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i HAS BRERT Ong de Littrell shox | oe cury WAU) & Toittinichtn clo cain + Dac yawns! = ro 260") Definindo Territério para entender a Desterritorializagao! final, de que territério estamos falando quando nos refe- rimos a “desterritorializagdo”? Se a desterritorializagao existe, ela est referida sempre a uma problemética terri- torial — e, conseqiientemente, a uma determinada concepgo de 11 Par nme parewampin destemtomstirantn sets Haney i =— Dependendo da concepgao de teritorio mada, consequente- mente, a nossa definigdo de desteritorializagio, Assim, podemos perceber a enorme polissemia que acompanha a sua uilizagio entre os diversos autores que a discutem. Como jé enfatizamos, muitos sequer deixam expliita a nogto de territério com qu estao Alqumas partes deste capitulo tomam por referencia 0 artigo de mesmo titulo publicado na coletanea “Territdrio, Territrioe” (Haesbaert, 20028) Oo» & lidando, cabendo a nés deduzi-a. Da‘ aimportincia de esclarecer- ‘mos, de inicio, as principaislinhas terico-coneeituais em que a expressio ¢ ou pode ser ttlizada, sem em hipétese alguma preten- der impor conceituagao a problemdtica, mas mostrando sempre 8 Aiferenciagao e transformagio dos conceitos em fungao das ques- toes pririzadas. Ne Ue ie beleive deaaeiiela im Coetcias Soca com ilacioda debate sohie ocshach.eamalsaspaciticamantensabee detiliotalidadediusaiaeiaele menos desde a década de 1960 a polémica sobre a conceituagio de territério e territorialidade vem sgcolocando, Ja ene HLyman e Scott, num instigante artigo, {aziam um balango sociologico da nogdo de teritorilidade, consi. derada, sintomaticamente, “uma diméhsio sociolégica negligen- ciada”. Fica evidente através deste texto Ado apenas a pouca con- sideragao da Sociologia para com a dimensio espacial/terrteral, spas sobretudo, 4 Lilie ile Ge iste diibiatinmbitiiiatan léncias Sosiajs A Geografia, por exemplo, a quem deveria eaber © papel principal, estava completamente ausente daquele debate Se nao levarmos em conta os trabalhos mais pontuais de Jean Gottman (1952, 1973, 1975), podemos considerar a primeira gran- de obra escrita espeificamente sobre o tema do terrtéro eda ter- ritorialidade na Geografia o livro Territoriatidade Humana, de Torsten Malmberg (1980, escrito originalmente em 1976), obra de referéneia, mas cuja fundamentagio eSrica behavigisa olunatisg de fortes eritias, Embora ele tenha estabelecido as bases de um diglogo mais freqlente com outras dreas, este foi muito mais 0 de refutagdo, que a base do conceito envolve uma assoiagio dema- siado esteita entre teritorialidede humana e teritorilidade ani- ‘al, na eseira da polémiea tse do “imperativo territorial” biol6g- co de Robert Ardrey (Ardrey, 1969(1967). # "Territorialidade” aparece na Bibliografia ora assinalando o pressuposto ‘eral para a formagdo de territories (concretamente eonstituidos ou néo), ‘ora privileglando sua dimensto simbolico-identtéria, ox» & ‘Além das perspectivas externas as Ciéncias Humanas, espe- cialmente aquelas ligadas & Etologia, de onde surgiram as primei- as teorizagGes mais consistentes sobre territorialidade, a Antropo- logia, a Ciéneia Politica e a Histéria (com incursdes menores tam- bbém na Psicologia) so os outros eampos em que, ao lado da Geo- sgrafia e da Sociologia, encontramos 0 debate coneeitual, 0 que demonstra sua enorme amplitude e, ao mesmo tempo, reforga nossa percepeio da precariedade do didlogo interdiseiplinar, que € por ‘onde tentaremos, sempre que possivel, evar as nossas reflexdes. 2.1. A amplitude do conceito ‘Apesar de ser um conceito central para a Geografi, territério e territorialidade, por dizerem respeito & espacialidade humana®, tem uma certa tradigio também em outras éreas, cada uma com enfoque centrado em uma determinada perspectiva. Enquanto 0 de6grafo tende a enfatizar a materialidade do territério, em suas mil ica prineipalmente no este tradicionais (mas ‘no tratamento do “neotribalismo” con- temporlineo); a Fosioioge3 ‘enfoca a partir de-sua intervengao nas bes soci jaSYinalmente, relagbes sociaisenrSentido amplo, e a Ksieo ineorpora-o no debate sobre a construcao di-subjetividade ou da ‘dentidads pessoal, anpllando-o até scala do individu espaso” stegoria geral de andlise ¢ T Alguns autores distinguem “espago” como categoria get . “territdrio” como conceita, Segundo Moraes (2000), por exemplo, “do ponto de vista epistemolégico transita-se da vaguidade da categoria esp {0 a0 precio conceito de territério” (p. 17). on & ‘Uma idéia nitida da amplitude com que o coneeite de territé- rio vem sendo trabalhado em nossos dias pode ser dada a partir desta leitura, que vai da perspectiva etolégica (ou seja, ligada ao comportamento animal) a psicol6gica: Um “territério” no sentido etolégico ¢ entendido como 0 am- biente [environment] de um grupo (...) que ndo pode por si ‘mesmo ser objetivamente localizado, mas que é constituido por ‘padres de interacdo através dos quais o grupo ou bando asse- gura uma certa estabilidade e localizacdo. Eratamente do ‘mesmo modo o ambiente de uma tinica pessoa (seu ambiente