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‘+ A Historia 6 0 Conceito na Literatura Medieval — Katharina Holeermayr Rosenteld ‘+ Possagons da Antiguidade ao Feuclalismo — Perry Anderson + Sociedade Feud! — Guorriras, saverdotes © abshodores — Francisco C. T. de Siva Coleco Tudo @ Histéria ‘= As Cruzadas — Hiério Franco 0 Foudalismo — Hiléio Franco Jr 0 Impbrio Bizantino — Hilério Franco Jr. ‘+ A Inquisi¢o — Anita Novinsky + 0 Mundo Carolingio — Sonia Regina de Mendonca HILARIO FRANCO JUNIOR A Idade Média: nascimento do Ocidente 1 edigdo 1986 24 edigao revista e ampliada — Introducaio O periodo tradicionalmente conhecido por Idade Média abrange cerca de um milénio, durante o qual um conjunto de caracteres marcantes e especificos criou uma personalidade hist6rica prépria, que nos permite falar dela diferencialmente em relacdo a outras épocas. Que tenha sido adequado ou nao ‘© nome que the foi dado — Idade Média — & questo que examinaremos no préximo capitulo. De momento, lembre- ‘mos que se hoje se teconhece o direito de cidadania historica a Idade Média, ainda nao conhecemos sua certid&o de nasci- mento ¢ seu atestado de Sbito, Na verdade, nao se trata de um ponto essencial, mas por muito tempo a historiografia Procurou estabelecer as balizas cronolégicas medievais. Se- guindo uma perspectiva muito particularista (as vezes politi- ca, as vezes religiosa), ja se falou, dentre outras datas, em 476 (deposicao do ultimo imperador romano), 392 (oficializagao do cristianismo) ou 330 (reconhecimento da liberdade de culto aos cristios) como o ponto de partida da Idade Médi Para seu término j& se pensou em 1453 (queda de Constant nopla e fim da Guerra dos Cem Anos), 1492 (descoberta da América) e 1517 (inicio da Reforma Protestante). Naturalmente, sendo a Historia um processo, deve-se re- nnunciar a busca de um fato que teria inaugurado ou encerra- do um determinado periodo. Porém ainda assim os proble- mas permanecem, pois nao ha unanimidade sequer quanto ao sécuio em que se deu a passagem da Antiguidade para a Idade 2 AIDADE MEDIA: NASCIMENTO DOOCIDENTE Média. O mesmo ocorre no que diz respeito a transicao dela Para a Modernidade. Mais ainda, apesar da exisiéncia de ‘estruturas basicas a0 longo daquele milénio, nao se pode pen- sar, € claro, num imobilismo. Passou-se entéo a subdividir a historia medieval em fases que apresentaram certa unidade interna. Mas, também aqui, nao chega a haver consenso entre 05 historiadores, Desta forma, a periodizagao que propomos no é a tinica aceitével, ainda que nos pareca mais adequada maneira como montamos este livro, isto é, buscando a com- reensdo das estruturas (¢ ndo dos eventos) medievais. Seno, vejamos. O periodo que se estendeu de princi- do século IV a meados do século VILL, sem diivida, apre- senta uma feiga0 propria, ndo mais “‘antiga”, porém ainda ndo claramente “medieval”. Em funcao disso, talvez seja melhor chamé-la de Primeira Idade Média do que usar 0 velho rétulo de Antiguidade Tardia. De qualquer forma, ¢ é isso que importa, tal periodo caracterizou-se basicamente pelo inicio da convivéncia, ¢ da lenta interpenetrasao, dos {8s elementos hist6ricos que comporiam todo o periodo me- dieval. Podemos, portanto, chamé-los de Fundamentos da Idade Média: Roma, germanos, Igreja. O Império Romano, apés a profunda crise do século III, tentou a sobrevivéncia através do estabelecimento de novas estruturas, que nio im- pediram (e algumas até mesmo aceleraram) sua decadéncia, ‘mas que permaneceriam vigentes por séculos. Foi o caso, por exemplo, do carater sagrado da monarquia, da aceitagdo de germanos no exército imperial, da petrificagao da hierarquia Social, do crescente fiscalismo sobre o campo, do desenvolvi- mento de uma nova espiritualidade. Nesse mundo em transformagdo, a penetragao germani- ca intensificou as tendéncias estruturais anteriores, mas sem aalterd-las, Foi