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(Os Pequenos Grupos e a Hermenéutica: Evidéncias Biblicas ¢ Historicas em Perspectiva Wilson Parosehi, PhD Professor de Novo Testamento Unasp-EC Os pequenos grupos consistem numa das mais enfatizadas estratégias de discipulado e crescimento da Igreja Adventista nos tltimos anos. Muitos administradores tm dado absoluta prioridade ao assunto ¢ ha relatos impressionantes de igrejas que tém sido dinamizadas com esse programa e de membros cuja vida espiritual tem sido grandemente revigorada. A idéia toda costuma ser apresentada como tendo sélida base biblica com relagao nao apenas aos principios que a regem como também aos detalhes de seu funcionamento. ‘Nas publicacdes que tratam do assunto, é comum o uso abundante de textos e episédios biblicos tanto do Antigo quanto, principalmente, do Novo Testamento para dar respaldo a0 programa. Alega-se, em particular, que os pequenos grupos consistem num retorno ao ‘modelo das igrejas-do-lar do periodo apostélico,’ que tal modelo representa o plano divino para a igreja e que as comunidades que nfo se organizarem em pequenos grupos estariam rejeitando o plano estabelecido pelo proprio Deus.” Este trabalho analisa os fundamentos hermenéuticos dos pequenos grupos. Ele esti dividido em duas partes distintas: a primeira, que lida mais com questdes hermenéuticas, especialmente com relacao ao Livro de Atos, ea segunda, que investiga a origem eo * A expresso paulina ektlésia kat‘oikon (Rm 16:5; 1 Co 16:19; Cl 4:15; Fm 1:2) significa simplesmente “igreja em casa.” Essa é a traducio literal e mais adequada nos contextos em que & usada (¢.g., “a igreja que esti na casa deles”). Neste trabalho, a opedo por “igreja-do-lar” atendeu a uum critério tanto estilistico quanto técnico. diante da necessidade de uma expressdo que melhor ccaracterizasse essa antiga instituigao crista.“Tgreja domiciliar” também seria uma boa alternativa * A literatura denominacional sobre os pequenos grupos (em periédicos tais como a Revista Adventista, Ministévio 2 a Revista do Anciao, bem como em guias de estudos ¢ manuais missionstios) S abundante e de ficil acesso, sendo, portanto, desnecessirio fazer referéncias diretas. Também muito influente € 0 estudo por Russell Bumtll, Como Rearivar a lereja do Século 21: O Poder Transformador dos Pequenos Grupos. trad. Ellen Mary T. B. de Franco (Tatui: CPB, 2005). desenvolvimento das igrejas-do-lar no contexto da igreja primitiva, desde seus primérdios até © quarto século, que foi quando comegaram a surgir as grandes congregagdes. O objetivo do trabalho é fornever subsidios hermensuticos histéricos para que o projeto dos pequenos ‘grupos, que tem se revelado uma béncao para a igreja, nio venha a perder sua credibilidade e relevancia, A Questio Hermenéutica: A Problemitiea do Livro de Atos A questo fundamental que subjaz a esta discussdo é como determinar os elementos prescritivos e o gran de prescritibilidade presentes no Livro de Atos. A rigor, conforme o -5; ef. Le 1:1-4),° Atos é um documento histérico,* e, como tal, proprio Lucas afirma (At 1: narra o desenvolvimento da igreja apostélica nos primeizos trinta anos apés a ascengao de Cristo.) Em muitos cizculos eclesitisticos e evangelisticos, porém, predomina a crenca, explicita ou implicita, de que este livro consiste verdadeiramente numa espécie de “manual da igreja” ou “manual de evangelism com orientagdes e exemplos priticos que, se forem seguidos a risca, produzirao os mesmos resultados. C. Peter Wagner, por exemplo, declara 0 seguinte: “Atos foi projetado para ser 0 manual de treinamento de Deus para os cristios * O Livro de Atos, assim como o Evangelho de Lucas, é anénimo. Para uma defesa da autoria lucana desses dois livros, veja Joseph A. Fitzmyer, Luke the Theologian: Aspects of His Teaching (Nova York: Paulist, 1989), 1-26. Em portugues. veja D. A. Carson, Douglas J. Moo e Leon Mois, Introducao ao Novo Testamento, trad. Marcio L. Redondo (Sao Paulo: Vida Nova, 1997), 125-128, 208-210. * Para discussdo concemente ao género literério do Livro de Atos, veja Darryl W. Palmer, “Acts and the Ancient Historical Monograph,” eL. C. A. Alexander, “Acts and Ancient Intellectual Biography,” em Ancient Literary Setting, ed. Bruce W. Winter e Andrew D. Clarke, vol. 1, The Book of dets in is First Century Setting, 5 vols., ed. Bruce W. Winter (Grand Rapids: Eerdmans, 1993- 1996), resp. 1-29 e 31-63, * Para a cronologia do Livro de Atos em conexao com 0 ministério de Paulo, veja L. C. A. Alexander, "Chronology of Paul,” DPL (Downers Grove: InterVarsity, 1993), 115-123. Veja também FF. Bruce, “Acts of the Apostles.” ISBE, 4 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1979-1988), 1:37-38, moderos. Vendo e compreendendo aquilo que funcionou to bem quase dois mil anos atris pode ser diretamente relevante para o seu servigo a Deus hoje e pode dinamizar de forma poderosa e benfazeja sua vida crista.”* Cuidadosa andlise da evidéncia, porém, parece apontar para outra directo. Em primeiro lugar, convém observar que, ao descrever a histéria da igreja primitiva, Lucas no registra somente os triunfos e sucessos dos apéstolos, mas também seus erros e retrocessos. Em Atos, nfo encontramos apenas uma sucessao de experiéncias e relatos positivos que culminam com o evangelho sendo pregado destemidamente e sem qualquer impedimento até mesmo em Roma, no coracdo do império (At 28:30-3 1). Ali também estdo registradas iniimeras situagdes negativas envolvendo diretamente os apdstolos, suas decisdes ¢ atitudes. Exemplos disso so a negligéncia para com as vitivas helenistas (6:1), 0 preconceito ea reticéncia deles diante da pregacio aos gentios (10:1-11:18), a desavenga entre Paulo e Barnabé (15:36-40), a transigéncia de Paulo para com a lei cerimonial (21:17-26) e sua op¢ao por ser julgado em Roma (25:9-12), 0 que se revelou um grave erro estratégico (cf. 26:30- 32). Ha também duas outras experiéncias que se revelaram particularmente negativas: a crenca na volta imediata de Jesus e 0 consequente arrefecimento do fervor evangelistico logo apés 0 Pentecoste.” §C. Peter Wagner, The Book of Acts: A Commentary, 3 ed. (Ventura: Regal, 2008), 1. De ‘uma forma ou de outra, essa mesma crenca parece que esté enraizada no seio da Igreja Adventista também, Um simples exemplo é suficiente. Ao longo de toda a historia de nossas ligdes da Escola Sabatina (até 0 ano 2000), ja tivemos 25 licdes dedicadas direta ou inditetamente ao Livro de Atos. Romanos e Apocalipse vém em segundo lugar, com apenas dez ligSes cada (informagao fornecida por Ivan Samojluk, do Depto. da Escola Sabatina da Divisto Sul Americana). A discussto a seguir reflete a posicao hermenéutica oficial da Igreja Adventista (votada no Concilio Outonal de 1986, realizado na cidade do Rio de Janeiro) no que concerne As exposicoes biblicas de Ellen G. White (neste caso, no livro Aros dos Apdstolos), as quais, conquanto inspirades, nao esgotam o significado do texto biblico e nem substituem a tarefa da exegese (“Methods of Bible Deixe-me explicar. A perspectiva evangelistica predominante na tradigdo judaica, 7; Is 2:2-5; tanto no Antigo Testamento (S12 ; SE 3:9-10; Ze 14:6) quanto na literatura intertestamentiria (Tob 13:11; T. Ben. 9:2; Pss, Sol. 17:33-35; Sib. Or. 3.702-718, 772-776), & a do chamado movimento centripeto, ou seja, nfo é Tsrael que vai As nacdes; so as nagdes que vém a Israel, atraidas pela prosperidade e fidelidade do povo de Deus.