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Revista de Cultura Politica rite Dossié: Relagdes Raciais ¢ Diversidade Cultural, jul. 2014. ISSN ¢ Socledade: revista de cultura politica. v. 4, mJ, 0579 ARTIGO A QUESTAO DA DIVERSIDADE E DA POLITICA DE RECONHECIMENTO DAS DIFERENC AS! Kabengele Munanga’ Resumo: Este texto discute a importincia do reconhecimento e respeito das diferengas na construgio de uma verdadeira democracia. Aponta em consequéncia desse reconhecimento a implementagio de politicas publicas afirmativas que visam a promogio da igualdade de oportunidades entre os diferentes, combinada com uma educagio multicultural e uma pedagogia antirracista no proceso de formagio da cidadania, Abstraet: This text discusses the importance of the acknowledgement and respect to the differences in the building of a true democracy. It points the consequence of this acknowledgement and the implementation of affirmative public policies which address the promotion of social equality of opportunities between the different ones, combined with a multicultural education and antiracist pedagogy in the process of citizenship building, Introdugio A questo da diversidade e do reconhecimento das diferengas faz parte da pauta de discussio de todos os paises do mundo, mesmo daqueles que antigamente se consideravam como monoculturais. As velhas migragdes ¢ 0 trifico negreiro juntaram num mesmo territério geografico descendentes de povos, etnias e culturas diversas. Ha cerca de meio século, os fendmenos pés-coloniais provocam novas ondas migratérias dos paises pobres em desenvolvimento, prineipalmente afticanos, em diregio aos paises ricos desenvolvidos da Europa e da América do Norte, Tanto as antigas migragdes combinadas com o trafico negreiro e a colonizagio dos territérios invadidos, quanto as novas migragdes pos-coloniais combinadas com os efeitos econdmicos perversos da -xto original da aula inaugural proferida no Instituto de Ciéncias Sociais da Universidade Federal de Uberlindia (UFU) em 24 de maio de 2013. Baseado no artigo: in: Todos no Mesmo Barco bnp:/diversitas.fflch.usp.br'sites/diversitas.filch.usp brifilesfiles/inTolerancia_anol_voll_nl_2010%2 D)pat ‘Pro! de Sto Paulo. + Titular aposentado do Departamento de Antropologia da Universidad 34 A questio da diversidade e da politica de reconhecimento das diferencas globalizagio criam problemas na convivéncia pacifica entre os diversos ¢ os diferentes. Entre esses problemas tém-se as priticas racistas, a xenofobia e todos os tipos de intolerdncia, notadamente religiosa. As consequéncias de tudo isso silo as desigualdades que se caracterizam como violagao dos direitos humanos, principalmente 0 direito de ser ao mesmo tempo igual e diferente. Dai a importincia ¢ a urgéncia, em todos os paises do mundo, em implementar politicas que visem ao respeito e ao reconhecimento da diferenga, centradas na formagao de uma nova cidadania através de uma pedagogia multicultural, Acredite-se que essa nova pedagogia possa contribuir para a construgio de uma cultura de paz e para o fim das guerras entre deuses, religides e culturas. Teoricamente a equagdo parece bem simples. A liberdade de expressio, de movimento, de ir e voltar é tedriea quando se trata de grupos humanos. As mercadorias, incluindo as armas letais, tém mais direitos de circulagio apesar das. barreiras alfandegarias © as politicas protecionistas, enquanto as politicas de imigragio de todos os paises regulam drasticamente essa liberdade de movimento, de ir e voltar. Em vez de opor igualdade e diferenga, & preciso combini-las para poder construir a demoeracia. E nessa preocupagio que se coloca a questio do multiculturalismo, definido como encontro de culturas, ou seja, a existéncia de conjuntos culturais fortemente constituidos, euja identidade, especificidade e logica interna deve ser reconhecidas, mas que nao sio inteiramente estranhas umas as outras, embora diferentes entre si. No plano politico, © reconhecimento da diversidade cultural conduz 4 protecao as culturas minoradas. Por exemplo: as culturas indigenas da Amazénia e de outras partes do continente americano, que estio sendo destruidas, seja pelas invasdes de seus territérios, seja ainda pela criagao das reservas onde se acelera a deterioragio das sociedades e dos individuos. Nos paises da diéspora africana se coloca a mesma questio politica do reconhecimento da identidade dos afrodescendentes, © multiculturalismo nio poderia reduzir-se a um pluralismo sem limites; deve ser definido, pelo contririo, como a busca de uma comunicagio e de uma integragao pareial entre os conjuntos culturais nao reconhecidos na formagao da cidadania. A vida de uma sociedade cultural organiza-se em tomo de um duplo movimento de emaneipago e comunicagao. Sem o reconhecimento da diversidade das culturas, a ideia de recomposigo do mundo arrisea-se a cair na armadilha de um novo universalism. 