteses nas
quais a única prova da legalidade da ação estatal é o depoimento
exatamente dos agentes públicos cujo procedimento deve ser sindicado
pelo exame das circunstâncias autorizadoras do ingresso domiciliar.

Bem a propósito, pontuam Gabriel Abboud e Caio Prata:

De modo geral, o argumento utilizado para legitimar a utilização do


testemunho de policiais militares que diligenciaram o injusto objeto de
julgamento, como fundamento de uma decisão condenatória,
Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 62 de 6
Superior Tribunal de Justiça
circundam duas assertivas: (a) a não delimitação, por parte do CPP,
de quem pode ou não ser testemunha; e (b) o fato de gozarem, as
declarações das autoridades, de presunção de veracidade. [...]

Há uma relação de interesse evidente entre o policial e a causa


para a qual serve de testemunha. Ao mesmo tempo, há a influência
sofrida pelo modus operandi das polícias (e o papel que estas
cumprem no sistema punitivo), que atuam reproduzindo as distorções
do tecido político que lhe dão causa, abdicando da legalidade que
formata a criminalização secundária, o que leva à necessidade de um
discurso que distorça os fatos para que se adequem à racionalidade
que os tornariam legítimos. Não por outro motivo a realidade nos
informa sobre a atuação arbitrária destes órgãos repressivos,
com altos índices de abusos de poder e violação dos direitos
individuais. Entre a farda e a toga: as contradições da utilização
dos testemunhos policiais como elemento justificador da
criminalização da pobreza (Disponível em:
http://www.salacriminal.com/home/entre-a-farda-e-a-toga-as-contradi
coes-da-utilizacao-dos-testemunhos-policiais-como-elemento-justifica
dor-da-criminalizacao-da-pobreza. Acesso em: 8/10/2020).

XII. O caso concreto

Informam os autos que policiais militares receberam denúncia a


respeito de suposto tráfico de drogas, realizado por pessoa cujas características
físicas também teriam sido descritas pelo informante.

Em visita ao local apontado, um dos policiais relatou que


avistaram o ora paciente, cuja aparência coincidia com a descrição da denúncia;
que ele tentou mudar de caminho quando avistou a viatura, mas que
conseguiram abordá-lo e que não foi encontrado nenhum entorpecente em
sua posse. Os policiais então perguntaram ao paciente sobre seu endereço
residencial, e ele os teria guiado até lá. Em seguida, " [os policiais] entraram
em sua casa, franqueada por ele e encontraram a droga [...]. As drogas
estavam numa pochete no armário da cozinha. Não estava escondido. Era
apenas porção de maconha, em pedaços" (fls. 21).

Não há, contudo, referência à prévia investigação policial para


verificar a possível veracidade das informações recebidas de forma anônima.
Igualmente não se tratava de averiguação de denúncia robusta e tampouco
houve o acompanhamento da chamada "testemunha do povo".
Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 63 de 6
Superior Tribunal de Justiça

Nesse quadro, soa inverossímil a versão policial, ao narrar


que o paciente teria mostrado onde residia – mesmo nada sendo encontrado em
seu poder – e que teria franqueado a entrada em seu domicílio. Ora, um
mínimo de vivência e bom senso sugerem a falta de credibilidade de tal versão.
Será mesmo que uma pessoa sobre quem recai a suspeita de traficar drogas irá
franquear a entrada na residência, onde está a droga escondida? A troco de que
faria isso?

Se de um lado se deve, como regra, presumir a veracidade das


declarações de qualquer servidor público, não se há de ignorar, por outro lado,
que o senso comum e as regras de experiência merecem ser consideradas
quando tudo indica não ser crível a versão oficial apresentada, máxime quando
interfere em direitos fundamentais do indivíduo e quando se nota um
indisfarçável desejo de se criar uma narrativa amparadora de uma versão que
confira plena legalidade à ação estatal.

Saliento que, em juízo, o paciente negou a ocorrência dos fatos


da maneira descrita pelos policiais, ao relatar que, "estava em sua casa
domingo, "Era usuário de maconha" e que "Os policiais invadiram sua casa e
encontraram a pochete de maconha" (fl. 21).

