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Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacaio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Sodré, Muniz Reinventando a educagio : diversidade, descolonizagio e redes / Muniz Sodré. — Petropolis, RJ : Vozes, 2012. Bibliografia ISBN 978-85-326-4305-6 1. Cultura 2. Educagio 3. Pedagogia A. Sociologia educacional 5. Tecnologia I. Titulo. T4518 CDD-306.43 Muniz Sodré REINVENTANDO A EDUCAGAO Diversidade, descolonizagéio e redes EDITORA Y vozes Capitulo 1 Cultura e educacdo O trabalho intelectual estd para 0 trabalho manual assim como 0 grego estd para 0 bérbaro (Frase-sintese da colonialidade cultural). Tempo, segundo José Hernandez em seu famoso poema épico Martin Fierro, é “a tardanca do que esté por vir”, isto é, a delonga do que ja se antevé no futuro, no evento que vem. Pois bem, para a perspectiva critica do He- misfério Sul, 0 tempo educacional é 0 da descolonizagio, portanto, tempo de algo como a “reeducagiio” ou a reinvengio dos sistemas de ensino, com vis- tas 2 diversidade simbdlica entrevista na dissolugiio das grandes explicagdes monoculturalistas do mundo. Embora esse “Sul” possa ter perdido o velho significado nacionalista em face da esclerose progressiva do Estado-nagio e de sua confirmagio como periferia dependente do sistema-mundo, a conco- mitante perda de forca do eurocentrismo estimula a reflexo ¢ a ago politica sobre as facetas remanescentes da dominagao colonial, em que ganha vulto a educagao. Tomiemos educagiio como 0 processo de incorporago intelectual e afetiva, pelos individuos, dos princfpios e das forgas que estruturam o Bem de uma formagao social. O Bem (to agathon, para 0 antigo grego) é simplesmente outro nome, de feicfo classica, para o equilibrio econdmico, politico e ético da comunidade humana, portanto, para a preservagiio da vida e para a conti- nuidade do grupo de acordo com os princfpios de sua fundac&o. As formas candnicas desse equilfbrio se acham nos sistemas de conhecimento (ciéncias, artes, narrativas, filosofia) e nas instituigdes (trabalho, parentesco, costumes, cédigos, leis) que regulam ou orientam os destinos comunitérios segundo as verdades consensualmente instituidas pelo grupo. A preparagio do individuo para a assimilagao dessas formas constitui, em nfveis diferenciados, a educagiio, que nao se confunde com a instrugao ) para o exercicio de fungées es. pura c simples (o ensino ou a capaci 2s) nem com a cultura, tradicionalmente entendida como o modo socializar, indi vidualizando, isto é, primeiramente inscrever a crianga no ordenamento Social desejado ¢ depois criar as condigdes cognitivas ¢ afetivas para sua ‘hutonomia individual como adulto, Esta € pelo menos a visio adotada pelo pensamento pragmat sobre a educagiio (de John Dewey a Richard Rorty), com detalhamentos praticos mais recentes no sentido de conceber o Ensino Fundamental como socializante e 0 universitario como indivi- dualizante. peeif de produgao de sentido para a totalidade social. /Educar € Sem dtivida alguma, porém, a radicalidade maior desse processo acontece na infancia, quando se instaura para o sujeito humano a troca simbélica, no lugar dos fatos “naturais” e imagindrios. Nas sociedades arcaicas se trata pro- priamente da iniciagdo, descrita por Baudrillard como “esse momento crucial, esse nexo social, essa cimara negra onde nascimento e morte deixam de ser os termos da vida e reinvoluem um no outro — nao rumo a qualquer fusdo mistica, e sim para fazer do iniciado um verdadeiro ser social. A crianga nao iniciada apenas nasceu biologicamente, apenas ainda tem um pai e uma mae “reais”. Para se tornar um ser social ela tem de passar pelo acontecimento simbélico do nascimento/morte inicidtica. E preciso ter feito o trinsito da vida e da morte pata entrar na realidade simbélica da troca”', O que modernamente se-désigna como educacio €,no limite,-um-eco-da:profundidade do processo icidticods \ _., Outro modo de dar conta dessa profundidade 6, por exemplo, acompanhar urh aforismo de Nietzsche em resposta 4 pergunta sobre o que € a educacio: “E compreender imediatamente tudo o que se viu por meio de fantasmas de- terminados. O valor destas representagGes determina 0 valor das culturas e da educagiio””. O conceito de representagiio fantasmatica é antigo, desde quando Arist6teles nos assegura (em Sobre a alma) que “a alma n&o conhece sem fantasma”, isto é, sem uma imagem interna ou externa capaz de mediar 0 ato Sy’ de apreensio E tio radical a especificidade da educagiio que Nietzsche ~ _vé nela a propria “continuagio da procriagio e muitas vezes uma maneira de aperfeigoar posterior a ela”. 1, BAUDRILLARD, J. 'Echange symbolique et la moi. Paris: Gallimard, 1976, p. 203. 2:'NIETZSCHE, F. “Fragmentos péstumos e aforismos” (1.1 5 [106] 246). in: Escritos sobre educa- ‘¢G0. Sao Paulo/Rio de Janeiro: Puc-Rio/Loyola, 2009, p. 262. {IV AU 397), p. 330. at ‘ Vypete a afirmativa & fundamental levar em conta que, para o homem tradicional, ser nao significava simplesmente viver, 1 pertencer a uma totalidade, que é 0 grupo.,Cada ser singular perfaz o seu processo de individuagio em fungiio dessa pluralidade instituida (0 grupo), na qual se assentam as bases de sustentagdo da vida psiquica individual. Mesmo modernamente, a constituigao psiquica do individuo depende da for- ga de continuidade do grupo, de modo que cada indivfduo se configura como um “lugar”, ao mesmo tempo singular e coletivo, sempre investido do desejo ancestral (familiar, clinico) de continuidade da espécie. A ética (outro nome a cultura, em sua originariedade) é precisamente a linguagem desse desejo. Para melhor esclarec re Pelo pertencimento o grupo faz-se imanente ao individuo, enquanto este se reencontra no grupo. O individuo pertence ao grupo tanto quanto a si pr6- prio, pois ser um ou outro depende, na verdade, dos limites que se estabelegam para a identidade. O subjetivo é, ao mesmo tempo, transubjetivo: alinguagem__ com que nos comunicamos ¢, no limite, 0 Outro. . HA, porém, uma diferenga entre grupos de pertencimento “primarios” ou '“naturais” e grupos de pertencimento “secundérios” ou “institufdos”. A fami- lia (mas também o cli e a etnia) é essencialmente grupo primério, responsd- vel pela matriz da individuaciio. Em contrapartida, os grupos secundarios sao formagées onde individuos j4 constitufdos se tornam cidadaos, isto é, sujeitos de comunidades politicas, sejam estas em escala local ou global. E necessério, portanto, que a individuagio jé esteja dada para continuar na forma da sociali- Zagao ou interiorizagiio de normas e valores coletivos. O processo civilizatério e cultural j4 est4 presente no grupo primdrio, mas se aperfeigoa educacional- mente no quadro dessa secundariedade. Embora esse processo transcorra na totalidade da vida social, niio é licito— supor que seja posstvel « educar sem ensinar, isto é, sem transmitir.ou-comuni-._ carcom autoridade as firepresentagdes Nem se pode perder de vista a dimensio (cultural) de onde provém « essas representagGes, que sao os contetidos necessdtios ao processo educacional. Mas ao vincularmos o valor da cultura e da educagio ao valor dessas representagGes e ao concordarmos com a ideia nietzscheana de um “posterior aperfeigoamento da procriagao”, nao h4 como deixar de tornar criticamente clara