social, seu espaco pessoal de vida ou seus hdbitos) pode ser visto como um “territ6rio”, no sentido psicoldgico, no qual a pessoa age ou ao qual recorre. Neste sentido jd existem processos de desterritorializagao € reterritorializagao em. andamento — como processos de tal territ6rio (psicolégico) —, que designam o status do relaciona- ‘mento interno ao grupo ou a um individuo psicolégico (Gunzel, s/¢). Partindo da Etologia, onde subvaloriza as bases materiais, bjetivas, da constituigfo do teritério, o autor propée a constru- fo de um tereitério @ nivel psleoldgico. £ interessante observar que ele reconhece 0 cardter metaférico da nogio ao utilizé-la entre spas, embora, como veremos no préximo capitulo, nfo seja exata- mente como metdfora que Gilles Deleuze e Felix Guattartratamo territério, especialmente em O que E « Filosofia? (Deleuze & Guattari, 1999). Estes autores referem-sea uma nopto ainda mais ampla de ter- rit6rio, como um dos conceitos-chave da Filosofia, em dimens6es ue vio do fisco a0 mental, do socal a0 psicol6gico ede escalas que ‘vo descie um galho de drvore “desterstorializado” até as “reterr- torializagoes absolutas do pensamento” (1991:66). Dizem eles: a te Jé nos animais, sabemos da importincia das atividades que consistem em formar territ6rios, em abandond-los ou em sair deles, e mesmo em refazer territ6rio sobre algo de wma outra natureza (0 etdlogo diz que o parceiro ou 0 amigo de wm ani- mal “equivate a um lar”, ou que a familia é um “territério mével"). Com mais forte razéo, o hominideo, desde seu registro de nascimento, desterritorializa sua pata anterior, ele a arran- a da terra para fazer dela uma mao, e a retervitorializa sobre gathos e utensitios. Um bastdo, por sua vez, é um galho dester- ritorializado. E necessdrio ver como eada um, em qualquer ‘dade, nas menores coisas, como nas maiores provacées, procu- ra-um territ6rio para si, suporta ou carrega desterritorializa- ‘60s, ese reterritorializa quase sobre qualquer coisa, lembran- 0, fetiche ou sonho (1991:66). ‘Mas no pensemos que esta polissemia acaba quando adentra- mos a seara da Geografia. Bla € bem vistvel no verbete do dicionério Les mots de la Géographie, organizado por Roger Brunet e outros (1998:480-481). Ble reiine nada menos do que sels definigdes para territoriot, Uma delas se refere & “malha de gestlo do espaco”, de apropriagao ainda no plenamente realizada; outra fala de “espago apropriado, com sentimento ou conseiéncia de sua apropriagio"; uma terceira se refere & nog ao mesmo tempo “juridica, social e cultural, e mesmo afetiva”, aludindo ainda a um earéter inato ou “natural” da territorialidade humana; por fim, um sentido figurado, metaférico, e um sentido “fraco”, como sindnimo de espaco qu: quer. Uma outra definigio é a que evoea a distingdo entre rede, Linear, ¢ teritério, “areal” (de dea), na verdade duas faces de um «Em obra mais recente, de mesma natureza, Jacques Lévy (Lévy € Lussault, 2003) identifica um mimero ainda maior: nove definigdes, incluindo sua prépria, coresponiente a “um espago de métria topograti- 2", continua, frente aos espacas de métricatopolégica ou das redes,e que seri objeto de diseussio no Capitulo 7, ao tratarmos da relapdo entre teri- ea st ‘mesmo todo, pois 0 espago geogratfico ¢ sempre areal ou zonal e near ou reticular, o territério sendo feito de “lugares, que sto inter- ligados” (p. 481). Em nossa sintese das varias nogGes de territério (Haesbaert, 1095 e 1997; Haesbaert e Limonad, 1999), agrupamos estas concep- bes em trés vertentes basicas: Cine a nee Ne ee ee ea seem ener nen cri a ame cryin nip hae og ae SF foe enya em eee Be eee meme pe noeecr mers aan s eee aie etree toon oe ee See eae Sere eve eaees Posteriormente, acrescentamos ainda uma interpretagdo natu- rallista), mais antiga e pouco veiculada hoje nas Ciéncias Socials, {que se utiliza de uma nopio de territério com base nas relagdes centre sociedade e natureza, especialmente no que se refere ao com- portamento “natural” dos homens em relag&o ao seu ambiente fisi- ‘co, Brunet et al. (1992) lembram a acepeto de territério utilizada ‘para o mundo animal em seu “equilibrio” entre 0 grupo e os recur- ‘505 do meio. Como veremos logo adiante, ela acabou muitas vezes " sendo ampliada para o ambito social (especialmente através dos de- ‘bates gerados pela jé citada obra de Robert Andrey), discutindo-se a GS pareela que cabe “ao inato e ao adquirido, ao natural e ao cultural, ‘na nogio de territoriatidade humana” (p. 481). ‘Embora reconhegamos a importancia da distingfo entre as quatro dimensbes com que usualmente o territério ¢ focalizado — politica, a cultural, a econémica ea “natural”, é importante que organizemos nosso raciocinio a partir de outro patamar, mais amplo, em que estas dimensdes se inserem dentro da fundamenta- ‘40 filoséfica de cada abordagem. Assim, optamos por adotar aqui uum conjunto de perspectivas tedricas, retomando um artigo recen- te (Haesbaert, 2002a) onde discutimos a conceituacao de territ6rio segundo: 4) bindmio materialismo-idealismo, desdobrado em fungio de duas outras perspectivas: i, a visio que denominamos “parcial” de