Essa relevante dúvida não pode, dadas as circunstâncias


concretas – avaliadas por qualquer pessoa isenta e com base na experiência
quotidiana do que ocorre nos centros urbanos – ser dirimida a favor do
Estado, mas a favor do titular do direito atingido (in dubio libertas). Em
verdade, caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar,
de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente
prestado, ou que, na espécie, havia em curso na residência uma clara situação
de comércio espúrio de droga, a autorizar, pois, o ingresso domiciliar mesmo
sem consentimento do morador.

Não houve, para tanto, preocupação em documentar esse


consentimento, quer por escrito, quer por testemunhas, quer, ainda e
especialmente, por registro de áudio-vídeo.

Tenho, assim, que a descoberta a posteriori de uma situação de


flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do paciente, em violação a
norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do
domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente
obtida e, por conseguinte, todos os atos dela decorrentes e a própria ação
penal, apoiada exclusivamente nessa diligência policial.
Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 64 de 6
Superior Tribunal de Justiça

A propósito, faço lembrar que a essência da Teoria dos Frutos


da Árvore Envenenada (melhor seria dizer venenosa, tradução da fruits of the
poisonous tree doctrine, de origem norte-americana), consagrada no art. 5º,
LVI, da nossa Constituição da República, repudia as provas supostamente
lícitas e admissíveis, obtidas, porém, a partir de outra contaminada por ilicitude
original.

Por conseguinte, inadmissível também a prova derivada de


conduta ilícita – no caso, a apreensão de maconha e de petrechos para a
comercialização do entorpecente no interior da residência onde se realizou a
operação policial –, pois evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou
seja, a invasão de domicílio (permeada de ilicitude) e a apreensão de drogas.

O fato de, nos crimes como o tráfico de drogas, o estado de


flagrância se protrair no tempo – o que, diga-se, é dogmaticamente correto –
não significa concluir que a vaga suspeita de prática desse delito legitima a
mitigação do direito à inviolabilidade de domicílio. Como demonstrado acima, a
fundada suspeita precisa amparar-se em elementos objetivos, afastando
nuanças subjetivas, de sorte a não permitir que se ocupe o policial com a
pessoa que ele identifica, a priori, como “o traficante”, em vez de dirigir sua
atividade para apurar “condutas e atos” indicativos da prática de um crime.

Portanto, pelo contexto fático delineado nos autos, entendo que


não havia elementos objetivos e racionais que justificassem a invasão de
domicílio e que não há circunstâncias que autorizem concluir ter havido
consentimento válido e livre do morador para o ingresso dos policiais em
sua respectiva residência. Eis a razão pela qual, dado que a casa é asilo
inviolável do indivíduo, desautorizado estava o ingresso nas residência do
paciente, de maneira que as provas obtidas por meio da medida invasiva são
ilícitas, bem como todas as que delas decorreram.

XIII. Das comunicações para o controle sobre a atividade


estatal

O interesse público justifica a necessidade de providências para


além das que se aplicam ao caso ora em exame.

Há notícias corriqueiras de situações assemelhadas, e é


imperioso adotar medidas concretas para uma efetiva proteção ao direito
fundamental da inviolabilidade do domicílio.

Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 65 de 6
Superior Tribunal de Justiça

Ingresso desautorizado em morada alheia prejudica


diversas pessoas (não apenas o suspeito mas os que com ele convivem na
residência) e cria insegurança jurídica, temor e desproteção de toda a
coletividade, uma vez que a prova decorrente da invasão desautorizada de um
domicílio resulta, quando reconhecida judicialmente sua ilicitude, na absolvição
de réus culpados. É preciso, por conseguinte, que se prevejam mecanismos
eficazes para mudar essa prática pelas forças de segurança de nosso país.

O Superior Tribunal de Justiça, como já salientado, tem o dever


de uniformizar a interpretação da lei federal e zelar pelo respeito aos direitos
fundamentais. E a esse escopo é indispensável uma intervenção geral, pro
futuro, e não apenas casuística e reativa, como vem acontecendo.

