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2 O “NOVO IMPERIALISMO” E A PERSPECTIVA AFRICANA DA PARTILHA Os significados de imperialismo Historicamente, cabe lembrar que entre o estabeleci- mento do protetorado francés na Tunfsia (1881), a ocu- pacao britanica do Egito (1882) e a sujeicao do Marrocos a Franca (1912) o continente afticano foi quase comple- tamente dividido, ficando de fora da partilha apenas a Li- béria, a Etidpia, parte do Egito e do Condominio Anglo-Egipcio (veja mapa 3.1). Tanto a partilha como a ocupacao efetiva foram im- pulsionadas pela concorréncia entre varias economias industriais, buscando obter ¢ preservar mercados, e pela pressio econdmica de 1880 que desencadeou o expansionismo europeu. Como conseqiiéncia da articulagao desses processos assistimos ao imperialismo que agressivamente conquista dreas de influéncia, protetorados e colénias, em parti- cular no continente africano. Nao é dificil compreender que esse imperialismo de fins do século XIX este- ve ligado ao desenvolvimento do sistema capitalista em uma fase cuja inovacao €a forma como se articula polftica e economia na qual o Estado assumiu, deci- sivamente, o papel de parceiro ¢ interventor econdmico. O termo imperialismo foi utilizado pela primeira vez na década de 1870, na Inglaterra vitoriana, dando nome a uma politica orientada para criar uma fede- racZo imperial baseada no fortalecimento da unidade dos Estados auténomos do império. Vinte anos depois, em 1890, no decorrer das discussées sobre a conquista colonial, integrando a dimensdo econémica que permanece até os dias atuais, passou a fazer parte do vocabulirio politico e jornalistico. Se acompanharmos as exposigdes sobre o tema, podemos verificar que tan- to a palavra como a idéia sao carregadas de um conjunto de questées, além de conter uma série de premissas ideolégicas que animam intimeras polémicas. 72 LEILA LEITE HERNANDEZ » re? O MARROCOS ESPANHO! sel wen 3 Madeira® (Port) S Js. Canarias (Esp.) et, r ARGELIA, LIBIA a ron Za cierd & Ocup. brit.) ; eniTREia s SUDAO s OH ANGLO- MALIALANDIA| &. AFRICA OC:DENTAL FRANCESANZ" 77 EGIPCIO FR Bet ir SN 'z Zf(Condominio|: cunt RON CORRE PNS J sul port. 7 \ NIGERIAA $2 IMPERION senna . x Tha Ss DA ETIOPIA icon” muir SNS $ © wast cst 2 Ege MNS Zee Spt S/O | CONGO CR TAN oe eS ’ “oe 3S |BeLGa| | ies a ORIENTAL zanziBaR (Brit ° - ALEMALI GUINE ESPANHOLA 3 fe NIASSALANDIA - ANGOLA’ 5 « < Oo cans f CAN 3 CANO ECHUANGAG WALVIS ANDIA ‘S I OCEANO ae Jz ATLANTICO . UNIAO DA OCEANO PsERICA INDICO 00 SUL SUAZILANDIA (Prot. briténicos) I BASUTOLANDIA 3.1-Omapa da Africa em 1914. Rteriterio portugues Y7frerritorio [Qtertsiotrances 7 reritsriowrtinico FFF frersitorio atemio, FE) rersitsriotatiano [Diver ee [FAGE, 1978] A AFRICA NA SALA DE AULA 73 Mas é necessdrio destacar que os fendmenos ligados 20 termo imperialismo tem em comum 0 fato de se referirem a uma expansao, por parte dos Estados, carac- terizada por forte assimetria ¢ violenta dominagio, que se manifesta de formas divétéas, como: nas relagSes de preponderancia das metrépoles sobre as dreds de influéncia, protetorados ¢ colénias; no pés-1945, entre os Estados Unidos da América, a Unido Soviética e os Estados integrantes dos dois blocos hegeméni- cos liderados por cssas poténcias; ou, ainda, nas diversas facetas da politica de dominagao e explorago praticada em diferentes proporgées pelos Estados ricos em relagao aos pobres. Para explicar esses fendmenos procurou-se identificar 0 feixe de condi- goes econdmicas, politicas e ideoldgicas, segundo o qual surgiu o expansio- nismo territorial como elemento bdsico do imperialismo de fins do século XIX. Daf a origem de teorias sobre esse fendmeno que trazem consigo uma série de quest6es acerca de sua natureza, causas e extensao, bem como pro- Ppostas para a sua superacao. Do primeiro grupo fazem parte as teorias de inspiragdo marxista, predomi- nantemente econdmicas, que se dividem em classicas, tendo como representan- tes Lénin e Rosa Luxemburgo, e as formuladas no pés-Segunda Guerra Mun- dial, desenvolvidas por Baran, Sweezy, Gunder Frank e Samir Amin. Elaborada durante a Primeira Guerra Mundial, a teoria de Lénin bascia-se na tese central do primado do econémico, tendo como fundamental o pressu- posto de que o imperialismo decorre da tendéncia para a queda das taxas de lu- cro, explicada, grosso modo, como conseqiiéncia do constante aumento da con- corréncia entre os capitalistas. Para superar esse desafio haveria um crescente, concentrado e continuo investimento em maquinaria, cada vez mais aperfeigoa- da, e que, em curto espaco