* E ha claros indicios de que, apesar da ordem de Jesus em At 1:8, os apéstolos entenderam que, com a pregacto no dia de Pentecoste e a conversio de mais de trés mil pessoas, a misao deles no mundo jé estava cumprida, ou pelo menos substancialmente cumprida. Como James D. G. Dunn salienta, o modelo evangelistico que eles conheciam era o que prevalecia no 2; 10:5-6, judaismo de seus dias (ef. Mt 8:11~ Me 11:17) e, no Pentecoste, o mundo todo veio até eles; Lucas menciona mais de quinze diferentes nacionalidades ali representadas (At 2:9-11). O que houve em seguida foi uma diminuigio do entusiasmo evangelistico, associado Aidéia de que Jesus estaria voltando naqueles dias, como ficara implicito na promessa no dia da ascengio (1:6-11; ef. 3:20-21; Mt 10:23), Foi por isso que eles permaneceram to firmemente arraigados em Jerusalém e centrados no templo (At 2:46; 3:1; 5:1 1, 25, Study,” Ministy, April 1987: 23). Veja também o documento “The Inspiration and Authority of the Ellen G. White Writings.” Ministry, February 1983: 24. Gethard Pfandl, diretor associado do Biblical Research Instiiute, da Associacao Geral, declara: “Com frequéncia Ellen G. White usow homileticamente as Escrituras. ... Alguns adventistas do sétimo dia pensam nos escritos de Ellen G. White como um comentiio inspirado sobre a Biblia, Se for assim, é vital reconhecer que em seus eseritos encontramos aplicagées homiléticas de passagens biblicas, além de comentarios exegéticos. Conquanto taja muitas jéias exegéticas em seus livros, principalmente na série Conflito dos Séculos, a parte principal de seus escritos contém a mensagem de Deus para a igreja remanescente, nto discursos exegéticos sobre o significado do texto biblico” (“Ellen G. White e a Hermenéutica,” em Compreendendo as Eserituras: Uma Abordagem Adventista, ed, George W. Reid, trad, Francisco A. de Pontes [Eng. Coelho: Unaspress, 2007], 314-316). Para uma discussto introdut6ria do assunto, veja o artigo “The Role of Israel in Old ‘Testament Prophecy.” em SD Bible Commentary, 2°. ed,, ed. Francis D. Nichol, 7 vols. (Hagerstown: Review & Herald, 1977), 4:25-38. Para informacao adicional, veja E. P. Sanders, Jesus and Judaism (Philadelphia: Fortress, 1985), 79-86. 42), até porque, de acordo com a profecia de Malaquias (3:1), 0 templo seria 0 ponto focal da iminente consumagao.” O elevado senso de fraternidade e comunidade demonstrado pela igreja apostélica logo apés o Pentecoste (At 2:44-45; 4:32-35) revela que eles viviam na expectativa didria da volta de Jesus." Posses ou bens materiais perderam o valor. Tudo era vendido e o lucro trazido para um caixa comum para o beneficio de todos. “Eles nio precisavam mais se preocupar com o futuro, pois nao haveria futuro.”!! A atitude foi louvavel, sem diivida, mas o momento foi errado, ainda que a iniciativa possa ter atendido a algumas necessidades especificas, como a ajuda aos pobres da comnidade de crentes."? O espirito de desprendimento e fiaternidade que manisfestaram é, de fato, o que deve caracterizar 0 povo de Deus pouco antes da volta de Jesus, mas naquele ‘momento, representou um retrocesso para a igreja. A igreja de Jerusalém empobreceu (At 11:28; Rm 15:26; Gl 2:10), passou a depender da generosidade das igrejas gentilicas (At 11:29-30; Rm 15:25-26; | Co 16:1-3) e nfo péde sequer financiar o evangelismo mundial. Isso coube as proprias igrejas gentilicas (At 13:1-3; 15:35-36; 2 Co 11:8-9; Fp 4:15-18).3 ° James D. G. Dunn, Unity and Diversity in the New Testament: An Inquiry into the Character of Earliest Christianity, 2 ed. (Londres: SCM, 1990), 238-239. * Tbid., 323- 4. C.K. Barrett, A Critical and Exegetical Commentary on the Acts of the Apostles, CC (Edimburgo: T&T Clark, 1994-1998), 1:168 ® Veja Arthur G. Patzia, The Emergence of the Church: Context, Growth, Leadership and Worship (Downers Grove: InterVarsity. 2001), 213-214. © Hi claras evidéncia de que a igreja de Jerusalém continha membros de todas as classes sociais, inclusive as mais altas (veja David A. Fiensy, “The Composition of the Jerusalem Church,” em Palestinian Serting, vol. 4, ed. Richard Bauckham, The Book of Acts in Its First Century Seiting, vols., ed. Bruce W. Winter [Grand Rapids: Eerdmans, 1993-1996], 226-230), mas independentemente da possibilidade de alguns deles terem mantido seu status mesmo apés a experiéncia de At 2:44-45 4:32-35, isso nao parece ter sido o bastante para mudar a situagio geral da igreja judaica, conforme indicam os textos de At 11:28, Rm 15:26 e Gl 2:10. Deus permitiu que se levantasse uma perseguicdo contra a igreja (At 8:1-3) para dispersé-la de Jerusalém e, assim, leva-la a cumprir sua miss&o mundial (8:4, 5-8, 26-40; 11:19-21).1* Outros exemplos de experiéncias negativas também poderiam ser citados, como as nogées soteriolégicas e eclesiolégicas da igreja apostélica naqueles primeiros anos de sua existéncia.’? E 0 que dizermos do fato de Paulo ser um pregador itinerante, nao ter familia (1 Co 7:7-9) e muitas vezes ter que trabalhar pelo sustento proprio (At 18:1-4; 20:34: 1 Co 4:12; 1 Ts 2.9)? F isso um modelo para o ministério evangélico? E quanto ao fato de ele sempre, ‘ou quase sempre, comegar suas atividades evangelisticas numa cidade pelas sinagogas judaicas (At 13:14-15, 42-44; 14:1; 17:1-2, 10, 17; 18:4, 19; 19:8)? E a abordagem filoséfica que utilizou em Atenas (17:16-34)? E isso um modelo para o evangelismo contemporaneo (cf. 1 Co 2:1-5)? Ou seja, é certamente um erro tratar 0 Livro de Atos como um manual da igreja, ¢ a igreja apostélica como um modelo em tudo para a igreja de todos os tempos e lugares. Ao contririo do que mantém a concepsao popular, a igreja apostélica no era perfeita, nem do ponto de vista doutrinario ¢ muito menos do ponto de vista administrativo ou eclesiastico. E um grave erro imaginar que, 20 ascender ao Céu, Jesus deixou na Terra uma igreja doutrinariamente madura e suficientemente organizada para cumprit sua miss40 no mundo. Talvez seja melhor descrever as primeiras décadas da historia da igreja como um periodo de transicdo e amadurecimento. Mesmo sob a guia do Espirito Santo, a igreja primitiva precisou * Conquanto se concentre em questies paralelas, Ellen G. White faz clara referéncia a diminuigao do zelo missiondrio que se seguiu ao Pentecoste e salienta que foi “a fim de espalhar Seus representantes por outras partes do mundo,” que “Deus permitiu que Ihes sobreviesse a perseguicao, Expulsos de Jerusalém, os crentes “iam por toda a parte anunciando a Palavra’” (Atos dos Apéstolos [Tatui: CPB, 1999], 105). ® Veja. e.2., Wilson Paroschi, stevao, Israel e a lareja,” Parousia 6:1 (2007): 39-52. crescer em sua compreensio sobre o significado da vida e da morte de Jesus, bem como sobre a tarefa que agora Ihe cumpria desempenhar. Os apostolos, conquanto consagrados, dedicados ¢ mesmo inspirados por Deus, ainda eram humanos, com falas e limitagdes, e foi por intermédio desses homens, por meio de seus erros e acertos, que Deus atuou e 0 evangelho foi levado a todo o mundo.’® A segunda razo pela qual a igreja apostdlica nao deve necessariamente ser vista ‘como um modelo em tudo é que ela mesma foi produto de uma época, um lugar e uma cultura especifica. A igreja apostélica nasceu no contexto do judaismo do primeiro século. Ela aparece no cenario biblico como mais uma dentre as varias denominagées ou “seitas” judaicas da época."” Ela teve que lidar com problemas tais como uma expectativa messidnica Aistorcida, o escdndalo da cruz e 0 legalismo judaico, a inclusdo dos gentios e a cireuncisto, 2 idolatria no mundo grego-romano, filosofias pagas, enfim, uma longa lista problemas, quase todos muito diferentes dos nossos.'