o caso da pluridade politica substituindo a uni- dade romana, da concepcao de obrigagdes reciprocas entre chefe e guerreiros, do deslocamento para o norte do eixo de gravidade do Ocidente, que perdia seu carater mediterrani- £0. A Igreja, por sua vez, foi o elemento que possibilitou a ‘articulagao entre romanos e germanos, o elemento que ao fazer a sintese daquelas duas sociedades forjou a unidade espiritual, essencial paraa civilizagao medieval. Isto foi possi vel pelo proprio cardter da Igreja nos seus primeiros tempos, INTRODUGAO 8 De um lado ela negava aspectos importantes da civilizagao romana, como o carter divino do imperador, a hierarquia social, 0 militarismo, De outro, ela era um prolongamento da romanidade, com seu cardter universalista, com 0 Cristianis- mo transformado em religifo do Estado, com o latim que através da evangelizacao foi levado a regides antes inatin- ‘Completada essa sintese — cuja melhor expressio seria © Império Carolingio — podemos falar numa outra subfase, a Alta Idade Média (meados do século VIII-século X). Foi nto que se atingiu, ilusoriamente, uma nova unidade politi- a com Carlos Magno, mas sem se interromper as fortes ¢ profundas tendéncias centrifugas que levariam posteriormen- tea fragmentacao feudal. Contudo, para se alcangar essa efé- mera unidade, a dinastia carolingia precisou ser legitimada pela Igreja, que além do seu poder sagrado se via como tinica € verdadeira herdeira do Império Romano. Em contraparti da, 0s soberanos carolingios entregaram um vasto bloco terri- torial italiano a Igreja, que ento se corporificava e ganhava condigdes de se tornar uma poténcia politica atuante. Ade- mais, dando forga de lei ao antigo costume do pagamento do dizimo a Igreja, 0s carolingios vincularam-na definitivamente economia agraria da época. Acestabilizagao gracas a esse temporario encontro de inte- esses entre a Igreja e 0 Império possibilitou uma certa recupe- ago econdmica ¢ o inicio de uma retomada demografica. Co- megou entio a expansto territorial cristd sobre regides pags — que se estenderia pelos séculos seguintes — reformulando © mapa civilizacional da Europa. Por fim, como resultado disso tudo, deu-se a transformacao do latim nos idiomas neo- latinos, surgindo em fins do século X os primeiros textos lite- rérios em lingua vulgar. Mas a fase terminaria em crise, devi- do as contradigdes do Estado carolingio e a uma nova onda de invasoes (vikings, muculmanos, magiares). “* Dessa forma, a Idade Média Central (séculos XI-XIII) foi, grosso modo, a época do Feudalismo, cuja montagem tinha representado uma resposta a crise geral daquele mo- mento. De fato, utilizando material hist6rico que vinha desde 9 século IV, o Feudalismo, nascido no século X, conheceu seu periodo “‘classico” entre 0 século XI e o XIII. Assim ‘A IDADE MEDIA: NASCIMENTO DO OCIDENTE reorganizada, a sociedade crista ocidental conheceu uma for- te expanso populacional ¢ uma consegiiente expansdo terri- torial, da qual as Cruzadas s2o a face mais conhecida. Incen- tivada pela maior procura de mercadoria ¢ pela maior dispo- nibilidade de mao-de-obra, a economia se revigorou ¢ se di- versificou. A producao cultural acompanhou essa tendéncia, Aquela foi, portanto, em todos os sentidos, a fase mais rica da Idade Média, dai ter merecido em todos os capitulos uma maior atengao. Mas dessa maneira a propria esséncia do Feudalismo — sociedade fortemente estratificada, fechada, agréria, frag- mentada politicamente — foi atingida. De dentro dela, e em voncorréncia com ela, desenvolvia-se um segmento urbano, ‘mercantil, que buscava outros valores, que expressava e a0 ‘mesmo tempo acelerava as transformagOes decorrentes das proprias estruturas feudais. Assim, desta sociedade feudo- burguesa, na qual o segundo elemento lenta mas firmemente ia sobrepujando o primeiro, emergiam as cidades, as univer- sidades, a literatura