de tempo se torna obsoleta. Os monopélios financeiros, resultados da fusdo entre capital industrial e capital bancdrio, excedem os limites de um Estado. Para o referido autor, na tentativa de garantir o lucro, os Estados nos quais o sistema capitalista é considerado mais desenvolvido voltam-se para assegurar 0 controle de maté- rias-primas, partindo para a conquista de novos mercados do “mundo sub- desenvolvido”, dividindo entre si dreas de influéncia, o que inclui a obten- do de colénias. Com pequenas modificag6es, a andlise de Lénin foi aplicada no pés-Segun- da Guerra Mundial pelas liderangas intelectuais ¢ politicas africanas, tanto para explicar 0 colonialismo como 0 neocolonialismo, isto ¢, as relagdes entre os paf- ses formalmente independentes ¢ os Estados que continuaram a explord-los, em grande parte das vezes as prdprias ex-metrdpoles européias. 74 LEILA LEITE HERNANDEZ J& Rosa Luxemburgo explica, basicamente, que 0 imperialismo se insere num pensamento mais amplo, a teoria do subconsumo. Em resumo, ela consi- dera que, devido ao baixo poder aquisitivo da classe trabalhadora ¢ & miserabil dade do seu nfvel de vida, a produgdo corrente do mundo capitalista nado pode ser absorvida. Assim, como conseqiiéncia das “leis objetivas da acumulagao ca- pitalista”, faz-se necessdrio um mundo que absorva grande parte do que foi pro- duzido, para que o crescimento econdmico nao seja interrompido. Esses merca- dos externos seriam obtidos com a conquista de colénias. Por sua vez, os economistas americanos Baran e Sweezy, diante dos fatos histéricos surgidos no pés-Segunda Guerta, buscam superar as teorias de Lénin ede Rosa Luxemburgo, construindo um modelo tebrico capaz de identificar os elementos préprios de uma economia claramente configurada como monopéli- ca, considerada o principal fator de estimulo para o imperialismo, em particular © norte-americano. O mais inovador nessa teoria & a hipétese relativa 3 existén- cia de um surplus (conceito que substituiria 0 classico da mais-valia) referente a despesas em pesquisa e desenvolvimento tecnoldgico no setor militar, caracte- ristica considerada fundamental no ambito de um mundo bipolarizado, como 0 do pés-1945, entre Estados Unidos e Uniio Sovietica e com a presenca politi- co-militar destes no “Terceito Mundo”. No que se refere 4 questao do imperialismo, essa teoria sustenta que os paf- ses atrasados, mesmo conquistando a independéncia, continuam a ser explora- dos, como conseqiiéncia do expansionismo impulsionado pela busca de lucro crescente por parte dos pafses desenvolvidos e pelas grandes empresas multicon- tinentais. Além disso, organicamente, 0 sistema capitalista gera grandes dese- quilibrios territoriais ¢ sociais, acarretando um processo de pobreza crescente nos paises periféricos. Para 0 “capitalismo monopdlico” de Baran e Sweezy, essa situagao sé poderia ser alterada por uma guerra revoluciondria que implemen- tasse uma economia socialista. Vale observar que as andlises marxistas estabelecem uma conexao especifi- ca entre o imperialismo de fins do século XIX e inicio do XX e o capitalismo em geral ou uma sua etapa particular, Consideram que o imperialismo tem rafzes econdmicas fundamentais ¢ estabelece relagdes assimétricas de domina- Gao entre os paises, que implicam a exploragao das zonas “atrasadas” em bene- ficio dos paises capitalistas “desenvolvidos”. Do segundo grupo, composto pelos representantes da “interpretacao social de- mocrata do imperialismo”, destaca-se 0 texto bisico de Hobson, que nao & mar- xista, a despeito de ser predominantemente econémico ¢ ter como central a idéia de que o subconsumo das classes populares impulsiona a busca por merca- A AFRICA NA SALA DE AULA 75 idéia de que o subconsumo das classes populares impulsiona a busca por merca- dos externos. Além disso, associa os elementos econémicos a um importante papel da “politica de poder”,’ negando a existéncia de um nexo orginico entre capitalismo e imperialismo e, portanto, a necessidade de um processo revoluciond- rio para elimind-los. De outro lado, afirma que as tendéncias imperialistas exis- tentes no 4mbito do sistema capitalista podem ser suprimidas mediante reformas econémico-sociais e democraticas eficazes para o aumento de consumo dos traba- Ihadores e, por conseqiiéncia, favorecer o crescimento e¢ regular a absorcao da producao, rompendo com a necessidade do expansionismo imperialista. Incluem-se nessa tendéncia outros escritos tedricos como os de Kautsky ¢ Hilferding que, embora de variada orientacio politica, desenvolvem a idéia de que o imperialismo nao é uma fase necessdria