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© CENTRO DE DOCUMENTAGAO E PESQUISA DA FUNARTE Centro de Documentacio ¢ Pesquisa da FUNARTE = GEDOP pretende desenvolver trabalhos de pesquisas ¢ documentacdo sobre a producio ertistica Brasileira, Tendo, no entanto, que determinar joridades para sua linha de atuacao, decidiu o iro privlegiar, numa primeira etapa, 0 estudo © 8 reflexdo sobre a produgio artistica contemporsnea, A prioridade dada & pradugo contemporsnea nao significa que sejam afastados projetos que se proponham tematicamente a investigar o passade. Esses serdo apoiados na medida em que possam, efetivamente, através de seu tema, contribuir para 0 tsclarecimento da produ¢do contempordnea. O critério aprovado delimita a atuacdo do CEDOP no campo do apoio & pesquisa, mas estabelecer critérios é a Unica maneira de se realizar um trabalho sistematico e coerente a respeito da compreenséo da produedo artistica brasileira. Além disso, a0 se fazer a analise do presente, esté-se trabalhando no s6 com 2 passado, na medida em que este orienta as ‘configuragées atuais dessa produco, mas também com 0 futuro, na medida em que nele o presente intervim, delineando noves aspectos da produgio artistica brasileira, Assim sendo, o Centro propie-se, num primeiro momento, a concentrar seu esforco na discussso, nna documentago e na organizacdo de uma biblioteca va & producdo ertistica brasileira contemporanea. Neste sentido, 0s trabalhos agora editados refleter, fem seus dominios especificos, algumas ques pertinentes a essa produgao, © PROGRAMA CNDA/FUNARTE O programa de Bolsas de Estudo e Pesquisa CNDA\ FUNARTE, iniciado em agosto de 1977, ¢ 0 resultado de um convénio entre o Consetho Nacional de Direito Autoral ea FUNARTE para a realizacio e publicago de pesquisas que digam respeito a producéo artistica brasileira, Em 1977 esse Programa foi operacionalizedo sequindo a politica geral do Centro para o apoio & pesquisa. Neste sentido, o Centro delimitou sete areas nas quais as pesquisas deveriam ser realizadas artes plisticas, misica,folclore, teatro, cinema, literatura e danca. Dos 377 projetos apresentados, foram escothidos 17 Em 1978 decidiu o Centro coneentrar 0 trabalho de Besquisa num tema por ele considerado prioritério 8 relacdo entre o Estado e a producio artistica brasileira em suas diversas éreas, Sobre esse tena foram escolhidos 10 projetos dos 130 apresentados. LITERATURA NAO E DOCUMENTO PRESIDENTE DA REPUBLICA Joo Baptista de Figueiredo MINISTRO DA EDUCAGAO E CULTURA Eduardo Portella SECRETARIO DE ASSUNTOS CULTURAIS ‘Marcio Tavares D'Amaral Fundapio Nacional de Arte PRESIDENTE José Candido de Carvalho DIRETOR-EXECUTIVO Roberto D. M. Parreira CESAR, Ana Cristina Cruz. Literatura io é documento. Rio de Janeiro, FUNARTE, 1980. 121 [4]p. i 1. Cinema. 2. Literatura, 3. Do- cumentério, . Titulo, cpu 82 (81) Ficha catalogrtica proparada no Centro de Documentacto dda FundaeSo Nacional ae Arte. Ana Cristina Cesar LITERATURA NAO £ DOCUMENTO Ediglo FUNARTE — Rio de Janeiro 1980 EQUIPE Jayme Frejat, Anténio Pedro Nobre, Lylian Oberlaender Preparagdo de texto: Eudoro Augusto Macieira Programacdo visual: Vera Bernardes Capa: Vera B. e Holoisa Buarque Arte-final; José Ferreira Leca Producio grafica: Sérgio de Garcia Este livro 6 de Cecil e Heid sta pesquisa ne verdade comegou onde hoje termine: no fichério de Ames documentérios sobre autores ou obras iterdrasproducidos no Brasil e ptiante am circulate, O primero movimento da pesquisa fo assim o de ato cineme; espler esses fliminhos; « catatogh-los, anotéos, penss-ls. {ase movimento, pordm, constitu» base “empirca’” © nfo 0 objeto da pes fquisa, Esse “objeto” nfo s80 propriamente os filmes a que andei asstindo as tim 0s concetes Ou represontarBes do iterrio que estes filmes, explicita tu implcitamente,acabarutilizendo. Que definieS> de literature, que visfo Go autor IterriosB0 postas em circulegto por eswes filmes? Esta sera @ minh fperquhta, que deatgume forme pode ser artculade com determinados “projtos politco-cultures”: 0 surto de cultura patrocinade pelo Estado Novo, 0 pro- eto cultural militente de esquerde que se intensificou nos anos 60 @ 0 novo furto de cultura parocinade que parece pear no Governo Geis ‘No sua forma atual, 2 pesquisa divide-se em duas partes: 0 meu texto, ‘com cinco capitulos, e a documentacio, incluindo depoimentos de diretores de documentérias sobre literatura, dois roteiros ¢ a filmogratia com preten: 86es a completa. Dos cinco capitulos que compdem 0 meu texto, “Cromos do pais” introduz a matéria e discute um economicismo que pretendi descar: tar e cuja problematizacso mal serd retomeds; “Bérbaro, nosso” quer deter-se ‘na época em que Humberto Mauro produziu os primeiros documentérios so: ‘bre autor literdrio no pais (1939/1949); “A parte dos cabelos brancos”, ex ppressio usada por um presidente para designar a “cultura”, insiste sobretudo ina defini¢So de cultura nacional que o Estado tem procurado formular, espe Ciaimente apds 1964, e que se concretiza na Politica Nacional de Cultura; “Heréis péstumas da provincia" fala do aproveitamento direto dessa formula: ‘680, ou seja, dos documentérios sobre literatura que se engatam sem critica a ‘essa formulae0, tendo sido produzidos especialmente na década de 70; fi- ‘nalmente “Desatinar 0 coro” quer levantar no os filmes que do a volta por ‘cima com pureza mas sim as brechas que alguns deles introduzem num siste ‘ma dominante de representagdes ideolOgicas, que inclui os conceitos de “fil ‘me documentério, cultural ou educativo, “‘iteratura”, “autor literdrio/ artista" e “nacionalidade cultural”. Esta pesquisa foi realizada durante meu curso de mestrado em comuni: cago na UFRJ e constitui parte da tese intitulada Literatura © cinema documentirio, Ana Cristina César — janeiro 1979 SUMARIO GROMOS DO PAIS BARBARO, NOSSO APARTE DOS CABELOS BRANCOS HEROIS POSTUMOS DA PROVINCIA DESAFINAR 0 CORO SETE DEPOIMENTOS Marcio Souza: Oswald de Andrade Sérgio Santeiro: Sousindrade Heloisa Buarque de Hollanda: Joaquim Cardozo e Raul Bopp Raymundo Amado: Pedro Kilkerry e Junqueira Freire ‘Ana Carolina: Monteiro Lobato ‘Joo Carlos Horta: Jorge de Lima Dols ROTEIROS Todo dia é dia D, de Henrique Faulhaber Horpa esquisite, de Raymundo Amado FILMOGRAFIA Sergio Pantoja INDICE CRONOLOGICO BIBLIOGRAFIA 15 23 35 a 79 95 115 7 CROMOS 00 PAIS a 6 2 Gnica producdo cultural que constitui matéria escolar obrge fratura, ov melhor: 0 conjunto de autores e textos consagrados @ aprovados para crculaeo na escola. E nBo é s6 na escola que os autores liters Fios cireulam como vultos nacionais, grandes homens que construiram monu- mentos patros, A literatura circula, sobretudo — nos meios escolares, ns in tncias de consagracSo de cultura, nos meios de comunicacso de massa , através do nome de personalidades cujas obras refletem "valores necionais © tor literério consogrado integra 2 galeria dos cromos escolarese dos edi adores da “cultura brasileira" Esta galeria se torna particularmente importante em momentos de afi ‘malo de “identidade nacional", de capitalizagdo dos grandes nomes para luma promoeéo nacionalista da cultura. “Se considerarmos a fungSo desem- penhada pelo artista latino-americano, encontraremos nele uma das forcas mais vigorosas de afirmag3o de nossa identidade cultural’, afirma em 1977 0 diretor do Departamento de Assuntos Culturais do MEC, acontuando que esse Brocesso "se reflete fundamentalmente na literatura’ (1). Fazor um filme documentério sobre autor nacional é relacionar-se ine vitaveimente com essa circulagfo do litersrio. Principalmente se se trata de utor consegrado. © filme documentirio sobre autor se afirma no pats em steitaligagdo com o sistema escolar. Aliés toda produgo de documentirio tem de se haver com a fungo instrutiva, que aparece desde a origem do cine ‘ma documentério ligada & sua propria natureza de “‘eproducéo" (ndo fic ional) da reslidade. O cinema documentério deve documentar para ensinar. Documentar j 6 ensinar, mostrar, divulgar, esclarecer. E assim duplo 0 com rometimento do documentério sobre autor com a escola ou com a “instru $0 informal do povo": primeiro, por ser documentirio, género que se afirma instrutivo nos seus propésitos; optar pelo documentirio seré embarcar na sua Proposta educativa (formal ou informal), ou ent8o discut-e, se & que isso é (MDIEGUES JR, Manuel. A estraté Ec 1 Manuel. A extratégia cultural do governo @ a operacionalidade do Politica Necional do Cultura’ in: Novas Yrenter de promocso ae cultura, Alo de oneiro, Fundacdo Gerilio Vargas, 1977 ppossivel no interior do proprio género. Em segundo lugar, pela escolha do objeto a ser documentado: autor literério, matéria curricular. Em termos de escola, o comprometimento é mais direto do que no caso de outra producSo cultural. Os professores abrem os olhos para os atrativos luminosos do cinema, Hi dois surtos distintos na produco de documentérios sobre autor rério no Brasil. Um, mais diretamente ligado a afirmago ameno-curricular de vultos nacionais; outro, vinculado, contraditoriamente ou no, & sua afir macgo extracurricular, informalizante, modernizante. Em linguagem oficial, 0 primeiro surto 6 mais “educativo, o segundo, mais “cultural”. © primeira liga-se & produgio de curtas-metragens educativos produzidos ‘em massa pelo INCE e dirigidos pelo seu entfo chefe do Servico de Técnica Cinematografica, Humberto Mauro, a partir de 1937. Mais do que surto, esses primeiros filmes contiguram um grupo, revelam uma uniformidade, se inte gram a uma ofensiva oficial no campo da educacSo escolar e da cultura, Uma ofensiva digamos estadonovista, embora seja mais exato refer-la diretamente ‘a Gustavo Capanema. segundo é recente, p4s-70, como que acompanhando interesse anélogo em produzir filmes de ficeo baseados em obras literdrias, Os documentérios dde 70 configuram mais um surto @ menos um bloco patrocinado. Depois de um hiato em 50/60, irrompe a preferéncia pelo autor de literatura, Por hips tese, essa preferéncia, essa opeo de objeto documental articula-se a um mo- ‘mento politico em que novamente a “cultura” é prioridade governamental (Qu methor, em que a cultura tende a se definir mais especificamente como campo de intervencio oficial — e, novamente por hipétese, como contrapar tida, compensaco ou busca de uma efiedcia de controle perdida num esque- ‘ma repressivo, Um momento e outro — a época de Capanema e a década de 70, princi paimente de 1974 em diante — tém em comum essa ofensiva oficial. O Estado {quer patrocinar ou incentivar cultura, esse bem de todos. Mal ou bem, essa ofensiva se reflete nas relacGes dos produtores de cultura erudita com o Es: tado. Em 1940 o Estado patrocina documantirios. Humberto Mauro 6 fun: cionério do INCE, érgo do MEC. A relacdo & direta. Em 1970, 0 documen- tério, produto precério e faminto de recursos, tem de se relacionar de algume forma com 0 renovado interesse do Estado, com intervenedes oficiis cada vez mais organizadas, e com o debate que renasce ndo s6 nos meios oficiais, sobre a “cultura nacional. A relacto é complexe. ‘A 22 de novembro de 1975, o cineasta Antonio Carlos Fontoura docls +a a0 Jornal do Brasil que os realizadores de documentério so "frequente- ‘mente forgados @ vender por um preco vil o direito de exibicSo de seus filmes para saldar dividas de produedo, Fora disto, axiste apenas o curta-metragem patrocinado. O mais freqlente patrocinador 6 © MEC, através do Departa ‘mento do Filme Educativo e do Departamento de Assuntos Culturais que, 10 wncorrancias, coloca em méo dos realizadores/produtores v mao Garam mes cor temas culturis.O Departamanto do Filme ae a dos produtores 0 dreito de dstribuir seus filmes em Beis cesoral 3 i Mas as concor: ermuito nacional de escoles, universidades essociagBes, Mat as oduglo e compra de direitos so para um nimero limitado de rancias para pro com coractersticas espciticas, nfo acolhendo inimeros projetos ou rex que nfo atendem 20s padres cultura desejados’ f Tyme primera dstineS0: 0 realizador independente e o realizador patroci- nade pelo MEC, O ealizador indepandenteenfrenta todas as dificuldedes pos mvisem face da nova realidace estrutural do pais, evjo mercado e formas de juedo se contram na grande empresa monopolista. A Unica alterativa Franceiramente vivel seria buscar a subvenglo estatal, a partir de concor elas que selecionam os documentérios com caracter/stcas especticas, Pro- uzidos dentro dos padrées desejados pelo Estado. Embora nao se tenha dito ie abo essas caracteristicas ou padr6es, fica insinuado que os filmes patro- fedos tém de se encaixar dentro das exigéncias ideolbgieas do patrocinador. 