territ6rio, ao enfatizar uma dimensao (seja a “natural”, a econdmica, a politica ou a cultural); ii. a pers- peetiva “integradora” de territorio, na resposta a problemé- ticas que, “condensadas” através do espago, envolvem con- juntamente todas aquelas esferas, b) 0 bindmio espago-tempo, em dois sentidos: 1. seu cardter ‘mais absoluto ou relacional: seja no sentido de incorporar ‘ou ndo a dinamica temporal (relativizadora), seja na distin- ‘gho entre entidade fisico-material (como “coisa” ou objeto), « social-hist6riea (como relagdo); i, sua historicidade e geo- raficidade, isto 6, se se trata de um componente ou condi- ‘glo geral de qualquer sociedade e espago geogratico ou se ‘esté historicamente circunscrito a determinado(s) perfo- do(s), grupo(s) social(is)e/ou espago(s) geogrético(s) Ficaevidente que a resposta a estes referencais rk depender, sobretudo, da posi filoséticnadotada pelo pesqusador. Assim, um marxist, dentro do materialism historico e dialtico, oderd, defender uma nogio de territério que: i) privilegia sua dimensao ‘material, gobretudo no sentido econ6micn i) aparece contextuali- zada historieament; ei) define-se a partir das relagdessociaip Se ae ‘nas quais se encontra inserido, ou eja, tem Jo claramente Seo ‘No entanto, devemos reconhecer que viveneiamos hoje um entrecruzamento de proposigées tedrieas,e so muitos, por exem- plo, os que contestam a leitura materialista como aquela que res- onde pelos fundamentas primeiros da organizagio social, Somos levados, mais uma vez, a buscar superar a dicotomia material/ idea, o teritério envolvendo, 20 mesmo tempo, a dimensic espa- cial material das relages sociais e o conjunto de representacdes sobre o espago ou o “imagingrio geogréfico” que nfo apenas move como integra ou 6 parte indissocidvel destas relagbes. 2,2, Territério nas perspectivas materialistas ‘Se encararmos territ6rio como uma realidade efetivamente existente, de caréter ontolégico, e no um simples instrumento de anilise, no sentido epistemol6gico, como recurso coneeitual formu lado e utilizado pelo pesquisador, tradicionalmente temos duas possibilidades, veiculadas por aqueles que priorizam seu eardter de realidade fisico-material ou realidade “ideal”, no sentido de mundo ddas idéias. Para muitos, pode parecer um contra-senso falar em “concepsao idealista de territ6rio”, tamanha a carga de materiali- dade que parece estar “naturalmente” incorporada, mas, como vveremos, mesmo entre gedgrafos, encontramos também aqueles que defendem o territorio definido, em primeiro lugar, pela “conscién- cia” ou pelo “valor” territorial, no sentido simbélico. Dentro do par materialismo-idealismo, portanto, podemos dizer que a vertente predominante é, de Ionge, aquela que vé o ter- ritério numa perspectiva materialista, ainda que néo obrigatoria- mente “determinada” pelas relagdes econdmieas ou de producto, ‘como numa leitura marxista mais ortodoxa que foi difundida nas Ciéncias Sociais. Isto se deve, muito provavelmente, ao fato de que territério, desde a origem, tem uma conotagio fortemente vincula- da a0 espaco fisico, a terra rn Btimologicamente, a palavra territ6rio, territorium em latim, € derivada diretamente do vocsbulo latino terra, eera utilizada pelo sistema jurfdico romano dentro do chamado jus terrendi (no Digeste, do século VI, segundo Di Méo, 1998:47), como 0 pedaco de terra apropriado, dentro dos limites de uma determinada jurisdi- (¢o politico-administrativa. Di Méo comenta que o jus terrendi se confundia com o “direito de aterrorizar” (terrfier, em francés). Recorrendo ao Dictionnaire Etimologique de la Langue La- tine, de Emout e Melle (1967[1932]:687-688), e ao Oxford Latin Dictionary (1968:1929), percebe-se a grande proximidade etimol6- gica existente entre terra-territorium e terreo-territor (aterrorizar, aquele que aterroriza). Segundo 0 Dictionnaire Etimologique, ter- rito estaria ligado & “etimologia popular que mescla ‘terra’ ¢ ‘terreo™ (p. 688), dominio da terra e terror. Territorium, no Digesta o imperador Justiniano (50, 16, 239), € definido como universitas agrorum intra fines cujusque civitatis (“toda terra compreendida jerior de limites de qualquer jurisdiga0"), 0 Dicionério de Inglés Oxford apresenta como duvidosa esta origem etimot6gica latina a partir do termo terra (que teria sido alterado popularmente para terratorium*) ou terrere (assustar, alterado para territorium via territor, como apontado acima). Roby (1881), em sua Gramatica da Lingua Latina, citado pelo Di- cionério Ozford, também coloca um ponto de interrogacio junto fo termo que teria dado origem a palavra territorium, “terrere, i.e. 1a place from which people are warned off” (p. 363) —lugar de onde as pessoas sto expulsas ou advertidas para nao entrar. ‘De qualquer forma, duvidosa ou nao, ¢ interessante salientar esta analogia, pois muito do que se propagou depois sobre territé- ro, inclusive a nivel académieo, geralmente perpassou, direta ou indiretamente, estes dois sentidos: um, predominante, dizendo res- TSegundo 9 Diciondrio Etimotdgico da Lingua Portuguesa (Machado, 1977), @ pslavra "territrio” era utilizada com a grafia terratorium nos Documentos Gallegos de los siglos XII at XVI (1422). 