* E por isso que muito cuidado deve ser tido na hora de apontar os elementos prescritivos no Livro de Atos, Nao ¢ s6 abri-lo e achar que, porque foi assim no passado, tem que ser assim no presente. Nés sabemos disso e, com frequéncia, até interpretamos corretamente aquilo que nao nos interessa, relativizando sua relevancia * Sobre o desenvolvimento organizacional e administrativo da igreja primitiva, veja R. N. Giles, “Church Order, Government.” DLNTD (Downers Grove: InterVarsity, 1997), 219-226. © Trés vezes Lucas se refere & comunidade crista como “seita” (At 24:5, 14: 28:22) ¢, a0 fazé-lo, ele usa a mesma palavra (hairesis) com que descreve os saduceus (5:17) e 0s fariseus (15:5: 26:5). A expressio de Paulo em At 26:5, “porque vivi fariseu conforme a seita [/airesis] mais severa a nossa religiao,” revela que entre os préprios judeus havia o conceito de que o juudaismo era uma religido pluralista. Sobre a natureza essencialmente judaica da igreja primitiva em Jerusalém, veja Joseph A. Fitzmyer, “Jewish Christianity in Acts in Light of the Quunran Scrolls.” em Studies in Luke-Acts, ed. Leander E. Keek e J. Louis Martyn (Philadelphia: Fortress, 1980), 234-240, 38 Em seu classico Evangelizagdo na Igreja Primitiva ([S4o Paulo: Vida Nova, 1989], 31-54), Michael Green dedica um capitulo inteiro (cap. 2) para descrever os obsticulos a evangelizacao nos primeiros tempos da igreja atual ou, entdo, desqualificando-a por completo, como, por exemplo, 0 uso da sorte (1:26), 0 dom de linguas (2:1-4, 7-8; 10:44-46; 19:6), o batismo em nome de Jesus apenas (2:38; 8:16; 10:48; 19:5; 22:16; ete.) e o voto de nazireu (18:18). O problema é que nem sempre manifestamos o mesmo rigor hermenéutico para com aquilo que nos interessa ou que julgamos valido ainda hoje. ‘A pergunta, entdo, é: Como identificar verdades prescritivas em Atos ou mesmo nas vas sfo encontradas Epistolas? Nas Epistolas, isso 6 bem mais facil. Verdades prescriti especialmente nas exortagdes espirituais, doutrinatias ou éticas. La encontramos prineipios claros que devem reger a vida individual e coletiva do cristo em geral, bem como dos lideres da igreja, Encontramos também nitidos prineipios de culto e adoragao, de organizagao eclesidstica e verdades fundamentais que alicergam a fé crista. Mas, mesmo exortagdes claramente prescritivas podem nao ser nada mais que simples expressOes culturais de um povo ou de uma época. Nao é assim que explicamos a recomendagdo para que os irmaos se saiidem uns aos outros com ésculo santo (Rm 16:16; 1 Co 16:20; 2 Co 13:12; 1 Ts $:26; 1 Pe 5:14) e as mulheres usem o véu quando oram (1 Co 11:5-16) e fiquem caladas na igeeja (1 Co 14:34)? O ponto que eu gostaria de enfatizar é que precisamos tratar as passagens que nos interessam ou que julgamos de valor permanente com o mesmo rigor hermenéutico com que © fazemos com passagens como essas, que no nos interessam tanto ou cujo conteiido nao mais consideramos vilido hoje em dia Com selagaio ao Livro de Atos. a situagao é bem mais complexa, Antes de prosseguir, porém, talvez convenha estabelecer uma diferenca entre a prescritibilidade das agdes apostélicas relatadas em Atos e a normatividade do livro em si. A dificuldade em se definir aquilo que & prescritivo no contetido desse livro nao afeta necessariamente seu cariter normativo para a f8 da igreja, O que garante isso ¢ o fato de que, embora sendo um relato historico, a historia ali relatada tem um teor profundamente teolégico: ela consiste num relato inspirado e autoritative daquele que foi um dos periodos mais importantes da histéria biblica da salvacao.'? Ou seja, Atos visa acima de tudo a apresentar a maneira como Deus atuou por meio dos apéstolos no estabelecimento de Sua igreja na Terra nas primeiras décadas apés a ascencdo de Cristo. Isso ajuda a explicar o elevado grau de seletividade presente no livro. ‘Nem todos os fatos ocorridos nesse periodo esto ali relatados, como nem todos os apéstolos recebem a devida atengio. Como historia teoldgica, 0 foco de Lucas nao ¢ outro seno as atividades de Deus no cumprimento de Seu propésito salvifico. “Cada evento principal,” destaca David G. Peterson, “é visto a luz dessa realizagao do plano de Deus.””? Sobre os aspectos prescritivos propriamente ditos e como reconhecé-los, esta é uma das mais dificeis questdes hermenéuticas relativas ao Livro de Atos, ¢ no so poucos os autores que se debatem com ela. Aqui, dois extremos devem ser evitados, como bem salienta William J. Larkin, © primeiro ¢ tornar Atos prescritivo demais, ignorando a realidade histérica em que foi escrito e tornando cada episédio ou conceito uma norma a ser seguida pela igreja. © outro extremo é concluir que, por ser histérico, Atos nao tem absolutamente nada de prescritivo para 0 crente moderno.’! Nao ha divida de que Atos contém importantes + “Historia da salvacdo” é um principio teolégico que interpreta a Escritura como a continua historia das atividades salvificas de Deus na historia. A expressdo também pode ser usada meramente de forma descritiva para se referir 8 teologia da histéria encontrada em ambos os Testamentos. especialmente em livros como Deuterondmiio e Lucas-Atos (veja Richard N, Soulen, Handbook of Biblical Criticism, 2°, ed, [Atlanta: John Knox, 1981), 82). ” David G. Peterson, The Acts of the Apostles, PNTC (Grand Rapids: Eerdmans, 2009), 27, ‘Veja também Peter G. Bolt, “Mission and Witness.” em Witness to the Gospel: The Theology of Acts, ed. L Howard Marshall e David Peterson (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), 191-214. > William J. Larkin, Acts, IVPNTCS (Downers Grove: InterVarsity, 1995), 15. 10 elementos prescritivos, como o proprio Lucas sugere a Te6filo (Le 1: ), a quem dedica seus dois livros (Le 1:3; At 1:1).”? A diivida ¢ como identificar tais elementos, visto que os problemas particulares da igreja com os quais Lucas se ocupa jé praticamente no existem mais. No tocante as questdes conceituais, os temas recorrentes nos discursos certamente sio verdades que extrapolam as respectivas limitagdes temporais e espaciais presentes no livro. Nessa categoria esto, por exemplo, os seguintes conceitos: que a missao da igreja & evangelizar o mundo (At 1:8; 8:4-5; 9:20; 16:10; 20:21, 24-25; 28:31); que a igreja sé poder 8, 16; 2:1-4; 4:8, cumprir a missao pelo poder do Espirito Santo (At 1 31; 9:31: 2 27; ete.); que nao pode haver discriminacao racial ou social no evangelismo ou dentro da igreja em si (At 1:8; 10:9-16, 27-2! 5; 13:46-48; 15:2-3, 7, 12-19; etc.); que a igreja foi fundada pelo proprio Deus (At 2:22, 39, 46-47; 3:13, 15-18, 5:30- 2, 38-39; 11:17-18; 20:28: etc.); que Deus esti no comand de todas as coisas e que tudo segue o plano por Ele estabelecido (At 1:7; 2:11, 20-22, 23; 4:28; 5:38; 13:36; 20:27: etc.).”* Quanto as questoes relacionadas com aos episédios envolvendo os apdstolos e seus associados, eu gostaria de sugerir os seguintes principios interpretativos: (1) principios espirituais subjacentes aos, episédios e aplicaveis & nossa realidade podem ser prescritivos; (2) padrdes recorrentes de atitude ou comportamento podem ter sido registrados como exemplos para os crentes de todos os tempos ¢ lugares; e (3) comportamentos ¢ atitudes diretamente aprovados ou desaprovados por Deus podem revelar Sua vontade em situagdes contemporiineas = De acordo com Ben Witherington, a propria presenca de Atos no cnon biblico reflete “a renga no permanente valor, importincia e relevancia da substancia do livro para a continua vida da igreja” (Atos dos Apéstolos: 4 Socio-Rherorical Commentary [Grand Rapids: Eerdmans, 1998), 98- 99) ® Veja | Howard Marshall, Acts, TNTC (Grand Rapids: Eerdmans. 1980), 49-50; Jacob Jervell, The Theology ofthe Acts of the Apostles, NTT (Cambridge: Cambridge University Press, 1996), 18-115. 1 equivalentes.”