laica, a filosofia racionalista, a ciéncia empirica, as monarquias nacionais. Os conservadores, como Dante Alighieri, por exemplo, lamentavam tais transforma- 9es, pois inegavelmente caminhava-se para novos tempos. ‘A Baixa Idade Média (século XIV-meados do século XVI) com suas crises ¢ seus rearranjos representou exatamen- {eo parto daqueles novos tempos, a Modernidade. A crise do séoulo XIV, organica, global, foi uma decorréncia da vitali- dade e da continua expansdo (demografica, econdmica, terri- torial) dos séculos XI-XIII, 0 que levara o sistema 20s limites possiveis de seu funcionamento, Logo, a recuperagao a partir de meados do século XV dava-se em novos moldes, estabele- cia novas estruturas, porém assentadas sobre elementos me- dievais: Descobrimentos (baseados nas viagens dos norman- dos ¢ dos italianos), Renascimento (no Renascimento do sé- culo XID), Protestantismo (nas heresias), Absolutismo (na eentralizagao monarquic Em suma, o ritmo historico da Idade Média foi se acele- tando, ¢ com ele nossos conhecimentos sobre o periodo. Sua inflincia ¢ adolescéncia cobriram boa parte de sua vida (sécu- os 1V-X), no entanto as fontes que temos sobre elas sao rela- tivamente poucas. Sua maturidade (séculos XI-XIL]) e senili- IxTRODUGAO. 3 dade (século XIV-meados do século XVI) nos deixaram, pelo contrario, uma abundante documentagao. Como se vé, 0 ponto de inflexao foi o século XI: antes havia uma contragao geral (demografica, econdmica, cultural, etc.), com ele come- (gou uma fase de expansao, ¢ desta sairia a crise final, mas sem significar retrocesso aos velhos tempos, ¢ sim redireciona- mento. Portanto, ao desenvolvermos nos diversos capitulos cada uma das estruturas basicas da Idade Média, seguiremos cronologicamente a diviso que acabamos de examinar. O estudo desigual de cada uma das fases acompanha, grosso ‘modo, inversamente seu ritmo hist6rico e, diretamente, a dis- ponibilidade de fontes ¢ trabalhos sobre elas. O (pre)conceito de Idade Média Se utilizdssemos numa conversa com homens medievais, a expresso Idade Média, eles nao teriam idéia do que isso poderia significar. Eles, como todos os homens de todos os periodos hist6ricos, se viam vivendo na época contempora- wea. De fato, falarmos em Idade Antiga ou Média representa ‘uma rotulacdo @ posteriori, uma satisfagao da necessidade de se dar nome aos momentos passados. No caso do que chama- mos de Idade Média, foi o século XVI que elaborou tal con- ceito. Ou melhor, tal preconceito, pois o termo expressava um desprezo indisfarcado pelos séculos localizados entre a Antiguidade Classica eo proprio século XVI. Este se via como ‘© Renascimento da civilizacao greco-latina, ¢ portanto tudo que estivera entre esses picos de criatividade artistico-literdria (de seu proprio ponto de vista, € claro) n4o passava de um hiato, de um intervalo. Logo, de um tempo intermediério, de uma idade média. Admirador dos clssicos, 0 italiano Petrarca (1304-1374) jd se referira ao periodo anterior como de fenebrae: nascia 0 ‘mito historiografico da Idade das Trevas. Em 1469 o bispo Giovanni Andrea, bibliotecdrio papal, falava em media tem- ‘estas, literalmente “'tempo médio'’, mas também com o sen- tido figurado de “flagelo”, “ruina””. A idéia se enraizou quando em meados do século XVI Vasari, numa obra biogré- fica de grandes artistas do seu tempo, popularizou o termo Renascimento. Assim, por contraste, difundiram-se em rela- 1 A IDADE MEDIA: NASCIMENTO DO OCIDENTE ‘so A fase anterior as expressdes media aetas, media antiqui- fas.e media tempora. De qualquer forma, o critério era inicialmente filolé- gico. Opunha-se 0 século XVI, que buscava na sua produgao literéria utilizar © latim nos ‘moldes classicos, aos séculos anteriores, caracterizados por um latim ‘“barbaro”’. A arte medieval, por fugir aos padrOes classicos, também era vista como grosseira, dai o grande pintor