2.2 peito & terra e, portanto, ao territério como materialidade, outro, ‘minoritério, referido aos sentimentos que o “territério” inspira (por exemplo, de medo para quem dele ¢ excluido, de satisiagso para aqueles que dele usufruem ou que com ele se identificam). Para nos- sa surpresa, até mesmo um dos conceitos mais respeitados hoje em dia, aquele concebido pot Robert Sack (1986), de territério como rea de acesso controlado, esté claramente presente na acepgao ‘comentada por Henry Roby. Entre as posigdes materialistas, temos, num extremo, as posi- ‘g0es “naturalistas", que reduzem a territorialidade ao seu carster biologic, a ponto de a prépria territorialidade humana ser molda- 4a por um comportamento instintivo ou geneticamente determina- do, Num outro extremo, encontramos, totalmente Imersos numa perspectiva social, aqueles que, comd muitos marxistas, conside- am a base material, em especial as “relagbes de produgo”, como 0 fundamento para compreender a organizagao do territério, Num ponto intermediério, terfamos, por exemplo, a leitura do territorio ‘como fonte de recursos, Destacaremos aqui, na forma de trés itens Aistintos, as concepgdes que denominaremos de naturalista, econd- mica e politica de territério, mesmo sabendo que se tratam de divi- bes arbitrérias e que em alguns momentos, especialmente no caso da chamada concepeao politica, também dialogam diretamente ‘com o campo simbélico. 2.2.1. As concepgdes naturalistas Aqui, trata-se de discutir em que medida é possivel conceber uma definiggo naturalista de territério, eja no sentido de sua vin- cculago com o comportamento dos animais (0 territorio restringido a0 mundo animal ou entendido dentro de um comportamento atural” dos homens), seja na relapio da sociedade com a nature- 42a (0 territério humano definido a partir da relago com a dinami- ‘ca — ou mesmo 0 “poder” — natural do mundo). a Segund (Di Méo)4 concepea0 mais primitiva de territério é a de um “espajo"défendido por todo animal confrontado com a necessidade de se proteger” (1998-42). Para a Etologia, o territério é a drea geogrdfiea nos limites da qual « presenga permanente ou freqiente de um sujeito exclui a permanéncia ‘simultinea de congéneres pertencentes tanto ao mesmo sez0 (machos), & excerdo dos jovens (territ6rio familiar), quanto aos dois sexos (territério individual) (DI Méo, 1998:42). (Os estudos referentes & territorialidade animal sfo relativa- ‘mente antigos no ambito da Etologia. Trabalhos cléssicos como 0 de Howard (1948, original: 1920) langaram o debate a partir do estudo do territério de certos pssaros. J4 nessa ocasiao se discutia ‘9 amplitude da concepgao e as dificuldades de estendé-1a, de uma forma padrao, para 0 mundo animal no seu conjunto. Entretanto, ‘mesmo com esta dificuldade de generalizagdo para o proprio mundo dos animais, muitas foram as extrapolagées feitas para 0 campo humano ou social. © proprio Howard afirmava que nao poderiam existir teritérios sem algum tipo de limite (ou fronteira), {que por sua vez nfo poderia existir sem algum tipo de disputa, de forma andloga ao que ocorre no mundo dos homens. (autor que levou mais longe esta tese da extensao da territo- rlalidade animal ao comportamento humano foi Robert Ardrey, referéneia cldssica no que tange & leitura neodarwinista de terri- torialidade, afirmando que nao s6 0 homem é uma “espécie territo- rial”, como este comportamento territorial corresponde ao mesmo que é percebido entre of animais, Ardrey (1969[19671:10) define territério como sendo: (.) uma drea do espago, seja de dgua, de terra ou de ar, que um ‘animal ou grupo de animais defende como wma reserva exclu- siva. A palavra é também utilizada para descrever a compul- ‘sdo interior em seres animados de possuir e defender tal espa- $0 (0.18), Sh ‘Ao expandir a nogio a todos “os seres animados”, entre os uais se encontra o homem, Ardrey promove a argumentaclo com- pletamente equivocada de que os homens, como os animais, pos- suem uma “compulsio intima” ou um impulso para a posse e defe- sa de territdrios, e de que todo seu comportamento seria moldado de forma idéntica: Agimos da forma que agimos por razdes do nosso passado evo- lutivo, ndo por nosso presente cultural, e nosso comportamento 6 tanto uma marca de nossa espécie quanto 0 éa forma do osso ‘de nossa coxa ou a configuragito dos nervos numa drea do cére- bro humano. (..) se defendemos o titulo de nosea terra ou a soberania de nosso pais, fazemo-lo por razdes no menos inatas, ‘do menos inextirpdveis que as que fazem com que a cerca do proprietdrio aja por um motivo indistinguivel daquele do sew dono quando a cerca foi construida. A natureza territorial do homem é genética e inextirpdvel (p. 132). ‘Segundo Taylor (1988), apesar de muitos considerarem as teses de Ardrey completamente superadas, adeptos da sua principal tese —"a de que a territorialidade se aplica a comportamentos em esca- las muito diferentes, desde interagGes entre dois povos até choques centre nag6es, e a de que a territorialidade 6 um instinto bésico — ‘tem surgido, mesmo recentemente, entre escritores credenciados” (p.45). 