do capitalismo, constituindo-se apenas uma de suas politicas, podendo ser substitufda por outra que institua uma colaboragao pacifica entre as poténcias capitalistas, no sentido de adminis- trar o subconsumo no ambito de um mercado mundial organizado. Isso signifi- ca admitir pafses até entao dele exclufdos, o que, no entanto, nao eliminaria a explorag4o estrutural nem mesmo a assimetria entre as poténcias capitalistas e os pafses atrasados, sobretudo os produtores de matérias-primas. Superar essa situagao implicaria um conjunto de reformas socialistas com a introdug’o de um controle politico do desenvolvimento econémico orientando © crescimento para o interesse geral, tanto dos paises “capitalistas” como dos paises “atrasados”. Esse “ultra-imperialismo”, portanto, ordenaria e administraria as profundas diferengas que garantem a dominagio e a exploracao entre os pai- ses € a reparticao dos territérios transformados em colénias, eliminando os conflitos das poténcias capitalistas entre si, a corrida armamentista e a guerra. No que se refere ao terceiro grupo, seus integrantes elaboraram uma “inter- pretacao liberal do imperialismo”. Significa dizer que J. A. Schumpeter, seu principal representante, apresenta um ensaio, datado de 1919, que propée ser uma andlise sociolégica do imperialismo, cujas idéias s40 totalmente opostas & tradicao marxista. Analisando com erudi¢ao os imperialismos desde a Antigui- dade, conclui que o imperialismo moderno nao decorre do modo capitalista de produgio; é o resultado de condigdes econdmicas, sociais, politicas, culturais ¢ psicolégicas préprias do pré-capitalismo, portanto, fora do dominio do desen- volvimento capitalista. Assim, o que leva & expansio imperialista sio atitudes 1. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola ¢ PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Diciondrio de politi- ca. 2. ed. Brastlia: Editora da UNB, 1986. Vale destacar que esse é um texto de leitura obrigatéria sobre o tema do imperialismo. 76 LEILA LEITE HERNANDEZ Nessa perspectiva, o desenvolvimento do capitalismo, segundo ele, de natureza pacifica, porquanto baseado na racionalizagao imanente que permeia todos os aspectos da vida social, seria o meio de levar 0 mundo & competi¢ao pacffica de mercado e fomentar a instituigao de procedimentos democraticos pelas préprias estruturas politicas internas dos Estados capitalistas centrai Por fim, 0 quarto grupo é composto por estudiosos como Orto Hinwzer ¢ Max Weber, que apresentam uma interpretacdo do imperialismo baseada na “Teoria da Razao de Estado”. Sua tese fundamental é que o imperialismo deri- va, em ultima andlise, de uma estrutura andrquica das relagdes internacionais, fundada no exercicio da forga, estabelecendo uma relagao desigual de poder entre os Estados, que possibilita 0 dominio dos mais fortes sobre os mais fracos, criando as condigdes necessdrias para a exploragao econdmica de uns sobre os outros. Assim sendo, a eliminagao do imperialismo dependeria da superacao do estado de anarquia internacional por meio de uma “Constituigao Federal Mun- dial”, capaz de institucionalizar os limites da soberania externa e defender juri- dicamente a independéncia das nagoes. Se na perspectiva marxista a énfase recai sobre a economia, nas perspectivas social-democrata e liberal os elementos condicionantes s4o de ordem politica, sa- lientando-se o papel das forgas democraticas e progressistas capazes de encampar reformas, nas quais o intervencionismo estatal surge como dado imprescindivel. Seja como for, um ponto une todas as explicagées tedricas, qual seja, 0 de- safio de compreender e sugerir modos de superar a perversa desigualdade cons- titutiva do imperialismo. ns imperialismo As relagées entre 0 expansionismo territorial ¢ 0 imperialismo, nas concep- O “novo ges apresentadas, nao incorporam a dimensio das relagGes histéricas especifi- cas, que cria quest6es para as teorias de cardter geral, impondo ao pesquisador estabelecer um didlogo dos textos com a realidade social em que se inserem, pressuposto basico para verificar sua adequagio. Hobsbawm, enfrentando o desafio, efetua uma pesquisa na qual analisa a conjuntura dos anos 1890 a 1914, considerando um conjunto de fatores hist6- ricos. Significa dizer que reconhece que a divisio do globo tem uma dimensio econémica, mas destaca a importancia do poder politico ¢ dos aglutinantes ideo- ldgicos préprios do “novo” imperialismo. Feita essa observagao, € necessdrio ter clareza sobre a conexao intrinseca entre 0 expansionismo e a conquista do mundo nao-ocidental, reconhecendo a A AFRICA NA