a especificidade do processo educacional. Para tanto, imp6e-se no enclausurar a ideia de critica em sua literalidade etimolégica, que tem a ver com 0 processo analitico de descriminar e julgar. Impée-se também no repisar os esteredtipos do discurso reformista do passa- do. No 4mago da disponibilidade universal para a educagao (algo bem diferen- A+ te de uma supo I disponivel”) se encontra 0 pen pacidade de discuti MENLO os varios critico como uma disposi¢io ou uma ca uma concepgiio qualquer. jados de Essa disposigio nfo & imune a criticas. Para 0 poeta e pensador portu- gués Fernando Pessoa (em seu heterénimo Bernardo Soares), “os espfritos altamente analiti veem os defeitos: quanto mais forte é a lente, mais imperfeito nos parece 0 objeto observado! O detalhe € sempre vergonhoso”™. Por outro lado, est em curso hé algum tempo um tipo de pensamento social que recusa qualquer perspectiva critica, como se esta fosse uma rejeigiio idealista (e antinietzscheana) do real tal e qual ele se apresenta (0 amor fati). No limite, como uma recaida na metafisica da revolugao, isto é, na producao intelectual do sentido de mudanga a partir de um dever ser ~a ideia de uma vida mais “verdadeira”, de uma sociedade perfeita. Criticar seria, assim, julgar o real pelos pardmetros projetivos construidos pela consciéncia “iluminada” do inte- lectual, segundo os quais 0 vivido seria mero sintoma de outra coisa, a reali- dade idealmente projetada como uma esséncia. De fato, € imperativo reconhecer a forga afirmativa do real, aceitando-o. Entretanto, é também imperativo ponderar que este é apenas um primeiro pas- So, uma vez que aceitar 0 mundo ndo signi ica simplesmente olhi-lo e tomé-lo ao pé da'Tetra. "Gramsci bem o viu quando, discutindo sobre se o dever ser seria reprovavel na pesquisa cientifica (supostamente.atrelada ao “que 6”), questiona 0 conceito de realidade efetiva: “Sera algo estatico e imével ou, ao contrério, uma relagio de forcas em continuo. movimento e mudanca de equilfbrio. Aplicar a vontade a criago de um novo equilibrio. das forgas re- almente existentes ¢ atuantes, baseando-se naquela determinada forga que se considera progressista, fortalecendo-a para fazé-la triunfar, si ignifica continuar movendo-se no terreno da realidade efetiva, mas para dominé-la e supera-la (ou contribuir para isso). Portanto, o dever ser é algo concreto”’. Ainda que se possa questionar a ideia de'um dever ser, configura-se como crucial a diferenga entre olhar e ver, ouvir e escutar, assim como entre a pura emogao e o sentimento, que é a sensibilidade Nicida, porque nessa diferenga Se. constr6i o}discernimento, ou seja, outro nome para a apreensio critica do mundo} Pode-se aceitar a realidade do vivido desde que se aprenda a vé-laem suas formas de apresentagio, e essa aprendizagem tem implicagdes criticas na 4. CF. Pessoa - En bref (recveil. Paris: Chrisfion Bourgois, 2004, p. 12 [Tradugto e prefacio de Frongois Laye). 5. GRAMSCI, A. Quademni del cércere. Vols, HV. Turim: Einaudi, 1975, quad. 13, 1578 forg, por V. Gerratana}. 43 aaprendizagem do necessdrio, depois da mudanga e do varidyel. Conduz-se 0 jovem na natureza, mostra-se a ele em todo lugar o domfnio das leis; em segui- da, as leis da sociedade civil; aqui se coloca jé a questiio incisiva: Isto deveria ser assim? Pouco a pouco se teve necessidade da histéria para entender como se chegou até af, Mas a0 mesmo tempo se aprende que isto pode também se tornar uma coisa diferente, Qual é 0 poder dos homens sobre as coisas? Esta é fio de toda educagiio"*. 1 thy } . 2 aques ‘A enunciacio critica est4 no cerne dessa aprendizagem. A smodo de ler a realidade, mais precisamente, de aprender a ler a realidade, _psem © qual’se afigura inécua toda educagiio, uma vez que a leitura é capaz de mostrar 0 real para além de toda realidade, ou seja, para a pletora de ou- {tras possibjlidades ! A tradigao intelectual brasileira arrola, no século passado, t [ notdve’ ecidlogos ou pensadores criticos, a exemplo de Caio Prado Jtinior, | Raymundo Faoro, Florestan Fernandes, Octavio Janni, Francisco de Oliveira, Milton Santos. Celso Furtado, Theotonio dos Santos e Paulo Freire; cujo tra- = ~ balho cientifice inclu educacionalmente a ética ea politica como_meios-de \transformacdo social, sem jamais perder de vista a singularidade da forma- / Gio nacional. Em Florestan Fernandes, por exemplo, o ativismo em favor da “educagiio publica e gratuita é indissocivel de uma leitura critica da realidade educacional brasileira, de democratizagio e qualidade precérias. Pos bem, no-quadro de uma teoria critica da sociedade — entendida ycomo a recusa de redugio da realidade ao mero existente e como orienta ocial no sentido das possibilidades de transformagio e passagem — descolo- / nizar o processo educacional significa liber4-lo, ou emancipd-lo, do monis-~ > mo ocidentalista que reduz todas as possibilidades de saber e de enunciagio ( Ga veraadewrdindmica cultural de um centro, bem sintetizado na expresso “pan-Europa”. Esse movimento traz consigo igualmente a descolonizacdo da critica, ou seja, a desconstrugao da crenga intelectualista de que a consci- €ncia critica é apandgio exclusivo do letrado ou de que caberia a este tiltimo iluminar criticamente 0 Outro. Na raiz dessa crenga — um dos efeitos do universalismo iluminista — se acha a lei do valor ‘ou 0 capital, que mobiliza nfo apenas a forga de trabalho do homem, mas também 6s recursos préprios & sua conversio a0 modelo ci- | vilizatério do Ocidente, indispensdvel ao modo de produgio capitalista, que sempre implicou saque, dominio e exterminio do Outro. ‘e monoculturalismo. Pan-europeu é precisamente a civilizagio pensada no singular 6. Ibid, (II.2 5 [64] 299), p. 297-298. Essa civilizagdo é a “boa noticia” (em grego, eu-angelion ou evangelho) oferecida como um valor universal pela pan-Europa ao resto do mundo desde o século XV. Toda e qualquer religiao que se queira universal tem a sua “boa noticia”, a ser difundida a ferro e fogo as civilizagdes refratérias, uma vez que tal modelo comporta uma temporalidade e modos especificos de incorporacao do conhecimento estranhos a outros paradigmas. Por isso, o fendmeno histéri- co do colonialismo, ao lado do exterminio fisico e da violéncia predatéria, fez- f, Se sempre acompanhar da validagiio de uma forma tinica de conhecimento, em ‘Wetrimento de quaisquer outros saberes, como afirma o socidlogo Boaventura Santos: “O genocfdio que pontuou tantas vezes a expansao europeia foi tam- bém um-€pistemicidio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranhas Porque eram sustentadas por praticas sociais e povos estranhos””. LNO ‘processo colonial de formagao das sociedades latino-americanas, os _~“indigenas foram os primeiros a suportar os dois tipos de violéncia. Sobre 0 ~ primeiro, discorre Bosi: “O genocidio.dos astecas e dos incas, obras de Cortez ede Pizarro, foi apenas o niareo inaugural, Os recomecos foram numerosos””*. Em seu meio século inicial de dominagio, os espanhdis mataram cerca de 15 milhdes de indfgenas ¢ repassaram historicamente as elites nacionais sul- americanas a continuidade do genocidio. A propésito do segundo, o epistemicidio (semiocidio, etnocidio so va- tiages terminolégicas admissiveis), um ato paradigmatico € o do inquisidor espanhol Juan, Zumérraga, bispo do México que, em 