0 trabalho do geégrafo sueco T. Malmberg, Territorialidade Humana, publicado em 1980 {mas escrito em 1976), seria um dos ‘melhores exemplos. Malmberg propds a seguinte definigao: Territorialidade comportamental humana é principalmente ‘um fenémeno de ecologia etolégica com um niicleo instintivo, ‘manifestada enquanto espagos mais ou menos exclusivos, aos quais individuos ou grupos de seres humanos esto ligados emocionalmente e que, pela possivel evitagao de outros, #80 distinguidos por meio de limites, marcas ou outros tipos de estruturagdo com manifestacdes de adesdo, movimentos ow agressividade (pp. 10-11). SBS ‘Mas ele ressalva que, a0 contrario de leituras como a do etolo- sista Konrad Lorenz, 0 aspecto cotidiano do territorio é mais o de uso de recursos do que de defesa e agressao. Algumas semelhancas, entretanto, sfo, no minimo, surpreendentes. Embora a tese de Konrad Lorenz (1963) sobre a associaglo ampla entre defesa do tervitério e instinto de agressividade esteja hoje superada®, algu- mas consideragdes deste autor merecem ser mencionadas. Por exemplo, ¢ interessante perceber que entre os animais 0 territério pode ser uma questo de controle nao s6 do espago, mas também do tempo. Comentando 0 trabalho de Leyhausen e Wolf, Lorenz, afirma que: A distribuigdo de animais de uma certa espécie sobre o bidtopo disponivel pode ser afetada ndo apenas por uma organizagio do espaco mas também por uma organizagao do tempo. Entre gatos domésticas que vivem livres em zona rural, muitos indi- ‘iduos podem fazer uso da mesma drea de cara sem nunca ‘entrar em conflito, pela sua tilizagao de acordo com um hord- rio (.) (@. 21). © Segundo Lorena, “podemos afirmar com seguranga que a fungdo mais lmportante da agrestiointra-especifica € a distribuigéo uniforme dos an mais de uma espécte particular sobre uma érea habit4vel” (p80). Segundo Thorpe (1972:251), "Lorenz comete o erro de extrapolar facil e acri~ ticamente do comportamento dos vertebrados inferiores tas como peixes © muitos pissaros para o comportamento de animais superior e até mesmo para 6 proprio homem. Lorenz considera a agressio como sendo esponta~- nese encontrando expresso, snevitavelmente,na violencia, independente- mente de estimulagdes externas”. Waal 2001), embora também defends « relagdo entre agressso animal e humana, afirma que hoje o pensamento sobre a temética é muito mais flexivl, abandonando 0 conceit lorenziano, que ve a agressio como algo inevitdvel, e buscando “determinants ambientais", “Nesta visio, a vioéncia [animal e humana, pode-se deduzit] ‘uma opgdo, expressa somente sob condigdes ecoldgicas [sociis, no caso dos homens] especiais” (p. 47) Suh ‘Mesmo entre animais “governados apenas pelo espago” (como alguns mamiferos carnivores), “a érea de caga no deve ser imagi- nada como uma propriedade determinada por confins geogréficos; 1a 6 determinada pelo fato de que em cada individuo a preparagio ppara lutar é maior no lugar mais familiar, isto é, no meio do seu territério”. Quanto mais afastado de seu “ntcleo territorial de seguranga”, mais o animal evita a luta, adisputa, porsse sentir mais inseguro (Lorenz, 1963:28). Embora as analogias com 0 contexto social sejam sempre _nuito perigosas, citamos estes exemplos pelo simples fato de que, através deles, & possivel reconhecer a nilo-exclusividade de algu- mas propriedades que muitos consideram prerrogativas da territo- rialidade humana. Mesmo que se trate de mera coincidéncia, sem nenhuma possibilidade de estabelecer borrelagoes com o compor- tamento humano, estas caracteristicas mostram que algumas de nossas constatagdes para a territorialidade humana nao so privi- légio da sociedad. A partir de varios estudos, classicos ou mais recentes, sobre a territorialidade animal, é possivel constatar que (n)o territério animal: —em termos temporais, pode ser c{clico ou temporario; —no que se refere a suas fronteiras ou limites, pode ser gra- dual a partir de um nticleo central de dominio do grupo e possuir diversas formas de demareagdo, com delimitacdes nem sempre claras ou rigidas’; 7 Segundo Kruuk (2002), algumas “fronteiras” sto na verdade dreas em dis- puta constante,outras, bem definidas eereat ou caminhos. Para prevenir- seda violéncia em seus terrtéris, muitos animais, como os earnivoros ti- lizam sistemas de sinalizago muito diversificados, através de gestos ot ‘areas: “levantara perna, arastaro trascir, esregar as bochechas, arra- shar o chi ou uma érvore..