SALA DE AULA 7 dimensao econémica desse processo. Nesse sentido, é importante registrar os elementos préprios de um nitido quadro de crescimento econémico como ates- tam alguns indicadores. Como é sabido, entre 1870 ¢ 1914, as exportagées eu- ropéias duplicaram; a navegacio mercante mundial passou de 16 para 32 mi- Ih6es de toneladas e a rede ferrovidria mundial aumentou de 200 mil para 1 milhao de quilometros as vésperas da Primeira Guerra Mundial.” Também ¢ importante observar o crescimento de uma rede cada vez mais densa de transagdes econémicas ¢ comunicagées, além do movimento de bens, dinheiro e pessoas, ligando nao s6 os paises desenvolvidos entre si ¢ estes a0 mundo nio desenvolyido como, por exemplo, 2 bacia do rio Congo e a regizo do Cabo, na Africa austral. Esse nitido quadro de crescimento econémico cria possibilidades, ao mes- mo tempo que gera novas necessidades que levam ao expansionismo territori- al. A economia internacional caracteriza-se pela concorréncia entre varias eco- jiownilas tnd astriali, rodas apoiadasveni Un désenval vinienite teenolOpied -Guie necesita de matérias-primas como o petrdleo ¢ a borracha, enconuados fora do continente europeu. Basta lembrar que o petrélea, que vinha predominan- temente dos Estados Unidos e da Ruissia, passa a ser buscado nos campos petro- liferos do Oriente Médio, regiéo que se torna, cada vez mais, objeto de intenso confronto e conchavo diplomatico. Quanto a borracha, produto exclusiva- mente tropical, era extraida com uma exploragéo atroz de nativos nas florestas equatoriais do Congo e da Amazénia e, mais tarde, extensamente cultivada na Malasia. Também é preciso ter em conta que as novas induistrias elétrica e de moto- res precisavam de cobre, sendo seus maiores produtores pafses aos quais se con- vencionou chamar no final de 1950 “Terceiro Mundo”, como o Congo belga, a Rodésia do Norte, o Chile ¢ o Peru. Por sua vez, os metais preciosos como o ouro ¢ os diamantes passam a ser explorados na Republica da Africa do Sul. Em contrapartida, algumas teorias sobre o imperialismo apdiam-se no pres- suposto do subconsumo. No entanto, 0 que se verifica empiricamente é que 0 proprio desenvolvimento desigual do sistema capitalista propiciou um consumo de massas nas metrépoles, criando um mercado em rdpida expans4o para os “bens coloniais”, isto é, para o cha, o café, 0 agticar, 0 cacau e derivados e os dleos vegetais, que se tornaram dispontveis gragas as técnicas de conservacio ¢ & 2. HOBSBAWM, Eric, J. “A era dos impérios”, fu: A era dos impérios: 1875-1914, Rio de Janciro: Paz ¢ Terra, 1988. p. 87-124. A leitura cuidadosa desse capitulo é essencial para 0 necessério aprofundamento das iddias aqui apresentadas. 78 LEILA LEITE HERNANDEZ acticar, cacau e derivados e dleos vegetais que se tornaram dispontveis gracas &s técnicas de conservacio e 4 maior rapidez nos transportes. Como conseqiiéncia, as plantations e os comerciantes e financistas tornaram-se importantes pilares das economias imperiais. Por sua vez, também o pressuposto genérico da pressao do capital por in- vestimentos mais rentveis fora do territério europeu merece reparos quando consideradas algumas particularidades histéricas. Em outras palavras, é verdadeiro que houve um fluxo de capital aplicado nas colénias. Mas nao é menos verda- deiro que ele se concentrou apenas em alguns territérios ultramarinos. Conside- remos, por exemplo, o que ocorreu com a Gra-Bretanha que destinou a maior parte do seu montante de capital as colénias de povoamento branco ¢ com ré- pido desenvolvimento como Canada, Austrélia, Nova Zelandia e, no caso do continente africano, a Africa do Sul. Cumpre observar, no entanto, que se fizermos uma avaliagao relativa a0 conjunto de elementos econdmicos considerados ser4 possivel reconhecer que 0 ponto crucial da situagao econémica global foi que certo ntimero de economias desenvolvidas se deu conta, simultaneamente, da necessidade de novos merca- dos. obtendo algumas “portas abertas” no mundo subdesenvolvido. ou procu- rando conquistar e dominar territérios que garantissem as economias nacionais ¢ européias uma posicao monopolista ou, ao menos, vantagens bastante subs- tanciais. E evidente que estas foram fortes razSes para que se promovesse a re- particao das regides nao ocupadas do “Terceiro Mundo”, processo, sobretudo apés 1879, francamente reforgado por um conjunto de politicas protecionistas. As colénias nesse contexto representavam pontos estratégicos em espa¢os geopoliticos, como as Africas ocidental e central, necessdrios para a penetragio européia. De fato, os interesses econédmicos passaram a operar articulados a agées politicas concretamente voltadas para o recorte do mapa da Africa. Ambos integram um projeto de forte significado simbdlico que, justificando e legitimando a exploragao e a dominagao européias, pde em curso o glorioso e herdico empreendimento de conquistar terras exdticas habitadas por gentes sel- vagens, de pele negra, carentes de civilizagao.’ As experiéncias histéricas efetivas demonstraram que 0 “novo” imperialis- mo dispunha de mecanismos ideolégicos como as exposicdes universais, verda- deiras “vitrines do progresso” que levavam as massas a se identificar com o Estado ¢ a na¢io imperiais, conferindo justificagao e reconhecendo legitimidade A missio civilizatéria européia na Africa. 3. HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios, op. cit, pp. 105-6. A AFRICA NA SALA DE AULA 79 A Exposigao Universal de 1889 em Paris. Cartao-postal da Brasserie d’Arcueil, Paris. Contudo, essas consideragées referem-se a0 protagonismo europeu no im- perialismo do final do século XIX, colocando em relevo os temas da partilha e da conquista. Mas ignoram o protagonismo africano do inicio de um dos perio- q 18) go! dos mais violentos da histéria recente. Impde-se portanto registrar a perspectiva ip Ps i Persp africana, uma perspectiva que entreolha a européia, mas dela est4 certamente Pi separada pelas acentuadas diferengas de suas posigées polftico-ideoldgicas. A partilha ea conquista na perspectiva africana O pensamento africano sobre a partilha e a conquista apresenta uma composi¢ao de idéias fiel & pratica politica de negar a do- minagao da civilizagéo branca, ocidental, sobre 0 mundo ne- gto, o “inferno tenebroso”, isto é, a Africa, Ciosas de seu prota- gonismo na histéria, se por um lado as elites culturais afticanas aceitam o conjunto de elementos econdmicos como eixo impulsionador do expansionis- mo territorial europeu, acrescentam a esse discurso dois elementos fundamen- tais, a critica ao etnocentrismo europeu € ao racismo ¢, por outro lado, 0 tema da resisténcia africana. Assumindo um “racismo anti-racista’,* estudiosos africanos como o nige- tiano Godfrey N. Uzoigwe sao responséveis pela historiografia mais recente 4. A expressio “racismo anti-racista” foi cunhada por Jean-Paul Sartre em Reflesdes sobre 0 racismo. Sao Paulo: Difusio Européia do Livro, 1960. p. 111. 80 LEILA LEITE HERNANDEZ sobre a partilha e a conquista, comprometidos com a preocupa¢ao em nao se deixarem levar pelas representagdes construidas pelos ocidentais.” Nesse quadro de discusséo ¢ fundamental ressaltar a importancia histérica da postura de criti- ca contundente com que os pesquisadores africanos se debrugam ao examinar a historiografia ocidental sobre 0 tema. Nao é outra a razdo de destacarem as principais teorias psicolégicas, quais sejam, o darwinismo social, o cristianismo evangélico ¢ 0 atavismo social, evidenciando sua conivéncia com uma dispo- sigio para 0 dominio ¢ a exploragio, articuladas a um imagindrio coletivo apri- sionado pela crenga em uma supetioridade racial e cultural. Em relagéo ao “darwinismo social”, os africanistas ressaltam que a luta pela existéncia nada mais € do que a dominagao da “raga sujeita” ou “nao evoluida” pela “raga superior”, segundo o processo de “selegao natural”, no qual o “mais fraco” é submetido pelo “mais forte”. O simplismo da explicacao deriva de uma leitura que se pretendia social da obra de Darwin, A origem das espécies por meio da selecéo natural ou a conservacao das ragas favorecidas na luta pela vida, publi- cada em lingua inglesa em 1859. Assim, a classificagao das ragas em “superiores” ¢ “inferiores”, recorrente desde o século XVII, ganha uma falsa legitimidade baseada no mito iluminista do saber cientifico, coincidindo com a necesséria justificativa de que a domina- cao ¢ a exploragao da Africa, mais do que “naturais” ¢ inevitéveis, eram “neces- sdrias” para desenvolver os “selvagens” africanos, de acordo com as normas € os valores da civilizagao ocidental. Portanto, essa “teoria” articula a questao politi- ca ao etnocentrismo, apresentando-os como simultaneos dada a correspondén- cia construfda entre ambos. No caso do “cristianismo evangélico”, a partilha da Africa era explicada como conseqiiéncia de um impulso “missionario” e “humanitario”, orientado para “regenerar” os povos africanos. O movimento missionario, sobretudo dos luteranos alemaes ¢ da diversidade de calvinistas evangélicos a servigo da Socie- dade Missiondria de Londres, atuantes na Serra Leoa, na Costa do Ouro, na Nigéria e na Libéria, e das misses catdlicas na bordadura do Senegal, clamava