1529, mandou reunir 0 que restara dos acervos confiscados dos astecas, assim como toda a biblioteca de Anahuac, e pér fogo em tudo na praga do mercado de Tlaltelolco, Demorou trés dias para que o incéndio consumisse sete milénios de uma outra hist6ria civilizatéria. Também se pode dizer de uma outra historia étnica: o grupo hu- mano invasor e dominante obriga-se Sempre a rejeitar visceralmente qualquer Outta etnia, posto que a expansao colonizadora implica a transformacao de um territ6rio estatal de partida em um territéri io étnico, presumidamente capaz de abranger e absorver outras confi; iguragGes espaciais ¢ histéricas, | Pan-Buropa nao diz respeito, portanto, nehte europeu, e sim a seu sistema-mundo " universalistas etnicamente orientado, desde colonialista de uma unidade absoluta do ee eaeernnane suet cena cae 7. SANTOS, B.S. Pola mao de Alice -O social eo 1999, p. 328 a dimensiio geografica do conti- cultural, um sistema de decisées © século XY, pela fantasia crista- sentido e refratério A admissaio de Politico na Pés-modernidade. Sa Paulo: Cortez, 8OSI, A. Dialética da colonizagao. Séo Paulo: Companhia das Letras, 1992, p21. it ivindicai li no momento da conscientizagio. global de que.o Ocidente vem perc lendo bi ~ muito tempo sua centralidade simbélica ¢ sua hegemonia politica. ‘do pensament peu. A obra do antropélogo francés Claude qu a demonstragao = relati n movimento que parte, inclusive, de d pode avaliar nenhuma cultura por parametros exteriores, ou seja, € impossfvel formular jufzos de superioridade de uma cultura sobre a outra. Ndo-é uma posigio isolada, mas uma conclusao estribada em toda a linhagem te6rica pre- cedente, pontificada por etnélogos como Franz Boas, Bronislaw Malinowski, Radcliffe-Brown e outros que c ymprovaram.em suas pesquisas a complexa e .\,¢ incomparavel singularidade das/diversas formagGes simb6licas. -PSta do campo etnoldgico, desde o pensamento oitonovecentista, vem en- trando em descrédito a esséncia da humanitas, essa mesma que os pensadores _Sintetizam na palavra “metafisica”, ou seja, a pretensdo.de.uma verdade uni- ov xr \do, centrada na Europa. A “morte de Deus”, procla- mada por Nietzsche, se interpréta como tim. fato objetivo,transcorrido na : i | histéria, mas precisamente como o declinio dessa universalidade em termos de“économia, politica e cultura de tudo aquilo que foi tornado possivel pela metafisica crista. Na medida em que, desde.a segunda metade do século XX, » as antigas colénias europeias se tomaram estados independentes, e em que se estiolou a evangelizacio crista que legitimava 0 controle imperial, declina de } fato a humanitas pan-europeia. Tenta ressurgir aqui e ali sob as capas de uma “| pretensa universalidade dos direitos humanos, mas jé sob 0 signo da contro- \yérsia mundial, ye / ‘Atualmente, até mesmo 6 francés Alain Tourainé, socidlogo festejado pela: centro-direita politica, admite que os europe jad podem reivindicar, como no passado, émonopélio da’ciéneia;-da-razde-da.liberdade ¢ datolerancia: “A Europa foi tudo isso e seu contrario, em particular no espirito dé Conquista, de - destruicéio'e de construgio de ideologias racistas”. Assim, “é preciso ser mes- mo cego-para no ver.que ‘a Europa, onde nasceu esse tipo de moderidade, perdeu terreno, anteriormente, para paises como. Japio, e hoje perde para a China, onde se encontram. os melhores exemplos de objetos e formas de vida 999 yi _ modernas””, Mas h4 um abismo entre o reconheciménto estritamente académico dessa _ perda de centralidade cultural e a prética politica pan-europeia.de disseminar Se jo da Academia da Latinidade. Rio de 9. TOURAINE, A; Conferéncia pronunciada em seminé - Janeiro: Universidade Candido Mendes, 19/11/10. diretrizes culturais para as outras regides do mundo, sob 4 posto universalismo do direito, que & na verdade a dimens “Um? absoluto da razdo..O colonialismo - ou, como alguns preferem, a “colo- nialidade” — € ainda hoje a persisténcia desse primado do Um absoluto sobre 0 pluralismo cultural, em especial nas ideologias que confluem para as instdncias educacionais por meio de textos candnicos ¢ por informagio publica. Embora discursivas da metafisica e institui- Ges tradicionalmente encarregadas de inculcé-las (como a religiao e a Igreja), ‘© pensamento oficial permanece escudado em novos mecanismos organizativos, a exemplo do Banco Mundial que, desde os anos de 1980, passou a zelar por aspectos ideoldgicos (politica, educagio) das sociedades.em desenvolvimento. capas de unt si: io mais visivel do se enfraquecam determinadas formagdes Nao ha como negar a importincia do capital institucional acumulado ao longo da histéria do Ocidente, cuja sintese se vislumbra em realizagdes como 0 estado de direito, a democracia representativa, a imprensa livre etc. Mas nao ha igualmente como negar os sinais de declinio desse capital, o que de- } sautoriza qualquer monismo euroculturalista legitimado por um:suposto uni- | versalismo da razio. Particularmente no Ambito da educagio, so enormes as } Consequéncias praticas desse primado monista sobre a diversidade simbélica | das variadas regides do mundo — a maioria das quais ancorada em formas | Visuais, sonoras e gestuais de comunicaciio, e nao na escrita ~, em especial no ‘que se refere ao reconhecimento desigual dos modos diversos de apropriacdo ~€ aplicag&o dos saberes. Logo, sobre os modos de ensinar e aprender. Uma pequena histéria exemplar: \ _ Em janeiro de 2009, uma indfgena de 12 anos, da etnia tucano, foi picada no pé direito por uma jararaca na regiaio do Alto Rio Negro, na fronteira do Amazonas com a Colémbia, onde néo hé luz elétrica nem posto médico, ea Cidade mais prdxima dista 14 horas de Jancha. “Eu queria que ela recebesse © soro e depois fosse tratada em casa mesmo, como 44 fizemos com outras Pessoas da tribo”, narra o pai, “mas os médicos se desesperaram e quiseram mandé-la ao hospital em Manaus”, Armou-se af um conflito, Internada num pronto-socorro infantil, a crianga Passou por cirurgias Para retirar os tecidos necro: /80 mes : = ae tempo em que a directo do hospital barrava a ‘entrada do pajé, ane Pelo pai, assim como a realizagaio de rituais e a aplicagio de ervas ‘as. Mas o diagnéstico médico era pessimista: seria necessério amputar sados pelo veneno da cobra, @ perna da menina para evitar infecgao generalizada, 10. CE, revista Epoca, 02/03/09, p: 75. ol. ¥) Inconformado, os indios tucanos recorreram A Procuradoria da Reptiblica ¢, depois da passagem por uma casa de satide indigena, conseguiram a inter- nagdo da crianga no Hospital Universitario, cujo diretor propés a combinagiio do tratamento médico convencional com os rituais e as ervas indfgenas, mini: trados pelo pajé. Em trés dias de tratamento simultineo, segundo a imprensa, a crianga deixou de ter febre, ¢ logo cresceu a pele, cobrindo os ossos do pé, antes expostos pela ferida. A amputago foi descartada. Nao & aqui o caso de se discutir as causas reais da cura — se a. medicina cientifica ou a farmacopeia ritualfstica'! -, e sim de assinalar que a exem- plaridade desta pequena histéria est4 no.bom resultado de um episddio de cooperacio entre dois tipos, de conhecimento capaz de.contornar aquilo que Sousa Santos chama del“monocultura do saber e do rigor”, isto é, “a ideia de que 0 titiico saber tigoroso 0 saber