35 1D0G 2 VIII apepe a Politica Revista de Cultu Kabengele Munanga Mas sem essa busca de recomposicao, a diversidade cultural s6 pode levar 4 guerra das cutturas. No plano juridico, 0 reconhecimento das identidades particulares no contexto nacional se configura como uma questo de justiga social e de direitos coletivos e considerado como um dos aspectos das politicas de ago afirmativa Na contram&o da globalizagao neoliberal homogeneizante que quer arrastar todos os povos para o mesmo fosso, corre paralelamente, em todo o mundo, 0 debate sobre a preservagio da diversidade como uma das riquezas da humanidade. A questio fundamental que se coloca em toda parte é como combinar sem conflitos a liberdade individual com o reconhecimento das diferengas culturais e as garantias constitucionais que protegem essa liberdade e essa diferenga. Essa questio leva a uma reflexio complexa que abarca notadamente o politico, o juridico e a educagio. E essa questo que esta no amago das polémicas maniqueistas do bem e do mal que envolvem o debate sobre a ago afirmativa e a obrigatoriedade do multiculturalismo na educacio brasileira. E a partir dessa interminavel polémica que pretendo me colocar para mostrar que a defesa da diversidade e da diferenga é uma questdo vital no processo de construgio de uma cidadania duradoura e verdadeira, por um lado, sem, portanto, abrir mio da defesa de nossas semelhancas ¢ nossa identidade humana genérica, por ‘outro lado, debate sobre o multiculturalismo e as agées afirmativas De acordo com Alain Touraine, nenhuma sociedade moderna aberta as trocas & as mudangas tem unidade cultural completa, as culturas so construgdes que se transformam constantemente ao interpretar experiéneias novas, © que torna artificial a busca de uma esséneia ou de uma alma nacional ou, ainda, a redugao de uma cultura a um cédigo de condutas. Nesse sentido, a ideia de que uma sociedade deve ter uma unidade cultural, seja esta da razio, da religio ou étnica, ndo se sustenta mais (TOURAINE, 1997, p. 209). © Brasil, um pais que justamente nasceu do encontro das culturas e civilizagdes, no pode se ausentar desse debate. O melhor caminho, a meu ver, é 0 da dinamica da sociedade através das reivindicagdes de suas comunidades e no aquele que se abre para uma abordagem superada da mistura racial que, por dezenas de anos, congelou 0 debate 36 A questio da diversidade e da politica de reconhecimento das diferencas sobre a diversidade cultural e racial no Brasil, que era vista apenas como cultura, € como identidade mestiga Como a sociedade brasileira lida na atualidade com essa complexa questo que envolve, 20 mesmo tempo, a defesa dos direitos humanos, a justiga distributiva, o direito de ser ao mesmo tempo igual e diferente, a construgio da cidadania, da identidade e da conscigncia nacional? Até o ano de 2001, mareado pela organizagao da 3* Conferéneia Mundial da ONU contra o Racismo, a Discriminagdo Racial, a Xenofobia e a Intolerincia Comelata, essa questio nio tinha eco na grande imprensa, nos setores do governo e na populagio em geral, salvo entre os raros estudiosos e pesquisadores que se dedicam ao tema nos meios académicos e intelectuais, Os responsaveis do pais pareciam viver com consciéneia tranquila, de acordo com o ideal do mito de democracia racial que apresenta © Brasil como um paraiso racial, isto é, um pais sem preconceito e discriminagao raciais. Em fungdo desse ideal, 0 Brasil conviveu muito tempo sem leis protecionistas dos direitos humanos dos nao brancos, justamente porque no eram necessarias, em vista da auséncia dos preconeeitos e da discriminagdo racial. Enquanto permanecia essa consciéneia tranquila