10 financiamento oficial tenderia a produzir filmes que refletem a ideologia ‘oficial. A producSo independente (do ponto de vista financeiro ¢ ideol6aico) 0 agientaria. [Nessa perspectiva, o fato de um documentério sobre literatura ser produzi- ‘por empresa do Estado jé informaria sobre o seu conteddo. A apreensio do liteério por esses filmes, filtrada pelos critrios das concorténcias, tende fia a se identificar com a vislo oficial da literatura, e mais, com a concepego. cial sobre a cultura; exaltagSo da personalidade do escritor e preocuparo tem fixar para a posteridade a imagem do vulto e dos fetiches que marcam sua Dpresenca ("registro da meméria nacional”): berco, tUmulo, objetos pessoas, ieonogratia familiar, caminhos que percorreu, tipos que conheceu, capes dos 's9us livros, prémios recebidos, aclamacdes, belos bustos em bronze ‘8.21 de malo de 197, apropésito de uma amostra de documentérios apre- ‘sentada num semindrio sobre cinema e literatura no MAM-R4, dois jovens inte- Tectusis escreveram na Tribuna da Imprensa: “Dos curtas exibidos ~ todos erentes literatura — Kiaxon, de Sérgio Santeiro (sobre a revista do mesmo no- me; Bérbaro e nosso, de Mércio Souza (sobre Oswald de Andrade); Lima Bar- ‘et0, de Jlio Bressane; Poesia, misica e amor (sobre Vinicius) @ A Casa do Rio Vermeihio (sobre Jorge Amado), ambos da dupla David Neves/Fernando Sabi Ino — destacarnse os dois primeiros pelo experimentalismo e rrojo de lingua: AWiagem, e os dois itimos pela decopedo causada pela exaltacio e mititicacio da Personalidade dos escritores: vemos Vinicius entrando em festa, beijando pes- +8035; Jorge Amado conversando entre amigos, ou passeando com a prole. Tudo Patrocinado pelo Banco Nacional como contribuigio a cultura brasileira.” (2) T2)FERREIRA, Kathie & VENTURA, Roberto. Literatura cinema: um debate, Suple- ‘mento iiteririo da Tribuna da Impranse, lo de Janeiro, 21 maio 1877. Segunda distingéo: as produpBes independentes em termos de lingua. gem, @ as producdes fetichizantes, patrocinadas pelo grande capital. De um la. do, 05 filmes que traduzem uma concepgio oficial, escolar, exaltadora do bersonalidades, através de uma linguagem conservadora e da énfase nos dados biogréficos. Do outro, uma produgio que pretende penetrar e interpretar o Universo iterério, deslocando a figura do autor do centro das atencies e Bondo em cene algum tipo de relacdo com o texto literdrio. E fica num certo Jimbo uma produgso que no se encaixa bem nem em uma nem em outra, Porque parece esposar um pouco de cada uma, como o Lima Barreto. Documentério decepcionante 6 aquele subvencionsdo pelo grande ca pital? € decepcionante gracas & origem da sua subveneo? Filme patrocinado pela grande empresa (estatal ou néo) reflete uma "ideologia oficial” da cultu a, dado assim claramente identificdvel? A origem do financiamento determi haa linguagem do produto? Para ndo cai na correspondéncia imediata entre subveneSo oficial/ ideologia dominante, ou no seu reverso inexplicito, é preciso considerar ou: tras determinacées, A primeira dessas determinagées tem a ver com a historia do cinema no Brasil, sempre lutando com dificuldades financeiras e precéria estrutura industrial, e que a partir de 1966, com a criaco do INC, passa a ser cada vez mais érea de interesse do Estado, Seria necessério examinar a reloco do Estado com 0 “campo da cultura", culminando na definico de uma Poli tica Nacional de Cultura no governo Geisel "'Creio que o surto de documentério sobre autor nacional faz parte de ‘um dos “objetivos nacionais’. Sabemos que a produgdo do curta-metragem ‘no Brasil € coisa para diletante, ndo é levada a sério, mas em determinado ‘momento foi atrelada & sustentago ideoldgica da chamada ‘cultura nacio ‘nal brasileira’. Como tudo que era produeio simbética foi atrelado a necessi dade de estabilizar ideologicamente 0 regime, o curta-metragem acabou re bocado.” (3) ‘Qutra determinacio importante & o sistema de favor e 0 aventureirismo ‘ainda to em voga no pais. A producdo de curtaxmetragem, essa coisa diletan 1, € af também grande parte da produgo cinematogréfica em geral, ¢ ainda ‘no mais das vezes resultado de um impulso aventureiro de realizadores coagi dos pela precariedade de recursos. Dentro dessa precariedade, conta muito ‘que 0 MEC esteja interessado em projetos cultureis, e conta um certo célculo, ainda que impreciso, sobre os “padres desejados”. Por outro lado, ¢ 6 isso ue balanga as correspondéncias economicistas, esse céleulo 6 sempre mais vago do que se pode supor. Lado a lado com a aventura, o sistema do: compe: rio € do favor ainda vigora no Brasil, ainda é mola institucional, o que pode (9)S0UZA, Mircio: ver depoimento anexo, 12 que muito projeto bem-comportado seja aprovado. A secreta e pro a historia do compadrio resta ser contada, : autor nacional” integra os objetivos da politics cultural of ee osc fensiva estimula jeremos com mais detalhes. No entanto, se essa ofensiv coy de documentérios sobre personalidades destacadas ou biografias itores, nfo tem 0 poder, no seu nivel de generalidade, de determinar a esses documentirios. O dirigismo cultural 6 menos determinante se pode pensar, ou melhor, depende de uma colaboragdo estreita do sytor cultural, produtor ou utilizador de linguagens. O documentério wea como promorso de uma politica porque fixa imagens, registra a a do autor, © monumento nacional. No que se opta por esse registro, itamento ideolbgico do registro poderé ser até inevitével. A questdo no +e considera é que todo documentirio, mais do que falar de um ob- fque Ihe 6 externo, fala fundamentalmente da relacdo entre 0 seu produ: ‘sau objeto. Articula uma vséo sobre esse objeto, e nfo copta a sua rea: ‘pura, A ilusfo documental consiste em lero filme documentario como le modo fotagratico que mantém, mais fiel do que qualquer outro, a inte do real, que deixa a realidade mostrar-se a si mesma sem intervenc&es, ‘documentério que a /iteralidade da fotografia vem & baila com mais E como se estivéssemos diante do proprio real, duma analogia perfeita, a pura denotagSo. O mito da objetividade € reforcado pela proposta imental, que sabe ber encobrir a sua manipulacso. Talvez nio se possa identificar dentro da producéo de documentirios ‘autor nacional um tipo de produto diferenciado que veicule uma critica | & visbo circulante de literatura. 380 porque o produto geralmente par Pressupostos indiscutiveis: a funeso documentério, a funeo autor e 0 ito de cultura nacional. So pressupostos auto-evidentes, logo, emude- 4 partir dos quais se comesa a produzir: a funeéo documentério funda- ‘@ abordagem dicética, expositiva, que instaura uma relagdo de esclare- ‘construtivo/informago objetiva com 0 espectador (ou, em alguns ‘especitions, de esclarecimento “comovedor’, que remete para um con- da inefabilidade do objeto) e uma relaeso de apropriacio e reproducao ligna do seu objeto, A funcio autor veicula um conceito harmonizante de ra'e de historia; A historia & feita por personagens ilustres, merecedo- ide bustos nas nossas pracase filmes nas nossas filmotecas. literatura 6 08 grandes feitos nacionais desses grandes vultos, manifestacdo superior *spirito, bem cultural de prestigio, espelho da nossa nacionalidade, enten- omo esséncia amalgamadora. Quem escreveu @ Moreninhe? Um texto & de tudo um Nome, origem e explicacao das suas signficagdes, centro de {coerdncia, chave controladora das suas inquietacées Seria possivel introduzir diferencas no interior do sistema document Iiterério/culture nacional? Um produto diferenciado nio se explica por sua relago coerente com ‘uma cobertura financeira independente ou precéria. N&o se explica tampouco pela “oposigfo ideolégica”” que instaura contra 0 "Poder", ou seja, por uma Fdeologia dominada que contrapde @ uma dominante. Mais ainda porque, em termos de cultura brasileira, 0 conceito oficial e 0 conceito das esquerdas an dda mais préximo do que se pode imaginar. As esquerdas constitu das também hido tém posto em divida a fungo missionéria, educadora, que so materiali- 2a com justeza no documentétio pedro, dados contetidos esquerdizantes. Se 6 posstvel localizar filmes diferenciados no interior da produpio de documen tirios sobre literatura, seriam filmes que produzem tensdes especificas no sit tema que parece predeterminé-lo: tensSo entre a subvencéo oficial ea discus so da visSo oficial; entre a pressuposta missgo educativa do documentério & ‘elementos que rompem 0 aparato didatico-objetivo ou didético-comovedor; fentre esses elementos e a alianca que todo documentério estabelece com seu piblico (esclarecer, mostrar); entre o educativo (dar aula sobre um autor) © 0 interpretativo (trabalhar sobre textos). Nao sei se algum desses filmes conse- {gue eliminar estas contradigdes e situar-se com pureza no lugar da Contesta- ‘edo. O documentério se faz sob o peso da propria palavra e missio, que define tima relagio do poder com o real (copidvlo, documentésto} e com o espectador (instrui-lo, informé-lo, esclarecé-lo), E numa época de ofensiva cultural da parte do Estado, mesmo com linguagom “arrojada e experimental” pode ser Teintegrado a0 padrGo, 20 circular como documentéria sobre um autor que 6 nacional, 0 que se pode identificar & a aderéncia implicita, indiscutida, esses conceitos, ou entdo @ produedo de tensées e resisténcias maiores ou enores, mais ou menos coerentes, que possibilitariam a discusséo desses ‘mesmos pressupostos. {A partir de 1964, 2 “legislagdo cerrads, 0 cerco ideolégico eo impulso econdmico” encaminham gradualmente a explicitagso de uma politica nacio~ nal de cultura. Essa politica se expressé em termos de subvenedio de cultura @ de defini¢so de cuitura, © problema é que 2 subvenglo de cultura ngo tem 0 poder de despertar, por si $6, no interior dos produtos especiicos que sub- venciona, uma definigso de cultura, Seria interessante verificar se hi filmes ‘que, aproveitando a subvenclo, nio ratifica 2 definiggo oficial de cultura, ui seja, produzem resistencias: resisténcias possiveis, necessérias, improvaveis, espontaneas, planejedas, irreconcilidveis, prontas ao compromisto, interessa das, fadadas 20 sacriffcio, etc. Ou entdo se hé filmes que, mesmo fora da sub» veneo da grande empresa, podem aderir a uma determinada definiego de cultura, eliminando na especificidade as possiveis ambigilidades dos critérios das concorréncias ou as possiveis brechas dos generalizantes textos oficl “ BARBARO, NOSSO Machado de Assis (1938), Euclides da Cunha (1944), Vicente de Carvatho (1945), Martins Pena (1947), Castro Alves (1948) e Ruy Barbosa (1948): as primeira “personalidades literérias” focalizadas por curtas-metragens no Bra: Sil. A iniciativa é oficial e integra um grande projeto de producdo de filmes educativos cobrindo as diversas matérias escolares. O realizador é Humberto Mauro, um dos fundadores do INCE (1936), e entre os seus colaboradores contam-se “nomesilustres da vida artistco-cultural brasileira: Pedro Calmon, Portinari, Santa Rosa, Villa-Lobos, Roquette Pinto e Francisco Veniincio Fi- tho" (1). Cinema pedagosico e “dirigido”. Ligado a uma preocupacao oficial com 4 modernizagio da educagéo escolar; @ a um ministro da Educapdo que atrai Protege artistas e intelectuas, integrando-os a um esquerna de amparo oficial, no interior do contraditério regime estadonovista, A instituigdo e proliteraeo do cinema educativo se vincula ao impeto modernizante, organizante e cen- ttalizador do momento, num contexto em que a eficécia politica parece defi- nirse besicamente por um impulso de organizacéo sistematica, de “racionali dade administrativa", © por uma expansio tecnoburocrética centralizadora, Até a criagfo do INCE, em 1936, “o cinema educativo ainda nfo tinha no Brasil uma organizacSo sistematica com finalidades e recursos que garantissern ‘completo @xito”, opina um eronista da época, localizando na geréncia plinadora da autara cultural (2), Se of filmes educativos eram empregados eventualmente em instituigdes de ensino, no havia medidas legislativas que enquadrassem e dirgjssem essa Uutlizagéo. A primeira iniciativa legal nesse sentido & de 1829, quando Ferman do de Azevedo, diretor do Departamento de Educagdo do Distrito Federal, determina © emprogo do cinema em todas at escola primérias do Distrito Fe | dora. Esta determinaca0o integra reforma educacional geral no Rio de Janeiro: estatal a postiblidade de éxito do empreendimento [LEAL wis Errtores brasetos no cine, Jofo Pesos. ID) RiBeINO, Aerio Mano-© inure Necons de Cite Edetive Revie do Serge Pibico, Rode ro, 317), mar, 1844, ee: As escolas de ensino primario, normal, doméstico profissional, quando funcionarem em edificios préprios, ter8o salas destinadas a instala Ses de apareihos de projecdo fixa e animada para fins meramente educativos (© cinema seré utilizado exclusivamente como instrumento de educe- ‘¢f0 @ como auxiliar do ensino, para que facilite a ago do mestre sem substi: Url. ginoma serd utilizado, sobretudo, pare 0 ensino cientifico, geograf co, hisercoe seta too armada serésprovetads como aparelho de vlgrizato © demons Ge sonhecimentos, nor cursos populoesnoturos ¢ cursos de sor rtoria Geral de Instrucdo Pic erientaré procures desnvo- ver poy Piste Srvasce modiant a apao dita dos iapetoresexolre, 0 movimento em favor do cinema educato" 1s exboga no texto lea 0 consito do cinema etucaiv come fc tad ta tare pedagdgica, colaborador do esino w, mal do que mativako, alivio para um aprendizado penoso, Mas é através da SOCEBA — Sociedade Ginetta Brat Lida, ima criada em 1032 para “suprir a falta de tia entiade especialmente dedicada 20 Cinema Educativo em nos pats’, Que