cientifico, portanto, outros conhecimentos nao tém 4 validade nem o rigor do conhecimento cientifico”. Na realidade, nao se pode tudo conhecer cientificamente. Muito antes dele, desde a década de 1950, 0 pensador e educador Ivan Illich aliava a sua critica do desenvolvi- mento econdmico como pensamento tnico e universal abstrato 0 combate a medicina corporativista que desprezava o saber'comum das praticas curativas e recusava ao doente uma parcela de autonomia em seu préprio tratamento. “©5Y A ideia do “saber nico” termina recalcando uma parte importante da rea- | lideide, “porque ha priticas sociais baseadas em conhecimentos populares, co- ‘-nhecimentos indigenas, conhecimentos camponeses, conhecimentos urbanos, ~f mas que nio.sio avaliados como importantes ou rigorosos”! a Seus efeitos so | jgualmente danosos no tocarité & educagio, porque © monismo cultural que | [privilegia a lingua hegem@nica impede o pluralismo das linguagens caracte- infstico de alunos provenientes ft diferentes estratos sociais, sendo de.outras A monocultura do saber est por trds da cres- pr de classes \ economii acd 11. A pesquisa contempordnea sobre a eficécia de placebos (substéincias sem nenhum ingrediente farmacolégico ativo) {4 conseguiv determinor cientificamente sua reclidade, néo como mera reagtio psicol6gica, e sim como um verdadeiro efeito fisico com poder curative em alguns casos. Isto ocorre particularmente no fratamento de problemas: diretamente ligados ao sistema.nervoso central, como a. epressio e a dor. Compiovou-se que a parte superior da medula, chamada de “cifre dorsal, pode ser alvada pela forca do pensomento, peld cren¢a. Para os especalistas, um coqueel de substéincias quimicas presentes naturalmente no organismo, como noradrenalina e serotonina, entraria em agéo. ‘em consequéncia do efeito placebo. 12. SANTOS, B.S. Renovar a teoria critica e reinventar a emancipagéo social. Sao Paulo: Boitempo, 2007, p. 29. LY responder também pelo fracasso do ensino e pel: lar em tais fio esco- 0s. Disso uma pequena histéria também exemplar estd contida no filme Entre os muros da escola", retvato da tensiio entre um professor francés e filhos de imigrantes que, mesmo (endo nascido na Franga, niio se sentem nem sio reco- nhecidos como naturais daquele pais. O conflito é tematizado na tentativa de imposigao pedagégica da norma culta da lingua francesa pelo professor frente A resisténcia de jovens da banlieue (subtirbio), cuja fala, mesclada com yoc4- bulos e significados oriundos de outras linguas nacionais, é repelida como um jargio inaceitivel. Como si sabe, a Europa € 0 bergo do Estado-nagiio, que naquele continen- te se constituiu pela imposigdo (monoculturalista) de uma lingua tnica, em detrimento das regionais e em franco contraste com a realidade dos Estados- nacao de outros continentes — a Africa, por exemplo, ao lado de uma hetero- geneidade simbélica das mais fortes, é uma Babel lingufstica. Na Europa, a forma nacional pressupée, ao lado da comunidade étnica, uma comunidade lingufstica, cuja uniformidade é compativel coma unidade politica e incompa- tivel com as excentricidades comunicativas, como se conotam geralmente os particularismos de ordem cultural. Desse modo, 0 uso verndculo da “Iingua- mie” € a prova por exceléncia da assimilacdo do imigrante A sociedade. O teste da lingua é apresentado as consciéncias como condigo de possibil para a constituigio do sujeito de direitos, beneti rio do progresso". Até mesmo entre os nacionais de longa data, a Ingua tinica € campo onde se refletem as diferengas de classe social, mediadas pela educagiio. No caso dos imigrantes, a ameaga latente é a possibilidade de se falar.a partir de uma realidade propria, nao reconhecida como tal naquele territ6rio pelo Estado nacional hegeménico, representado pela pedagogia oficial. E justamente de uma fala aut6noma qué parte o método de alfabetizagiio do brasileiro Paulo Freire, guiado pela ideia-forga de que ‘aprender ater € tomar consciéncia da histéria e da existéncia prdprias, a fim de redescobrir 13, 0 filme (2008) de Laurent Cantet, adaptado do livro homénimo do Prof. Francois Bégaudeau, mereceu prémios importantes no circuito internacional de cinema. 14. O duplo requisito (éinico e linguistco) ndio incide apenas sobre imigrantes. © livro Game Change (2010), escrito pelos jornalistos Mark Halperin (revista Time) e John Haileman (Revisia Now, York), sobre os bastidores da campanha presidencial de Barack Obama, revela ‘que, para o Senador Harry Reid, lider da maior democrata, Obama seria um candidate negro "aceitével” porque linha “pele mais clara” @ “no fala aquele dialeto negro dos africanos” (referindo-se ao inglés usado nas comu- nidades negras pobres nos Estados Unidos). an ‘reflexivamente 0 mundo!’, O ponto de partida é 0 proprio universo vocabulur do alfabet ando, portanto, 0 acolhimento das palayras habituais no meio cultural do indivfduo, com 0 objetivo de escolher, entre os vocdbulos de mais ricas possibilidades fonémicas e semanticas, palavras “geradoras”, isto €, capazes de formar outras ¢ de reconstituir situagdes da experiéncia vivida em comum, / Vale frisar que a escola é o lugar determinado do sistema social onde se reconstitui 0 movimento de produgdo do conhecimento, mas sempre como inada na escola nio escapa a0 jogo das diferenigas de classes, na forma de conflitos linguisticos (praticas contraditérias de linguagem), disfargados pela suposta uniformidade do idioma patrio. Assim como dentro de uma escola presumidamente tinica se realiza uma divisdo que vai assegurar uma diferenga na reprodugdo da forca de trabalho, também dentro de uma Iingua que se quer comum ocorrem m pra as diferentes de linguagem. O personagem-professor de Entre os muros da escola esta nas SRitpodas do humanismo descolonizante de Paulo Freire. A norma culta da lingua re- calca a comunicagio real dos jovens, recalcitrantes ao processo escolar em consequéncia de uma padronizagio conotada como verdade linguistica. Do mesmo modo que no episédio da jovem indfgena mordida pela cobra, 0. mo- nismo cultural se esquiva a possibilidade de uma epistemologia pluralista, Esse tipo de problema, como se pode inferir, ndo € exclusivo das regides menos favorecidas do Hemisfério Sul, uma vez que 0 movimento migraté- rio acelerado transp6e velhas questées para a periferia das megalépoles pan- europeias. Ao mesmo tempo, esse tipo de argumentacio ¢ as terminologias afins ndo sao hoje exclusivos de ninguém, j4 que toda uma corrente te6rica em. desenvolvimento cogita de uma epistemologia capaz de contemplar a diversi- dade planetiria e respeitar as diferencas simbélicas, A economista Vandana Shiva, por exemplo, usa a expressio “monocultu- ras da mente” para referir-se ao transito hegemSnico do discurso cientificista’®. Para ela, nogdes aparentemente objetivas como “desenvolvimento” e “produ- tividade” nao sao nogées neutras, e sim tradugGes dos valores do sistema de pensamento que os produziu, pois 0 sistema comercial global define como valor apenas 0 que pode ser monetariamente trocado. Desenvolvimento eco- némico nao é um universal abstrato que se possa impor as concretas diferen- 15, Cf. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido, Séo Pavlo: Paz e Terra, 2005. 