dos dirigentes e da sociedade civil organizada, intimeras injustigas e violagdes dos direitos humanos foram cometidas contra negros ¢ indigenas, como demonstrados pelas pesquisas quantitativas que o IBGE e o IPEA vém realizando nos iiltimos dez anos. Depois da Conferéncia de Durban, 0 Brasil oficial se engajou, como no se via antes, na busca dos caminhos para a execugao da Declaragio dessa Conferéncia da qual foi um dos paises signatarios. A declaragdo previa a implementagio das politicas de aco afirmativa, inclusive as cotas, em beneficio dos negros, indios e outras chamadas minorias. As polémicas ¢ controvérsias a respeito dessas politicas sio indicadores das realidades de uma sociedade que ainda vive entre 0 mito e os fatos, ou melhor, que confunde 0 mito ¢ os fatos, ou seja, onde o mito funciona como verdadeira realidade. Para uma parcela significativa da sociedade, parcela infelizmente nao mensurada por falta de estatisticas, mas com reflexo na midia, na academia, nos setores do governo e até vagamente na sociedade civil organizada, a resolugdo da 3* Conferéneia Mundial da ONU nao condiz. com as realidades da sociedade brasileira, uma sociedade de mistura de sangue altamente mestigada, onde os indicios da discriminagao devem ser buscados nas diferencas socioecondmicas ¢ ndo nas diferencas raciais, pois, como 37 ica a Politi Revista de Cultur Kabengele Munanga acreditam muitos, nto ha mais ragas no Brasil, “Nao somos racistas”, um livro de Ali Kamel bastante vendido, prefaciado por uma antropéloga conceituada, representaria essa pareela da populagio, A segunda parcela é representada por todos aqueles que acreditam na existéncia do racismo & brasileira, no entanto se dividem em dois grupos retoricamente opostos em relagio 4 abordagem. © primeiro gmpo compreende todos aqueles académicos, mididticos, politicos e ativistas que se inscrevem na abordagem essencialista, ou seja, na conviegio de que a humanidade é uma natureza ou uma esséncia e como tal possui uma identidade especifica ou genérica que faz do ser humano um animal racional diferente dos demais animais. Eles afirmam que existe uma natureza comum a todos os seres humanos em virtude da qual eles t8m os mesmos direitos, independentemente de suas diferengas de idade, sexo, raca, etnia, cultura, religifo, ete. Trata-se de uma defesa clara do universalismo ou do humanismo abstrato concebido como democratico, muito bem ilustrado pelo prineipio constitucional “peraute a lei somos todos iguais”. Considerando a categoria raga como uma fic¢io inventada para oprimir os negros, advogam o abandono desse conceito e sua substituicdo pelos conceitos mais cémodos, como o de etnia, por exemplo. De fato, eles se opdem ao reconhecimento publico das diferengas entre brancos e ndo-brancos. Aqui temos um antizracismo de igualdade entre todos os seres hhumanos, que defende argumentos opostos ao antirracismo de diferenga. As melhores politicas piblicas julgam-se capazes de resolver as mazelas e desigualdades da sociedade brasileira, que devem ser somente macrossociais, ou melhor, universalistas. Qualquer proposta de agdo afirmativa vinda do Estado que introduza a diferenga biolégica para lutar contra as desigualdades é considerada, nessa abordagem, como um reconhecimento oficial das ragas e, consequentemente, como uma racializagao de um pais cuja caracteristica dominante é a mestigagem. As propostas de reconhecimento das Giferengas raciais implicariam, segundo eles, em nmudanga de paradigmas capaz de hipotecar a paz e 0 equilibrio social solidamente construido pelo ideal de democracia racial brasileira. De outro modo, indagam se as politicas de reconhecimento das identidades raciais, em especial da identidade negra, poderiio ameagar a unidade ou a identidade nacional, por um lado, e reforgar a exaltago da consciéncia racial, por outro. Em outras palavras, que tais politicas poderiam ter um efeito bumerangue, criando conflitos raciais que, segundo dizem, nfo existem na sociedade brasileira, E dentro dessa preocupagio que as criticas vém sendo dirigidas contra as politicas de cotas, 38 A questio da diversidade e da politica de reconhecimento das diferencas consideradas como ameaga a mistura racial, como estimulo ¢ fortalecimento da erenga ” 2005, p. 335-347). Contraponho-me