melhor se formula eentusitamo doe pedegogos por um instumento de Mernizag estenungSo dos rigors ctor "medevis” de escola iterete folo cinema aparece desde cedo como manfestao do erat consciénia da fangs ou anacronismo do minguodo sista escolar bral, Utiizr cinema come euiliareducativ 6 hé anos, deseo do magi tivo em todo © mundo ciiiza. .. Embora ainda imperteito, 6 considerado O Cinema Edcativo, por sue incontetivel importénea educacionl, um tuxilfoInisensivel i esclas quo quran estar @ altura da époce”. Com 0 fitme educativo pordrard na meméia da crianca “agradével recordepfo da escola, tmmandoa mas facilment spertivel” “le nfo 36 educa os alunos como também é 0 malor propagandista escola, strando para ela geas simpatiaee desfazendo o carrancismo daexcola reser da Escola a méscara que a faz amarge para todos, tornéla alegre, moderna ®'feqUntada com prazer& um belo programa para um pedagogo Topatonteo" para cumprito,nenhum melhor auxiler que'o CINEMA EDU- carivor's [A SOCEBA seria precursor privado efémero do INCE. A Sociedade se constiuiria ap dagnosticar que “apesr da boa vontade dernonstrada pe fo governo e por slguns pedagogos conhecedores do asunto, diferentes mati ves Ge ordem téeiea,fnanceitae adminstrativa no tém permit até 0 tresonts""9 desenvolvimento do cinems edveativo no pat. Junto com aieo- ©) Revs do Cinema Educ, Bio de an, 1 (1, ago, 1992 {3 Revs do Gneme Eductv io oe dare, 2 (2, a 833, 16 CC ® Jogia modernizadora civilizatoria (estar & altura da época, desfazer 0 carrar ccismo da escola medieval), implicita a idéia de que ndo basta boa vontade do ‘governo, mas sim intervene técnica-financeira-administrativa, para garantir '0 funcionamento e a expanséo da inddstria de cultura. Intervencgo esta que se pprecisaré no contexto corporativizante do Estado Novo. "Bra esta a situago” — sem organizacdo sistemiética, som intervencdo oficial centralizadora— "quando o Ministro Gustavo Capanema levou ao Presi- dente Getilio Vargas a sua exposico de motivos referente & criago do INCE, 8 titulo de ensaio e em carder de comisséo, Por ato de 10 de marco de 1936, no despacho do processo n® 5.882, de 1936, do Ministro da EducacSo, o Pre- sidente Getdlio Vargas criou a comisséo do Instituto Nacional de Cinema Edu- cativo”. O INCE passa a exist oficialmente 2 13 de janeiro de 1937, através do artigo 40 da lei n9378. O regime incorpora a proposta cultural e organiza- dora de Roquette-Pinto: “Art. 40. Fica criado 0 Instituto Nacional de Cinema Educativo, desti- nado a promover ¢ orientar a utilizagdo da cinematogratia, especialmente co- ‘mo proceso auxiliar do ensino e ainda como meio de educa¢o em geral FINALIDADE. O Instituto Nacional de Cinema Educativo, diretarente subordinado ao Ministro de Estado da EducacZo e Satide, de acordo com a legislagd0, 6 0 6rgi0 orientador da utilizacao da cinematografia como mel auxiliar de educacdo e ensino, Compete:the: a) Editar filmes educativos populares (standard) e escolares (sub- standard) assim como diafilmes para serem divulgados dentro e fora do territério nacional; bb Prestar assisténcia cientifice e técnica & iniciativa px ‘que a sua produgso industrial ou comercial seja de cinematografia para fins educativos. Para desempenhar sua finalidade o Instituto manteré uma filmoteca; divulgard os filmes de sua propriedade, cedendo-os por empréstimo ou por troca fs instituicdes culturais e de ensino, oficiais e particulares, nacionais festrangeiras; e fard publicar uma revista consagrada especialmente & educago [polos modernos processos técnicos (cinema, fondgrafo, rédio ete.) Segundo os termos da le, o INCE se subordinava diretamente a0 minis- tro da Educardo. Gustavo Capanema foi ministro da EducarSo de 1934 a 1945. Nao se pode falar de uma politica cultural definida na sua gestdo, nem de uma articulago coerente das suas interveng6es com a ideologia nacio- Aalista-estadonovista. O que é certo & que por seu intermédio o Estado, além de reformar 2 educapio escolar, incentiva e renova cultura, mobiliza jovens artistas ¢ intelectuais. No interior do regime autoritério, a atuacdo do minis- fo da EducacSo ¢ qualificada como esclarecida, avancada, renovadora, pio- nneire. Capanema reestrutura a Universidade do Rio de Janeiro em Universi dade do Brasil, cria 0 Servigo Nacional do Patrimonio Histbrico e Artistico Nacional eo Instituto Nacional do Livro. Autoriza 0 funcionamento da ” _— — a Faculdade Nacional de Filosofia. Cria a Faculdade Nacional de Arquitetura e ’ Faculdade de Ciéncias Econdmicas. Reforma o ensino secundério, Prestigia ‘2 nova arquitetura no Brasil ao convidar Niemeyer e outros jovens arquitetos ‘para colaborar com Le Corbusier no projeto do prédio do Ministério da Edu: cago, “© mesmo ministro que tinha Carlos Drummond de Andrade por chofe dde gabinete e convidava Cndido Portinari para decorar as paredes do edit lthado par Jardins de Roberto Burle Marx e esculturas dos artistas mais ava ‘aides 45 én0ce” (5). ‘Nao so poucos os intelactuais @ artistas que so cobertos ¢ dio cober- tura a0. Estado Novo. Fica ainda por fazer a andlise dessa colaboragSo, mesmo 48 posteriormente convertida em resisténcia; o tema é incBmodo e pouco dis cutido, De qualquer forma, a criago do INCE tem como pano de fundo esse ‘quadro: a tendéncia corporativista, tecnoburocrética, centralizadora do regi 1 atuacdo modernizadora e renovadora de Capanema, incentivador de cultura ¢ implantador de uma reforma centrada no ensino secundério; a contraditéria ‘mobiliza¢do de intelectuais e artistas, cuja producdo no poderé ser analisada simplesmente como reflexo de um ideério estadonovista-fascista. Num mo- ‘mento de afirmaco da Nacionalidade, o Estado acirra a promogo e a organi: zag da cultura, 'No interior do INCE, procurava-se desde logo formular a func, as ccaracteristicas e os padres desejados para um filme educativo. Segundo essa normatizaggo, todo filme produzido no Instituto deveria sor: 19) nitido, minucioso, detalhado; 29) claro, sem dubiedades para a interpretago dos alunos; 30) légico no encadeamento de suas seqisncias; 49) movimentado, porque no dinamismo existe a primeira justificativa do cinema; 50) interessante no seu conjunto estético e nas suas miniicias de execu ‘0, para atrair em vez de aborrecer (6). Estes cinco itens resumem a expectativa oficial em relacdo & linguagem do filme documentério ou didético. Nitida, clara, légica, sem ambigiidad essa linguagem seré essencialmente racional, expositiva, seqiencial. Ou seja, seré tdo-somente uma reduplicacdo mais atraente, pois movimentada, da lin- guagem do ensaio, do livro didético, do verbete enciclopédico. Em forma de filme, “o livro sai da estante e abresse as multiddes, cheio de luz, som e clari dade". Néo deverd deixar o lugar seguro da exposico racional e untvoca dos saberes escolares. Esta exposica0, @ nivel cinematografico, se realiza através da narrago em off, por um locutor de voz cultivada e enfétice, e de imagens que ilustram 0 texto da narrapio: a voz possante do mestre e a visualizacdo eficaz (6) CHACON, Vamireh. Ettado # povo no Brasil ~ a experiéncias do Estado Novo e de Democrecie Popuita: 1997/1964, io’ de sanira, Jaws Olymmpio, 1977, m S27. (6) Gitado por Adaiberto Mario Ribeiro, op cit das suas palavras, passo a passo. No entanto a missio pedagdgica nfo pode se F 80 informativo, Ao enciclopédico, a limpidez racionzlista da exposi G80. acrescenta'se a intencdo formativa, que toma as cores do civismo, da patridtica”, da interpretaco correta e moralizadora dos fatos da ‘nacional, detida pela voz oficial do mestre/narrador: “Historias antigas, ‘como as dos bandeirantes, so contadas de forma simples e atroente pelo ‘cinema, Anchieta escrevendo na areia seu pooma ‘A Virgem’, ‘A Vida de Car Tos Gomes’, ‘O Desportar da Redentora’ e agora, ‘A Vida de Euclides da ‘Cunha’, em preparacio, constituem valiosa contribuigio do Instituto ao er fo € A divulgagdo de fatos ¢ episbdios nacionais mal interpretados muitas ve 485 om leitura apressada ou ignoredos por completo daqueles que no tém escola’. © filme educativo “recorda-nos paginas formosas da nossa Histéria, bbelas de emocdes civicas, de sentimentos altru‘sticos, de solidariedade hua: 'na, em que a alma brasileira se expande em toda sua nobreza” (7) 0 autor literdrio sera, nesse contexto, figura histérica cuja biografia terd funco edificante e exemplar. € assim que circula na escola e seré polo dida tismo e pela exaltario patriética que passaré a0 filme. A ideologia do vulto hhistorico e a apologia moderna do cinema educativo se cruzam para produzir ‘um certo tipo de documentério. Hé padres de linguagem desejados, hé um. lamor geral pela modernizacéo do ensino e movimentos de renovaco de cul: tura. Hé uma organizagio estatal montada para fazer vir & baila 0 claro filme scolar, e sem maiores observacGes estes filmes parecem constituir resposta direta & expectativa oficial. Esta resposta fica particularmente evidente no texto da narrayo. En- iclopédico, o texto biografa: data e local de nascimento do autor, familia, formacio escolar, amigos célebres, realizagBes, trajetos, obras escritas, data ¢ focal da morte, Edificante, procura exaltar os seus feitos: Machado de Assis 6 “poeta e escritor perfeito, ainda ndo igualado”, A obra de Castro Alves im verdadeiro sol a iluminar os caminhos da liberdade’”. A vida de Euclides da Cunha 6 um exemplo de “dedicacgo aos mais elevados ideais humans”. Vicente de Carvalho, “lirico dos mais emotivos e dos mais coloridos das letras do Brasil, deixou a0 lado de composic6es cheias de sentimento e delicadeza, oemas de larga envergadura”. Entremeando as biografias e exaliacdes, 0 logio civico da "Nagéo Brasileira” Na relagio com a imagem desses primeiros documentérios sobre autor, © Fefiexo direto fica menos dbvio ou mais ambfguo. Se por um lado a imagem ‘mantém-se fie! 4 formula diditica do documentério, por outro revela a inter Vencio especitica de Humberto Mauro, férmula é seguida quando a ima ‘Gem, a0 som de acardes grandiosos ou seguindo o texto, procura os monu- ‘mentos e sinais da passage do escritor, tratados como reliquias que conser (7) Citado por Adaiberto Mario Riber 19 = vam 2 sombra e a memoria do herbi; estatuas e bustos em praca publica, edi- es de suas obras, objetos pessoais aureolados de autenticidade: @ pena, a Poltrona, © tinteiro, o pince:nez de Machado de Assis; a barraquinha que abri: ‘gou Euclides da Cunha de intempéries e que o Estado por sua vez preserva com cimento. A imagem quer ter esse mesmo movimento preservador, esse esto de museu, essa ilustraeio atenciosa des palavras do professor-narrador. No entanto 0 cuidado burocratico se excede e de repente transborda, apon- tando para a leitura “ingénua’" de Humberto Mauro, através da manipulago artesanalmente sugestiva (e no mais documental, descritiva) das imagens. Para representar a viagem de Castro Alves ao Rio de Janeiro, basta o plano do mar agitado pelo movimento de um barco invis(vel. Ou a sombra estilizada de escravos no trabalho para indicar a emoeso que o cativeiro teria provocado no ‘poeta quando menino. Estas cenas no documentam nem comprovam a bio- grafia: sugerem-na metonimicamente, rompendo o estrito aparato do film: conferéncia No seu primitivismo, os filmes de Humberto Mauro ndo disfargam o ar- tiffcio nem se pretendem verdade natural. Do que resulta um certo encanto do primitive, do que ndo elabora suas intencOes. Na procura de uma técnica, (5 seus filmes parecem escapar a0 rigido didatisme burocrético quando o evidenciam teatralmente, representando-o (e no pressupondo-o como dado ‘apagado na construcdo filmica) de forma que poderia ser considerada ingénua em oposicfo & sofisticagio dos documentérios atuais, que encobrem o artfi cio didético e o integram numa macia fluéncia “natural”. O filme mais noté- vel nesse sentido é Um Apdlogo, de 1939. A figura da professora de literatura, ‘a0 invés de continuar se neutralizando na voz onipotente, procede a aula, de ‘lho no espectador:'"O apélogo foi publicado no volume Vérias historias. Era uma vez...” Ao erauma-ver da professora segue'se uma encenacdo literal e deliciosa do apélogo, onde contracenam @ agulha, a linha eo alfinete. Hé uma, invengo de bom humor nesse literalismo. 'No filme Euclides da Cunha também se evidencia o artificio da aula ci- nematogréfica: aparece em cena um exemplar de Os Sertdes, cujas folhas vio passando enquanto imagens do sertio se superpdem ao folhear. Ou entéo s2 focaliza o mapa de Canudos e dentro do mapa, num quadro dentro do ‘quadro, se abre a imagem mével da cidade, O livro ja no é mais o fetiche do livro, fixado no plano descritivo da cape ou de folha de rosto, téo recorrente em tudo que é documentério sobre autor. E subitamente um brinquedo mé- ico, caixa de surpresas, objeto infantil que deixa escapar os bichos que guar- dava. © mapa néo é apenas instrumento didético da exposi¢o, mas pretexto ara uma superposieio engenhosa e inverossimil, Do ponto de vista de uma eficdcia cinematogratica, de que adiantaria um mapa que fosse na tela apenas a repeticlo fotogréfica de um mapa? A aula continua no texto da narracfo, ‘mas a imagem j se situa além, como que brincando de dar aula com indisfar gados truques de cinema, 2 eee Hé af uma busca artesanal de solug6es, um literalismo meio bérbaro que niB.