16. Cf. SHIVA, V. Monoculturas do mente, Séo Paulo: Gaia, 2002, os gas hist6rico-estruturais das sociedades. Normalmente, 0 que se propée como tal € um modelo monopolista-associado dependente de centros transnacionais geradores de capital e tecnologia, indiferente a seus perversos efeitos sociais e ambientais. Esse modelo costuma dissociar a degradagao social da degradagao ambiental. Assim, uma bandeira de grande interesse social, como a do desenvolvi- mento, pode ser confundida com o puro e simples crescimento econémico ao desconsiderar o patriménio ecolégico e cultural de uma Tegido, logo, perdendo 0 foco da dimensiio humana. Nao se entenda essa dimensio como mera gene- talidade humanista, mas como condigao essencial para uma agenda desenvol- vimentista que nao se limite A mera assimilagio cultural e tecnolégica. O Ira é um caso digno de exame. No comego deste século esse pafs virou foco da atengiio internacional, Porque conjugava avangos em seu programa nuclear com o que aos olhos ocidentalistas parecia um retrocesso cultural e religioso, ou seja, uma forma particular de fundamentalismo islimico. Para as grandes poténcias e para a imprensa mundial, essa conjugagao representaria uma ameaga & paz no Oriente Médio, a ser combatida por presses da ONU e pela imposigao de barreiras comerciais, t O que essa mesma imprensa deixava de dizer, entretanto, era que o ale- gado anacronismo religioso nao impedia (ao contrério, parecia estimular) um desenvolvimento cientifico em dreas estratégicas para o desenvolvimento so- cioecondmico, como a biomédica e a nanotecnologia, capazes de catapultar 0 Ira para uma posigao internacional que registra as taxas mais elevadas de cres- cimento da produgio de conhecimento nesses campos'”. A realidade é que, a despeito de suas manifestagdes de extremismo politico, o Ira alinha-se com paises ditos “emergentes”, como China, india, Russia, Coreia do Sul, Turquia € Brasil, no que se refere a bons resultados em termos de desenvolvimento e Pesquisa cientifica, buscando cavar um lugar no espago classicamente ocupa- do pela triadé Estados Unidos, fapao € Unido Europeia. Nao se trata aqui de justificar fandamentalismos. Muito pelo contrario, é imperativo para a moderna consciéncia solidaria, no Oriente ou no Ocidente, trazer 4 luz do debate ptiblico as desmedidas da barbatie que vitimiza a condi- ¢ao feminina em regiées islamicas do mundo ou, do outro lado, 0 totalitarismo das organizagées ocidentais de combate ao terror, que ameacam as instituigdes democriticas sob a cobertura do segredo de Estado. — 17. CE. Clinical Trial Magnifier, vol. 2, issue 12, dez./'2009. Trata-se de uma publicacdo eletrénica mensal que resume o “estado da arte” da pesquisa biomédica no mundo, QE A critica ao império do pensamento nico ou universalista obriga-se_a. eXaminar mais de perto determinadas irradiagdes de universalidade que nio pertencem ao iluminismo curopeu negador da diversidade, mas se projetam para além de sua localidade frente a conjunturashist6ricas avessas 2 irredu- tivel globalidade do fendmeno humano no planeta. Assim € qué, entre 1791 1804, os escravos africanos e crioulos que sé rebélaram para fazer do Haiti a primeira nagdo negra da historia irradiayam, a partir de um local especifico, a forga do universal concreto'da diversidade human’ Os anacronismos violen- tos e a barbdrie devem ser pensados nesse quadro. Mas isso nao impede de se constatar a existéncia de paradoxos na rela- ¢4o dos presumidos anacronismos com o desenvolvimento da capacitagiio educacional e tecnolégica. Esses paradoxos contribuem para se descons- truir 0 conceito (monoculturalista) de uma tinica modernidade-e se chegar a hipdtese de varias modernidades posstveis. De fato, para a consciéncia euroculturalista, a Modernidade — palavra criada por Théophile Gautier, mas redefinida por Baudelaire como “a,eternidade no instante” — € entendida como a possibilidade de se formularem jufzos universais, até mesmo em si- tuagées particulares. Os ideais de justiga € os direitos humanos cabem nesse quadro conceitual. ~*~ Na pratica, porém, a consciéncia coletiva e politica dessa dita modernida- de mostra-se quase sempre ambigua ou incapaz frente a realizacfio concreta desses universais. O que se afirma mesmo, em tiltima andlise, é a pretensa oni- poténcia do poder militar, econdmico ou tecnolégico que nao raro transparece em enunciados bastante objetivos, como o de Christine Lagarde, entiio minis- tra da Economia francesa (eleita diretora do Fundo Monetério Internacional em junho de 2011), em sua visita ao Brasil: “A Franga sabe fazer avido, trem, navio e carro. E acaba de receber da Unesco 0 titulo de Patriménio Universal da Humanidade pela gastronomia. Nés podemos fazer tudo!”""* Qualquer ministro da economia brasileiro’poderia vangloriar-se, sem mentir, de que o setor empresarial do pajs se destaca na fabricagaio de avides a jato, de carros flex ou na extragao de petréleo. Mas aqui se trata de indicar que a frase da ministra € 0 marketing de um plus de modernidade. Esta equivale 4 potenciagao do sistema produtivo, como acontece em outras regides do: mun- do, que nao partilham da afirmagdo universalista dos valores, mas se pautam por uma aspiracao continua ao incremento da producao eda tecnologia, sem descuidar da educacao. 18. Cf. O Globo, 20/11/10. Assim & que, sob uma rigida ditadura partiddtin ¢ penosay condigoes de vida para a maioria da populagio, a China pode adaptar-se, por meio da pes quisa oda instrugio, As exigdncias do sistema produtive moderno, Por sua ver, © dparente anacronismo cultural iraniano parece encontrar uma organicidade ha realidade social dessa nagiio que, embora inaceitével para a Modernidade, revela-se compativel com o horizonte de expectativa ¢ com os sistem cionitis daquela regiéio do mundo. Vale lembrar que a modern eden niGio tecnologi Gado Ini em bases ocidentais, que caracterizara o regime do X4 Reza Pavlevi em meados do século passado (mais precisamente no final da década de 1970, quando © Presidente Jimmy Carter retirou 0 apoio norte-americano ao XA) «lesabou como um castelo de cartas nos primeiros meses da reislamizagio do y pas, no inicio da década de 1980, O que estamos chamando de “dimensio humana” no empenho desenyol- vimentista de uma regiao implica, na prdtica, 0 consenso de atores sociais fepresentativos em torno de finalidades atinentes a uma realidade specifica, Fatores do tipo crescimento do Produto Interno Bruto, expansdo da inddstria ¢ das exportages etc. — absolutizados dentro de uma Idgica economicista ~ dei- xam em segundo plano a cultura (especificamente, a educagiio, 0 ethos local ¢ a Satide) enquanto fator constitutive do desenvolvimento, Essa légica costuma desconsiderar tais fatores, que emergem naturalmen- te quando se pensa na possibilidade de uma experiéncia de equalizagiio social. A crise da moeda tinica e a quase faléncia financeira de varios pafses no final do primeiro decénio deste século tornaram claro que a aboligiio de barreiras | legais:& movimentago de trabalhadores na Comunidade Europeia nio era, por si $6, suficiente para constituir um necessério mercado comum, requisito indispensdvel ao bom funcionamento do novo sistema econémico. As dificul- )dades linguisticas e culturais eram impeditivas da mobilidade ocupacional na | conhecida forma da empregabilidade norte-americana. t O cuidado ecoldgico e cultural, por outro lado, alinha-se com as perspecti- vas ético-politicas que priorizam a expanstio dos Servigos sociais e a equidade na redistribuigdo da renda. Esse tipo de cuidado nos permite ver que uma ban- deira com grande poder de atragdo social, como aquela agitada péla chamada “revolugio verde”, pode implicar a destrui¢do da biodiversidade de uma re- gitio em-beneficio da monocultura de produtos pelo sistema comercial. 