Rafael (1483-1520) chamé-la de “‘g6tica”, termo entdo sindnimo de “barbara”, Na mesma linha, Rabelais (1483-1553) falava da Idade Média como a “‘espessa noite gética’”. No século XVII, foi ainda com aquele sentido filolégico que passou a prevalecer a ex- pressao medium aevum, usada pelo francés Du Cange em 1678. Mas 0 sucesso do termo veio como manual escolar do alemao Christopher Keller (conhecido também pela latinizacao de seu nome, Cellarius) publicado em 1688 e intitulado Historia Medii Aevi a temporibus Constantini Magni ad Constantino- polim a Turcis captam deducta. Esse livro completava outros dois do autor, um dedicado aos tempos “‘antigos” e outro 05 *modernos”” Portanto, o sentido basico mantinha-se renascentista: a “‘idade média”’ teria sido uma interrupgao no progresso hu- mano, inaugurado pelos gregos e romanos ¢ retomado pelos homens do século XVI. Ou seja, para o século XVII 0s sécu- los ““medievais"” também eram vistos como de barbarie, igno- rAncia ¢ supersti¢ao, Os protestantes criticavam-nos ‘como época de supremacia da Igreja Catdlica, Os homens ligados 4s poderosas monarquias absolutistas lamentavam aquele pe- riodo de reis fracos, de fragmentac&o politica. Os burgueses capitalistas desprezavam tais stculos de limitada atividade co- ‘mercial. Os intelectuais racionalistas deploravam aquela cul- (ura muito ligada a valores espirituais. © século XVIII, antiaristocrético ¢ anticlerical, acen- {wou o menosprezo @ Idade Média, vista como momento ureo da nobreza ¢ do clero. A filosofia da época, chamada de iluminista por se guiar pela luz da Razao, censurava sobre- tudo a forte religiosidade medieval, o pouco apego da Idade Média a um esirito racionalismo eo peso politico de que a greja entao desfrutara. Revelando tais criticas, para Diderot “'sem religito, seriamos um pouco mais felizes"”. Para Con- (0 (PRE) CONCEITO DE IDADE MEDIA » dorcet, a humanidade sempre esteve numa marcha em dire- ‘¢lo 20 progresso, com excegao do periodo no qual predomi- nou o Cristianismo, isto é, a Idade Média. Para Voltaire, os Papas eram simbolos do fanatismo e do atraso daquela fase historica, por isso afirmava, irdnico, que ‘*é uma prova da di- vindade de seus caracteres terem subsistido a tantos crimes”. A posigo daquele pensador sobre a Idade Média poderia ser sintetizada pelo tratamento que dispensava a Igreja: “a Infame”’. Contudo, com o Romantismo da primeira metade do sé- ‘culo XIX 0 preconceito em relagao a Idiade Média se inverteu. ponto de partida fora a questao da identidade nacional, ‘que ganhara forte significado com a Revolucdo Francesa. AS conquistas de Napoledo alimentaram o fendmeno, com a pre- tenso do imperador francés de reunir a Europa sob uma tini- a direcdo, despertando em cada regiio dominada ou amea- sada uma valorizagao de suas especificidades, de sua persona- lidade nacional, enfim, de sua histéria. Ao mesmo tempo, tudo isso punha em xeque a validade do racionalismo, tao exaltado pela centiria anterior, € que levara a Europa aquele contexto de conturbagdes, revolugdes © guerras. Ai estavam as raizes do Romantismo e sua nostalgia pela Idade Média. Michelet em 1845 a exaltava como “aquilo que amamos, aquilo que nos amamentou quando pequenos, aquilo que foi o nosso pai e nossa mae, aquilo que nos canta- va to docemente no bergo"’. Assim vista como momento de origem das nacionalidades, ela satisfazia os novos senti- mentos politicos do século XIX. Vista como época de fé, autoridade e tradiggo, a Idade Média oferecia um remédio & inseguranga ¢ aos problemas decorrentes de um culto exage- rado ao cientificismo. Vista como fase hist6rica das liberda- des, das imunidades e dos privilégios, reforcava o liberalismo burgués vitorioso no século XIX. Desta maneira, 0 equilibrio a harmonia na literatura e nas artes, que o Renascimento ¢ © Classicismo do século XVII tinham buscado, cedia lugar & paixdo, & exuberancia ¢ a vitalidade encontraveis na Idade Média. A verdade procurada através do raciocinio, que guia- rao Iluminismo do século XVIII, cedia lugar a valorizagao dos sentidos, do instinto, dos ‘sonhos, das recordacdes. Abundam entdo obras de ambientaco ou tematica medie- 20 ‘AIDADE MEDIA: NASCIMENTO DO OCIDENTE vais, como Fausto (1808 ¢ 1832) de Goethe, O Corcunda de Notre Dame (1831) de Victor Hugo, os varios romances his: toricos de Walter Scott (171-1832), dentre eles fvanhoé e Contos dos Cruzados. Mas a idade Média dos romanticos era tao preconcei- tuosa quanto a dos renascentistas e dos iluministas, Para es {es, teria sido uma época negra, a ser relegada da memoria historica. Para aqueles, um periodo espléndido, um dos gran- des momentos da trajetoria humana, algo a ser imitado, pro- longado. Mesmo um historiador, como Carlyle, escrevia em 1841 que a civilizacao feudal fora ‘‘a coisa mais elevada’” que a Europa tinha produzido. Dai o século do Romantismo ter Festaurado intimeros monumentos medievais, construido pa- lacios e igrejas neog6ticas, mas inventando detalhes, modifi- cando concep¢des, criando a sua Idade Média. Na erudicao.0 século XIX foi mais feliz na sua paixao pela época medieval, fundando sociedades historicas, editando textos, organizan. do grandes colepdes documentais como a Monumenta alema (6) ¢ 2 Patrologia francesa (7). De qualquer forma, a Idade Média permanecia incompreendida. Aos preconceitos ante- riores, juntava-se o da idealizacao, jé antecipado por Lessing (1729-1781): ‘‘noite da Idade Média, que seja! Mas era uma noite resplandecente de estrelas”. Finalmente, com o século XX se passou a tentar ver a Idade Média com os olhos dela propria, nao com os daque- les que viveram ou vivem noutro momento. A fungdo do his- toriador ¢ compreender, nao julgar 0 passado. Logo, 0 tinico referencial possivel para se ver a Idade Média, é a propria Idade Média. A partir dessa postura, e elaborando, para con- cretizé-la, imimeras novas metodologias e técnicas, a histo- riografia medievalistica deu um enorme salto qualitativo. Sem o risco de exagerar, pode-se dizer que o medievalismo se tornou uma espécie de carro-chefe da historiografia contem- Porinea, abrindo caminhos ao propor temas, experimentar iétodos, rever conceitos, dialogar intimamente com outras ciéncias humanas. Curiosamente, isso nfo apenas deu um grande prestigio a produeo medievalistica nos meios cultos, como também popularizou a Idade Média diante de um pliblico mais vasto, porém de forma bem mais consciente do ue © entusiasmo revelado pelo século XIX. (© (PRE) CONCEITO DE IDADE MEDIA a Mas, enfim, que conceito tinham da ‘“Idade Média"’ os proprios medievos? Questio dificil, pois enquanto o clero Oferecia varias respostas, a partir de interpretagdes teoldgi- as, 0s laicos de forma geral (sobretudo os camponeses) man- tinham-se ainda presos a concepgdes antigas, pré-cristas. Simplificadamente, essa bipolarizacdo quanto & Historia Partia de duas visdes distintas quanto ao tempo. A postura agi, fortemente enraizada na psicologia coletiva, accitava a existéncia de um tempo ciclico, daquilo que se chamou de “‘mito da eterno retorno"’. Ou seja, as primeiras sociedades 86 registravam 0 tempo biologicamente, sem transforma-lo ‘em Hist6ria, portanto sem consciéncia de sua irreversibilida- de, Isso porque, para elas, viver no real era viver segundo ‘modelos extra-humanos, arquetipicos. Logo, tanto o tempo sagrado (dos rituais) quanto o profano (do quotidiano) so existiam por reproduzirem atos ocorridos na origem dos tempos. Dai a importancia da festa de Ano Novo, que era uma retomada do tempo no seu comero, isto é, uma repeti- ‘$40 da cosmogonia, com ritos de expulstio de demOnios e de doencas. Tal concepe4o sofreu sua primeira rejeiglo com 0 Judafsmo, que via em Iavé ndo uma divindade criadora de estos arquetipicos, mas uma