a conquista da Africa pela Europa como um meio de pér fim & escravatura € a0 massacre dos negros, ao mesmo tempo que pretendia instaurar as condigdes necessdrias para “regenerd-los”, isto é, tornd-los cristaos e civilizados. Por fim, a teoria do “atavismo social”, E uma leitura especifica de uma das conclusdes apresentadas por Joseph Schumpeter de que “o imperialismo é um 5. Godfrey N. Uzoigwe € especialista em historia da Africa Oriental, tendo como seu principal ob- jeto de estudo o reino bunyoro de Uganda. Ver: “Partilha européia ¢ conquista da Africa: apa- nhado geral”, In: BOAHEN, op. cit. p. 25-42. A AFRICA NA SALA DE AULA 81 atavismo”, centrado em uma pratica politica na qual o individuo tem 0 desejo natural de dominar 0 préximo pelo simples prazer da dominasio. Estendida escala de um povo, essa idéia se transforma no argumento bdsico para explicar o imperialismo como resultado de um egofsmo nacional coletivo préprio, coman- dado por um Estado pré-capitalista, que se expande ilimitadamente pela forga. Schumpeter ressalta que o capitalismo, por sua vez, seria “antiimperialista”, um sistema de natureza benevolente “dirigido por empresérios inovadores”. O darwinismo social e 0 cristianismo evangélico, cada qual a seu modo, ex- plicam o expansionismo territorial utilizando-se do racismo e do etnocentrismo, baseados no espirito de catequese ¢ de missfo ¢ na crenga numa tarefa civiliza~ téria, capazes de converter os africanos ao cristianismo e A civilizacio ocidental. J& Schumpeter, numa abordagem aistérica, deixa transparecer grandes dificul- dades. A primeira é identificar em quais circunstancias seriam alterados “as vontades” ¢ os “vinculos psicoldgico-culturais” responsdveis pelo imperialismo. A segunda, por sua vez, é distinguir 0 “ponto de ruptura’”, isto é, 0 momento no qual o pré-capitalismo se transforma em capitalismo, superando sua faceta imperialista. Portanto, as idéias contidas nas teorias apresentadas mostram-se suficiente- mente preconceituosas e equivocadas, sendo, por isso, deixadas de lado no pro- cesso de construgao de uma “teoria da dimensao africana”. No que se refere as teorias diplomaticas sustentadas pelo primado da politi- ca, a “teoria do prestigio nacional”, a “teoria do equilibrio de forga” e a “teoria da estratégia global” apresentam interpretagées tao discutfveis como as das “teo- rias psicoldgicas”, embora se apdiem em alguns fatos que nao podem ser des- considerados. A “teoria do prestigio nacional” explicava os diferentes expansionismos da Franga, da Gra-Bretanha, da Russia, da Alemanha, da Itélia, de Portugal e da Ho- landa como compensagao de perdas dentro do préprio continente europeu ou ainda como forma de manter ou restaurar o prestigio nacional com ganhos no ultramar. Seu principal mentor, Carlton Hayes, argumenta: A Franga procurava uma compensacao para as perdas na Europa em ganhos no ulera- mar, O Reino Unido aspirava compensar seu isolamento na Europa engrandecendo ¢ exaltando o Império Britanico. A Russia, bloqueada nos Balcas, voltava-se de novo para a Asia, Quanto & Alemanha e & Itdlia, queriam mostrar ao mundo que tinham 0 direito de realgar seu prestigio, obtido & forga na Europa por facanhas imperiais em outros continentes. As poténcias de menor importancia, que nao tinham prestigio a defender, If conseguiram viver sem se langarem na aventura imperialista, a nao ser 82 LEILA LEITE HERNANDEZ Portugal ¢ Holanda, que demonstraram renovado interesse pelos impérios que ja pos- suiam, esta tiltima principalmente, administrando o seu com redobrado vigor. ° Se esses exemplos pecam por equivocos advindos de nao serem levadas em conta as particularidades do expansionismo de cada um desses paises, anun- ciam, no entanto, um argumento pragmaticamente valido para alguns casos como a Espanha e a Alemanha, cujas conquistas nao tiveram importancia eco- némica, muito menos estratégica, podendo ser explicadas como uma busca por prestigio nacional. Ha de se registrar também a “teoria do equilibrio de forgas” que tem como principal representante F. H. Hinsley ¢ é calcada no “primado da politica exter- na”. O pressuposto é de que, no ambito internacional, a relagao entre os paises € caracterizada pelo dominio dos mais fortes sobre os mais fracos, com a predo- minancia absoluta da forga. Assim, nao haveria um real espaco para uma politi- ca de limitagéo da soberania, podendo as atribuigdes as rivalidades levar a conflitos generalizados. Buscando uma convivéncia calcada na gestao pacifica das fricgdes e dos conflitos de diversos graus de intensidade para garantir uma “verdadeira e