(..). Urina,fezes, glindulas ana... rogar con ‘a objetos ou no eo, ou cogar-se”(p- 38). Para Lorenz (1966), 08 limites, is do que marcados no solo, podem ser resultantes mévels de uma "balanga de pods” (p. 29). Sh —adiversidade de comportamento territorial €a norma, exis- ‘indo inclusive aqueles que os etologistas denominam “ani~ mais ndo-territoriais", no sentido de que “vagam mais ou ‘menos de forma némade, como, por exemplo, grandes ungu- lados, abelhas de chéo e muitos outros” (Lorenz, 1963:31)8 Como jé afirmamos, é dificil generalizar a respeito da territo- rialidade animal, pois ela “serve a diferentes fungdes em diferen- tes espécies e tem um grande niimero de desvantagens” (Hun- ‘ingford, 1984:189), Daa importéncia em se analisar a contextua~ lzaglo de cada comportamento territorial. Entre os “beneficios” ‘mais gerais da territorialidade animal, temos, variando muito con- forme a espécie: —a base de recursos que ela oferece para a sobrevivencia dos animais (“tervitorios alimentares”); —as facilidades que proporciona para 0 acasalamento ¢ @ reprodugfo (alguns animais s6 definem territérios durante 1 époea de reprodugfo, “territérios de acasalamento”); —a protegaio dos filhotes durante o crescimento, evitando pre- dadores. ‘Além de uma espécie de jogo custo-beneficfo que a territoriali- dade proporeiona através desse sentido funcional, haveria também, ‘para alguns autores, como Deleuze e Guattari, uma outra dimensto, fa da “expressividade”, Trata-se provavelmente da caracteristica ‘mais surpreendente da territorialidade animal, ou melhor, de certos ‘grupos animais especificos, como alguns péssaros e peixes — inusi- ‘ada e polémica, {4 que muitos a consideram a mais exclusivamen- te humana das earacteristicas da territorialidade. ‘ ierauk (2002), citando tees ce Pemberton e Jones, comenta 0 caso de car~ nvoros que ndo possuem territorialidade definida, como alguns marsupiais ‘da Tasménia, que podem se orgenizar “perfeitamente bem num sistema ‘o-territorial” (p. 26) Eles nfo patrulham nenhiuma frontelra e muitas ‘ves te um comportamento espacial totalmente caétco, Se" & Segundo Deleuze e Guattari (2002), 0 territ6rio, antes de ser funcional, “possessivo", é “um resultado da arte", expressivo, dotado de qualidades de expressio. Esta expressividade estaria presente nos proprios animais, representada, por exemplo, na ‘area ou “péster” de uma cor (no caso de alguns peixes) ou de um canto (no easo de alguns passaros)?. “Arte bruta”, para os autores, seria esta constituigdo ou liberagdo de matérias expressivas, o que faria com que a arte nao fosse “um privilégio dos seres humanos” (p. 816). Concordar com Deleuze e Guattarl poderia significar ampliar o rol de semelhancas entre as territorialidades animal ¢ humana até um nivel, provavelmente, muito problemético, onde poderfamos nos aproximar perigosamente das teses dos que defen- dem uma correspondéncia quase irtestrita entre o mundo animal e © humano, » ‘Apesar de todas essas possibilidades de encontrar analogias, surpreendentemente as discussbes dos gedgrafos sobre territério pouco ou nada abordam sobre a territorialidade animal. Isto é tanto ‘mais surpreendente quando lembramos que um dos debates centrais imputados ao ge6grafo 6 o da relacdo sociedade-natureza. Um campo bastante novo, entretanto, tem sido aberto, principalmente através do que alguns ge6grafos anglo-saxdes denominam “Geo- srafias Animais", um debate sério sobre as formas de incorporagao dos animais ao espago social!”. Os poucos gedgrafos que ousaram fazer a ponte entre territorialidade humana e territorialidade ani ‘mal cafram naquela interpretago, jé aqui comentada, segundo a qual a territorialidade humana pode ser tratada como uma simples extensio do comportamento animal, num sentido neodarwinista. ‘Mas muitas vezes provém dos préprios bidlogos o alerta para esse risco de pensar a nossa territorialidade da mesma forma que a territorialidade animal. Thorpe (1974), por exemplo, alerta para os * Genosko (2002) afirma que, para Deleuze e Guattari,“o devir-expressivo ‘de um componente tal como a eoloragto marea um terriério" (p. 49) © Uma visio sintética dos avancos nesta tematica pode ser obtida através {do artigo Animting Cultural Geography (Woleh, Emel e Wilbert, 2003), 1) sérios danos que alguns pesquisadores (como Ardrey) provocaram (econtinuam a provoear) “ao eoncluir que nossa propria territoria~ lidade € de todos os modos compardvel & dos animais” (p. 252) ior do que isto, cita-se a origem dos homens entre os predadores para justificar um instinto no s6 agressivo, mas também de neces- sidade “biol6gica” de dominar um pedago de terra Apesar de todas estas eriticas, no se trata de teses que tenham sido definitivamente sepultadas — pelo contrério, a tendéncia é de ‘que ganhem novo folego, especialmente a partir dos avangos no ‘campo blogenético, Recentes descobertas no ambito da Etologia e © erescimento de campos como 0 da Sociobiologia tém levado a considerages muito polémicas e a um retorno da “armadilha bio- logicista”, ‘Waal (2001) permite que pereebamos claramente este risco a0 comentar as duas formas de abordar a relagao entre o homem e os outros animals, aquela que desearta todo tipo de comparagiio e que “ainda ¢ lugar-comum"” entre as Ciencias Sociais, ¢ aquela que, a partir da teoria darwinista, pereebe “o comportamento humano como produto da evalugao, sujeita, portanto, ao mesmo esquema explicativo do comportamento animal” (p. 4). Jé percebemos que a distingdo € relevante e que as duas proposigdes s8o criticaveis. ‘A questo 6 que Waal vai longe demais ao optar pela segunda pers- pectiva, cuja respeitabilidade e ampliagdo, segundo ele, tém sido crescentes, principalmente em fungao dos avancos da