* Enfim, muito cuidado deve-se tomar para nao tomar as agdes da igreja apostélica presctitivas demais, Elas nto esto no mesmo nivel de infalibilidade das agdes de Crist. Nem tudo o que os apéstolos fizeram foi correto ou positivo para a igreja, e aquilo que o foi, mesmo que tenha sido elaborado sob a orientacao divina e alcangado excelentes resultados, quase sempre foi cultural ou sociologicamente condicionado. Por exemplo, o fato de Paulo iniciar seus esforgos evangelisticos pelas sinagogas judaicas pode até ter sido uma estraté recomendada pelo proprio Deus e produzido muitas conversdes (At 13:43; 14:1, 21; 17:4, 11- 12; 18:8; 19:17-18), mas nem por isso é necessariamente a estratégia que deve ser usada hoje em dia. Os cristdos apostélicos nao pensavam de si mesmos como formando uma nova religido, & parte do judaismo. Para eles, o cristianismo era o climax do judaismo, o que Paulo chamaria mais tarde de “o Israel de Deus” (G1 6:16: ef. Rin 9:6-8), Os judeus da época, portanto, eram os candidatos naturais para ouvir a mensagem do evangelho (At 13:46; 18:5- 6; ef. Rm 9:4-5) e as sinagogas espalhadas pelas principais cidades greco-romanas, as portas de-entrada legitimas ¢ eficientes para se alcancar, em primeiro Ingar, os judeus, em segundo lugar, os gentios que simpatizavam com a religiao judaica e que também as frequentavam, os chamados “tementes a Deus” (At 10:2, 22; 16:14; 18:7), e, em terceiro lugar, por meio desses gentios, alcancar aos outros.”* Deve ser lembrado também que, nos primeiros tempos do * Para uma discussdo mais ampla, veja Larkin, 13-17; Witherington, 97-102: e esp. Walter L. Liefeld, Interpreting the Book of Acts, GNTE (Grand Rapids: Baker, 1995), 117-127. Veja também Henry A. Virkler e Karelynne G. Ayayo, Hermeneutics: Principles and Processes of Biblical Interpretation, 2. ed, (Grand Rapids: Baker, 2007), 88-89. * “F dificil imaginar como o evangetho poderia ter sido pregado sem o prévio estabelecimento das sinagogas no mundo mediterraneo e & parte da pouca tolerdncia deste para com mesttes no-convencionais® (Bruce Chilton, “Synagogue,” DLNTD [Downers Grove: InterVarsity, 1997], 1144), 2 Império Romano e além da propria religido imperial, o judaismo era a tinica religio licita e que, se no fosse por sua identificagdo com o judaismo (cf. At 18:12-16), 0 cristianismo teria pouca ou nenhuma chance de sobreviver no mundo grego-romano.”* Hoje a situa¢do do mundo mudou e, olhando da perspectiva adventista, os judeus nao sio 0 piiblico-alvo primério da nossa mensagem, nem as sinagogas judaicas as portas-de- entrada naturais para nossos evangelistas. A relevancia da Igreja Adventista do Sétimo Dia deve ser ista, fundamentalmente, no contexto do mundo cristio. Nossa mensagem central, a triplice mensagem angélica de Ap 14 — a mensagem da iminéneia do juizo, da queda de Babilénia e da validade dos mandamentos de Deus, em particular 0 quarto mandamento — a mensagem a ser levada ao mundo cristo, Num contexto pagio ou ndo-cristdo, a triplice mensagem angélica se torna secundaria, E por isso que 0s judeus, os arabes e mesmo os neo- pagios da sociedade pos-modema exigem, pelo menos a principio, uma mensagem ¢ uma abordagem diferentes. Ninguém come¢a um estudo com um muculmano por Ap 13.7 Em suma, a hermengutica do Livro de Atos é bastante complexa, Nao ha nenhuma ditvida de que Lucas pretendia que seu segundo livro tivesse bem mais que um valor puramente histérico e a presenca desse livro no canon permitiu que o Espirito Santo 0 usasse * Os romanos, a principio, consideravam o cristianismo apenas como uma seita ou facc2o judaica, Foi somente na década de 60 que as diferencas comecaram a ser notadas, especialmente apos (© incéndio do ano 64 que devastou dez dos quatorze distritos de Roma. Para remover a culpa de si ‘mesmo e acalmar os énimos da populac3o, Nero reponsabilizou os cristios que, além de formar um. ‘gtupo cada vez mais exeéntrico, na opinidio dos romanos, também apregoavam a iminente destrui¢d0 do mundo pelo fogo. Foi assim que teve inicio a perseguic2o. Para uma andlise da posic4o do cristianismo no contexto religioso romano, veja Everett Ferguson, Backgrounds of Early Christianity, 2 ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 1993), 556-583. * Talvez a mais eloquente apresentago da natureza distintamente escatologica e restauradora dda miss adventista no contexto do mundo cristio continua sendo a de LeRoy E. Froom. em seu clissico Movement of Destiny (Washington: Review & Herald, 1971). Veja especialmente o capitulo 41, intitulado “Our Bounden Mission and Commission” (629-654), B de varias formas através dos séculos. (ossa responsabilidade,” destaca Liefeld, “é encontrar meios para aprender dele e aplicd-lo & nossa realidade, tomando os devidos cuidados para nao violar sua propria integridade.””* Nao é sé porque esta relatado em Atos ou porque os apéstolos assim o fizeram que nés devemos fazer 0 mesmo. Nem tudo o que est na Biblia deve necessariamente ser reproduzido pelos crentes de todos os tempos e lugares. Ao fazer a aplicacdo para hoje, o intérprete deve sempre ter em mente o propésito original do relato & luz do contexto histérico, cultural e social do primeiro século. Na busca pelos elementos prescritivos do texto, temas e priticas recorrentes adquirem especial relevancia, mas acima de tudo deve-se buscar 0 principio por detras do relato antes de aplica-lo a situacao atual. 0 descuido para com os fatores histérieos e a reprodugao incondicional das estratégias e agdes apostélicas podem comprometer a eficdcia dos esforgos evangelisticos e discipulares da igreja em face dos desafios caracteristicos da época em que vivemos. A Questiio Historica: A Origem das Igrejas-do-lar ‘Nao ha qualquer evidéncia de que as igrejas-do-lar tenham se originado como resultado de uma ordem ou recomendagto divina. Pelo contrario, a origem dessas igrejas parece ter sido muito mais circunstancial que providencial, por assim dizer. Antes de mais nada, precisamos entender a configuragao religiosa do judaismo do primeiro século. Duas ram as instituigdes religiosas judaicas dos tempos de Cristo e dos apostolos: o templo ea sinagoga. O templo era lugar de sactificio e oracao, ao passo que nas sinagogas as atividades centrais eram a leitura e a exposigao das Escrituras (Mt 13:54; Me 1:21-22; Le 4:16-22; Jo 6;58-59; At 13:14-42; 15:21), embora também houvesse cAnticos e oragdes. As reunides no * Liefeld, 127. 14 templo eram difrias; nas sinagogas, semanais (sbados) embora elas também pudessem ser usadas durante a semana pelos rabinos como escolas de instrugao religiosa e outras poucas atividades comunais ou civicas.”® Quando estava em Jerusalém, Jesus sempre ia ao templo (Jo 2:13-17; 5:14; 7:14; 8:2; 10:23; 18:20) e, aos sébados, tinha por costume ir a uma sinagoga (Le 4:16). Apés a ascencao, Seus seguidores continuaram fazendo o mesmo. Eles nao se separaram de imediato das ceriménias do templo, pois, além do significado escatolégico que atribuiam ao local, eles ainda no compreendiam plenamente o significado salvifico e as implicagdes ctilticas da morte de Jesus. E verdade que eles aproveitavam as idas ao templo para pregar (At 3:11-26; 5:20-25, 42), mas nao ha nenhuma divida de que, por varios anos aps a ressurreig¢do e ascengdo, muitos judeus-cristaos continuaram, de alguma forma, apegados ao templo, como zelosos cumpridores das leis cerimoniais (At 15:1-5; 21:20; Gl 23 5:1-5); eles ainda celebravam as festas judaicas (At 2:1; 20:16; 1 Co 16:8) e até ofereciam sacrificios (At 3:1; 21:17-26; Hb 5:11-14)? * Para os detalhes estruturais e litirgicos do templo e da sinagoga, veja Donald E. Gowan, Bridge between the Testaments: A Reappraisal of Judaism form the Exile to the Birth of Christianity 3° ed, (Allison Park: Pickwick, 1995), 193-225. * 4 observncia da lei cerimonial foi, talvez, o principal ponto de contenda na igreja apostélica durante as primeiras décadas apés a ascencao de Cristo. O concilio de Atos 15 liberou os cristios gentios de suas obrigagdes (At 15:19-21), mas 0s cristdos judeus nao se sentiram igualmente livres de tais priticas (At 21:19-25). Eles foram incapazes de ver que as observancias cerimonias tiveram seu cumprimento em Cristo Jesus, nto apenas em relagdo aos gentios, mas também em. relacao aos judeus, e por isso continuaram apegados a elas. O SDA Bible Commentary declara: “Os judeus cristos ainda guardavam as festas; eles ainda sacrificavam como anteriormente: eles ainda ‘ram zelosos para com a lei cerimonial. Eles ndo tinham senao uma vaga compreensto da obra de Cristo no santudrio celestial; eles sabiam muito pouco acerca de Seu ministério; eles nio compreendiam que seus sacrificios eram sem valor em vista do grande sactificio sobre 0 Calvario’ (Nichol, ed., 7:389). Veja também Ekkehardt Maller, Come Boldly do the Throne: Sanctuary Themes in Hebrews (Nampa: Pacific Press, 2003), 10. O primeiro grupo cristao que parece haver compreendido que a morte de Jesus colocara um ponto final ’s fungdes cerimonias do templo e a0 particularismo judaico foi o dos helenistas de At 6-7. Para discussto do assunto, veja Paroschi, 39-52. 