personalidade que intervém na Historia. O Cristianismo retomou e desenvoiveu essa idéia, tornando a Histéria linear: hé um ponto de partida (Génese), um de inflexdo (Encarnacao) e um de chegada (Juizo Final). Portanto, linear mas no ao infinito, pois ha um tempo escatoldgico* — que so Deus conhece — limitando 0 desen- rolar da passagem humana pela Terra, isto €, a Historia. Contudo, se o Cristianismo reinterpretava a Historia, nao podia deixar de sentir seu peso, por isso sua liturgia baseia-se nna repeti¢do periddica e real da Natividade, Paixio, Morte ¢ Ressurreicao de Jesus, quer dizer, o fiel ao participar da Teproducéo do evento divino volta a0 tempo em que ele se deu. Ou seja, a cristianizaao das camadas populares no aboliu a teoria ciclica, pelo contrario, permitiu por influéncia dela 0 reforgo de certas categorias do pensamento mitico. Colocada na confluéncia dessas trés concepedes (circu- lar, linear, escatologica), a sociedade medieval oscilava quan to A importancia da quantificacao do tempo. Como na Anti 2 AIDADE MEDIA: NASCIMENTO Do OCIDENTE guidade, o dia estava dividido em 12 horas e a noite também, independentemente da época do ano. As formas de medi-las €ram precdrias até 0 aparecimento do relogio mecanico no stculo XIV. Mas cram precarias por desinteresse em subme- {er as horas a um sistema rigido: como toda sociedade agri tia, @ medieval guiava-se pelo ritmo mais visivel da natureza, © Sol, @ Lua, as estacoes. Apenas 0 clero, por necessidades lituirgicas, estabeleceu um controle maior sobre as horas, con- tando-as grosseiramente de trés em tr@s a partir da meia-noite (matinas, laudes, primas, terca, sexta, nona, vésperas, com- Pletas). Este sistema, contudo, era impreciso e no se adequa- va as atividades laicas, A contagem dos dias agrupava-os em semanas de sete, adotadas no Ocidente por volta do século IV. No Sul os dias Teceberam nomes de deuses romanos ¢ no Norte de deuses germanicos. Por exemplo, o dia da Lua (/unae dies) deu /une- diem italiano, luadi em francés ¢ /unes em espanhol, e mon- day (moon day = dia da va) em inglés ¢ montag em alemio. Curiosamente, em portugués nao se seguiu a tradic&o paga, baseando-se no habito cristao dos primeiros tempos de come- morar a semana inteira de Pascoa. Como todos aqueles dias ram feriados (Jeriae), precisou-se ordend-los (segunda, terga, etc.), mantendo-se os nomes apenas do domingo (dia de dominus=dia do senhor) ¢ do sibado (0 “repouso”” do Antigo Testamento). © agrupamento em meses, por sua vez de origem muito antiga, passou para a Europa medieval, lati- fa € germAnica, com seus nomes romanos. ., Mais problematico era o cOmputo dos anos. Desde 0 Feito faraGnico atribuia-se 365 dias a cada ano, mas como isso do correspondia exatamente ao curso solar, com o tempo surgiram diferencas significativas. Em funcdo disso, na Idade Média variou consideravelmeate a forma de datagao. Mesmo © conceito de Era Crista, proposto pelo monge Dionisio, 0 Pequeno, no stculo VI e popularizado por Beda, 0 Veneré- vel, no século VIII, nao teve aceitacdo geral. Carlos Magno adotou-o no séoulo IX para a futura Franga, a Alemanha apenas no século X, a Espanha no século XII, outros paises mais tarde ainda. Agravando a situagao, o dia inicial do ano civil variava de regio para regito. Na Franca do Norte e Paises-Baixos o ano comecava na Pascoa, que sendo festa (O(PRE) CONCEITO DE IDADE MEDIA a \Svel fazia alguns anos terem 13 meses ¢ outros apenas 11 fa Franca do Sul e parte da Italia, na festa da Anunciacdo 25 de marco). Na Inglaterra, Alemanha, Espanha e Portugal © ano civil coincidia com 0 litirgico, comegando no Natal. As mudangas de sistema nao eram raras ¢ acentuavam a confu- slo, como na Inglaterra do século XIV, que passou a adotar 0.25 de margo. Apenas com o calendario gregoriano de 1582 uniformizou-se o inicio do ano para 1° de janeiro Diante de toda essa imprecisao ¢ instabilidade no cOm- puto do tempo, os medievos nao tinham um conceito muito claro sobre sua prépria época. De maneira geral prevalecia o sentimento de viyerem em “tempos modernos”’, devido consciéncia que tinham do passado, dos “tempos antigos”, pré-cristios. Estava sempre presente também a idéia de que se caminhava para 0 Fim dos Tempos, nao muito distante. Sabe- mos hoje que os pretendidos ‘‘terrores do ano mil’” foram uma criagao historiografica, pois naquele momento nao hou- ve nenhum sentimento generalizado de que 0 mundo fosse se acabar. Na verdade, a psicologia medieval esteve constante- ‘mente (ainda que com flutuagdes de intensidade) preocupada com a proximidade do Apocalipse. Catastrofes naturais ou ppoliticas cram freqiientemente interpretadas como indicios da chegada do Anticristo. Assim, havia uma difundida visio pessimista do presente, porém carregada de esperanca com 0 ‘eminente triunfo do Reino de Deus. Nesse sentido, tal visio trazia implicita em si a concepgao de um tempus medium que precedia a Nova Era. De qualquer forma, varias fases humanas se sucederiam até a Parusia," a partir da qual néo haveré mais repeticao, pois 0 mundo se salvaré e a Histéria enquanto tal deixaré de existir. Por isso, era bastante comum, ao menos entre 0 lero, se pensar naquelas fases histéricas como sendo seis, de acordo com os dias da Criagdio. Como no sétimo dia Deus descansou, na sétima fase os homens descansarfo no seio de Deus. Assim pensavam muitos, de Santo Agostinho (354-430) ¢ Isidoro de Sevilha (560-636) até 0 cronista portugués Ferniio Lopes no século XV. Também teve sucesso uma concepgao trinitaria da Historia, surgida no século IX com Scoto Erige- ha € que teve seu maior representante no monge cisterciense Joaquim da Fiore (1132-1202). Para este, a Era do Pai teria se u ‘AIDADE MEDIA: NASCIMENTO DO OCIDENTE. saracterizado pelo temor servil a lei divina, a Era do Filho pela sabedoria, f¢ ¢ obediéncia humilde, a do Espirito Santo. (que comesaria em 1260) pela plenitude do conhecimento, do amor universal eda liberdade espiritual. Em suma, num certo Diivowari basa: 3, 69,70. %6 bliografia complementar: Guente, B.,Hisiire ¢ Culture Historique dans Ica ‘dont Medieval, Paris, Aubie, 1980; Mitre, E., Historiogafiay Mentalidedes eae. ‘icasen ta Europa Medieval, Madr, Universiiad ‘Comohutcase, 1983, As estruturas demograficas © surgimento da Demografia Historica, hé menos de quatro décadas, enriqueceu consideravelmente 0 arsenal co historiador na sua tarefa de compreensio do passado, ¢ os medievalistas nio poderiam, é claro, ficar indiferentes a ela. Apareceram assim varios trabalhos metodolégicos sobre as, ‘especificidades da demografia medieval, e iniimeras mono- grafias sobre as condiedes populacionais de mosteiros, senho- Tos, cidades ¢ mesmo regides mais amplas. A partir de tais estudos esbogaram-se sinteses parciais, e hoje jé vamos com certa clareza as estruturas demograficas medievais. Sem divida, a Idade Média estava naquilo que os espe- cialistas chamam de Antigo Regime Demogrifico, tipico das sociedades agrarias, pré-industriais: alta taxa de natalidade e alta taxa de mortalidade. Em funcio disso, a conjugagao de certos fatores (estiagens, enchentes, epidemias, etc.) por Poucos anos seguidos alterava 0 quadro demogrifico 20 élevar ainda mais a mortalidade. Ou, pelo contrario, a ausen- cia de eventos daquelo tipo rapidamente produzia um saldo populacional positive. Como Lopez acertadamente chamou ‘tengo (76: 120), toda espécie, inclusive a humana, tem ten- déncia natural a se multiplicar, desde que nao haja obstaculos externos a isso. Ora, a historia demografica medieval é exata- ‘mente a historia da presenga € da remogao desses obstaculos. Nesse aspecto, a Primeira Idade Média foi um prolonga- mento da situag’o do Império Romano, cuja populacao

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