a alguns aspectos dessa argumentagio, Em primeiro lugar, em ragas (FRY. todos os brancos € negros no Brasil acreditam na “mistura racial” como fundante da sociedade brasileira, geneticamente falando. A pesquisa do geneticista Sergio Danilo Pena mostra que todos os brasileiros, mesmo aqueles que aparentam fenotipica europeia, tém em porcentagens variadas marcadores genéticos africanos ou amerindios, confirmando o principio j conhecido da inexisténcia de ragas puras. Nao vejo como, a nio ser recorrendo a uma imaginagio criativa, a ago afirmativa possa desfazer a “mistura racial”, desafiando as leis da genética humana e a acio voluntarista dos homens e das mulheres que continuario a manter os intereursos sexuais inter-raciais. Se as leis e barreiras raciais contra relagdes sexuais inter-raciais nos Estados Unidos e na Africa do Sul (apartheid) néo conseguiram desfazer a “mistura racial”, como € que isso possa ser possivel somente no Brasil, por causa das cotas? Isso seria atvibuir & ago afirmativa um poder magico que na realidade ela nio possui Em segundo lugar, sabemos todos que 0 contetido da raga é social e politico. Se para 0 bidlogo molecular ou o geneticista humano a raga ndo existe, ela existe na cabeca dos racistas e de suas vitimas. Seria muito dificil convencer Peter Botha e um zulu da Africa do Sul que a raga negra e a raga branca nao existem, pois existe um fosso sécio-historico que a genética nfo preenche automaticamente. Os mestigos dos Estados Unidos sto definidos como negros pela lei baseada numa tinica gota de sangue. Eles aceitaram e assumiram essa identidade racial que os une e os mobiliza politicamente em tomo da luta comum para conquistar seus diretos civis na sociedade americana, embora conscientes da mistura que core em seu sangue ¢ também da negritude em razio da gual sto discriminados. Consciente de que a diseriminagao da qual negros mestigos sao vitimas apesar da “mistura do sangue”, ndo é apenas uma questio econdmica que atinge todos os pobres da sociedade, mas sim resultante de uma discriminagao racial camuflada durante muitos anos. O Movimento Negro vem tentando conscientizar e mobilizar negros e mestigos em tomo da mesma identidade através do conceito “Negro” inspirado no “Black” norte-americano. Trata-se, sem diivida, de uma definigio politica embasada na divisio binracial ou bipolar norte-americana, e nfo biolégiea, Esta divisio ¢ uma tentativa que ja tem cerca de trinta anos e remonta a fundacao do Movimento Negro 39 2 wou apepatsos Revista de Cultura Politica Kabengele Munanga Unificado, que tem uma proposta politica clara de construir a solidariedade © a identidade dos excluidos pelo racismo brasileira. Ela é anterior a discussio sobre as cotas ou ago afirmativa que tem apenas uma dezena de anos. Mais do que isso, ela correu paralelamente a classificago popular cromética baseada justamente na multiplicidade de tons e nuangas da pele dos brasileiros, resultante de séculos de miscigenagio. Afirmar que a definigo bipolar dos brasileiros em ragas negra e branca nasce das politicas de agao afirmativa, ainda em debate, é ignorar a historia do Movimento Negro Brasileiro, Pensar que o Brasil sofre pressdes intemacionais ou multilaterais para impor as politicas de cotas é minimizar a propria soberania nacional e ignorar as reivindicagdes passadas e presentes do Movimento Negro que, mesmo sem utilizar as palavras cota e ago afirmativa, sempre reivindicou politicas especificas que pudessem reduzir as desigualdades e colocar 0 negro no mesmo pé de igualdade que 0 branco. © problema fundamental no esti na raga, que é uma classificagao pseudocientifica rejeitada pelos préprios cientistas da area biolégica. O né do problema esta no racismo que hierarquiza, desumaniza e justifica a diseriminagao existente. Ha cerca de meio século, que os geneticistas e bidlogos moleculares afirmaram que as ragas puras nao existem cientificamente (Cff. Jean Hiemaux, J. Ruffie, A. Jacquard, F. Jacob, etc.). Chegaram até a preconizar a eliminagio do conceito de raga dos dicionarios, enciclopédias e livros cientificos como medida de combate ao racismo. Nao demoraram concluir que essa proposta era uma ingenuidade cientifica, dando-se conta de que a ideologia racista nao precisava do conceito de raga para se refazer