1s O argumento de que a igreja apostolica diariamente perseverava undnime no templo & de casa em casa (At 2:46; 5:42), portanto, embora muito utilizado como modelo para os pequenos grupos,*' nao parece vilido, pelo menos no que diz respeito ao templo. Tal pratica nfio justifica a énfase de que os cristaos devem se reunir frequentemente na igreja e de casa em casa, Os cristios apostélicos se reuniam no templo porque eles ainda no haviam rompido com as priticas cerimoniais judaicas. As reunides nas sinagogas, sim, poderiam ser citadas como paradi rmaticas, até porque era ali que os crentes se congregavam todos os 19; 24: sbados (At 15:2: 26:11; Tg 2:2: Hb 10:25). juntamente com os patricios judeus. Até o final do primeiro século, o judaismo era caracterizado pela diversidade e tolerancia, e os membros das varias facgdes — fariseus, saduceus e mesmo eristdos que, a principio, no constituiam sendo apenas mais uma denominagdo judaica — frequentavam juntos as mesmas sinagogas e outras instituigdes judaicas (cf. At 6:8-10; 23:6-8). ‘Havia muitas sinagogas em Israel. De acordo com a tradi¢ao judaica, sé em Jerusalém eram 480. Segundo os rabinos, onde quer que houvesse dez homens adultos ja poderia haver uma sinagoga.** Muitas delas, portanto, eram bem pequenas, talvez a maioria, & estavam localizadas em casas particulares, ou entao ocupavam salas adjacentes a uma casa *" Veja Bull, 68. » Segundo F. F. Bruce, a palavra episynagoge, em Hb 10:25, sugere que os judeus-cristaos ainda nao haviam rompido sua conexdo com a sinagoga, embora eles pudessem ter reunides distintamente cristis em locais separados (The Episile fo the Hebrews, ed. rev., NICNT [Grand Rapids: Eercimans, 1990), 258), * LT. Megiliah 73d. O Talmude Babilénico fala em 394 sinagogas (B.T. Keruboth 105a). Alguns eruditos, porém, acreditam que ambos os nlimeros sejam exagerados (e.g, Lester L. Grabbe, “Synagogues in Pre-70: A Re-Assessment,” em Ancient Synagogues: Historical Analysis and Archaeological Discovery, ed. Dan Urman e Paul V. M. Flesher (Leiden: Brill, 1995), 22). ML Megillah 4:1. 16 (At 18:4-7). A “casa” na qual Jesus curou o paralitico e Ihe perdoou os pecados era possivelmente uma sinagoga (Me 2:1-12). De acordo com Bruce Chilton, “isso explicaria a multidao eo grau de controvérsia envolvida.”* £ claro que havia também muitas sinagogas que funcionavam em edificios independentes, construidos especificamente para esse propésito (cf. Le 7:5).** A verdade, porém, é que nenhuma outra instituigao judaica influencion mais a igreja primitiva do que a sinagoga, tanto em seu aspecto fisica ¢ litirgico quanto principalmente no seu propésito. Shaye Cohen define a sinagoga como “uma instituigao tripartite: uma casa de oragio, uma sala de estudo ou escola e uma casa de reunides.”*” Somente a partir dessa definicdo ja é possivel perceber a grande influéncia exercida pelas sinagogas na formagao das igrejas-do-lar do periodo primitivo da igreja. Embora, como jé dito anteriormente, os judeus que haviam crido em Jesus continuassem a frequentar as sinagoges, eles também tinham que observar pelo menos uma pritica exclusiva A f& crist@, a Santa Ceia, o que os forcava a ter encontros separados. E, no contexto da igreja apostélica, conquanto fosse uma ceriménia de profundo significado religioso, a Santa Ceia estava intrinsecamente ligada ao ambiente domiciliar. Ou seja, 0 ngar de sua celebracdo nao era outro sendo os lares dos crentes e ela era celebrada em conexao com uma refeigio comum. $6 temos que nos lembrar que a Santa Ceia foi instituida por Cristo durante a refeigdo pascoal (Le 22:13-20) e a Pascoa judaica era uma celebracio familiar, doméstica (Ex 12:1-28; Mt 26:17-19; Le 22:11-15), e nao publica. A Santa Ceia, * Chilton, 114 * Veja Rainer Riesner. “Synagogues in Jerusalem.” em Palestinian Setting, vol. 4, ed. Richard Bauckham, The Book of Acts in Its First Century Serring, $ vols. ed. Bruce W. Winter (Grand Rapids: Eerdmans, 1993-1996), 180 » Shaye J. D. Cohen, From the Maccabees to the Mishnah (Philadelphia: Westminster, 1987), 11 portanto, era uma ceriménia distintamente crista e domiciliar e, por isso, no podia ser administrada na sinagoga.** E como Jesus conectara a Santa Ceia & promessa de Sua volta (Le 22:15-18; 1 Co 11:26), e a igreja apostélica, logo depois da ascengao, acreditava que Jesus voltaria dentro de poucos dias, eles celebravam a Santa Ceia diariamente e sempre no contexto de uma refeigdo comum (At 2:42. 46; 1 Co 11:17-34).* E assim surgiram as igrejas-do-lar. Com o passar do tempo, até mesmo a refeicao comum associada a Ceia se transformou, ela propria, numa celebracdo e passou a ser chamada de Agape (Jd 12; cf. 2 Pe 2:13), talvez por considerarem a conffaternizacao entre os irmaos uma boa expresso do dever cristo de amar uns aos outros."? As igrejas-do-lar, portant, parece que surgitam de modo inteiramente circunstancial. Foi algo muito mais imposto por uma necessidade do que propriamente uma estratégia divina ** Na verdade, pouco ou nada se sabe sobre a celebracdo da Santa Ceia no periodo apostélico. Nao se sabe ao certo se ela era de fato “administrada” por alguma autoridade religiosa, como um apéstolo ou tim presbitero, ou apenas pelo Lider familiar. As evidéncias nfo permitem nenhuma conclusio segura (veja Stephen Neill e Tom Wright, The Interpretation of the New Testament: 1861- 1986, 2% ed. [Oxford: Oxford University Press, 1988], 201) » A discussao de Paulo em 1 Co 11:17-34 confirma que a Ceia era celebrada no context de ‘uma refei¢2o comum, mas o que estava havendo em Corinto era unm grave desvio do ideal cristo, Os primeiros a chegar, supostamente os mais ricos, comiam ao ponto de se fartar e até mestio se embriagar, de modo que pouco ou nada sobrava para os mais pobres, que normalmente chegavam sais tarde (cf. vss. 21-22). Para uma completa exposic&o da passagem. veja Gordon D. Fee, The First Epistle fo the Corinthians, NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), 531-567. Quanto a frequéncia da celebracio da Ceia no periodo apostélico, pelo menos na primeira parte do periodo, tudo depende de como a expressdo “pattir 0 pao” de At 2:42 ¢ 46 € inferpretada. Que nem sempre ela se refere & Santa Ceia, nfo ha nenlmuma diivida (cf. At 27:35), mas pelo menos em Paulo a expressao esta claramente associada & ceriménia eucaristica (1 Co 10:16; 11:23-26). Visto que os judeus no costmavam se referir a uma refei¢ao ordindria mediante a expresso “partir o pio.” algo mais — neste caso, a Santa Ceia — deveria ter estar envolvido nessas refeigdes comuns da igreja, Tss0 explicaria o fato de “partir o pao” vir, com o tempo. a se tomar tna expressdo técnica para a Ceia. Assim sendo, At 2:42 e 46 parece aludir 2 uma tinica refeig2o em conjunto da igreja primitiva da qual a Ceia era parte integrante (veja Barrett, 1:164-166). * Sobre o Agape na igreja apostélica e seus desenvolvimentos posteriores, veja G. ‘Wainwright, “Lord’s Supper, Love Feast.” DLNTD (Downers Grove: InterVarsity, 1997), 686-694. 