19. Em moaclos do século XX deu-so o nome de “revolugiio verde” ao movimento agricola baseado hat pesqulias do eruzamento de grdos das safras mais produtivas, que resultou em grande cumento do produgtio de alimentos na Améries Latina ¢ na Asia. Paises-como India e México lornaram-se, assim, aulossuliciontes no productia de eorecis, 2 Disto um claro exemplo é a depredagaio do bioma (agua, fauna © flora) bra- sileiro pelas plantagdes de soja no Cerrado, a segunda frea em maior biodi- versidade do pais, que ocupa um quarto do territério nacional. Entre os anos de 2002 ¢ 2008 destruiu-se quase a metade desse bioma em favor da monocultura da soja, da pecudria e da exploragao madeireira. Mas, a despeito de todos os danos ambientais ¢ do comprometimento do equilibrio ecoldgico do pais, termina se impondo a Iégica economicista do sistema comercial, acompanhada das presses dos métodos cientificistas de produgdo (a técnica respaldada pela ideologia da ciéncia) que, segundo Shiva, atribuem “uma espécie de sacralidade ou imunidade ao sistema ocidental”””. Desse modo, a “revolugaio verde”, apesar de todas as suas supostas vantagens em termos de produtividade agricola, nao sé constitui um pa- drao tnico de cultivo, mas também uma uniformizacao de relagdes sociais em que a economia detém o primado sobre outras instdncias de vida”!. No Ambito do Ppensamento ético - 0 mesmo em que nasce e se transforma a vitalidade educacional —, esse primado pode ser ciimplice da “agonia do ho- mem”, isto é, da angiistia advinda da percepgio de que violéncia e progresso tao intrinsecamente ligados, sendio de que desse modo de ser humano surge © risco de destruigao do planeta. E também a percepgiio de que, apesar da vio- léncia da desigualdade social, todos os seres humanos esto ecologicamente no mesmo barco, uma vez que a globalizagio nao € bipolar. Entretanto, encerrado no cfrculo dos célculos e padrdes do economicismo — que € fruto da Revolugio Industrial -, o paradigma monocultural do desenvolvimento pactua com o para- digma ocidentalista que faz coincidirem Modemnidade e Colonialismo. > Circulam hé muito tempo no campo das ciéncias sociais as expressées “monoteismo ideolégico” ou “monismo” para referir-se 4 redugdo de qualquer pluralismo de pensamento & unidade centrada no ocidentalismo colonialista. ‘\\ Monocultura da mente é disso um sin6nimo, aplicavel a tentativa de se conter i \ reflexdo e a acdo dentro de padrées de uniformidade, impedindo a emer- péncia de outras préticas baseadas em conhecimentos populares) Foucault jé havia a elas se referido como saberes assujeitados, isto €, “saberes locais, des- {continuos, desqualificados, nao legitimados, contra a instancia terica unitaria | que pretende filtr4-los, hierarquiz4-los, ordend-los em nome de um conheci- “mento. verdadeiro”™” 20. thid., p. 24. 21. Na prética, essa dita “revolugdo" é a criagiio de desertos verdes sob as aparéncias mididticas de florestas de eucaliptos, cujo plantio substitui gente (populacdes camponesas e indigenas) por tratores elimina nascentes d’égua. 22. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade, Séo Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 20. 9 4 TC Na perspectiva da edt paragaio entre variantes de- nual, amento & uma da Hig, esse ASStyC trabalho intelectual ¢ trabalho mau de industrializagao europeu, conforme 0 capital): “O sabio € 0 eaciéncia, em vez de correntes da chissics que se intensifica ao long Thompson (citado por N hador produtivo esto completamente separados; te inios do trabalhador, as suas forgas produtivas, ¢ de melhor fa- e toda parte dirigida contra ele. O conhecimento (knowledge) se torna um instrumento que pode se separar do trabalho, e até mesmo se the opor”®. De fato, 0 trabalho intelectual nao precisa articular-se mente com nenhuma forma de trabalho manual para estimular 0 proces mediacio entre nao legitimado jado ao trabalho tal aumentar, zé-lo aproveiti diret so de produgio social, pois € 0 proprio capital que realiza a ambos, O conhecimento posto 4-margem do capital e, portanto, pela ideologia cientificista da verdade é semioticamente associ manual e culturalmente desqualificado. Conhecimento significa 0 processo pelo qual um sujeito, individual ou coletivo, entra em relagfo com um objeto ou uma informagio, visando obter dele um saber novo. Distingue-se do mero reconhecimento, porque implica a busca, a partir de sua prépria experiéncia, de um saber ainda nao produzido. Nao é, portanto, uma simples informacao, porque implica uma qualificagao existencial do pensamento frente a realidade. Em todo e qualquer grupo humano esse processo torna-se mais visfvel em fungio das exigéncias de manutengiio e expansiio das forgas produtivas. Ele comparece nos trés tipos esquematicos de trabalho (extragao, fabricagao ¢ servigos) atuanites ao longo da mutagao histérica dos estégios produtivos. A diferenga-europeia esté em que a moderna sociedade industrial valeu-se do conhecimento dito “morto” como capital (capital constante, segundo a defi- nigdo de Marx), objetivando-o em mAquinas € processos, responsdveis pela transformacio acelerada das forgas produtivas. O que agora acontece é a prevaléncia da economia de servigos, onde 0 trabalho nao se define pelo exercfcio da forca muscular ou maquinal contra os elementos naturais, e sim pela mobilizagio de informag6es que dinami- Zam tanto as m4quinas quanto o jogo relacional entre individuos. Uma das Principais designagdes encontradas pela sociologia para essa transformacao é ‘sociedade pés-industrial”. Agora, a capitalizacio do saber atinge uma nova etapa, em que os recursos Cognitivos podem ser potencializados exponencial- 23. THOMPSON, W. An Ena no the Pin fh Darn of Wealth, Londres: [5.0 |p. 274, A cilagio 6 também retomada por GORZ, A. O imateria: conheci i. tal. Sao Paulo: Annablume, 2005. Ee ductedes onbecni ny or Ses 3O mente por maquinas eletronicas, dando lugar ao que se pode chamar de talismo informacional-cognitivo”, um modelo avangado do processo de act mulagao. A produgio baseada na indtistria mecanica perde o primado para a industria centrada no “capital-conhecimento” (ciéncia, tecnologia e educagiio intensiva). com novas prioridades em termos de mercadorias. Mas nao existe wma “sociedade do conhecimento”, supostamente caracte- va do capitalismo em sua forma transnacional contemporanea. 