¢ culto como circulo de Capanema, nem moderno como quer a época. Hunlberto Mauro no & um intelectual, é um contador de histérias, que brinca com dbjetos, inventa sua eficécia cinematogrstia, mexe com literature co mo quem conta historias, encena personagens. Essa desneutralizagdo, na sua featralidade, cilui a intenglo ideolbgica autoritéria, mals presente em filmes documentérios com técnica assegurada, e que se sustentam na imagem fluida f verossimil, mas tomadas locais ¢ verdadeires. O filme se mostra ter” como artificio eonstruido, encenado, e no como verdade documental transparente que a tela transmitiria, neutra. n APARTE DOS CABELOS BRANCOS 10 INCE, criado em 1936, deixou de exist como instituto auténomo em 11966, quando passou 2 integraro INC na qualidade de departamento — 0 De: partamento do Filme Educativo (DFE). Nesse perfodo, 0 interese do Estado ‘polo cinema se definiu em termos de cinema educativo. & stua¢lo do MEC se tantrava na educacSo. O tiico insttuto oficial de cinema fore criado dentro dessa perspectva, voltado para a Unica produedo quo podria a essa altura Intoressar 20 Estado. O cinema brasileiro no se constituira como indUstria @ ‘muito menos como &rea de intervencéo oficial. O cinema documentério me- fos ainds. Na verdade o cinema ainda nBo era pensado como “manifestagSo da cultura brasileira” © a cultura entendida como area distinta da educaglo) ainda nfo tora articulada conceitualmente a uma politica. ‘A asfo “cultural” do Estado se concentrava na preservaeio do patrimé- “nio, com énfase nos museus e bibliotecss. Neste contexto, era quase impos ‘sivel produzir documentério fora do parco circulto subveneSo estatal/cinerna feducativo, restrito ao INCE. E INCE é Humberto Mauro, que produziré uns 200 documentérios nos seus 18 anos de funcionério do Instituto. Fora daf 0 te 8 expanslo do mercado in- ‘Atlantida, tentativa de virar grande indGstria via Vera Cruz, crise da Vere Cruz, alternativa do Cinema Novo. E é {€om © Cinema Novo que se abrem perspectivas para o documentario ni of ial, exatamente por incidir sobre duas questdes primordials para o documen- Airio:'» produgso independente e a missfo educativa/esclarecedora (melhor dizendo: conscientizadora) do cinema. Por suas propestas, o Cinema Novo se ‘proxima do documental: nfo exige 0 grande aparato industri “0pSe'se 20 cinema “‘diverséo" ou “entretenimento”, opBe-se ao cinema co- ‘mercial, reforga a responsabilidade social do cinema, quer fazer um cinema ‘ue revole a realidade do pas e portantoinstrua seu povo a refletilo. Ana- Togamente, © cinema documentério no pode contar com grandes recurso, nem com comercializaglo, nem com recape%o expontinea do pubblico, pro- Pondo-se sempre como responsive einstrutivo. No entanto, que lugar poderia ocupar 0 tama “autor literério" no pe- “Rorama sfervetcente do Cinema Novo? A literatura poderiainteressar como OEE ee ‘objeto de documentério a um cinema que se prope a “transformar congeién cigs", que quer ser instrumento de "‘conscientizardo" e agitaedo, que quer narrar, descrever, poetizar, discursar, analisar e excitar” os temas da miséria social do pais? A inflamada produgéo cinemanovista, desenvolvendo:se num Clima reivindicante, num momento politico de abertura, se pretende militan te, empenhada socialmente, e vai buscar materiais imediatos que possam tra duzir essa militancia e esse empenho. Prope o miserabilismo a nivel de ma- téria, em oposigo ao cinema comercial, @ 0 baixo custo a nivel da producdo, ‘em oposigdo ao cinema industrial. © Cinema Novo quer desempenhar fungio semelhante a da literatura de 1930 e busca na literatura idéias para o clima de fice0, mas a literatura como matéria de documentério seria luxo burgués ou objeto mumificado pela cultura oficial. faticamente nfo existe documentério sobre autor nacional nessa épo- ca, Pode-se no entanto localizar mais tarde uma produefo que, sem ser pro priamente Cinema Novo, identifica-se a0 projeto cinemanovista, & proposta séria e missionéria do cinema conscientizador, “constituindo de certa forma o prolongamento, agora sereno e paciente, do enfoque cinemanovista’” (1). Se bem que esta produeso prolongante focalize “sobretudo as formas arcaicas da vida nordestina”, outros materiais poderdo afinal integrar'se ao projeto didético de esquerda, inclusive o autor literério. Falar de Lima Barreto ou de Monteiro Lobato, mesmo mantendo os inevitavels dados biograficos ou a ico rnografia familiar, serd forma de veiculago de contetdos de esquerda: o anti imperialismo, as alfinotadas na burguetia, a solidariedade explicita 8 vitima do poder. ‘Ainda na década de 60 0 Cinema Novo jé comecara a discutir a contra: digo entre suas propostas e a incompatibilidade de suas realizagdes com 0 ppAblico, Por um lado aponte-se 0 nico tipo de cinema possivel para um ps subdesenvolvida: © didético, que dé ao piblico a consciéncia da propria mi séria. Povo e piiblico s80 termos que se misturam, E por outro lado constata- s2 que 0 pblico rejeita o expelho, nfo desejando “tomar consciéncia da sua infelicidade e da inferioridade da sua situaeS0 em confronto com a de outros povos” (2). O que esté em jogo ¢ # questio da produgdo do intelectual, que ‘quer identificar-se com as classes populares mas percebe que o seu desejo ngo toma vulto, E que pode acabar diagnosticando resisténcia popular & verdade. ‘Com o fechamento politico-institucional do final ds década, a contra: igo tende a se apagar. Os produtores de cultura dos anos 60 vlo se colocar ‘em relaco & modernizago econ/mica, aderindo a ela ou rejeitando-a. O i (1) GOMES, Paulo Emilio Sl to, 1 out. 1973. (2) DAHL, Gustavo, Cinema Novo e stu plblico. Revista Cvillzcdo Brasileira, 11/12 ez. 1058/mor. 1987, Cinema: trajetbrie no subdesenvolvimento, Argumen- tende a aderir, a se assumir como industria, passando a se preocupar ‘0 mercado e 0 pado de qualidade, Os jovens cineastas que antes sonha ‘em virar 3 mesa agora justificam ideologicamente abastecimento “ma: ¥" @ "‘qualificado"” do sistema. A questo da funcSo conscientizadora do yema deve ceder lugar, e no opor-se, a questio do mercado, Gustavo Dahl, Revista Civilizagdo Brasileira, exemplificaria a postura moderna assumida ja intelectualidade de esquerda: quadro da realidade cinematogrética brasileira, de to negrastintas, , de um lado, a precariedade de uma industria cuja estrutura ¢ apenas Cues capitals so escassos e inseguros, um negdcio improg- smo, incompeténeia e aventureirismo em seus empreendi- inda do fracasso da sua primeira tentativa industrial ambi- irmacSo, num pais subdesenvolvido, nacional de poucos recursos, entregue a prépria sorte na réncie com o produto estrangeiro, § 0 fato de 2 indistria cinematogrsfica terse mantido sempre afastada "das grandes forcas econdmicas do pals privou-a de uma cobertura politica in: | dispensével 8 obtencdo de certas medidas governamentais necessérias 8 sua “afirmacio | ....). Serd indispens6vel que o Governo Federal Ihe volte os olhos intervenha no mercado no sentido de sua regularizacSo, e na indistria, no ntido de protecso para seu desenvolvimento (...). Sem uma cobertura po litica que obtenha do Governo Federal certas medidas indispenséveis para a stria cinematogréfica (... .) qualquer tentativa de fazer cinema no Brasil 4 votada ao fracasso" (3). Hi uma convergéncia entre a postura moderna ou madura dos produ: Fes de cultura e a tendéncia gradual do Estado de proteger a cultura, Os pro- " dutores querem cobertura, constatando a inviabilidade da producgo indepen rejeitada pelo publica; o Estado quer proteger/controlar um setor que $8 mostrava particularmente inflamado e questionador, que era o cinema. Tanto a nivel oficial quanto nos meios intelectuais & forte a rejei¢o do dile- _ tantismo, da incompeténcia ¢ de aventura, Domina 2 ideologia de competén- ea aires ec saab rea a Gor _sarial’ Em 1966, Céstello Branco assine o decreto que cra o Instituto Nacional Cinema (INC), reunindo as atividades do INCE e 0 GEICINE (Grupo Exe- io da Indistrie Cinematogrética), como autarquia diretamente subord: fa 20 MEC, A criago do INC reflete o processo de reenfatizacio da cultur jo Estado que vai se desenvolver ap6s 64, ou melhor, de “transigGo da poli tca de discreto auxilio para a de uma decidida ago cultural’ (4). Ainda em 1966 ¢ criado 0 Conselho Federal de Cultura, simétrico a0 Conselho Federal DAHL, Gustavo. Cinema Novo © estruturas econdmicas tradicionaixReviste Civil ‘de Educapo, que entre outras atribuigBes deve formular a politica cultural do pais, promover programas culturais e estimular a criago de Consolhos Esta: dduais de Cultura. No dia 27 de feversiro de 1967, na instalago do Conselho, disoursa Castello Branco: “Nio estaria concluida @ obra da Revoluco no campo intelectual se, apés trabalhor t8o proficuos em beneficio da educaco, deixasse de se voltar ‘para of problemas da cultura nacional. Representada pelo que através dos ‘tempos se vai sedimentando nas bibliotecas, nos monumentos, nos museus, no teatro, no cinema e nas varias instituigSes culturais, é ela, naturalmente, nesse binamio educaglo e cultura, a parte mais trangiila e menos reivindicante. Poderia dizer que & a parte dos cabelos brancos, e talvez por isso, jé segura do ‘que fez e do que fard pelo Brasil. Cumpre, porém, dar-ihe, principalmente, Condiedes de preservacS0 e, portanto, de sobrevivéncia e evolucao" (5). Voltar-se para os “problemas da cultura nacional” ainda significa pre: server um patriménio, sustentar um velho, embalsamar um morto. A cultura inda é pensade como patriménio seguro, a parte mais trangiiila e menos rei- vindicante, em face das instituigSes de ensino que espocam sob a pressio de- mogrética e a agitapo estudantil. No se incluem ainda nas formulagées do governo as produces menos trangiilas e mais reivindicantes. O Cinema Novo se desenvolvera na sua autonomia gritada em relaco a0 Estado, mas chega @ hora da convergéncia, e © INC, embrio da Embrafilme, organizaré a produ: ‘680 cinematografica brasileira e poderé controlar esse posstvel "quisto rebelde da produgéo simbélica nacional”, essa “ponta de lanca da cultura brasileira dos idos de 60" que fora o Cinema Novo. As autras produgBes menos trangii las, s€ necessério, cuida delas a censura e 2 repressdo, que néo formulam. Bas- ta exclui-las do cenério nacional, exclufdas que esto da discurso oficial sobre aculturs No entanto, hé uma tendéncia infatizar essa drea antes obscura para 0 poder piblico, a separar educagdo e cultura, a comegar a falar de cultura ‘Comeca a esbocar-se a transieSo do discreto aux lio para a acto cultural deci- ida. Essa passagem porém exige a entrada em cena de um “novo conceito”” de cultura, que s6 consegue ser articulado no governo Geisel. Entrementes 0 INC, ¢ toda a legislago protetora ao cinema que é deslanchada a partir de entio, explicase, como de resto toda justificativa ideolégica da RevolucSo, ‘como insténcia organizadora de um caos considerado nocivo: "0 INC surgit ‘num momento em que as exigincias do desenvolvimento, embora acelerado, ‘assumem feigo cabtica, devido & inexisténcia de um 6rgio estruturador dessa arrancada rumo & fase plenamente industrial que esté sendo implantada'" (6). ‘A nova arranceda modernizante se traduz em termos de organizaggo compe- tente © centralizada, realizada pela grande corporagdo; a transiclo para esse (5) Citadoin: Aspector de politica cultural braiers. (6) INC Hora primeira. Filme & Cufeua, 8 jul fago. 1987. modelo econémico corresponders, nocampo daculturs, & transicf0 do auxitio to para a intervene decidida. Essa posigSo 6 adotade claramente no governo Geisel através da Polit jonal de Cultura. Para explicitéa, 0 discurso oficial teré de conceituar ‘entidede agora prioritéria que se denomine cultura nacional. E um dos objetivos “definir¢ situar, no tempo e no espaco, a cultura brasileira” esta forma explicitar uma viso de cultura que jé circulava pressuposta A novidade histérica € » articulaco do conceito aos objetivos do regime, @ integrago 20 bindmio seguranca/desonvolvimento, a intensidade da ofen- 3. O Estado esté deveras interessedo na cultura, e monta aparelhos burocré- ‘para investir nesse interesse. A nacionalidade cultural é cuidedosa maté- de discurso e preocupario do Estado, quando antes ora questo que circu fentre grupos restritos de produtores de cultura erudita universté doa esse incentivo, Invade os meios de comunicario com programas ¢ {incios educativos. Patrocina livros, filmes e pesquisas, como esta (7). ‘A cultura nacional é abordada como uma esséncia comum integradora, est acima de todas as divisdes, emanando da persanalidede ou do esp/- do homem brasileiro, Trata-se de uma auséncia irredutivel, que, embora o seja concretamente definivel, poderé ser percebide, apreendida, captade. 