18 para dinamizar a igreja e promover seu crescimento, embora, & claro, esse tenha sido 0 resultado. As sinagogas continuavam a ser o principal local de reunides semanais, mas a presenca de judeus nflo-cristas e, eventualmente, de gentios tementes a Deus inviabilizava a realizacao da Santa Ceia, que. de qualquer modo, exigia um ambiente domiciliar para sua celebragio. Por conseguinte, as igrejas-do-lar se originaram mais como op¢ae para as atividades distintamente cristas do que como alternativa crista As sinagogas judaicas ou aos templos pagaos. Caso nao houvesse nenhuma sinagoga nas proximidades, nao ha dhivida de que todas as atividades religiosas cristas, inclusive as reunides de sibado, seriam conduzidas nas igrejas-do-lar.*' E como 0 elemento mais importante do culto era uma refeicAo, a parte da casa utilizada nao era outra sendo a propria sala de jantar, o que significa dizer que nenhuma adaptagao fisica ou mobilidria era de fato necessaria.” A situacdo econdmica da igreja em geral nao lhe permitia a construgao de locais proprios para as reunides (1 Co 1:26-28; 2 Co 8:1-2)" e, raramente, seria ela capaz de alugar um auditério, como fez a congregacio de Efeso por ocasiao da permanéncia de Paulo na cidade (At 19:9; ef, 16:13). © ponto é que, por quatro ou cinco décadas apés a ascencdo de Jesus, o cristianismo “| 4 conclustio de Rober W. Gehring (House Church and Mission: The Importance of Household Structures in Early Christianity [Peabody: Hendrickson, 2004], 171-173) de que I Co 14:23 faz referéncia a uma reunito periddica de toda a igreja, ou seja, de todas as igrejas-do-lar juntas, é certamente precipitada. © texto n&o permite nenhuma conclusto segura a este respeito e pode muito bem se aplicar a realidade de uma igreja-do-lar em particular. * Para uma descrigao fisica das salas de jantar das residéncias tanto ocidentais quanto médio- orientais nos primeiros s8culos da era crista, veja Richard Krautheimer, Early Christian and Byzantine Architecture, 4. ed. rev. Richard Krautheimer ¢ Slobodan Curtit (New Haven; Yale University Press, 1986), 24. © Para a visio tradicional de que a igreja primitiva era relativamente pobre, veja Gustav Adolf Deissmann, Paul: A Study in Social and Religious History, 2°. ed., trans. William E, Wilson (Nova York: Harper & Row, 1957), 27-52. Em anos recentes, porém, alguns autores tém sugerido que © poder aquisitivo dos cristaos primitivos, pelo menos nas igrejas gentilicas, nao era t8o baixo como se supunha (e.g., Wayne A. Meeks, The Fist Urban Christians: The Soctal World of the Apostle Paul, 2 ed, [New Haven: Yale University Press, 2003]. 51-73). 19 ainda vivia a sombra do judaismo como se fosse meramente uma denominagao judaica, fato esse percebido inclusive pelos de fora, como aconteceu com Gilio, procénsul da Acaia (At 18:12-16). Apesar das diferencas e uma progressiva escalada das tenses entre judeus ¢ cristios, especialmente nas comunidades da didspora (At 13:50-51; 14:2-6, 19-20; 17:5-9, 13-14; 18:6, 12-17), eles ainda se toleravam mutuamente. Eles frequentavam as mesmas sinagogas e tinham muitas priticas e interesses comuns, tanto que mais de vinte anos depois, de sua conversao, Paulo ainda podia se levantar perante os lideres judaicos e chamé-los de irmiios (At 22:1), além de afirmar que continuava sendo fiel aos principios religiosos judaicos (23:1) ¢ até mesmo dizer que ainda se considerava um bom fariseu (23:6). Apés a destruigdo de Jerusalém, porém, tudo isso mudou. A rigor, apenas dois grupos judaicos sobreviveram a destruigao de Jerusalém pelos romanos no ano 70, os fariseus ¢ os cristios.”* Os cristdos se refugiaram na cidade de Pella, do outro lado do rio Tordao,** e os fariseus se estabeleceram em Jamnia, na Galiléia, e ali comegaram a envidar esforgos no sentido de reestruturar 0 judaismo e reergué-lo das cinzas.*” Dentre as medidas que tomaram, duas afetaram diretamente os cristos ¢ ocasionaram uma ruptura definitiva nas relagdes entre o cristianismo e o judaismo. A “ A respeiro da influéncia do judaismo rabinico do primeiro século sobre 0 apdstolo Paulo, veja 0 classico de W. D. Davies, Paul and Rabbinic Judaism: Some Rabbinic Bleneents in Pauline Theology, 4°. ed. (Philadelphia: Fortress, 1980) * Os cristos, porque reconheceram o sinal dado por Cristo e fizeram como lhes ordenara (Le 21:20-24); 05 fariseus, por causa de uma artimanha do Rabino Yohanan ben Zakkai, o lider fariseu por ocasifio da invasio romana (veje o relato em B.T. Girtim 36ab), Para mais informagao, veja Tames D.G. Dunn, The Partings of the Ways between Christianity and Judaism and thelr Significance for the Character of Christianity (Philadelphia: Trinity, 1991), 231-232. ** Eusébio Histéria Eclesidstica 3.5.3 *” Veja George F. Moore, Judaism in the First Centuries: The Age of Tannaim, 3 vols. (Peabody: Hendrickson, 1997). 1:83-92. primeira foi a incluso formal dos cristdos, ou da seita dos nazarenos, como eles diziam (cf. ‘At 24:5), na lista de hereges do judaismo. Eles criaram inclusive uma orag0, 0 chamado Birkat ha-Minim, que era parte da Amidah, também conhecida como as Dezoito Béngios (Shemoneh Esreh), que amaldicoava a todos os judeus inféis (minim) e em particular os nazarenos (notzirim). A decisto veio acompanhada da ameaca de expulsdo das sinagogas, algo que ja havia sido predito por Jesus (Mt 10:17; 23:34; Le 21:12).® ‘A segunda medida, igualmente grave, foi a incorporacao na liturgia da sinagoga de certos rituais do templo, que jazia em ruinas. Entre esses rituais, estava o toque da shofar, a trombeta de chifre de carneiro, por ocasifo da festa de Ano Novo, algo que no passado estivera restrito ao templo.”” Para aqueles que viam Jesus como 0 tinico e verdadeiro acesso para Deus, qualquer transferéneia da fungao do templo para a sinagoga seria inaceitvel e inevitalvelmente provocaria o rompimento com essa instituigdo (ef. Ap 2:9: 3:9). Desse tempo em diante, cristianismo e judaismo comecaram a seguir rumos distintos. Os cristios ino mais eram bem-vindos nas sinagogas e nem podiam eles aceitar as novas tendéncias litirgicas nelas introduzidas. Foi a partir dessa época que as igrejas-do-lar se estabeleceram definitivamente como os tinicas locais de reuniao e culto cristao, algo que s6 viria a mudar em meados do quarto século, com a assimilagao da igreja pelo império. As igrejas-do-Lar do periodo apostolico certamente nfio passavam de varias de * A oracdo dizia o seguinte: “Para os apéstatas, que nao haja nenhuma esperanga, € que 0 governo arrogante seja rapidamente arrancado em nossos dias. Que os Nazarenos ¢ os hereges sejam desiruidos num momento, e que sejam riscadas do Livro da Vida, e nio sejam inscritos junto com os jjustos. Abencoado sejas Tu, 6 Senior, que humilha o orgulhoso” Frederick C. Grant, Ancient Judaism and the New Testament [Londres: Oliver & Boyd, 1960], 47). Para discussto adicional, veja J. Luis Martyn, History and Theology in the Fourth Gospel, 2*. ed. (Nashville: Abingdon, 1979), 50- @ * Veja Moore, 2:13-14, 21 pequenas congregagdes de figis que se reuniam nas casas dos irmaos”’ para a celebragao das cerimdnias exclusivas & f& crist’, como a Santa Ceia e o Agape (At 2:46; 5:42; 12:12; Rm 16:3-5, 10, 11, 14, 15: 1 Co 16:19; Cl 4:15; Fm 1:2; ef. At 28:30)."' Eles também aproveitavam essas reunies para orar (At 1:14; 2:42; 12:12), cantar (1 Co 14:15; Ef 5:19; C1 3:16), estudar a palavra (At 