teoria sobre © comportamento dos animais: Compreensivelmente, académicos que tém empenhado sua vida condenando a idéia de que a biologia influencia o compor- tamento humano sao relutantes em mudar de rumo, mas eles esto sendo ultrapassados pelo piiblico em geral, que parece ter aceitado que os genes estdo envolvidos em quase tudo o que ‘nds somos e fazemos (p.2)(..) até mesmo as origens da politi- ca humana, do bem-estar e da moralidade estéo sendo agora diseutidas @ luz da observacao dos primatas (Waal, 2001:4). a j _ No lugar do comportamento, ou, mais especificamente, de ins- ‘tintos como a agressio, agora éa vez da genética em sentido amplo. (O sério risco que corremos 6, mais uma vez, 0 de atribuir tudo, ou © fundamento de tudo, ao campo biol6gico, natural. A tal ponto ‘que a equacao pode mesmo se inverter: se a “natureza natural” do ‘homem nio explica comportamentos como os que dizem respeito & ‘nossa miltipla territorialidade, manipulagdes genéticas poderiam realizar 0 que esta biologia socialmente “no-manipulada” nao conseguiu fazer, ou seja, dirigir o comportamento humano, inclusi- ‘vena sua relaglo como espago. AAs afirmagdes do antropélogo José Luis Gare‘a, feitas ainda ‘em 1976, sem drivida mantém sua atualidac (J ndo sabemos, e dificilment® poderemos chegar a saber algum dia, até que ponto obsercacées extraidas do comporta- ‘mento animal podem ser aplicadas, ainda que anclogicamente, «20 homem. Faitam-nos dados objetivos sobre o significado real da conduta animal, sobretudo se nos introduzimos no mundo motivacional, e naturalmente 0 antropologo, que experimen- tou em seus estudos transculturais 0 grave perigo do etnocen- trismo, dicilente pode se convencer de que salvard o inedg- nito espago que separa a espécie animal da humana sem sub- ‘mergir, por sua vez, no antropocentrismo mais descarado.(..) ‘Nao queremos com isso deaconsiderar os estudos do comporta- ‘mento animal, mas simplesmente prevenir sobre a inadequada aplicagdo de suas conclusdes ao mundo humano (Garcia, 1976:17-18) ‘Tomando a critica pelo outro extremo, das abordagens que ‘exeluem completamente qualquer discussio sobre a relagao sociedade-natureza e mergulham no antropocentrismo apontado por Gare‘a, outra ligao que parece ficar, diante de alguns fendme- nos, como o dos conflitos pelo dominio de recursos (como 0 petréleo, as terras agricultaveis e, em alguns casos, ainda que de forma mais indireta, a prépria dgua), 6 a de que, mais do que nunca, separar eye ey natureza e socledade, comportamento biol6gico e comportamento social, 6, no minimo, temerério, Fugindo do to criticado “determinismo ambiental” ou “geo- _gréfico”, tornou-se muito comum, mesmo entre os geégrafos, negli- srenciar a relagao entre sociedade e natureza!! na definigao de espa 50 geogratico ou de territorio. Por forga de uma visdo antropocéntri~ a de mundo, menosprezamos ou simplesmente ignoramos a dina- ‘mica da natureza que, dita hoje indissocidvel da ago humana, na ‘maioria das vezes acaba perdendo totalmente sua especificidade. Exagerando, poderiamos até mesmo discutir se nao existiria também uma espécie de “desterritorializagdo natural” da socied de, na medida em que fendmenos naturais como vuleanismos e ter- remotos sao responsdveis por mudangas radicais na organizagao de muitos territ6rios. As recentes erupcdes de um vuledo no Congo, bbrigando dezenas de milhares de pessoas a abandonar a cidade de Goma, e na ilha Stromboli, na Itélia, estdo entre os vérios exem- pos deste processo. Mesmo sabendo que os efeitos desta “desterri- torializagdo” sao muito varidveis de acordo com as condigdes sociais e teenol6gicas das sociedades, nao ha diivida de que temos af uma outra “forga”, néo-humana, interferindo na construgao de nossos territérios. ‘Mesmo discordando do termo “desterritorializagao”, em sent- do estrito, para caracterizar esses processos — pois, como acaba~ ‘mos de ver, seria absurdo considerar a existéncia de territérios ‘naturais”, desvinculados de relagdes socials — nao podemos igno- rar esse tipo de intervencao, pelo simples fato de que o homem, por mais que tenha desenvolvido seu aparato técnico de domfnio das 1 importante lembrar que muitos autores consderam “natureza” em um sentido muito amplo, tormando-se assim, praticamente, sindnimo de ““materiaidade” ou de “experiéncia sensorial”, Whitehead (199911820), por exemplo, em seu Livro © Conceito de Natureza,detine-a como “aquilo que observamos pela percepedo obtida através dos sentidos” (p. 7) ‘Optamos aqui por uma interpretagio mals estrta, com otnico objetivo de cenfatizara existineia de uma dinamica da natureza de algum modo distin- ta (mas nfo distociada) da dindmica da sociedad Se» & ccondigdes naturais, nao conseguiu exercer efetivo controle sobre ‘uma série de fenémenos ligados diretamente dinamica da nature- za ou mesmo, com sua ago, provocou reacdes completamente imprevistveis, ‘Além disto, se levarmos em conta a discutivel tese de autores ‘que ampliam de tal forma a noco de poder que este acaba ultra- pasando os limites da sociedade, ¢ possivel extrapolar dizendo que o territério, mesmo na leitura mais difundida nas Ciéncias Sociais, que privilegia sua vinculagdo a relagbes de poder, também incorpora uma dimensio “natural” em sua constituigao!