105 em terreno espiritual, onde a producio no pode ser medida nem seu ter computado. Para perceber o verdadeiramente nacional, seria necossé- realizar uma operacdo sensivel, um movimento delicado do espirito. A cultura brasileira se identifica, desde os primeiros instantes de pro- lupo auténoma do perfil nacional, como um sistema de relagSes coeso, har nios0, unitdrio. ‘A historia da cultura brasileira é a histria do encontro ou da unio de 10s aparentemente refratérios entre si. Nao € demais ressaltar 0 fato, jd to conhecido e sempre invocado, de Ccdnstitui quase um milagre que 0 Brasil, & época da Independéncia, néo ha se fragmentado em outros tantos brasis, como de resto aconteceu com @ rica espanhola. Esse préprio fato, no entanto, em lugar de ser objeto de jheza, precisamente por parecer transgredir qualquer logica ou pular fora {A parte de 1975, entre outros empreendimentos, foram etlados a FUNARTE (Fur tdeedo Nacional de Arte) © CONGINE (Congeiho Nacional de Cinema) e 0 CNDA (Conseiho Nacional de Di ‘A Embrafilme fol reformutada, trrendo- Arica Nacional etevate. 2 da regra elementar de causa/efe de que havia alguma forca Entre os dispositivos de intervengo na cultura so fundamentals o Ie: aglutinadora oculta que resistiu ao esfacelamento” (8). jento, 0 arquivamento, a defini¢do, a selecdo. A operacéo sensivel deve- ré captar a nacionalidade através de um cuidadoso processo de burocratiza- (0 arquivo, 0 museu, a documentago (0 documentério) so lugares onde [preservam, se defendem, se esquadrinham as manifestagdes auténticas dacul "ura, onde se guarda essa memaria nacional ameacada, Lugares de classifioago, limites claros; esforco para delimitar 0 nacional e o estrangeiro. Movimento jaténico de distinguir o original e @ cépia, o modelo ¢ o simulacro, o aut €.0 falso, 0 puro e o impuro, Dialética da rivalidade, e no da contradi: Estratégias para controlar e submeter poderes rebeldes, produces con- ifusas, contraditbrias, inclassificdveis. Submeté-tas através de saberes Coesfo, harmonia, unidede, encontro, unio, incorporaglo, interac, mescla, sincretismo, soma, misigenacdo surpreendente de racas,aglutinanso riots, convivéncia quase milagrosa, superaeEo jeitosa de confitos:6 esse 0 cariter essancial do homem brasileiro, que Ihe confers vocapao abert, plu: ralista, cordial, hospitaeira. 0 discurso da nacionalidade harmbnica porém constata que © répido erescimento econdmico, 0 “darenvolvimentismo api ‘ado cegamente” acabaram por se constituir em ameacas a esta personalida de cultural, er elementos desapregadores e causadores de conlito, Cumpre a0 Estado acionar dispositivos de recuperacdo. Exorcizando a cada passo o fan- tasma do “riismo”, 0 discuro oficial define a cultura braieira em contra Ponto & enumeracdo dos perigos que a ameacam, e que podem “destruir ou afetarirremeciavelmente o etilo de vide nacional”: a industrializagio e a ur banizagfo aceleradas @ os tragosculturisimportados, Ao Estado compete de senvolver uma deliberade terapéutica saneadora ou preventiva para fazer face a esses perigos inevtévels que rondam a nacionslidade, A cultura tornase entio dea de saguranga nacional, & precito protegere incentivar a genuina cultura nacional conta ot valores iiauténticos ou estranhos. Cito Politica Nacional de Culture, mas eloaiente que a paréfrave: “Tidade de penetrar museus, escolas ou salas de proje¢do, do que pele localiza- "gfe de sua identidade. Menos por relegé-los a0 siléncio do que por tiré-los de Be ech a pagina nass wesaslcA ves cle Bc cs whee wean tartan dd ool le ar a produgiio de um saber sobre o “nacional”, e a identificaggo e valo- oh Rialto leapt peep boas tay I sacs “civ” nestahc poraiiede tai ele Beri hat tpi tocar err fra reo ra racial “Através do amélgama do conhecimento, da preservacio da criatividade fa “cor local"), também os produtos “menos dbvios” podergo circular sob 0 et Guninets plc Wanigeaces mo hen rie ee rscare ea nae ve te corn caper wa oxerbolt Saieote pllee nes ciermn Meoevare ames ttine: ard ecru sabi com certo de iad: lade nacional, gracas a harmonia e 4 manutencio de seus variados ele- A idéia de nacionalidade genuina, que deve ser protegida das ameacas mentos formadores. O desaparecimento do acervo cultural acumulado ou @ cercam, constitui uma recuperacdo a nivel oficial nfo sé de um velho desinteresse continua acumulaggo da cultura representaro indiscutivel d deslanchado pelos primeiros romanticos, mas uma palavra de ordem rvactio da personalidade brasileira, e, portanto, para a segu- das esquerdas que ganha voz especialmente na efervescéncia de 60: o anti- i: , Perialismo cultural, © Estado fica assim preocupado. com a “salvaguarda ‘Na estratégia do desenvolvimento, a intensificacdo dos objetivos pro postos esté chamada a representar uma dat apes fundamentals, Pois no bar Poss vilores cultuais, ameacados pela imposi¢#o macica, através dot taro 0 desenvolvimento econémico, a ocupaglo dos espacos abertos, a indus- “Novos meios de comunicagdo, dos valores estrangeiros" (9) e quer apoior dire trializaeio, 0 domfnio de natureza, a presence competitiva nas relagBes inter- nie as manifestapSes cultuais populares. Pense-se na revalorizaclo oficial nacionais, para que o Brasil concretize o ideal de assegurar-se uma posicdo de que andam tendo samba, choro, folclore, artesanato, literatura de cordel. vanguarda. € necessério que, do mesmo pasto, desenvolva ume cultura vigoro- 5a, capaz do emprostar-ihe personalidede nacional fort einfluente, 4 : NE ee ae etd eae i aqui uma curioss convergéncia com o pensamento dominante nas esquer cratica, a Politica Nacional de Cultura entrelace-se, como area de recobrimen- ‘como observa Carlos Guilherme Motta to, com as politicas de sequranca e de desenvolvimento; significa, substancial- ‘Considere-se, por exemplo, a Sintese de histéria de culture braileire, a presenga do Estado como elemento de apoio e estimula& integragdo INétion Werneck Soars: {do desenvolvimento cultural dentro do processo global de desenvolvimento r . brasileiro”. ‘cultura nacional’ surge alcada 20 plano de cate- DIEGUES JR., Menuel. A estratiyia cultural do governo o 3 operecionalidede de Politica Necional de Culture. In: Novas Trenter ce promopso ae culture. Rio de aneiro, Fundaedo Getallo Vargas, 1977. (8) Asoectos de potitica brasileira, op. cit. ~ alitica, A preocupago central ao autor surge com 0 proceso de des ccaracterizago nacional em face do imperialismo e dos ‘meios de massa’, como se a ‘caracterizagdo nacional’ fosse satisfatoria e suficiente, endo acobertasse 8 questo central das condigSes sociais e da natureza da produgao e consumo dos bens culturais. Ora, o controle social esconde-se sistematicamente na ideo- logia da cultura nacional” (10). ‘Muito bem. Sé que 0 acobertar e 0 esconder no dfo conta desse mo- vimento de preocuparo com a cultura nacional auténtica. O discurso da na- cionalidade no é dado vazio, néo se explica simplesmente como um acober- ‘ou anulacdo capciosa da contradicao e da lute de clas ses. A domina¢o ndo é simplesmente encoberta pela categoria harmbnica e de: € sobretudo produzida pelos discursos que poem. jalores", pretendendo realizar uma tarefa de purifica 0. A Politica Nacional de Cultura, sabendo-se excessivmente genérica, tem entre seus objetivos 0 incentivo de saberes especiicos sobre a nacionalidade, cujo efeito no meramente o de acobertar contradig&es, mascarar conflitos, ‘mas produzir a verdade do nacional, identificando seus produtos. Em 1974 6 criada a Embrafilme, 6rg8o vinculado 20 MEC, que incor- ora as atividades executivas do INC e do CENTROCINE (Fundacdo Centro Modelo de Cinema). Nos anos seguintes 0 capital social da empresa 6 reforga: do e @ produefo nacional de cinema aumenta substancialmente, © antigo INGE, que fora DFE, é agora DFC — Departamento do Filme Cultural. Den- ‘tro da Embrafilme, o DFC ¢ a Diretoria de Operagéies Néo-Comerciais sfo en: carregados de desenvoiver “stividades culturais cinematograficas stricto mai Nos seus primérdios, o INCE, a0 normativizar 0 documentério, explici- tava padres de linguagem (nitidez, clareza expositive, encadeamento I6gico, didatismo, eliminacio de ambighidades, descri¢do detalhada, abordagem mo- vimentada) e intengdes Ideolégicas (conduzir ums Gnica interpretagéo, dada ‘como correta, acerca dos fatos hist6ricos nacionais, exaltando vultos e pregan- do civismo), Agora a Embrafilme, através dos seus departamentos responsé- veis pelo cinema educativo ou cultural, evita a explicitacSo que passe por diri- ismo e prefere 0 discurso liberal e a exaltago da “criatividade". O processo se sofisticou. A explicitagdo se faz na generalidade de uma politica cultaral, lenquanto que nas manifestagdes locais a tendéncia é diluir as definigSes. No tentanto, mesmo recusando definir eritérios precisos de aprovago de documen- térios, 0 Departamento de Assuntos NJo-Comerciais organiza uma escala de rioridades que se articula diretamente com as diretrizes da Politica Nacional de Cultura, (10) MOTA, Carlos Guilherme. tdeofoga de cultura bretilire (1933/1974), So Paulo, ‘tia, 1977 20 erent lectanfetert aeiecchan camera area Bie tal retreive: ¢ cals ontigots Cccineriaie Be cr» srorme 1 Neciraltne, Inara & Entree do io bre De io gnc cai tera nail Be eed lca Ss Pee somal aod ead tee Be cele elena ey eres E Caras qi olny ba frum a Cutora Brad: dict di erties ou orto dos ets cl raise ena BEET protianes que strom 3 woetorordo de nie co ats Baharia colic Es hatte ban,» oi rool ds arvoinds Sone bier aivukicid: mean que on canis oon a Nene; fn 6g Fe belles nan rearfoot = 6 pakadimo fatal ous inflsecop eoncepte do od Eriadats Bs — os canitcs do dsento animate P store tls de casero sinter Bl folire a ratets laa ana forecast erate Eeracrjoshnase pois ce Be Ares one base 5 — Aciéncia e os cientistas brasileiros (11). spn: Mex ste ume defile as coneren de rin pare Bs ce nes clara? Ar dn es ws areas noes cojetion ie so ult genic, deer ter m puto cessed? ee stl sto hep wisi doa wove. dos wars Sa inte co wes Intuse Nacont do Chhna'a DAG, gue Be rats do nimiierdo dros, nucle pn de tart concorbe Biles pare excite fine eur Noel tomes ure soda soo smi «tres ato ml plastids nue devemperho emir E a idéia que nos ocorreu foi procurar o meio mais habil, que mais con- cults prs fe dmnercr ogi auperte sence quem deer uma obra de arte. E evidente que o critério de concorréncia publica _F¥0 & um crtério que se austa bem ao campo artistico, porque evidentemen 1) Citado por Leancrp Tocantins no sou preticio ao lio A Téenice de montagem ci Inematograticn, oo Karel Hoar 6 Gavin Millar. Rio de Jaleo, Civilizageo Embvatiime, 1978, te um artista de alto padrGo criativo pode epresentar um projeto, e outro artista, que no tem esse padrio criativo, no tem essas mesmas qualidades Intrinsecas de esp{rito, de criatividade, pode apresentar um projeto mais bara to, Ento nés ficariamos aqui neste dilema: entregar o filme a quem? Aquele {que nés achamos que ndo tem a competéncia necesséria para fazer a obra que 1n6s desejamos? Entdéo nés no chegamos a criar nenhum sistema. A coise sur- giu assim quase como um bom senso. Nés motivamos os grandes produtores, (05 homens que n6s conhecemos que tenham um curriculum jé extenso e que 'nés temos confianga no trabalho artistico que eles realizam, nés procuramos animé-los, estimulé-los, sobre certos assuntos que interessam a nés. Natural: mente, cada um também recebe essa sugesto dentro do seu ponto de vista, do seu critério interior. Um pode se interessar muito mais por literatura, rea lizar, por exemplo, um filme sobre Carlos Drummond de Andrade, sobre Gilberto Freyre, e 0 outro pode se interessar por monumentos historicos, Entfo dentro dessa tendéncia, nés procuramos encaminhar aqueles projetos ‘que nos interessam. Pergunta: Quer dizer que os critérios ndo esto muito definidos? Resposta: No, porque em arte tudo ¢ muito sutil e nfo se pode defi imprimir uma diretriz Gnica, uma diretriz rfgida. Nés podemos é ter uma dire- ‘riz bésiea, 0s assuntos que nos interessam, Pergunta: Mas néo ha maneira de traté-los? Resposta: Nés néo podemos interferir na obra de criagfo. Quando en- ‘tregamos um projeto a um doterminado cineasta, nés damos plena criativid de a ele. Nos atualmente dizemos para ele que gostarfamos que esse monu- ‘mento ou essa figura fossem mostrados dentro de um contexto social, porque hoje ndo se pode fazer nada sem situar tempo, época, enfim, todos esses ele mentos que cercam 0 artista criador, para que 0 pblico venha depois @ com: preender. Ns no podemos compreender, por exemplo, uma obra do século XVIII, sem sabermos quais eram as condi¢des Ccondigées sociais, as condipSes de transporte, as condicGes econdmicas, as ‘condigies administrativas, entim, todo esse complexo social que cerca o artis- ta, Pergunta: O senhor sabe que existem uns 2 ou 3 documentérios sobre Carlos Drummond de Andrade. Um bom documentario sobre Carlos Drum- mond de Andrade seria um documentério que fizesse 0 piblico perceber 0 que? ‘Resposta: Eu acho que para o Carlos Drummond de Andrade toda a storia dele. E preciso procurar primeiro Itabirs, 0 ferro de a, a casa em que ele viveu Id em Itabira. De- pois Belo Horizonte, como o influenciou aquele primeiro meio, aquelas pri- ‘meiras manifestaBes de poesia dele em Belo Horizonte, o que era Belo Hori Zzonte naquela época, onde ele comecou a despontar como o poeta maior em 2 s@ tornaria, Enfim, no se pode simplesmente fazer uma cronologia, dat dizer a vocé que & muito dificil essa diretoria manter norms rigidas a res: 9 de producfio de curtametragem, Nés temos que lidar com todo esse to, que é um elemento muito fiuido, muito dificil de se canalizar para (U aquele rumo que a gente queira, E depois temos também que respeitar ividade de quem vai fazer o filme. Isto & uma coisa essencial & cultura, iberdade de criaco. Nos estamos num Estado democratico, nfo estamos ium Estado totalitirio, Entdo a cultura é realmente uma manifestagSo livre jespirito (12). 