17:11; 20:32; Cl 4:16: 1 Tm 4:12), compartilliar experiéucias (Cl 3:16) e pregar o evangelho (At 5:42), entre outras coisas. Apés o rompimento com a sinagoga e a transformacao das igrejas-do-lar nos tinicos locais de reuniao, uma nova mudanga comegou a ocorrer: muitos dos lares que hospedavam as igrejas deixaram de ser ares propriamente ditos e se transformaram em locais exclusivos de reuniaio. E isso aconteceu possivelmente quando os crentes que jé hospedavam igrejas em suas casas passaram a entregé-las para que, com algumas adaptagdes, fossem usadas pela igreja unicamente para fins religiosos. De acordo com Richard Krautheimer, essa mudanga se completou mais ou menos ao redor do ano 150.” Foi por essa época, que o Agape comecou a * Como observa Robert J. Banks, a palavra “casa” (oikos), na expresso “a igreja em sua casa” (Rm 16:5; 1 Co 16:19; C1 4:15; Fm 1:2), pode se referir & familia (lar) ou a casa em si (moradia). No primeiro caso, os membros da propria familia seriam a igreja; no segundo, a casa seria © local de reunides ca comunidade, que poderia eventualmente incluir membros de outras familias. Emibora haja virios exemplos no NT emi que oikos se refere a familia (At 10:2, 22; 11:14; 16:15, 31- 32; 18:8; Rm 16:10-11; 1 Co 1:11, 16; etc), passagens como At 12:12 e Rm 16:15, 23 parecem emonstrar que, nos textos em questo, oikos diz respeito & casa propriamente dita com local de reunides (Paul's Idea of Community: The Early House Churehes in Their Cultural Setting. ed. rev [Peabody: Hendrickson, 1994], 31-32). *1No caso de Rm 16:10 ¢ 11, embora o termo “igreja” esteja ausente, a expressdo “os da casa de.” de acordo com Reta H. Finger, pode ser entendido como referéncia a uma igreja-do-lar. Ela acredita que, juntamente com os vss. 3-5, 14 ¢ 15, 0s vss. 10 ¢ 11 altidem a “cinco ... congregacies {de cristfos espalhiadas por Roma das quais Paulo tinlha conhecimento por meio de seus contatos” (Boman House Churches for Today: A Practical Guide for Small Groups, 2. ed. [Grand Rapids: Eerdmans, 2007], 16-17). Veja também Thomas R. Schreiner, Romans, BECNT (Grand Rapids: Baker, 1998), 797-798). ® Krautheimer, 23-24, Falando da perspectiva arquitetGnica, Krautheimer acrescenta que antes do tetceiro século os cristdos ainda nao constraiam seus préprios templos, nem poderiam faz8- ser descontinuado e a Santa Ceia, a ficar mais formal. © uso do ambiente exclusivamente pata fins religiosos dificultava a pritica da refeigao coletiva, cujos alimentos no mais podiam ser preparados no local. © local de reunides nao mais era uma sala de jantar, © que fez com que # Santa Ceia comegasse a se distanciar do contexto doméstico, familiar, e a perder sua espontaneidade, passando, aos poucos, a adquirir contomos mais ritualisticos & hierarquicos. Escavacées arqueolégicas tém trazido a luz muitas dessas casas que, no segundo e tetceiro séculos, foram remodeladas e transformadas em locais de reunido apenas. Evidéncias dessas domus-ecclesias (igrejas-do-lar), como eram chamadas,® foram encontradas em praticamente todo o mundo mediterraneo, em lugares como a Itilia (Roma), a Grécia, a ilha de Delos, a Mesopotamia e até mesmo a Palestina. A mais antiga de todas as domus- ecclesias ja descobertas nfo é outra seni a casa do proprio apéstolo Pedro, em Cafarnaum, (Mt 8:14-15; 17.2 7; Le 18:28). Ainda no primeiro século, uma ampla sala (7 x 6,5 m, c im’) da casa foi usada como local de culto cristio. Com o tempo, algumas modificagdes foram feitas: uma das paredes e o teto foram substituidos, uma sala adicional e um atrio foram construidos e, por fim, no quarto século, toda a drea, que é mais ou menos quadrada, Jo, “Apenas a religitio estatal erigia templos na tradi¢do da arquitetura grega ¢ romana. ... AS congregacées cristis anteriores ao ano 200 estavam limitadas ao dominio da arquitetura doméstica e, além disso, as inconspicuas moradias das classes mais baiNas” (24), * © termo era bastante apropriado visto que a despeito das alteragdes estruturais, ou mesmo {quando as casas eram inteiramente reconstruidas, sua arquitetura nfo perdia sua caracteristica doméstica utilitiria ibid, 26). Em Roma, as donms-ecclesias foram mais tarde (c. 250) chamadas de sivuli (sing, ritulus). Na verdade, rirnlus era o nome de uma pequena placa de mirmore afixade junto & porta com o nome do proprietirio, Assim, se tornou comum se referir a uma igreja como rirulus € 0 nome do proprietitio era usado para diferenciar entre uma igreja e outra (ibid, 28-29). * Veja Bradley Blue, “Acts and the House Church.” em Graeco-Roman Setting, vol. 2. David W. ile Conrad Gempi, The Book of ders ins First Centiy Sein, 8 vols, 4 Bruce W. Winter [Grand Rapids: Eerdmans, 1993-1996], 119-222. foi cereada com um muro de 112, m de perimetro. Apesar disso, restos do reboco e contra- piso originais ainda podem ser vistos. Nas paredes, foram encontrados varios grafites datados paleograficamente do terceiro ao quinto séculos com expressdes litirgicas e invocagdes de Jesus. Portanto, assim como as igrejas-do-Lar surgiram pela necessidade de se celebrar as cerim6nias distintivamente cristas, quando os crentes ainda frequentavam as sin: 6, seu estabelecimento definitivo como tinico local de reuniao se deu quando a frequéncia & sinagoga pelos cristos no mais se tornou possivel, (4 na parte final do primeio século. E, exatamente por serem hospedadas nas casas dos irmAos, essas igrejas eram e permaneceram substancialmente pequenas, com um mimero de membros que, de acordo com o registro arqueolégico, dificilmente excedia a cinquenta pessoas.”* A maior delas ja encontrada nao comportava mais que umas setenta pessoas. Elas continuaram onde estavam, em baitros residenciais, e com aparéncia de uma residéncia comum. “Vistas da rua,” declara Krautheimer, “as domus-ecclesias cristas nfo podiam ser distinguidas de nenhuma outra casa da vizinhanga Essa rede de pequenas comunidades em zonas residenciais proporcionou 4 igreja um eficiente meio de interagdo e crescimento individual e coletivo que foi fundamental para a implantagdo da igreja no primeizo século e sua assombrosa expansio no segundo e terceiro * Thid., 138-140, 193-196; Gehring, 31-42. * Jerome Murphy-O" Connor, St. Paul's Corinth: Texts and Archaeology, GNS 6 (Wilmington: Glazier, 1983), 153-158. *) Krautheimer, 28, 24 séculos, apesar da intensa perseguicaio do império.”® Foi somente apés a conversiio de Constantino, no ano 312, € a consequente transformagto do cristianismo numa religio licita, que comegaram a surgir as monumentais ¢ luxuosas basilicas,”® exatamente sob o patrocinio do imperador e sua mie Helena Augusta." Esse abandono do modelo das igrejas-do-lar, que predominara por quase trezentos anos,“ foi também marcado por uma radical aproximagio entre a igreja e 0 império, ea consequente adogao por parte daquela do modelo hierdrquico imperial. Nas palavras de Krautheimer, “a igreja se tornou um compo oficial intimamente * $6 em Roma, no coragio do império, a populacio crista, em meados do terceiro século, é estimada em, pelo menos, trinta mil membros (Adolf von Hammack, The Mission and Expansion of Christianity in the First Three Centuries, trad. J. Moffatt, 2 vols. [Londres: Williams & Norgate, 1908]. 