9 — que ds vezes se emprega como um refinamento de “sociedade da informagio” — tornou-se recorrente no discurso publicitério das grandes empresas de tecnologia da informagio e da comunicagao, porém se revela mais um slogan do que um conceito, na medida em que reduz a diversidade dos modos de conhecer ao modelo maquinico. fistica exclus Est expres: Esse processo discursivo faz parte de um fendmeno a que poderfamos cha- mar de “neomitologias da técnica”, isto é, um novo tipo de dimensao mitica e cultural em que cada inovagio tecnolégica € conotada pelo mercado como o marcador semiético de uma nova era civilizatéria, senfio de uma significativa constelagio antropoldgica. Assim como se teve a “Era do Telégrafo”, a “Era do Telefone”, a “Era do Radio”, a “Era da Telévisiio”, tem-se hoje, desde a écada de 1990, a “Era do Computador’”, celebrada por pesquisadores e pen- sadores sociais. O contexto tecnofilico dé margem ao aparecimento de mito- logias maquinicas propagadas pelo mercado e de gurus milenaristas, que apre- goam mudangas fundamentais na histéria por efeito das novas tecnologia: tais como o “fim” de tudo que constitufa 0 ordenamento classico da cultura: o fim do homem, da histéria, da cultura, das identidades etc. A informagio e a computagiio marcam, miticamente, uma suposta Nova Fra, como analisa Mosco: “O ciberespaco € de fato tecnolégico e politico, mas é também um espago mitico — talvez mesmo um espago sagrado no sentido dado por Mircea Eliade (1959) quando se referia a lugares que so reposi- térios da transcendéncia”™. No tocante & educagio, esta observagio tem um particular valor critico quando confrontada aos discursos de especialistas em “economia do conhecimento” que, no Ambito de organizagGes internacionais (Ocde, Banco Mundial e outras) voltadas para a implantagio de uma “ordem ./ educativa mundial”, fazem coincidir 0 avango das tecnologias da comunica- Gio ¢ da informagio com a chegadi de-uma-nova era’-educacional. t Na realidade, em todo e qualquer grupo humano, um conjunto de fatos |e observacGes hoje categorizado como “informagio’ foi sempre vital como 24. MOSCO, V. The Digital Sublime: Myth, Power and Cyberspace. Cambridge, Mas.: 2004, p. 10. BA um dos recurso A instrug: nsform: para o entendimento ou a tr 9 para a pratica de um ritual, a receita pa mento, os dados acumulados Na sociedade industrial cla: io do mundo ao redor. ‘a. um alimento ou para bre plantas ete. s a informagio um medica informagoe: 1 indispensdvel A rela fio) entre proprietirios ¢ trabalhadores a servigo do capital. ¢ equipararmos 0 termo “tecnologia” a “técnica” (Heidegger, jamais de “tecnologia”), nao teremos hesitagio alguma em afir- r que esse tipo de mediagao instrumental pertence tanto a sociedade arcaica quanto 2 moderna e mesmo que, em termos histéricos ¢ ontolégicos, a técnica € anterior a ciéncia, j4 que dela procedem as condigées de possibilidade para a emergéncia do conhecimento cientifico. C social (de explor Por outro lado, alids, nao fa ma Acontece, desde meados da’ segunda metade do século passado, que 0 co- nhecimento passou a integrar de modo intensivo-a composigio técnica do ca- pital, levando a informagio a concentrar-se em dispositivos maquinais e trans- formando-se em economia. Deixou-de-ser ap. EB assim terminou ocupando o centro de uma mutagio técnica (isso dé ensejo a alguma diferenga implicada na palavra “tecnologia”, em que se visualiza uma estreita alianca da ciéncia com a técnica), que vem favorecendo a emergéncia de uma forma especifica de organizagio das relacdes sociais, cujos principais recursos de produtividade e poder esto assentados na informagao ou no conhecimento. E precisamente isso 0 que esta por tras di ~tura em fator de produtividade capitalista, cuj em: arbativa recebeu, ainda na primeira metade do século pasado, o nome adorniano de “industria cultural” ou, para outros, cultura de massa, sobre a qual recafram acerbas cri- ticas por parte dos pensadores da‘Escola de Frankfurt e dos pos-modernistas. O fenémeno ja parecia visivel, entretanto, cerca de um século antes, ao: olhos da profecia filosstica de Nietzsche quando se teferia as maneiras ‘de “abusar da cultura e-fazer dela uma escrava™? Uma dessas “é, em primeiro lugar, 0 egoismo dos negociantes que tem nécessidade do auxilio' da cultu- Fa e, por gratidao, em troca, também a,auxiliam, desejando, bem-entendido, prescrever-lhe, fazendo de si 0 objetivo e a medida. Daf vem 0 principio eo raciocinio em yoga, que dizem mais ou menos isto: quanto mais houver co- nhecimento e cultura, mais haver4 necessidades, Portanto, também mais pro- dugio, lucto ¢ felicidade — eis af a falaciosa f6tmula’”s, A facil circulagao atual de slogans monoculturais — “sociedade da informa- ¢&o”, “sociedade do conhecimento” etc, — deve-se, assim, 4 sua Oportunidade la progressiva conversao.da_cul- 8 NIETISCHE.F. “Considoracéo intempostiva — Schopenhauer educador". Escritos sobre arhienntin mercadolégica como indices semidticos da passagem do do saber pelo capital fixo (maquina stdin monopolista , instrumentos) ao estidio de sua dissemi> hago junto A forga de trabalho. De fato, o trabalho intelectual esta historien: mente ligado aos mecanismos capitalistas de apropriagiio da mais-valia, que, amparados pelos resultados industriais da tecnociéncia, cavaram uma divisiio radical para com o trabalho manual — 0 Homo Sapiens de um lado, do outro 0 Homo Faber, Agora, quando a nova forma de acumulagiio do capital deman- da a presenga total do individuo (em termos fisicos e psiquicos) no raio de alcance do modo de produgao, torna-se imperativo estender a cognigio além de seus limites tradicionais. Gracas aos poderosos recursos da eletrnica e das nanotecnologias na estocagem e na distribuigdo do saber, a forga de trabalho tende, assim, a “intelectualizar-se” na medida do necessdrio. A isto se vem chamando de capitalismo cognitivo — ou informacional-cognitivo. Mesmo nessa nova fase da Modernidade capitalista, a persisténcia da “monocultura do saber” decorre, como no passado, da pretensdo 4 hegemonia da verdade por parte do conhecimento cientifico: E de fato uma pretensdo mo- derna, inicialmente cimentada no campo do pensamento social pela sociologia positivista de Augusto Comte e depois por seu epigono Emile Durkheim, para quem a ciéncia seria a Gnica via de conhecimento da realidade. Fora dela esta- ria 0 senso comum, destinado a ser submetido e transformado pela educagaio cientifica e moral. Entretanto, “para que a verdade seja representada em sua unidade e em sua singularidade, a coeréncia dedutiva da ciéncia, exaustiva e sem lacunas, nao € de nenhum modo necesséria”, observa Benjamin”. Com efeito, como deixa bem claro Heidegger, a ciéncia é uma forma de verdade — sistematic met6dica, com validade universal ~ que pertence a existéncia, portanto, tence a'um modo como os homens comipreéidem e decidem sobre o que sé Ihes afigura como fundamental. A existéncia, por sua vez, ésté dentro de uma verdade, entendida como ingrediente essencial na constituigdio da estrutura humana, porque traz.d luz, “desoculta” determinados aspectos vélados ou es- condidos na existéncia e dessa maneira se impde como um contexto em que se fundamentam enunciados vdlidos para todos. Seria entZo 0 enunciado o lugar da verdade? Nao, esclarece 0 fil6sofo, 0 enunciado € que tem a sua fntima possibilidade na verdade, no desocultamento ~_ daexisténcia, que acontece sempre que 0 homem pensa ¢ age conscientemente _ naabertura de seus horizontes. O que, no sentido proposicional, pode ser dito como verdadeiro ou falso sempre jé ocorreu desde que o homem “desocultou” S? a existéncia, abrindo os seus horizontes de possibilidades. Essa abertura, a verdade que Ihe torna possfveis 0 pensamento ¢ a agiio conscientes, néio decor- re de uma vontade deliberada, mas da propria dindmica da existéncia. Assim opera a ciéncia, que ¢ a claboragao de um dominio de verdade exis- tencialmente aberto, Ela nao é uma forma tinica ou superior, j4 que existem outras possibilidades de verdade, além daquela tradicionalmente sustentada pela monocultura do saber. Argumenta Rorty: “Para considerar a sério a ideia tradicional de Verdade, temos de concordar que algumas crengas siio verdadei- ras e outras, falsas, e chamaremos ‘verdadeiras’ aquelas que melhor se ajustam a nossas crengas anteriores [...]