® — ou, pelo menos, a capacidade de as relagdes sociais de poder se im- porem sobre a dinamica da natureza Numa outra perspectiva, uma tspécie de territ6rio “natural” (nada “natural”) as avessas 6 aquele que se define a partir das cha- ‘madas reservas naturals ou ecologicas. Obrigado a reinventar a "2 Reconhecer a importancia de uma dimensto “natural” na composiodo de teritérios ndo sgnifia, portanto, oncordar com a posigdo de autores que ‘chogam a estender a nogto de poder para a esfera da natureza, Para Blackbur, por exemplo, “(.) 0 ‘poder’ pode ser atribuido a propriedades ‘da natureza tanto quanto a propriedades da espécie humana, tis como 0 poder maltiplo do meio ambiente sobre as comunidades humanas, De fto, 1 emergéncia de nossa espécie e da prépria evoluséo da vida atestou 0 poder da selegio natural. ‘Poder’, num sentido geral, pode ser provsoria mente definido como a hebilidade de crar, destruir, emsumir, preservar ‘0 reparar. Os poderes produtivos acessiveis 8 sociedade, que para Marx. ‘Mo sindnimos de forges produtivas, desembocam sobre os da natureza, como 8 fertlidade natural do solo ea procratividade do mundo animal. Os podleres destruivos a natureza ineluem a entropia, terremotos erelampa- 0s; seus poderes preservadores e restauradores abrangem sistemas de {munidade biologica,coberturas loretaise lava solidificada. E numa ten- ‘so criativa com esses poderes fundamentais de transformapio e preserva do que a historia humana tem se desenrolado". O autor define ainda 0 lidades humanas de) criar, destruir, consumir ou preservar coisas, tals ‘como independéncia eautoridade na esera politica, riqueza na econdmica, fou poder na esfera militar, através da intervengio nesses poderes da ‘natureza” (Bladkburn, 1992[1909}267) Go & natureza através de concepedes como ecologia, biosfera e meio ambiente, o homem se viu na contingéncia de produzir concreta- ‘mente uma separagdo que nunca teria existido entre espacos “humanos" e “naturais”, como numa leitura da Geografia que separava paisagens naturals e paisagens culturais ou humanizadas (Sauer, 1926), ‘Assim, @ reclustio a que algumas dreas do planeta foram rele- ‘gadas, em fungéo de sua condigao de éreas “protegidas”, provoca a reprodugio de territérios que sfio uma espéeie de clausura a0 con- trdrio, j4 que muitas vezes tém praticamente vedadas a interven ‘cao e a mobilidade humana em seu interior. f claro que, af, as ‘questoes de ordem cultural, politica e econdmica envolvidas sio {Wo importantes quanto as questbes ditas ecol6gicas. De qualquer forma, trata-se de mais um exemplo, muito rico, de um territ6rio {interpretado numa perspectiva materialista e que, embora entre- ceruze fortemente éreas como a Antropologia, a Sociologia ea Ciencia Politica, também ¢ bastante focalizado a partir de perspec- tivas como as da Ecologia. Dentro da dimensio material do territ6rio, & necessério, por- tanto, de alguma forma, considerar essa dimensto “natural”, que fem alguns easos ainda se revela um de seus componentes funda- mentais. Mas nunca, ¢ claro, de forma dissociada. No fundo, a raziio est4 com autores como Bruno Latour (1991), para quem ‘movemo-nos muito mais no eampo dos “hibridos” sociedade- natureza. A questo central, portanto, nao é questionar a existén- cia de visdes naturalistas (como as nopdes de territ6rio aqui discu- tidas), mas como desenvolver instrumentos conceituais para repensé-las dentro desse complexo hibridismo em que cada vez, ‘mais estdo se transformando. 2.2.2. A concepgio de base econdmica ‘A opeto pela dimenstio material, analisada aqui em sua pers- pectiva mais extrema, a que envolve a concepedo naturalista de ter- ee ritorio, dominante na Etologia e em algumas perspectivas das Ciencias Sociais, amplia-se, entretanto, por varias outras esferas, ‘que vao da Ciéncia Politica & prépria Antropologia. E como se mui- to sntropélogos, mesmo priorizando o mundo simbélico, a0 se reportarem & dimensao material apelassem para uma categoria como a de territ6rio, vendo-o fundamentalmente nesta perspectiv ‘Muitas vezes, sto autores influenciados pelo marxismo, como é 0 caso de Maurice Godelier, que em seu livro O Ideal e 0 Material; Pensamento, Economias, Sociedades, define territério a partir de processos de controle e usufruto dos recursos: Designa-se por territério uma porgdo da natureza e, portanto, do espaco sobre o qual uma determinada sociedade reivindica ‘e garante a todos ow a parte de séus membros direitos estaveis de acesso, de controle e de uso com respeito @ totalidade ow arte dos recursos que af se encontram e que ela deseja e é capaz de explorar (Godelier, 1984:112). Godelier mantém na sua definigao uma forte referéncia & nnatureza, fato muito presente no trabalho de antropélogos e histo- riadores que, freqientemente, quando enfocam 0 territério e os processos de territorializagdo, reportam-se A andlise de sociedades tradicionais, como a sociedade indigena, que economicamente

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