e se reproduzit. Da mesma maneira que o Brasil criou seu racismo com base na negagiio do meso, os racismos contemporineos nio precisam mais do conceito de raga. A maioria dos paises ocidentais pratica 0 racismo antinegro ¢ antiérabe, sem mais recorrer aos conceitos de ragas superiores ¢ inferiores, servindo-se apenas dos conceitos de diferengas culturais identitarias. As propostas de combate ao racismo nio estio mais no abandono ou na erradicagao da raga, que é apenas um conceito & nao uma realidade, nem no uso dos léxicos cémodos como os de etnia, de identidade ou de diversidade cultural, pois o racismo é uma ideologia capaz de parasitar por todos os conceitos. Benjamin Isaac, num livzo recente baseado numa pesquisa de aproximadamente 15 anos, sustenta a existéncia do proto-racismo entre os antigos gregos e romanos. Porém, os antigos nao usavam 0 40 A questio da diversidade e da politica de reconhecimento das diferencas coneeito modemno de raga, Eles usavam os conceitos de ethnos ou nati, que nao sto sinénimos de raga’, A lei da pureza de sangue vigente em Portugal ¢ na Espanha dos séculos XIV-XV que deu origem ao antissemitismo, que ¢ uma modalidade do racismo, no precisou da raga no sentido moderno da palavra. No entanto, a lei da pureza de sangue na peninsula ibérica mio era tho diferente das leis de Nuremberg, durante o regime nazista. A saida, no meu entender, nao esti na erradicagao da palavra raga € dos processos de construcio da identidade racial, mas sim numa educagio e numa socializagdio que enfatizem a coexisténcia ou a convivencia igualitéria das diferencas e das identidades particulares. Olhando desta ética, penso que implantar politicas de ago afirmativa nfo apenas no sistema educativo superior, mas em todos os setores da vida nacional onde © negro é excluido, no significa destruir a identidade nacional nem a “mistura racial”, como pensam os criticos das politicas de cotas, que eles mesmos rotulam como cotas raciais, expresso que nfo brotou da boca do Movimento Negro brasileiro, Sem construir a sua identidade racial ou étnica, alienada no universo racista brasileiro, o negro nao poder participar do processo de construgio da democracia e da identidade nacional plural em pé de igualdade com seus compatriotas de outras ascendéncias. O segundo grupo compreende todos aqueles estudiosos, intelectuais, midiiticos, politicos e ativistas que se colocam na abordagem nominalista ou construcionista, Eles entendem 0 racismo como uma produgio do imaginario destinado a ser considerado como uma realidade a partir de uma dupla visio do outro diferente, isto é, do seu corpo mistificado e de sua cultura também mistificada, O outro existe antes de tudo por seu corpo, antes de se tornar uma realidade social. Nesse sentido, se a raga nao existe biologicamente, historica e socialmente ela existe, pois, no pasado € no presente, ela produz e produziu vitimas. Apesar do racismo nao ter mais fandamento cientifico, como no século XIX, e de nio poder se prevalecer hoje de nenhuma legitimidade racional, essa realidade social da raga, que continua a passar pela geografia dos corpos das pessoas, no pode ser ignorada. Visto nessa étiea, 0 reconhecimento piiblico das Giferengas raciais € 0 melhor caminho para se pensarem as politicas piblicas que ® Cont: ISAAC, Benjamin, The invention of Racism in Classical Antiquity. Priaceton University Press, 2004. 44 IID EPI1I0g 9 v ape Revista de Cultura Politica Kabengele Munanga possam contemplar as vitimas presentes e futuras do racismo, advogam os defensores dessa abordagem. A primeira fonte de diversidade é a coexisténcia no interior de um dado Estado de diversas nagdes. Cada uma dessas nagdes corresponde a uma comunidade historica ocupando um dado teritério e partilhando, nesse territério, uma lingua e uma cultura distintas. Um pais que compreende mais de uma nag3o nio é um Estado-Nagao, mas sim um estado multinacional onde as pequenas conmunidades formam as minorias nacionais. Neste sentido, a maioria das democracias ocidentais é multinacional, A segunda fonte de diversidade cultural se origina na imigragio e na escravidao, quando escravizados ¢ emigrados ¢ os descendentes de ambos conservaram certa dimensio de particularidade étieo-cultral, como é 0 caso do Brasil, de muitos