112) Trecho final de entrevista concedida a mim por Leandra Tocantins, Diretor do Departamento de Assuntos Nio-Comeriais da Embrafiims, 22 ae méio de 1978. 2 HEROIS POSTUMOS DA PROVINCIA No capitulo anterior ficou em foco sobretudo o discurso oficial sobre a cul- tura. A partir de agora entra mais em cena o discurso dos produtores de cultu: 19, apreondido através de depoimentos e principalmente através da producdo {que me interessa: os documentérios sobre autor nacional. Essa producdo res ‘ponde de elguma forma as expectativas © formulacdes oficiais, Isto n8o signi- fica que os documentérios emanem ou reflitam a politica nacional de cultura, que sejam produzidos expressamente. HA uma conjuntura que favorece @ producZo que documenta os elementos caracterfsticos da nacionalidade, mito ‘agora articulado & seguranca nacional. No entanto o Estado ndo sabe especifi- ‘ear 0 que quer em matéria de cultura, nfo sabe produzir cultura: discurso liberal disfarca essa incompeténcia. ‘Mesmo sem se constituirem em resposta direta & questo da nacionali dade cultural ¢ aos incentivos oficiais, os documentérios sobre autor nacional ‘tm de se haver com a sua proposta, Como documentérios, partem de uma tradicéo de didatismo, objetividade, clareza expositiva, relacéo clara entre Jimagem ¢ texto, enfim, de uma cena de reduplicagées. Como documentérios sobre autor, desejam refleti ou refletir sobre um objeto que jécircula cult: Talmente — fazem um trabalho de “tercsiro grau”, ao pretenderem fotografar lum objeto cultural jé mediado por linguagem, jé explicado culturalmente, ‘uma instancia produtora de linguagem. Lidam com questo complicada: fazer filme sobre autor que produz literatura, sobre a literatura produzida por um autor ou sobre @ viséo dominante do “artista”, do “artista nacional’? Nao vo ‘em busca de um real que poderia mais facilmente ser confundido como pron- to, dado, como as carrences do Séo Francisco ou as cataretas do Iguacu. (© moro registro néo basta para captar esse objeto. “Autor nifo imprime no negativo.” (1) No maximo, © que imprime é @ 1 do autor, as capas de seus livros, os lugares que percorreu, e que ao serem impressos 8 se integram num circuito que monumentaliza o autor liteério, lando no uma “‘realidade’’ (embore sem divide fotografem uma pessoa, 1am iniludivel poder de registro), mas uma visEo circulante de literatura {1} HOLLANDA, Heloisa Buarque de: ver depoimento anexo, © registro nfo & inocente. € se autor nfo imprime, 0 trabalho do cinessta EN citer tsbeo 133 idler: petel exatonnts Soyo Aube ay implica consucio, vengSo do objeto ~ ¢ precio indgar do filme "sobre a de aula, & freaientemente assessorada pela citardo, qe, importante, re- aS sc Fe a oo ani nena AU ate Oe tice » figura do autor (é autenticada socialmente e reali a verdede pasa Ml rg alba cla ot tha haa filme j6validada pelo processo documental). A citagdo 6 sompre a citagso ‘Todos os filmes que embarcam no inevitével poder de registro do cine- fepritica/amiipo consagrado, e aparece sob forma indireta, vis voz do nara ma como prova documental da realidade acabam por fixar a literatura como eset Eon ehciielito) fimo: Antonio’ Lobel 9 Oxia Mat Ga funedo derivada de uma personalidade prestgiosa. Esta visio se produz na peaux referendam Augusto do Anjo, Tristio de Athaide referenda José Am: ss scroll eaenscar stent 36 mn eGo paces GalaTanre te panie bs o de Almeida. Otévio de Faria e Walmir Ayala eferendam Licio Cardoso. no existisse um processo de leita, com a sua especifcidade e subjetivanio {nio Cindido redime Monteiro Lobato. Monttiro Lobato, Mério de An: (melhor: metaforizpio), do qual resutaria uma reolaboragdo cinematogré- d . Anténio Candida, Franklin de fica, também subjetiveds. A experiéncia cinematogréica se aresenta como analogiafotogrética do real, mia, fluid, verossimil;a manipulago do real is alguns outros explicam Guimaries Rose com sofisticegdo universtiria, zador 6 amortecida e encoberta por imagens/texto/montagem que se apresen- socilogiaetoorialiteréria (no filme-ensaio de Paulo Thiago) tam como reflexo objetivo da “realidade do autor", verdede “natural”, No Persea ig: ire nak eee Iiileltbr posivel ume cuits de naturlzaybe. A igor dante wisi pes ac cA ster ba Seas Jo) net tora cia do autor: 0 texto parece duplic-e, dubia, ratitiéla, Tudo flu de uma fambém bem brasileira, o Nordeste. Tanto assim que depois da Bagaciraveio mmatriz poderosa de verdades, Rachel de Oueirés, veo José Lins do Rego. Realmente José Américo vem na Maries doch elon incase Intrsters no. volno noth ¥s olsirce) p> hora exata, para um toma exato, para ume transformagdo exata e necossria abandonam a pequena aula como amenidade, nfo despedem a cronologiabio- Bpere » sbertura da prove modernist, axitica, onde o verbete enciclopédico bem ida acompanha a iconografiageo- Otivi de Faria: “Conheci Lucio Cardoso por volta de 1934, o ano da axétice familiar, Nesta case nasceu, neste colégio estudou, dita o texto, refor- publiarfo de Mao, Um da Sci, o peta Augusto Frederico Semi pridoielpapel de aise ater, im editor, chamou-me para conhecero gtende romencista, Confesso que . eno ‘Mo inicio nfo acreditei muito. Mas era Lacio Cardoso, o nosso maior roman- “Nascido a 29 de abril de 1884, na Paraibe, Augusto dos Anjo s for “ciste, autor de uma obra das mals notévels da nossa literatura..." PD ral dees eee NO hay pa cased conte Exe Fes Antonio Cindido: “€ dificil falar em poucos instantes numa personali: tho dos Anjos, foi nomeado professor do colégio Pedro Il. Aqui langou em eae es a ater. ovens serine ane Pec 1912 seu dnico livro. Em 19 de julho de 1914 chegou a Leopoldina. E em 12 TE ae Teac ea cele Hesraveciore do mesmoana Audie marianis entra o passado @ o presente. O s0u estilo a sua concepeio de literatura eram “Lacio Cardoso passa a sua infincia em Belo Horizonte, onde cursa 0 ‘oltados para 0 passado, mas a sua personelidade, a sus concepedo da vida, colégio Baro do Rio Branco. Nessa época comera o interese pela literatu 5 suas atitudes eram todas voltadas ndo apenas para o presente mas para o No ano de 1923, foi com toda a familia para o Rio, onde fundou um jornal- “futuro, Velamos 0 caso do seu pessimismo. No tempo em que era moda no Zinho que ele mesmo redige. Comeca a trabalhar na companhia de seguros do Brasil considerar o homem brailero do angulo de uma certs euforia otimista, poeta Augusto Frederico Schmidt, proprietério também de uma editors que Monteiro Lobato teve a coragem de operar uma verdadeira desmisificacdo funcionava na travessa Sachet. Schmidt descobre no seu funcionstio um ta. através do &ngulo pessimista com que encarou 0 nosso homem rural, pondo as lento para @ literatura. E no ano de 1934 edita Meleita, romance escrito por Coisas nos devidos lugares. No entanto é curioso que esse pessimismo néo 0 LLacio aos 18 anos, baseado na fundero de uma cidade por seu pal. Licio Aenha levado a um negativismo. Pelo contrério, as suas atitudes, tanto na vida ‘Comeca desde entdo a ser motivo das discussBes nas rodas iteréria, que passa Quanto na literature, revelam um desejo de trabalhar em setores que visavam 2 freaiientar na companhia de varios intelectuais, como Marcos Konder Reis, 8 construego desse homem, visavam a methoria desse homem. A sua confian- ‘Augusto Rocha, Murilo Mendes, Otivio de Faria.” G2 na infin, or exampo, 3 que dedicou grande parted su obra 2 sua Contianga naz possibilid indir no Brasil, E preciso no es- "Nesta caso, «15 de novernbro de 1915, om Corumbé de Golds, nasceu Bi perrie ate Maras Lobatse tnmavou pelt carols 30 art, Qos fF € passou sua inféncia Bernardo Ellis Fleury Santos Curado, Corumbi 6 uma Iiicice orecutiotes da Wobel carbperitw do’ patroleo, Portento nbs 080 dete cidade pacata, de poucos habitantes, 2 maioria doles parentes. O vilarejo co- os encarar Monteiro Lobato do angulo da sua oposicS0 30 modernismo, que megou a surgir em torno de ume mina de ouro explorada a partir de 1750 foi 2 corrente mais viva da literatura brasileira, 0 que levaria a considerélo (....), Em 1995 Bernardo leu A Bagaceira, depois José ‘como um antimodernista, mas encarar apenas a modernidade total da sua ti a necessidade de contar coisas eomo eles contavam . ersonelidade 36 a Walmir Ayala: “Devo a Licio Cardoso a revelacZo de uma jyventude ‘que no cessa. Quando eu o conheci estava fugindo. Fugindo de uma socieda: {de que impunha padres convencionais, fugindo do uma familia, fugindo de lum meio que me dava uma mentira em troca de um ajustamento mediocre. Ele era entao como um principe banido, como um cacador solitério (. . .). 'Nas longas noites de insOnia de seu apartamento, ele atravessava com um copa de cristal na mdo, embriagado de vinho e corwvivéncia. Era desde entao, pa sompre, um grande pesquisador das almas, aquele grande pesquisador que, ‘além de dar @ toda uma gerago que o seguiria a liglo da coragem de viver, se transformaria no grande romancista de A Crénica da casa assassinada’”. Etc. ‘A nivel de efeito da citagz0 no interior do filme (e nao da inteligéncia ddos seus contedidos), 0 depoimento autorizado, quer testemunhe contato pes- soal, elogie sinceramente © amigo ou opine analiticamente, funciona como cconfirmaedo da importancia do autor, da sua validade cultural, da sua circula ‘plo como personalidade, e como avalizador da propria verdade do filme, que desta forma se eutoconsagra objeto cultural reconhecido. Exatamente como (8 proficios, orelhas e apresentacdes de livros ou catélogos de exposies0; ‘ou como a consulta 4 autoridade num artigo jornalistico vulgarizador de idéias cientificas, e que sem essa consulta teria sua vulgarizago desamparada ‘ou enfraquecida no seu poder de verdade. ‘Ao abordar um autor literdrio, 0 moderno documentario poder livrar 2 das injungées da aula tradicional, afastar-se do didatismo estrito e da expo- sigdo linear de dedos, como que querendo dizer que @ literatura & qualquer coisa de “sensivel”, que 0 autor literdrio, como “artista, ndio merece trata ‘mento didético seco, A fluidez e a naturalidade podem ser conservadas mes ‘mo sem 0 aparato da depuraco jornalistica. A neutralizacdo pode ser preser- vada mesmo que o texto parera transgredi-la, audatério. A fotografia garante ‘a prova documental: estamos diante de um autor, em carne e oss0, em casa @ no oficio, ou do rastro de documentos que preenchem seu vazio. O texto informa, elogia e sublima, néo importa, numa sintaxe impessoal, através da locugdo cultivada que parece emanar do proprio ambiente do autor, da sua especial sensibilidade. © documentirio moderniza a sua pedagogia “Ha dez anos que ele e a mulher podem ser vistos todas as mands, sem- 'pre juntos como um casal de namorados, caminhando pelas ruas do bairro de Petropolis, em Porto Alegre. E voz corrente que formam os dois, hé mais de 40 anos, um dos pares mais perfeitos de marido e mulher, Se eu tivesse escrito ‘uma personagem para ser minha companheira, confessa ele, nfo teria conse- ‘guido inventar uma criatura to completa. Esse passeio a conselho médico é ‘também para ele uma fonte de inspiracio. Sao lembrangas de outros lugares @ do outros tempos, trazidas pelo vento dos pampas. Matéria-prima indispen sével na elabora¢o dos seus romances. Muitas idéias fixadas para sempre em seus livros nasceram assim, durante suas caminhadas, ao sabor da imaginacko, Ele no dispensa a presenca da familia. O cl dos Verissimo esté sempre reunido a seu redor. Os filhos, Luiz Fernando @ Clarice, @ of netos, motivo permanente de alegria e distraco.” Erico passeia num campo de trigo. Caminha com a mulher pelas ruas de Porto Alegre. Retne-se com a familia e brinca com of netos. Felicidade con- jugal, Intimidade fainitiar, (nspirago artistica sob forma de inspiragao de ar. O grande escritor também ¢ humano, & gente como a gente. O espectador ode comprovar e privar da intimidade do escritor famoso. A fotografia é 0 meio mégico de comprovardo e penetragdo, e 0 texto 6 o parasita que enxerta ‘uma moral nessa prova viva. Perecendo participar da objetividade da fotogra- fia, a mensagem verbal se "“inocenta” (2), negando-se como enxerto de valo- res (humanizagio do idolo, exaltacdo da familia, sublimago do processo de produgio literéria) e apresentando-se como traduco de um cotidiano. O es critor poueo fala com a voz. © narrador 6 a voz onipotente que, sem elucid- lo, nos aproxima dele “Estamos em Salvador, no n@ 33 da rua Alagoinhas, no bsirro do Rio Vermelho, um dos enderecos mais famosos do Brasil. Ld vai seu ilustre morador pela varands. A casa toda é uma varanda, cheia de recordag&es das 3 andancas pelo mundo. A familia & 0 prolongamento natural da sua pe ide (... . ), Junto dos netos ele se transfigura, ¢ todo vove. Quando no std em viagem passa a maior parte do tempo na intimidade de sua casa, sem- bre acolhedora e aberta a todos. O telefone (...) 