au- téntica” ordem internacional estavel, a safda apontada seria 0 reforco do pode- rio de cada pais mediante a conquista territorial. Esse argumento autojustifica- dor explicaria o imperialismo préprio de fins do século XIX. Ora, essas duas “teorias diplomédticas” tornam algumas observagées necess4- rias. A primeira é que restringem o imperialismo a um protagonismo exclusiva- mente europeu, ignorando a totalidade que envolve o expansionismo territorial, sobretudo com a conquista de coldnias. Por sua vez, desconsidera 0 processo histérico de “roedura” e a desestabilizagao progressiva do continente africano provocada pelos paises europeus desde o século XV, limitando temporalmente 0 expansionismo ao seu apogeu, isto é, 4 conjuntura entre os anos de 1875 a 1914, que configura o “novo” imperialismo. Quanto a terceira observagao, diz respeito ao fato de as referidas “teorias” reduzirem o imperialismo a partilha eu- ropéia, ignorando o lugar que as lutas de resisténcia tém na hist6ria do imperia- lismo de fins do século XIX, na Africa. Por fim, € necessdrio tornar explicita a “teoria da estratégia global”, cujos principais elaboradores, Ronald Robinson e John Gallagher, tem como hipéte- se central o fato de que a partilha e a conquista sao respostas aos “protonaciona- 6. HAYES, C. J. H. “A generation of materialism, 1871-1900". Jn: UZOIG' Es op. cit, p. 48. A AFRICA NA SALA DE AULA 83 lismos” africanos, apresentados como “lutas romanticas e reaciondrias” que co- locavam em risco os interesses estratégicos globais dos paises europeus. Ora, essa idéia ¢ historicamente equivocada, em primeiro lugar porque as exploragdes do continente africano foram cont{nuas desde o século XV, atin- gindo um significativo crescimento a partir do final do século XVIII, com a aco de exploradores que buscavam rasgar 0 desconhecido interior do conti- nente A procura do curso dos rios das principais bacias hidrograficas como as do Niger, Nilo, Congo ¢ Zambeze. Em segundo lugar, a partilha que se segue 4 Conferéncia de Berlim atende as disputas de Estados europeus e nao surge como resposta de protonacionalismos africanos. Em terceiro lugar, as resistén- cias ocorreram a comegar pela partilha e pela conquista, precipitando a con- quista militar efetiva. E importante ressaltar que, de uma ou outra forma, as “teorias diplomati- cas” atribuem & Africa um papel de mero apéndice da histéria da civilizagao ocidental. E bem verdade que algumas pesquisas constituiram-se importantes excegoes a essas tendéncias, como as obras de J. S. Keltie, em 1893, ¢ a de George Hardy, em 1930, por considerarem a partilha parte de um lento proceso de conquista de cerca de quatrocentos anos, acentuado pela crescente concorréncia econémica entre os paises europeus. Também reconhecem a importancia das lutas de resisténcia para 0 processo de conquista o que implica a efetividade da burocracia colonial como instituigao politica. Nessa esteira de pensamento, em 1956 foi publicado o livro Trade and politics in the Niger Delta, de K. Onwuka Dike, que passou a ser uma obra clissica sobre a partilha e a conquista, por consideré-las decorréncia do conta- to entre civilizac6es e culturas diferentes. Coube entretanto a A. G. Hopkins apresentar uma “interpretacao africana” mais histérica do tema, na medida em que propés suma articulagao entre as componentes externas e internas do continente africano. Com efeito, em uma de suas passagens mais explicitas, Hopkins afirma que: Por um lado, é possivel conceber regises onde 0 abandono do comércio de escravos se deu sem choques nem perda de rendimentos ¢ onde as tensdes internas foram controladas. Em casos tais, a explicaggo do retalhamento colonial deverd salientar os fatores externos, como as consideragées mercantis e as rivalidades anglo-france- sas. No outro extremo, é possivel imaginar casos em que os chefes indigenas adota- ram atitudes de reag4o, nao hesitando em recorrer a métodos predatérios, na tenta- tiva de manter os rendimentos, e em que os conflitos internos eram pronunciados. Nesses casos peso maior deve ser dado, na andlise do imperialismo, as forgas de de- 84 LEILA LEITE HERNANDEZ sintegragao ativas no seio das sociedades africanas, sem negligenciar, todavia, os fa- 7 tores externos. Em sua versio mais explicita da perspectiva africana, o nigeriano Godfrey Uzoigwe pretende conferir dinamismo sociopolitico ao continente africano. Reafirma como fundamental a énfase dada a esfera econdmica; nega que a partilha e a conquista tenham sido inevitaveis para a Africa; enfatiza que a partilha ¢ 0 marco no processo de “roedura” do continente; e