paises da América do Sul, dos Estados Unidos, que podemos considerar como paises de velhas imigragdes. Muitos paises da Europa Ocidental se tornaram, desde os anos 60, paises de novas imigragdes e constituem, desde entio, suas minorias étnico-culturais. As duas abordagens - 0 antirracismo de igualdade defendida pelos essencialistas, € 0 antirracismo de diferenga defendido pelos nominalistas ou construcionistas - pregam posigdes maniqueistas do Bem e do Mal, que de fato, refletem a propria estrutura opressora do racismo, porquanto a sociedade se sente forgada a escolher entre a negacao € a afirmagio da diferenga a todo 0 momento, Apesar da coeréneia dos argumentos defendidos, as duas abordagens sio probleméticas. A melhor abordagem seria aquela que combina a aceita¢o da identidade humana genérica com a aceitaglo da identidade de diferenga. A cegueira para a cor é uma estratégia falha para se lidar com a opressao racista, pois ndo permite a autodefinigao dos oprimidos ¢ institui os valores do grupo dominante ¢ consequentemente, ignora a realidade da discriminagao cotidiana. A estratégia que obriga a tornar as diferengas salientes, em todas as circunstancias, obriga a negar as semelhangas e, impdem expectativas restringentes. A diferenga em si se toa uma nova virtude capaz de criar novas armadilhas ideologicas. Essas armadilhas esto no Amago da critica dirigida ao filésofo Will Kymlicka, defensor das reivindicagdes mrulticulturais, por uma das grandes figuras da teoria politica feminista, Susan Moller Okin, A critica & a de que aceitar sem restrigdo 0 slogan “viva a diferenga cultural” poderia promover as culturas que estimulam a desigualdade entre os géneros e violam os direitos politicos das mulheres. O que fazer quando as reivindicagdes culturais ou 42 A questio da diversidade e da politica de reconhecimento das diferencas religiosas de algumas minorias étnicas se chocam com as normas de igualdade entre sexos num Estado de Direito? (FASSIN et.al, 2006, p. 243-246). Universalismo e reconhecimento das diferengas na educacio A questo fundamental que permanece colocada é como combinar a igualdade ¢ a diferenga para podermos viver harmoniosamente juntos? Emprestando os argumentos de Alain Tourraine (op.cit., p.371), ndo vejo outro caminho a nfo ser a associagio da demoeracia politica com a diversidade cultural baseadas na liberdade do sujeito. Finalmente, de que temos realmente medo? Das diferengas ou das semelhancas escondidas atrés das diferengas? O ego e o alter estio sempre juntos, numa relagao dialégica. Nao ha uma sociedade multicultural possivel sem o recurso a um principio universalista que permite a comunicagio entre individuos e grupos social e culturalmente diferentes. Mas também no hi uma sociedade universal possivel se este principio universalista comanda uma concepgio de organizacio social e de vida pessoal gue leve alguns a se julgar superior aos outros. Deve-se criticar a identificagio dos direitos do homem com certas formas de organizagao social, em particular com o liberalismo econémico, mas é também importante afirmar o direito a liberdade e igualdade de todos os individuos nos limites que nfo devem franquear nenhum governo, nenhum eddigo juridico, e salvaguardando- e a0 mesmo tempo os direitos culturais e os direitos politicos como a liberdade de expressio e de escolha. Se a questdo fundamental é como combinar a semelhanga com a diferenga para podermos viver harmoniosamente, sendo iguais e diferentes, por que nie podemos também combinar as politicas universalistas com as politicas diferencialistas? Diante do abismo em matéria de educagao superior, entre brancos e negros, brancos ¢ indios, levando-se em conta outros indicadores socioeconémicos provenientes dos estudos estatisticos do IBGE e do IPEA e os demais indices do Desenvolvimento Humanos provenientes dos estudos do PNUD, as politicas de ago afirmativa se impem com urgéneia, sem que se abra mao das politicas macrossociais Nao conhego nenhum defensor das cotas que se oponha a melhoria do ensino piiblico. Pelo contrario, os que criticam as cotas e as politicas diferencialistas se opdem categoricamente a qualquer politica de diferenga por consideri-las a favor da racializagao do Brasil. As leis para a regularizago dos tervitérios e das terras