0 liga a Salvador, & Bahia, 20 Brasil e 20 mundo, Sua familia se prolonga nos amigos, como Mario Cravo, ‘Scliar, ¢ outros artistas plasticos que ele tanto estimou e prestigia. A sua volta ‘se retinem pintores, escultores © gravadores de Bahia: Mirabeau, Jenner Au- gusto Calazans Neto, Sua casa € uma exposico permanente de abras de arte No Mercado Modelo continua a encontrar velhos amigos a fezer novos como sempre. Os outros sé0 homens do povo como Camafeu de Oxossi, {é onsagrados como personagens seus, porque em todos os momentos da sua ‘ida ele continua sendo fundamentalmente o escritor capaz de captar nos seus Fomances o sentido da realidade que o cerca, Este 6 o segredo da unidade da sua obra |... ). Sem se deixar afetar pelo sucesso, ele continua o mesmo ho- ‘mem simples dos primeiros tempos, quando ainda nfo sonhava conhecer Drivar de amizade de tantas figuras de fama mundial como Niemeyer, Neruda, Belafonte, Polanski . .. Sua vida tem sido uma luta permanentemente fesa de um ideal de justica social ., ." Ete. ‘Trata-se de Jorge Amado: muito prestigio em casa, no pais e no mundo. Armizade, hospitalidade. Espirito caseiro, simplicidade, valorizagso da familia, RelacSes com gente muito famosa e importante, Contato com a verdadeira Tealidade brasileira. Alianga e identificardo com 0 povo, afinal consagrado e Prestigiado nos seus livros. BARTHES, Roland. A mensagem fotogritica In: LIMA, Lule Costa, org. Teoria de ‘cultura de massas, Rio ds Janeiro, Sop, Bs 310. ‘A imagem repete of contatidos do texto, refazendo at poses estereoti padas da cordialidade (falar ao telefone, abragar amigos, andar descontraido pela casa, rir simpatico) e do prestigio (sorrir ao lado de celebridades, & von tade, tomar cafezinho em roda de artistas). A decifraco da pose é imediata, por depender do repertério iconogréfico mundano do espectador (coluna so cial, revista Manchete, Jornal Nacional). Acima de tudo, é preciso insistir na naturalidade das tomadas, no seu aspecto informal, no representado, no ensaiado. Vinicius de Moraes passeia de automovel em Ipanema, ouve mdsica € escreve no estudio desarrumado. José Condé posa com a familia e 0 cachor: ro em fronte & sua casa. Afonso Arinos mexe com passarinho na galola, per: ‘corre o jardim do casarfo, confraterniza com a familia do chofer. Foi superada a aula, ou consumada a sua versio moderna; abandonou-se ‘a seqiéncia linear a montagem eronologicamente orientada. Amenizando a reocupa¢go ordenadora, expositiva (velhos principios do INCE), o documen- tério fixa momentos informais do autor que, bem selecionados, reforcam @ Imagem da personalidade simpética e proxima de nés. H8 porém o caso em que a literatura, fungdo dessa personalidade, deve ‘aperecer mais efetivamente. Sdo dois os modos bésicos dessa apari¢0:0 mo- do mais simples, que 6 a locugio direta do texto literério, acompanhada de ilustrag8es do texto; ou o modo mais elaborado, que poderé incluir a locueso ilustrada, mas que constitui um processo elaborado de configuraco de uma smbiéncia’", uma conjugae30 de efeitos cinematograficos que “sugir modos de um texto, prontos para enternecer e arrepiar 0 espectador. A lite- ratura 6 uma certa ambiéncia, diz essa conjugacdo. Poderemos deixar de lado {8 obsesséo informativa, a exaltacio do grande vulto, o sério referendo critico, €@ avancar rumo ao texto propriamente dito, mas sem fazer transparecer a pro: ‘duggo de uma leitura, O texto deve mostrar-se,fluir naturalmente, como que falando a si proprio, ilustrado por imagens que o ‘com ou sem o texto, deve passar como criaedo sublime que um conjunto especial de efeitos sabe captar. Verso de Vinicius: “Tende piedade des mocas pequenas nas ruas trans- vversais/ Que de apoio na vida s6 tém Santa Janela da Consolaco”. Imagem: Adriana Prieto © Neila Tavares, cenografadas de mocas de subirbio, olham melancélicas pela janela do sobrado, e descem depois uma rua transversal ‘Outro poems de Vinicius: “O Operério em construgo". Imagem: operério hum prédio em construedo, olhar perdido na paisagem da cidade, percebendo ‘que “tudo, tudo 0 que existia/ era ele quem fazia’ Texto onomatopaico de Guimaries Rosa, descrevendo metonimica- mente uma boiada, Imagem: close-up de ancas, patas e chifres, Poema de Ban- deira: “Evocago do Recife”. Imagem: paisagens do Recife, criangas brincan- do ("Recife da minha inféncia onde eu brincava de chicote queimado”), ven- dedores ambulantes (“o vendedor de roletes de cana/ 0 de amendoim/ que ry chamava minduim @ nfo era torrado era cozido”), 0 povo circulando na livre (“A vida no me chegava pelos jornais nem pelos livros/ vinha da do povo na lingua errada do povo"). Outro poema de Bandeira: “Ultima n¢o do beco". Imagens: becos, sobrados e mulheres da Lapa. “Vou me bora pra Pasérgada’: navios, jangades, mar, horizonte, prainha para siaca. Toma-se um tema ou um substantivo do texto literdrio e procura-se etematizé-lo na fotografia, Efeito: desmobilizago do texto, sue desmetafo- izaro e esvaziamento de uma produgdo de leitura, A relacdo redundante en: ‘te texto e fotografia passa um nivel de leitura que percebe uma relagso ime: diata e transparece entre a leitura e o real A literatura seria uma bela maneira do repetir o real. A literatura 6 sobretudo uma estetizagso do re Os exemplos acima nio sf0 apenas casos de primarismo de leitura ou da Lutilizaco Sbvia do método do documentério (imagem que mostra = texto {que confirma): traduzem um conceito de literatura, Esse conceito é recons- ‘tuido através de todo um conjunto de efeitos que pretendem repetir o que ‘$eria o processo estetizante do texto literério: fotogratia de efeito, som pun- gente (geralmente popular e melancélico, a sugerir as “raizes” da inspirago), }ternando-se estrategicamente ou superpondo-se a um texto bem escrito, {com rasgos posticos, sugerindo a inefabilidade do literdrio, e lido por atores smplares ou narradores ternos: “Guimardes fez da lenda simbolo da vida, mostrando que na literatura 48 fantasia nos devolve sempre enriquecidos & realidade do cotidiano, onde se tecer os fios da nossa treva,..” : “Lucio Cardoso 6 0 ultimo poeta do romantismo em crise, Ultimo autor f personagem de uma drvore humana onde os pdssaros esto cantando 0 s- ‘ertor. Os péssaros em crise. O abandono digno daqueles que se retiraram n: Desquisa, viveram com ela e dela fizeram um magico e estranho hino de vida ¢ eslumbramento. Seu verbo esti tracado em cada mundo, em cada esquina, ‘em cada mesa de bar, onde sem sabermos porventura entornamos 0 nosso ‘e0p0 no nome escrito sobre a tosca mesa, e estamos manchando uma lem- branga, ¢ estamos embebendo de éIcoo! e descuido um coraggo humano”. AA presenca do narrador poderé ser dispensada ou reduzida, limitando-se 4 intervengGes mais sbbrias,sofisticando assim a criago de ambiéncia, Pode-se vitar, com mais gosto, 0 comentério do inetével, a redundincia do belo, 2 explicitaedoexcessiva. Pode-se apenas insinuar a biografia do poeta, ou me- recriar ambientes que ilustrom paisagens vividas e referidas no poeme, Selecionar trechos que mencionem locais filmaveis, para mostrar onde a visio ‘do poeta teria se embebido. O préprio monumento fica mais discreto — um “busto de Bandeira surge répido, sem referéncias, fotografado com grande.an- ‘Qular efeitos de luz O cinema absorve com perfeigio © conceito personalizado ou sublime do literério. Luminosamente reconstr6i um conceite que js circula. a Iustrar com arte, Emocionar ou enternecer o espectador, para provar ‘que a literatura é qualquer coisa de superior, que nos eleva e transcende. Prin. cipalmente que ¢ indefin‘vel, inefével, algo que s6 se pode captar na conjugs fo cintilante dos efeitos cinematogréficos. A captago da ambiéncia através cde imagens bem fotografadas — o sertiéo de Guimardes Rosa ou de Bernardo, Ellis, o Recife de Bandeira, cidades natais, feiras populares, sobrados, vaquei: ros, vendedores ambulantes, tropel de gado — 6 facilmente assimilével como incursio pelas belezas e tradi¢8es do pats, paisagens da pétria onde os poetas se inspiram, meméria nacional, A literatura é aqui mais um dos nossos valo- res, como 0s sertdes 0 o$ casarios que 0 excritor pisou: manifestacées sublimes ccruza-se com a ideologia da culture nacion: Esta abordagem cintilante desaparece no documentério “politico”, Identificado de alguma forma a0 projeto cinemanovista, que conferia a0 ci nema funglo conscientizadora. O autor literério & manejado com o objetivo de veicular conteddos de esquerda. Comparece entdo a versio politizada do padrlo documental. Sério, solene, o texto explicita sua furia solidéria a Lima Barreto, vitima do poder, pagando o crime de ser preto e pobre, “espremido nos vagbes, comprimido nos escaninhos da burocracia oficial”. A iconogratia familiar, a cronologia, as imagens da localiza¢o geogréfica, as capas de livros, ‘0s manuscritos auténticos, 0 enquadremento do timulo so manipulados no sentido de enfatizar menos o escritor Lima Barreto do que a figura do oprim do @ marginal, louco ¢ perseguido. Falar de um determinado autor é fazer ppassar certos contedidos, é veicular uma luta, é drigir um aprendizado politico ‘ou conquistar narcisicamente uma platéia "jé conscientizada" A tradicional biografia toma as cores da panfletagem. E se 0 assunto for Monteiro Lobato, 4 acuidade biogréfica e o retracamento escolar das origens do autor recuem sem que recue 2 inten¢fo militante discursiva, dirigindo o material para a transmisso de uma mensagem, Interesse aqui o escritor que no se /imitou 4208 interesses puramente literSrios, que denunciou a sociedade burguesa, 03 ‘estruturas arcaicas do pats, que foi atiredo no hospicio ou no exilio, autor literério 6 um pretexto? A literatura ¢ atividade menos politica? Ou ento sb interessa enquanto tematizadora de politica, enquanto apéndice de uma bio- gratia politizavel? "Nesta pequena casa suburbana, couberam duas tragédias. Mas houve também espaco bastante para Lima Barreto comerar a escrever. Para sobrevi- ver e sustentar a familia, tornou-se por concurso amanuense da Secretaria de Guerra. Como artista que gostava de ver o tom verde do céu a0 anoitecer, era ‘brigado agora a gastar seus dias no meio de estantes empoeiradas. Como fun: ‘elondrio pablica, tinha pouca coisa a fazer e aproveitava o tempo para escre: ver seu primeiro romance ( subGrbioe. diariamente Lima Barreto fazia 0 trajeto obrigatério do morador pobre da cidade. Espremido nos vagGes, comprimidos nos escaninhos a }. Da antiga Central safam os trens para da burocracia oficial, Lima nfo tinha tempo nem gosto para freqientar os ‘efreulos literérios. Buscou na boémia, no alcool, 0 derivativo para a sua dor (. .. A loucura foi a sua préxima etapa (. ..). € a policia, na impossibil ade’ de_jogi-lo no cemitério dos mortos, jogava‘o no cemitério dos vivos (..... ). Era 0 protesto vivo & sociedade burguesa que sua pena tanto ridicula: rizeva...”" "0 itinerério da modernidade do escritor e do homem de acdo que foi ‘Monteiro Lobato tem inicio na fazenda Boquira, que recebeu como heranca do seu avd, Visconde de Tremembs, Ai, o ex-estudante @ js promotor piblico transforma'se em fazendeiro, investe capitais, renova os cafezais nas terras iva esgotadas, numa tents de salvar 0 patriménio em decadéncia. De seu fracasso porém surge 0 escritor que desmitifica 0 idealismo otimista de entio, enunciando a realidade do homem rural brasileiro na figura do Jeca Tatu Artigo de jornal e logo apéndice do livro de contos Urupés, 0 Jeca explode ‘na pasmaceira geral dos meias literérios e reacende a fogueira da questéo so- ial. E 0 escritor transforma-se em editor. Sua atividade bisica porém comeca a deslocar-se de interesses puramente literérios. A polémica (... .) © compro- ‘meteria durante toda a vida na busca apaixonada de solugdes econdmicas & socials para o problema brasileiro. O sitio do Pica-Pau Amarelo permanece bolo do antidogmatismo, do reino em que a poesia junta o real a0 Jimaginério. Surgida como um empreendimento experimental da sua bem-su- Cedida atividade editorial, a literatura infantil realiza a imaginaedo postiea do eseritor, que cada vez mais se preocupa com os problemas do desenvolvimen- to do pafs(... ). Ligando seu destino & modemizado da estrutura econd- mica e social do pais, Lobato continua a ser incbmoda interrogagSo entre 0 ppassado.e o presente, Entre acertos ¢ error, langado entre o pessimismo e a Confianga no futuro, um exemplo e uma adverténcia.”” ‘A pessoa do autor abordado por um documentério, viva ou morta no ‘momento da filmagem, engendraria enfoques diversos? Os filmes sobre escri: tor morto tém de enfrentar o problema dessa “auséncia” (se se acreditar que a fealidade do autor & a sua visibilidade), @ se voltam mais facilmente para os documentos, as fotos fixas, as imagens localizantes, ¢ fundamentalmente para @ voz de narrador bem respirante que pretende suprir a auséncia com sua ex- posiefo — seja informativa, laudat6ria, politizads ou comovente, No entanto, fesse narrador, quase um cacoete do documentério, pode insistir em controlar © filme, sou objeto e seu espectador, mesmo diante da possibilidade da outra ‘voz, do “depoimento 20 vivo" do escritor, como no caso de Erico Verissimo, Jorge Amado ou José Américo de Almeida, Ou entéo considera essa possibi Tidade @ code lugar discreto ao escritor, que poderé confirmar ao vivo a verda: de na narracdo, como no caso de Pedro Nava, Afonso Arinos ou Bernardo El- lis, E finalmente hé 0 tipico filme-depoimento, quando a voz do narrador de- ‘aparece ¢ 0 excritor se dirige diretamente 20 espectador, tipo reportagem direta, como no caso do filme sobre José Condé ou no Drummond visto por F. Sabino/D. Neves. 