Cristina Queiroz destaca que


A função primária do direito não radica na produção de determinados
comportamentos, mas no reforço de determinadas expectativas. De
modo diferente do positivismo do modo antigo, que havia considerado
a vontade como fonte do direito (o comando do legislador ou a
própria lei), o direito enfrenta hoje uma quantidade de expectativas
normativas, que poderíamos definir como pretensões de direito, fora
das quais dificilmente poderia ofertar valorações contáveis e
mensuráveis. O mesmo vale para o juiz constitucional. Na aplicação de
normas jurídicas deve este recorrer não apenas a representações
normativas, mas ainda a valores sociais não juridificados (QUEIROZ,
Cristina. Interpretação constitucional e Poder judicial. Coimbra:
Coimbra editora, 2000, p 289).

A expectativa da Constituição e da população de nosso país –


nomeadamente a mais humilde – é de que se respeite a sua intimidade e a
inviolabilidade de suas moradas.

Sob essa perspectiva, preventiva de futuros atos de violação


a direito de terceiros, mostra-se necessária e urgente a comunicação imediata
desta decisão colegiada aos governos estaduais, para que providenciem
treinamento e condições materiais a seus agentes de segurança pública, de
modo a que possam observar as regras constitucionais densificadas no presente
julgado.

A propósito, releva trazer à baila recente decisão da Corte


Interamericana de Direitos Humanos, que condenou a República Argentina
por atuações indevidas de policiais que, em nome da guerra ao tráfico,
Documento: 2027533 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 15/03/2021 Página 66 de 6
Superior Tribunal de Justiça
violaram direitos fundamentais de investigados. Nessa decisão, a Corte
fixou medidas para que o fato não se repetisse e incluiu, também, a previsão de
treinamentos dos integrantes das forças policiais, Ministério Público e juízes,
conforme se verifica na transcrição abaixo:

[…] 26. En su reconocimiento de responsabilidad internacional,


suscrito el 4 de marzo de 2020, el Estado aceptó la totalidad de las
conclusiones establecidas por la Comisión en su Informe de
Fondo, lo cual incluye las concernientes a que las detenciones de
los señores Fernández Prieto y Tumbeiro se enmarcaron en un
contexto general de detenciones practicadas sin orden judicial ni
supuestos de flagrancia en Argentina. En el mismo orden, en su
escrito de alegatos finales de 18 de junio de 2020, el Estado
reconoció que este “caso constituye un emblema de lo que se
conoció en nuestro país, durante la década del 90, como el ‘olfato
policial’, que implicaba actuaciones policiales descontroladas,
incentivadas por políticas de seguridad pública basadas en
operativos de prevención discrecionales, sin investigación ni
inteligencia previa, y por ello, profundamente ineficientes”.
Asimismo, el Estado puntualizó que “este tipo de prácticas
policiales fueron promovidas por políticas de seguridad que se
definían bajo el paradigma de la llamada ‘guerra contra las
drogas’ y que, además, resultaban amparadas por un inadecuado
o inexistente control judicial.

117. La Corte dispone, como lo ha hecho en otros casos, que el


Estado publique, en el plazo de seis meses, contado a partir de la
notificación de la presente Sentencia, en un tamaño de letra
legible y adecuado: a) el resumen oficial de la presente Sentencia
elaborado por la Corte, por una sola vez, en el Diario Oficial; b) el
resumen oficial de la presente Sentencia elaborado por la Corte,
por una sola vez, en un diario de amplia circulación nacional, y c)
la presente Sentencia en su integridad, esté disponible por un
período de un año, en el sitio web oficial del Poder Judicial de la
Nación. El Estado deberá informar de forma inmediata a este
Tribunal una vez que proceda a realizar cada una de las
publicaciones dispuestas, independientemente del plazo de un año
para presentar su primer informe dispuesto en el punto resolutivo
12 de la presente Sentencia.