2:248-249). Krautheimer sugere que o niimero de cristos em Roma podia chegar a cinquenta mil, € que, na Asia Menor, sessenta porcento da populacae era crist@ (24), * Embora nos iiltimos anos anteriores a Constantino, principalmente apos o término da perseguico imposta por Diocleciano (303-305), algumas igrejas de tamanho bem maior jé tenham sido construidas. A igreja de Sao Crisogono (em Roma), por exemplo, tinha 418,50 m? (15,50 x 27 ‘m). Mesmo assim, essas igrejas em nada se comparavam as enormes basilicas que comecaram a surgir apés a conversio de Constantino. A Basilica Laterana, por exemplo, cuja construcio fora iniciada exatamente em 313, media (somente a nave principal) 75 m de comprimento por $5 m de largura (4.125 m’) e podia comportar uma congregacao de varios milhares de figis. O santuario, que se estendia por mais 20 m além da nave, podia acomodar até duzentos ou mais clérigos (ibid., 48). J. B, Ward-Perkins declara que “nem em Roma nem em qualquer outro lugar existe qualquer evicéncia aque sugira que, antes da Paz da Igreja, os cristios haviam desenvolvido, ou mesmo comegado a esenvolver, uma arquitetura monumental propria” (“Coustantine and the Origins of the Christian Basilica,” PBSR 22 [1954]: 78). © Eusébio de Cesaréia, ao descrever as niuitas boas agdes de Constantino para com a igreja & seus lideres logo apds sua conversdo, declara o seguinte: “Alem disso, ele fez, com seus proprios recursos, muitas obras beneficentes bastante custosas para a igreja de Deus, tanto ampliando os cedificios sagtados quanto adomando 0s majestosos sannuatios da igreja com abundantes ofertas” (ida de Constantino 1.42). Para mais informagao sobre a influéncia de Constantino na arquiterura da igteja, veja Krautheimer, 39-92. Para um estudo mais téenico sobre a arquitetura crist® anterior 20 quarto século, veja L. Michael White, The Social Origins of Christian Architecture, 2 vols., HTS (Valley Forge: Trinity Intemational, 1990-1997) a ‘As reunides de cristdos nos lares (ou Lares renovados para que pudessem receber reunises crists) continvaram a ser a norma até as primeiras décadas do quarto século, .. . Por quase trezentos ‘anos os fiéis se reuniram em lares. nao em grandes igrejas construidas para esse fim” (Blue, 124) 25 ligado a administragao imperial e também um poder politico.” Sob Constantino, a igreja passou a ser vista como um reino, praticamente nos mesmos moldes dos reinos terrestres; Cristo, como o Rei, cujo representante direto, 0 “vieario de Cristo,” nao era outro seniio o prdprio Constantino;® e os bispos, como oficiais de governo, com as insignias e os privilégios dos mais elevados oficiais governamentais.™ Isso teve um profundo efeito sobre a linurgia da igreja, que acabou retornando a0 modelo ctiltico do antigo templo de Tsrael: a igreja se tomou templo; o bispo, sacerdote; o prilpito, altar; e 0 culto, sacrificio, o sacrificio da missa.” Tais mudangas, de graves implicagdes teolégicas, acabaram corrompendo algumas das verdades mais fundamentais da fé crist€, como a salvacdo por Cristo apenas, Sua intercessdo no santuario celestial e o livre acesso do crente a Deus.“ A massificagio, associada & institucionalizagao e a obliteragdo da obra de Cristo, trouxe apostasia e estagnagao. Nunca mais a religiao crista seria a mesma. ‘Nem a reforma protestante e nem a pregacao das trés mensagens angélicas conseguiu © Krautheimer, 39, © Embora nao fizesse parte do clero ¢ nao fosse sequer batizado (0 que s6 aconteceria em seu leito de morte), Constantino se considerava o décimo-terceito apéstolo e o vigdtio de Cristo na Terra “Ags seus ollos, ele havia sido divinamente designado para liderar a igreja de Cristo a vitéria” (ibid). © proprio Eusébio de Cesaréia niio hesitou em se referir a ele como “bispo universal nomeado pot Deus” (Vida de Constantino 1.44) Para informagao adicional, veja W. H.C. Frend, The Rise of Christianity (Philadelphia: Fortress, 1984), 487-488. ® Como destaca Krautheimer, 0 cerimonialismo e a pompa foram totalmente influenciados plas préticas imperiais. “A liturgia se tomon im cerimonial realizado diante do Senhor ou diante de Seus representantes, os bispos, nos exatos moldes do cerimonial realizado diante do imperador ow seus magistrados” (40). No aspecto ctiltico, porém, nao hé nenhuma diivida de que a inspiragao veio o antigo templo de Israel. Para mais detalhes, veja LeRoy E. Froom, The Prophetic Faith of Our Fathers: The Historical Development of Prophetic Interpretation, 4 vols. (Washington: Review & Herald, 1950- 1954), 1:349-399. acabar com as grandes congregagdes."” A centralidade de Cristo no plano da salvago foi restaurada, como também o foi o papel preponderante da f& como meio de se aleangar a salvagio. A verdade do santuario celestial, a proximidade do juizo e a perene validade da lei de Deus, em particular do mandamento do sébado, também foram restauradas, mas continuamos com uma religiao massificada, com congregagdes enormes, onde a participagao se limita a uns poucos privilegiados, e talvez essa seja uma das principais razdes, pelas quais ainda nao conseguimos concluir a obra. O plano dos pequenos grupos & certamente muito bem-vindo. Ele contribui para resolver o problema das grandes ‘congregacées, embora nao consista sendo num retorno parcial ao modelo das igrejas-do-lar do cristianismo primitivo. Apenas um retomo completo — impossivel, na minha opinige — Aquele modelo, ou seja, pequenas congregacdes com, no maximo, umas poucas dezenas de membros, poderia gerar o nivel de participagtio, comunhiio e consagragdo necessaries para que avancemos definitivamente rumo a concluso da obra. E considero tal retorno impossivel, em primeiro lugar, por causa da nossa propria cultura eclesistica. Dificilmente constmiriamos varios pequenos edificios com capacidade para quarenta ou cinquenta membros apenas em vez de um edificio maior que comporte duzentas ou trezentas pessoas. ‘Uma mudanga cultural, portanto, precisaria preceder a mudanga de paradigma. Em segundo lugar, o custo e as dificuldades logisticas de se substituir as grandes igrejas por pequenas Embora Martinho Lutero tenha enfatizado, e muito, a importancias dos pequenos grupos (Gehring, 310: veja também Charles E. White, ed., “Concerning Eamest Christians: A Newly Discovered Letter of Martin Luther,” CTI 10, n. 5 [1983]: 273-282) © Para nfo mencionar o excessivo ritualismo que nao raras vezes caracteriza, por exemplo, a celebracto da Santa Ceia em algumas de nossas igrejas, com ceriménias cansativas que se estendem por horas a fio, sendo que a maior parte do tempo é gasta tio-somente com a distribuiicao do pao e do vinho, Em varias congregacdes, esse problema jé resolvido com a distruicao conjunta dos emblemas e a adocdo de célices descartéveis, que ndo necessitam ser recolhidos. congregagdes praticamente inviabilizam a idéia, pelo menos a curto e médio prazo. E por isso que devemos apoiar o esforgo pelos pequenos grupos. Embora, nos moldes atuais, no representem exatamente a pritica primitiva da igreja, eles, sem duvida, consistem na melhor ‘pedo para os problemas inerentes 4 massificagaio congregacional. Conclusiio As igrejas-do-lar do periodo apostélico (e pré-Constantino) nao parecem ter sido implantadas em virtude de um imperativo divino, mas como resultado de circunstancias especificas que as tomaram praticamente inevitaveis. Isso ndo significa, porém, (1) que Deus no estivesse guiando as decisdes e os destinos da igreja; (2) que o modelo nao tenha sido uma tremenda béncao para a igreja apostélica e pos-apostélica; ou (3) que nao devamos nos esforcar para retornar a esse modelo. E & aqui que os pequenos grupos se encaixam. Embora nao sendo um retorno completo ao modelo do cristianismo primitivo, eles certamente cousistem na melhor estratégia disponivel e vidvel no momento para diminuir o impacto das grandes congregacdes, que nao propiciam o envolyimento e a interacdo necessirios para que haja plena satide e creseimento espiritual, tanto individual quanto coletivo. ‘Conquanto no seja prudente apresentar os pequenos grupos como verdade biblica prescritiva, o esforgo por implanti-los, como alternativa metodolégica para servir & misao © pos seu exaustivo estudo das igrejas-

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