. Temos de tomar seriamente a quest&o de que nossas descrigGes da realidade podem nao ser todas muito humanas, muito influenciadas por nossas esperancas e medos””’. A realidade € que 0 mito, sobre 0 qual recai historicamente a pecha da superstigdo, também produz um desvelamento, uma verdade, isto é, um modo de determinar o que se afigura grupalmente como essencial. Apenas é uma verdade que, em primeiro lugar, apresenta-se de modo fechado e unitario, sem a multiplicidade especializada dos fatos. A experiéncia de conhecimento por ela ensejada — expressa em imagens, esquemas e formas narrativas — nao & redutivel a l6gica nem abstrata nem codificével num discurso metédico tal e qual a ciéncia. No entanto, em grande parte dos casos, € acionada por valores incomunicdveis, que dizem respeito & experiéncia da intuicdo. Poincaré, um dos expoentes da matemiatica na Modernidade, sustentava “que a légica nao basta, que a ciéncia da demonstragao nfo é a ciéncia inteira € que a intuigio deve conservar seu papel 'como complemento — dirfamos até: como contrapeso ou antidoto — da légica’™*. Assim, “se admitimos ou basica- mente entendemos que também o mito possui uma verdade propria, entao & claro que entre a verdade précientifica ¢ a verdade cientifica nao se d4 nenhu- ma diferenga essencial, senZio que ambas s6 sto diversas em grau, na medida €m que na ciéncia se dio mais conhecimentos, que vém definidos com mais exatidio ¢ vém fundamentados nas conexées que mantém entre si”, Se nos deslocamos do conceito (propriamente antropolégico) de mito para © de ideologia (conceito propriamente sociolégico, referente A troca do real pela imagem ou do original pelo reflexo), essa linha de reflexiio permanece. 27. RORTY, R. “Something o Steer By’. london Review of Books, Apud CALDER, G. Rorty. Sao Paulo: Unesp, [s.d.], p. 16-17. 92 DOINCARE H FI valor de la ciencia, Buenos Aire : Espasa-Colpe, 1947, p. 25. Florestan Fernandes, por exemplo, sustenta: “Ciéncia e ideologia nao se sepa- ram, embora quando necessdrio caminhem independentemente uma da outra. Por vezes, homens humildes e incultos, que ‘sofrem a historia’, completam 0s contornos de uma aprendizagem abstrata e pdem-nos diante das melhores aproximag0es sociolégicas da verdade. Outras vezes, so os que tém as rédeas do poder e que pensam ‘fazer histéria’ que nos fornecem as pistas para dolo- tosas reduges ao absurdo, também cheias de ensinamentos””°. Na esfera pratica, ou seja, a do modo de proceder ou de execugdo dos saberes, mito e ciéncia se aproximam essencialmente, embora diferindo em escala ou em grau de realizagdo do conhecimento. Mas ciéncia, desde a Anti- guidade, representa uma atitude (a atitude teérica) nao limitada ao mero com- portamento pratico, j4 que é também pensamento e especulagao como orienta- ¢ao de vida. Comportamento é uma série de atos ou procedimentos que pode fespeitar ou violar normas previamente estipuladas, com vistas a um resultado especifico. Atitude € um complexo de atos, intengGes e posturas que transcen- de 0 objetivo imediato, envolvendo por inteiro o sujeito da consciéncia. “Na poca do florescimento da cultura antiga, a atitude tedrica representa o ideal supremo da vida, que exerce depois sua influéncia sobre o nascimento e o vir it ser de toda a ciéncia ocidental”, diz Heidegger’. pensador esté se referindo implicitamente ao que, na hist6ria da filoso- fia, comenta-se como a “atitude” socrdtica, entendida como a racionalizagio de todos os modos constitutivos da polis, inclusive aqueles que, por estarem estreitamente ligados as forgas casticas e vitais da existéncia humana, rece- : bem da margem racionalista a pecha do irracionalismo. A troca do mito pela politica e da tragédia pela filosofia — pensados por.Nietzsche como a divisiio nire 0 apolineo e 0 dionisfaco — esté subsumida na atitude cientifica A ciéncia constitui, assim, 0 que Aristételes designava como bios, mais Precisamente um bios theoretikos, entendido como uma atitude basica da exis- 'éncia orientada pela -contemplagiio do mundo, vita contemplativa na versio latina. Se durante muito tempo essa contemplagao tinha uma abrangéncia re- ~ ligiosa ou teolégica, passou na Modernidade a denotar a especulacao, o livre Pensiumento sobre as coisas, ou meramente conhecimento te6rico. A teoria entre os gregos nao € 0 uso da racionalidade pura e simples, mas pom clo a todas as forgas intuitivas-do-homem-(daf-a-vinculacko entre ciénc! Le 40, FERNANDES, F. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Sti Paulo: Glo- bul, 2009, p. 19. } 1 | arte e poesia) para expor com clareza as leis que regem a organizagio do real, ; | logo, a percepgiio da ordem subjacente a todas as transformagGes e passagens quanto no pensamento e linguagem humanos (/o- dar uma forma tanto na natureza (phy: nceituais que vi endido num tod =Ws | rica do antigo grego. Essa forma, definida como a interpretagiio dos fatos singulares pela ética de uma imagem totalizante (holos), coincide na dimensio especulativa com a 1 i ideia platonica e, na dimer ftico-politica, com a paideia, que significa tanto cultura como educagao. Estreitamente ligadas, a filosofia e a paideia ar- ticulam-se primeiramente para 0 conhecimento da verdade, da alma e do bem. Zio, com vistas ao objetivo poli- Ao mesmo tempo, porém, implicam transmi {i i tico de formagiio dos cidadiios pela apreensio dos princfpios e das forgas que i estruturam desde as fontes originais (Arkhé) 4 comunidade humana. A cultura i nao é um patrim@nio que o cidadao incorpora a sua individualidac da educagiio como um valor externo, e sim-uma’ pletora-de possibilidades que | pertence por visceralidade politica a comunidade-Estido (polis), portanto, & ] | de por meio ‘condigao intrinseca de constituigao da individualidades. " Utopias e descolonizagao x = Mas as coisas se passavam realmente assim? Nao haveria nessa perspecti- va a forga de uma reinterpretacao posterior na hist6ria europeia que conduz 0 pensamento para a suposi¢ao de um ideal localizado num passado remoto, do qual se conhece 0 que restou em rufnas urbanas, em esculturas e num conjunto | iria af o desenho ideoldgico de uma civilizagio de obras escritas? Nao e? como fortemente antropoplastica? De certo modo sim, como salienta o poeta portugués Fernando Pessoa: beleza é grega. Mas a ideia de que elaé gregaé moderna’, E uma ideia “antro- poplastica”, isto é, relativa 4 formagao de homens, 4 sua moldagem como obrit de um éscultor ou, mais precisamente, de um legislador. A expressdo é usada r Jaeger, um erudito intérprete moderno da civilizagio grega, numa '. Grande por Werne! obra sobre educagio e cultura, familiar aos educadores ocidentais conhecedor do mundo clissico e claro expositor dos ideais educativos da Gré cia Antiga, Jaeger pode ser tomado como um paradigma contemporanco day 1 32, PESSOA, F. Op. cit. p. 20. 36

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