das 43 IHD apupaisog a t Revista de Cultura Politica Kabengele Munanga comunidades quilombolas, de acordo com 0 artigo 68 da Constituigdo e as leis 10639/03 © 11645/08 que tornam obrigatério 0 ensino da historia da Africa, do negro no Brasil dos povos indigenas; as politicas de saiide para doengas especificas da populagio negra como a anemia falciforme, ete., tudo isso é considerado como racializagio do Brasil € virou até motivo de piada. Os autores* do livro “Divisdes Perigosas” véem nas leis referidas uma ameaga a unidade nacional, enquanto os defensores das mesmas veem no multiculturalismo um caminho para a inclusio, Sem divida, a defesa de multiculturalismo e das identidades culturais particulares, em alguns paises da Europa (Espanha, Bélgica, paises Biledis, entre outros) e no Canada, tem um contetido separatista, contrariamente ao Brasil onde a reivindicagao da identidade negra e da indigena busca a inclusio e nio a separagio. Nesse sentido, ensinar a histéria do negro e dos povos indigenas na escola brasileira é romper com a visio eurocéntrica que exclui outras raizes culturais formadoras do Brasil como pove ¢ nagio. A diversidade & nossa riqueza coletiva. Ela tem uma historia que evemos inventariar e conhecer para enfim ensind-la as geragdes presentes e futuras. No entanto, por questo ideolégica, a diversidade foi manipulada ¢ transformada em problemas para as sociedades. Os diferentes foram classificados e hierarquizados em superiores ¢ inferiores, com base nas teorias racialistas desenvolvidas na Europa entre os séculos XVIII e XX. Sua cultura, isto é, religides, artes, filosofias, visdes do mundo, sistemas sociais... foi, consequentemente, exeluida do sistema educacional nacional cuja referéneia é ainda eurocéntrica, Aqui estd 0 n6 do problema que se pretende solucionar através de uma educagdo e de uma pedagogia multiculturais. Mas antes de buscar solugdes para um problema da sociedade, devemos, primeiramente descrevé-lo, analisé-lo para melhor compreendé-lo a fim de explicé-lo para a sociedade. Este é 0 nosso papel principal como pesquisadores/as e estudiososias. Sé depois ¢ que podemos, quando interpelados pela sociedade, apontar alguns caminhos de mudangas e transformagdes de acordo com os resultados de nossas pesquisas. Infelizmente, alguns deixam de cumprir devidamente essa fungao para se transformar em ativistas politicos improvisados. Isso nés. vimos Gurante o debate nacional sobre politicas afirmativas e cotas para negros e indigenas. Muitos assinaram as petigGes ou abaixo-assinados contra ou favor numa atitude * FRY, Peter et ali. Divisdes perigosas. Politicas raciais no Brasil contemporaneo. Rio de Janeiro: 2007 44 A questio da diversidade e da politica nhecimento das diferengas maniqueista do bem e mal, fazendo confusio entre a Historia do Problema e 0 Problema da Historia, E essa histéria e seu problema que devemos conhecer antes de tomar qualquer posigio. Muitas vezes ficamos presos nos lugares comuns dos meios de comunicagao de massa, 0 que nao & adequado para os futuros pesquisadores, estudiosos ¢ intelectuais que voeés representam. Referéncias Bibliograficas FASSIN, Didier & Fassin, Eric. De la question sociale 4 la question raciale? Patis: La Découverte, 2006, p. 243-246. FRY, Peter; MAGGIE, Yvonne; CHOR MAIO, Marcos; MONTEIRO, Simone; VENTURA, Ricardo (orgs). Divisdes Perigosas: Politicas raciais no Brasil Contempordneo. Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 2007. FRY, Peter. A persisténcia da raca, Rio de Janeiro: Civilizagdo Brasileira, 2005, p. 335- 347. ISSAC, Benjamin, The invention of Racism in Classical Antiquity. Princeton University Press, 2004. KYMLIKA.W, “Démoratie Libérale et Droits des Cultures Minoritaires”. In. GAGON,F; MC ANDREW; PAGE, M. (ed.). Pluralisme, Citovermeté et Education. Paris: L’Hammattan, Col.”Ethiké”, 1996, Appud MESUE, S.; RENAUT, A. Alier Ego, Les paradoxes de l'identité démocratique. Paris: Aubier, 1999, LACORNE, D. La crise de l'ididentité américaine. Du Melting Pot ao Multiculturalisme. Pasis: Fayard, 1977. TOURAINE, Alain. Powvons-nous vivre ensemble? Egaux et différents. Paris: Fayard, 1997, p. 209. Recebido em Maio de 2014/ Aprovado em Junho de 2014 45 apepaioog a vonLID

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