B. Medidas de satisfacción y garantías de no repetición

122. En razón de ello, la Corte considera que, dentro de un


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Superior Tribunal de Justiça
plazo razonable, el Estado debe adecuar su ordenamiento
jurídico interno, lo cual implica la modificación de normas y el
desarrollo de prácticas conducentes a lograr la plena efectividad
de los derechos reconocidos en la Convención, a efectos de
compatibilizarlo con los parámetros internacionales que deben
existir para evitar la arbitrariedad en los supuestos de detención,
requisa corporal o registro de un vehículo, abordados en el
presente caso, conforme a los parámetros establecidos en la
presente Sentencia. Por tanto, en la creación y aplicación de las
normas que faculten a la policía a realizar detenciones sin orden
judicial, las autoridades internas están obligadas a realizar un
control de convencionalidad tomando en cuenta las
interpretaciones de la Convención Americana realizadas por la
Corte Interamericana respecto a las detenciones sin orden
judicial, y que han sido reiteradas en el presente caso. […] El
Estado rendirá al Tribunal un informe, dentro del plazo de un año
contado a partir de la notificación de la Sentencia, sobre las
medidas adoptadas para cumplir con la misma, sin perjuicio de lo
establecido en el párrafo 117 de la presente Sentencia. (CORTE
INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, Caso
Fernández Prieto y Tumbeiro vs. Argentina. Sentença de 1º de
setembro de 2020. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/dl/cidh-argentina-abordagem-policial.pdf.
Acesso em: 30/10/2010)

Com o objetivo, portanto, de evitar a repetição das narradas


práticas violadoras de direitos fundamentais e, também, uma possível
condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, é mister a
comunicação da presente decisão aos Presidentes dos Tribunais de Justiça dos
Estados e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem como ao
Ministro da Justiça e Segurança Pública e aos Governadores dos Estados e do
Distrito Federal, encarecendo a estes últimos que deem conhecimento da
decisão a todos os órgãos e agentes da segurança pública federal, estadual e
distrital, respectivamente.

XIV. Conclusões

As considerações e os argumentos expostos neste voto facilitam


responder aos questionamentos feitos de início, de modo a concluir que:

1. Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se,


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em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem
mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de
modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da
casa ocorre situação de flagrante delito.

2. O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser


classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a
entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga.
Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir
que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e
concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será
destruída ou ocultada.

3. O consentimento do morador, para validar o ingresso de


agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao
crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou
coação.

4. A prova da legalidade e da voluntariedade do


consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em
caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela
pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível,
testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em
áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo.

5. A violação a essas regras e condições legais e constitucionais


para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em
decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em
relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal
do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.

XV. Dispositivo

À vista de todo o exposto, considerando que não houve


comprovação de consentimento válido para o ingresso no domicílio do
paciente, voto pela concessão da ordem de Habeas Corpus, de sorte a
reconhecer a ilicitude das provas por tal meio obtidas, bem como de todas as
que delas decorreram, e, por conseguinte, absolver o paciente.

Dê-se ciência desta decisão aos Presidentes dos Tribunais de


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Superior Tribunal de Justiça
Justiça dos Estados e aos Presidentes dos Tribunais Regionais Federais, bem
como às Defensorias Públicas dos Estados e da União, ao Procurador-Geral da
República e aos Procuradores-Gerais dos Estados, aos Conselhos Nacionais da
Justiça e do Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil, ao
Conselho Nacional de Direitos Humanos, ao Ministro da Justiça e Segurança
Pública e aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, encarecendo a
estes últimos que deem conhecimento do teor do julgado a todos os órgãos e
agentes da segurança pública federal, estadual e distrital.

Proponho se fixe o prazo de 1 (um) ano para permitir o


aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias
para a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a evitar situações
de ilicitude, que, entre outros efeitos, poderá implicar responsabilidade
administrativa, civil e/ou penal do agente estatal, à luz da legislação vigente (art.
22 da Lei 13.869/2019), sem prejuízo do eventual reconhecimento, no exame
de casos a serem julgados, da ilegalidade de diligências pretéritas.

É o voto.