3 Seria possivel fazer uma classificago geral dos filmes sobre autor a par. tir da problemética da narracdo: filmes sobre escritor morto (narrador neces sariamente no comando} e filmes sobre escritor vivo (trés tipos: narrador no ‘comando, escritor emudecido; narrador alternando com 0 escritor; escritor depondo sem um narrador presente). No entanto, parece que esta classificae8o no dé conts dos documenti: rios sobre autor nem interessa para uma abordagem que pretende perceber de ‘que forma a literatura apreendida pelo cinema documentério, tendo ainda a desvantagem de centrar-se na narraedo a nivel da voz que narra (centramento aids bem proprio do documentério). O depoimento de José Condé, por exer plo, segue o mesmo movimento linear e dirigente de uma natraco externa ilustrativa, E © movimento de registrar 0 depoimento reconfirma a velha fun ‘980 do documentério que acredita estar nos colocando diretamente em con: tato com a realidade viva do autor, agora sem interferéncias. O que interessa portanto no é bem quem fala ou deixa de falar. Na verdade no me interessa exatamente fazer uma classificagdo dos filmes, mas localizar padrées, tragos, constantes que apontam para determinada visio de literatura, No hé divids de que alguns filmes s80 t/picos: hé os filmes estritamente didéticos (Euclides da Cunha, de Ruy Santos), 0s da personalidade prestigiosa (Jorge Amado), 05 politizados ou sociologizantes (Lima Barreto), 0s da ambiéncia sublimada (D0 sert8o a0 beco da Lapa, nos trechos sobre GuimarSes Rosa e Manuel Bandel +a) etc, Alguns utilizam virios padrées, passando do didatismo biogréfico para 2 sublimago (Augusto dos Anjos, Licio Cardoso), ou tudo isso e mais uma ou outra explicitaego populista (Bernardo Ells). Em outros filmes os limites as tondéncias se obscurecem e uma classificacdo seria camisa-de-forga. O que ime interessa 6 a identificago desses padres e dos seus limites ideologicos e ‘no o enquadramento de uma filmografia. Interessam certos temas na aborda- gem do objeto autor: didatismo, biografismo, referendum autorizado, relacio imediata ou ilustrativa entre imagem e texto, comando atribuido basicamente 0 discurso do narrador, sublimacdo e estetizacdo: processos que sublinham ‘uma posi¢do cinematogréfica que pretende retratar, expor, refletir, naturali: zar. Interessa 0 conceito de literatura que a utilizacdo desses padrées veicula: literatura como matéria escolar, literatura como funcfo ou apéndice de um vwulto, literatura como estetizaco do real ou aproveitamento sublimado de ‘uma ambiéncia originéria, Literatura como um dos elos de uma seqiiéncia de reduplicagBes, que o cinema quer imitar. “O retornar (exausto) do chavio da vida e da literatura em complementaridade sadia.” (3) Literatura como dis- curso que complementa e reflete uma vida, uma ambiéncia, uma paisagem, ‘uma populago; que realiza enfim uma integracgo aperfeicoada pela presenca de um “estilo”, manejo sincopado de palavras por um mestre do idiom (2) COELHO, Eduardo Prado, A palvre sobre »paievra. Porto, Portucslense, 1972, . 136. “4 Literatura como valor da Cultura Nacional. (Ou entéo, ndo se trata em absoluto de literatura, e é preciso alterar 0 rotulo, como diz David Neves: historia em quadrinhos, arqueologia ou inicie tiva empresarial bem sucedida que desaponta a "boa'” cultura? Daqui em diante passo a examinar processos que estabelecem certas tenses © resisténcias no interior deste sistema de padres e desta forma pro- duzem uma leitura nove, subjetivada (e no necessariamente subjetivante) do texto literério que nfo é simplesmente a projecdo da leitura dominante, Nove- mente evito partir de cada filme e fazer afinal a lista dos filmes diferenciados, como num gesto purificador. Parto de determinados tragos, de certos rom, mentos, de tendéncias que sero exemplificadas em alguns filmes, dada a © cluso arbitréria de outros, Interessa-me mais o estabelecimento de um siste ma de diferencas do que uma listagom insuspeita. 6 DESAFINAR 0 CORO AA diferenca se introduz no momento em que o cinema recua da posigo oni potente da aula, da comprovacdo, da reduplicacéo, da naturalidade. No hé registro objetivo, mas manipulaedo, leiturs, recorte — a diferenca se introduz 2 partir desse reconhecimento. Muda a relacdo com 0 objeto “autor” ou 0 conceito subjacente de “iteratura”. A diferenca se produz no sentido inverso do documentirio. Ao invés de retratar, expor, explicar, naturalizar, poders entio subjetivar, metaforizar, sllenciar, encenar, ignorar, ironizar ou intervir criticamente nos monumentos, documentos e outros tragos do museu do au- tor; recusar erigir esse museu; assumir a parcialidade de toda leitura; buscar uma analogia com 0 processo fragmentério de produgo do literério; mencio- nar o préprio filme, tornar consciente a intervengS, referirse & feitura cine- matogrética; desbiografizar, como que desfazendo a complementaridade sadia entre vida e obra: ha tensGes neste jogo, e tenses que no “limpam" a funo documental, com todo 0 seu poder de registro verdadeiro, mas se fazem no seu interior. 0 proceso de produgdo de um filme documentério sobre autor de lite ratura no visto como fixagio de momentos reais de um escritor ou de mo- umentos (dentre os quais a literatura) que indiciem seus momentos reais, ‘mas como forma peculiar de representaco de uma leitura de textos produzi dos pelo autor. A propria pessoa do autor, se presente na sua fotogenia, no se expe como comprovagdo natural de um evento, mas se situa no quadro de uma interpretacio. ‘Mesmo que haja o desejo de reconstituicdo, ela ndo se basta a si mesma, ‘io justifica 0 filme. “O Bello poeta nasceu de um elenco considerdvel de fo- tografias, informacdes e documentos e, desde o principio, apesar de preten dr reconstituir a trajetoria da viagem brasileira de Cendrars, elegeu como per: sonagem principal o texto. No deve parecer estranho que o destaque num filme sobre escritor seja 0 texto.” (1) Apesar de: 0 filme se centra no texto apesar do peso da documentago, Em tenso com este peso: ndo se furtando (1) Carlor Augusto Call comenta sau filme sobre Blake Cenarars no artigo “Candrar {ita realidade" publieaco ino Ivro de Alexandre Eulalio venture brasiara de Blaise Condrars. Bresilla/S80 Paulo, Qutvon/IN. 1978, p. 243. a0 documento, 0 filme ousa sor fieeo, Mais: o filme se reconhece fundamen talmente fice0, Céndrars ou 0 texto de Cendrars ou a iconografia considers. vel s80 personagens dese reconhecimento, No se considere a frase final da citacSo apenas ret6rica. E note-se que a éntase prevé o seu reverso: no deve parecer estranho que 0 destaque num filme sobre escritor seja 0 texto. Isto é dito porque tem parecido estranho. (© documento fascina porque dé a sensago de que ¢ # fonte do discurso verdadeiro, excluindo insensatos mediadores, fingimentos, ficedes. Hd que ‘passar por este fascinio. A passagem padréo cola a presena do documento a imanéncia da verdade visivel do mundo, ¢ & sua explicago sempre plausivel Passa pelo documento como prova. Jé @ passagem critica mexe com 0 do- ‘cumento como personagem de uma trama talvez passional. “O Bello poeta existe a partir de um contraponto, Enquanto & documentério antecipa o fic cional. Quando ¢ fic¢do remete ao documento, ao passado proximo, visto e vivido, Esta tensfo esté presente em todos os momentos porque foi assumida pelo cine-olho. Nao iré impedir que se configure 0 género cinematogrifico ‘conhecido como documentario.” (2) Seria preciso explicitar mais esta trama? Corrijo-me: a diferenca no se introduz exatamente no sentido inverso do do: ‘cumentirio, porque no apaga 0 género, mas inclui o desejo documentirio entre os seus desejos, Usa o documento como asticia do discurso, reinveste-o de ficeio, O documento no mais a fonte de verdade por exceléncia, “O Bel To poeta nao & isento de paixio.” (0 Posta do Castelo, 1959: (3) Manuel Bandeira encena o seu cotidiano, ‘As imagens dessa encenaedo nfo se apresentam como fixagdes de momentos reais de Bendeira que cumpria registrar para eternidade (embora possem circular assim). Se no, por que montar o prédio sujo do Castelo com a forma de trempe vazia de panelas, fotografados do mesmo Angulo, justapostos como formas estranhas assemelhadas por um gesto? Alguma coisa nestas seqiiéncias (2) EULALIO, Alexandre, A aventura brasileira de Blaise Canctars. Breslia/S8o Poulo, Guiron/INi, 1978, p. 248, ey [Na manobra histbriea que fago no capitulo I, localizando dole “surtoe” de filmes 5o- Was Woladae que ndo se inserem em ‘ae Jooquim Pedro de Andrade sob inados pelo INL (1959); os documents flor de Ruy Bandelrantes, © sobre A Case de Murio de Andrade (i965). € filme de Nelson P= Ieira dos Santos, O flo de Machado de Asis, que o diretor no gosta de lembrar (i964) Se meu interese fssehistoriogratar essa procucdo, eu podria pensar a | ssparecido no incéndlio do films de Humberto Mauro; 2. Inielatvasiolades em 50/60; 3, ime who @ 0 novo, Lima Barreto '1070), Monteiro Lobato (197) dos 90 'desbunds: pov-68 ("eontracultu Surto de cultura dé 70. Esta clssificardo foi referencia melo implfeta ao longo do {wabalho, embora o enfoque ndo sea especificamente este. Por curlosiade, vero dice cronolagico oe filmes, onde se pode ver limites indofinida, Interpenetrarces Je glad films 92- ~ Barbaro # nosso (1969); filmes co ‘nfo se confunde com 0 “simples estarem da cena, excede a cépia do motivo {eforencial, constringe 8 um leitura interrogstva” (4), em suma, se cistanci [ubitamente do referente — o.autor. A encenagéo silencioss do cotidiano, cor fada por acidentes que parecem néo "simbolizar” nada, que parecem est {ar 0s sentidos imediatos, se deservolve em contraponto & leitura em off de formas, €, por que no dizer, &auséncia de voz do narrador sabido, Poemas fu versos que no fazem apanhado, antologia ou representatividade, mas fapontam para um determinado ponto de vista, para a opeo de um angulo. Leie-se ‘Bolo belo", “Testamento” e "Vou-me embora pra Pasargada", ali so- bre as imagens ensaiadas pelo ator Bandeira a representar um personagem sol tério mas nfo depressivo; 0 que se configura sf0 as margons de ume leitura {que insiste om certos signot: 0 no ter, a falta, 0 obstéculo, 0 jogo da falta do desejo, a consciéncia de inacesibilidade, sem que esses signs precisem ser “ensinados” @ um branco espectador. Um certo Bandeira: uma certa repre ‘enso de corta marca de sua poesia, ‘A biogratia ndo comparece como suplemento explicativo. O que entra é ‘ume alusdo, uma representacdo de gestos cotidianos que se contrapem & tematizaglo postica da falta, instaurando a presenga de desencaixes entre 0 signo do vivido e 2 produede do literério. Cinematograficamente, 0 texto no ilystra a imegem, embore a relacSo entre os dois produza novos sentidos. As- sim como o literério nfo reflete 0 biogréfico, « reelaborario cinematogrética dde uma leitura de Bandeira ndo reflete o proprio Bandeira, Recombina, junta frogmentos, insite, ¢ inclusive introduz o arbitrério, 0 propriamente “pottico" faquele elemento de sentido que se afasta de um referente, que nfo copia hada. Cinematograticamente, constrbi-e um personagom, pola represontacdo do ator Bandleira e pela narracSo através de uma cdmara que busca identiticar: $8 20 olhar do personagem. Uma pretense ou “fingid'”objetvidade (="‘captar no filme a personalidade espiritual de MB”) (6), elaborada a partir da técnica dba subjetive livre indireta, explode afinal num momento de “subjetvidade rua e crus" (6). ‘A mesma subjetividade que a verso Bem-Te-Vi procura aplacar a0 en: ertar no filme (por que vocé deixou, Joaquim?) as cléssicas fotos fixas de Album de famili, es cares do autor pintadas por artistas consagrados, a vor do Rarrador que explics,elogia, conduz. A mesma subjetividade que Joaquim re 2xallatia severamente anos depois, num momento de “politizarSo", critcan- {60' pela identticagéo incondicional & figura do autor, como alis de praxe Rese tipo de documentério: “No Manuel Bandeira hé uma visio embarcads — (6) BARTHES, Rolando 7 ido, In: joland © Taresiro santide, In: Ezortores, intelectuas, professors fo) [sbes:Prevenca 0 158 2 eas Pedro Ge Ancrade, no antenroeto oie © porte do Cari, apren (9) PASOLINT. Pier facia A poorie Se novo cinema. Reva Oi EASDUINE. Praca A posto do Revista Civiiearto Braiera, Rio

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