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HABEAS CORPUS Nº 598.051 - SP (2020/0176244-9)

VOTO-VOGAL

A EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ:


O laborioso e percuciente voto do eminente Ministro Rogério Schietti denota sua
sensibilidade sobre uma questão que atormenta a todos nós, julgadores. É, realmente, um primor,
com importantes referências doutrinárias e jurisprudenciais, inclusive com exemplos do direito
comparado, enfim, é um voto digno de ser reproduzido para balizar estudos e elaboração de
políticas criminais. Cumprimento o Relator pelo brilhantismo do voto que nos traz.
A questão sob exame, de fato, exige cuidadosa ponderação de relevantes valores:
de um lado, há o indeclinável interesse público de investigar, processar e julgar os autores de
crimes que desestabilizam a sociedade; de outro lado, a inarredável necessidade de se preservar
uma persecução penal justa e garantidora dos direitos fundamentais de todos os cidadãos, em
especial contra eventuais arbitrariedades dos agentes do Estado. Buscar esse equilíbrio, quando
nos deparamos com os casos concretos, costuma ser tarefa árdua e delicada.
O caso em tela, a exemplo de muitos outros que esta Sexta Turma tem
examinado, deixa claro a necessidade de se impor limites à ação policial, que, para ser legítima,
precisa estar circunscrita aos ditames legais, sob pena de se produzir prova ilegal, inadmissível no
direito processual penal brasileiro ou de qualquer país civilizado.
Sem embargo, gostaria de trazer a debate uma preocupação, não com a solução
do caso em si, mas com as recomendações – todas muito bem elaboradas e pensadas –, porque,
salvo melhor juízo dos meus ilustres pares, pressupõem uma realocação de investimentos e
reestruturação das polícias, ação que, penso eu, não seja viável em prazo tão exíguo,
notadamente em face da notória retração da economia decorrente da pandemia e, por
conseguinte, da arrecadação de tributos. Isso sem falar nas prioridades estabelecidas em cada
uma das Unidades da Federação, distribuídas em um território de dimensões continentais, com
realidades muito distintas.
Em todo caso, penso que esta questão ganharia mais força se fosse levada à
apreciação da Terceira Seção, razão pela qual sugiro que, oportunamente, o tema seja submetido
à deliberação do Colegiado mais amplo.
Portanto, Senhor Presidente, rendendo, mais uma vez, minhas sinceras
homenagens ao substancial voto trazido pelo eminente Ministro Rogerio Schietti, meu voto é pela
concessão da ordem nos termos consignados pelo Relator, mas sugerindo a dilação desse prazo –
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quiçá 12 meses – para implementação das referidas diretrizes, aguardando, em todo caso, a
oportuna afetação desse tema, em outro processo, para julgamento da Terceira Seção.

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CERTIDÃO DE JULGAMENTO
SEXTA TURMA

Número Registro: 2020/0176244-9 PROCESSO ELETRÔNICO HC 598.051 / SP


MATÉRIA CRIMINAL

Números Origem: 00209196420178260050 209196420178260050

EM MESA JULGADO: 02/03/2021

Relator
Exmo. Sr. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ
Presidente da Sessão
Exmo. Sr. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO
Subprocuradora-Geral da República
Exma. Sra. Dra. RAQUEL ELIAS FERREIRA DODGE
Secretário
Bel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA

AUTUAÇÃO
IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ADVOGADOS : FERNANDA CORRÊA DA COSTA BENJAMIM - SP265935
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
PACIENTE : RODRIGO DE OLIVEIRA FERNANDES
INTERES. : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

ASSUNTO: DIREITO PENAL - Crimes Previstos na Legislação Extravagante - Crimes de Tráfico Ilícito e
Uso Indevido de Drogas - Tráfico de Drogas e Condutas Afins

SUSTENTAÇÃO ORAL
Dr. RAFAEL MUNERATTI, pela parte PACIENTE: RODRIGO DE OLIVEIRA FERNANDES
Exma. Sra. Dra. RAQUEL ELIAS FERREIRA DODGE, SUBPROCURADORA-GERAL DA
REPÚBLICA, pelo MPF

CERTIDÃO
Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão
realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
A Sexta Turma, por unanimidade, concedeu o habeas corpus, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Antonio Saldanha Palheiro, Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Nefi Cordeiro.

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