ressalta as especifi- cidades do processo histérico registrando o papel desestabilizador dos entrepos- tos comerciais, dos estabelecimentos missionarios, da instalagao de colénias e protetorados e da ocupacao de zonas estratégicas. Além disso, confere importancia fundamental as formas de resisténcia, iden- tificando-as como de “confronto, alianga, ¢ aceitagao ¢ submissao”. Sobretudo quanto as duas iltimas, Uzoigwe explica que se constituem respostas a tratados comerciais ¢ politicos, os quais exerceram uma influéncia decisiva para a deses- tabilizacao de varios espacos geopolfticos do continente. Por isso, realga tanto 0 papel dos Estados europeus acerca da partilha da Africa como a importancia para a conquista dos tratados entre os dirigentes europeus e os soberanos africa- nos, af incluidos os tratados comerciais com as sociedades drabes, a obtencio de garantias diplomaticas e a politica de melhoramento das comunicagées mariti- ma, fluvial ou terrestre. E importante observar que esse conjunto de instrumentos permite ao capi- talismo europeu extrait produtos necessérios & induistria, desequilibrar as econo- mias domésticas ¢ influenciar os sistemas politicos africanos. Em particular, os dois tiltimos aspectos sao estratégicos para a transformagao dos espacos africa- nos em 4reas de influéncia, protetorados e colénias européias. Tendo em vista os tratados firmados por dirigentes europeus e africanos na fase imediatamente posterior & Conferéncia de Berlim, é possfvel distinguir entre os que se referiam & regulaco de atividades econémicas e aqueles que ti- nham um cardter predominantemente politico. Exemplo significativo de trata- do econdmico foi o realizado por Cecil Rhodes que, pela carta da British South Africa Co., de 1888, passou a ter plenos poderes do Transvaal ao Congo e de ‘Angola a Mocambique. Sua estratégia teve inicio com a obtengio do reconheci- mento pelo chefe ndebele, Lobengula, do privilégio de explorar as minas de ouro do seu pequeno territério. Em troca, Rhodes empenhou sua palavra em dar prote¢ao ao povo ndebele diante dos béeres do Transvaal. Mas, enquanto 7. HOPKINS, A. G. “An economic history of West Afric’, In: UZOIGWE, op. cit., p. 51. A AFRICA NA SALA DE AULA 85 durou o controle dos ingleses, ou seja, até 1923, foram intimeros e sangrentos os confrontos entre europeus ¢ povos africanos dessa extensa regiao. Havia, simultaneamente, os tratados politicos celebrados por representan- tes de governos europeus ou por organizacées privadas, pouco depois repassa- dos aos seus respectivos governos. Quanto aos mandatérios africanos, estes se submetiam a exclusividade do tratado assinado, por meio do qual renunciavam a soberania do territério sob seu governo, em troca de prote¢ao de determinada nagao européia da qual passavam a ser protetorados. Resguardadas as diferencas de tempo e lugar, é possivel considerar basica- mente trés razdes que levavam os africanos a firmar tratados politicos, traduzi- dos em aliancas, dando ensejo para que fossem registrados exemplos de estratégias de “alianga e aceitagao” perante a conquista. A primeira é instituir relagdes com os europeus buscando obter vantagens politicas em relagdo aos seus vizinhos. Na Africa Oriental Alema (atual Tanzania), os mareales e os kibangas, grupos que habitavam a regiao préxima dos montes Usambra ¢ Kilimanjaro, firmaram tratados com os alemies na expectativa de, com a alianga destes, derrotar povos inhos, seus inimigos. Jé a segunda razio revela que o aspecto doméstico ¢ sig- icativo, e os tratados e as aliangas com os europeus tornam-se um recurso usual para o soberano manter a obediéncia de seus stiditos. Um exemplo escla- recedor foi o de Ahmadou Seku, que estabeleceu uma alianga com os franceses, mantendo o controle dos bambaras, mandingas ¢ fulanis, em troca do forneci- mento de armas. Tendo reconhecida sua soberania, os franceses obtiveram re- galias comerciais. No entanto, firmado 0 acordo, os franceses nao sé apoiaram uma insurreigao bambara como, em 1889, atacaram o soberano, obrigando-o a recorrer 4 forga das armas. Dois anos depois, dominado, Seku passou a fazer parte do império francés. Por fim, a terceira razao é a obtengao da salvaguarda da soberania, ameagada por outras nagées européias. Um exemplo é 0 de Lo- bengula, rei dos ndebeles, que estabeleceu relagdes amistosas com os ingleses em detrimento de uma alianga com os africinderes, os portugueses ¢ os ale- mi§aes, visando salvaguardar a soberania e a independéncia de seu “reino”, que hoje corresponde a grande parte do Zimbabue. Pode-se argumentar muito bem que o resultado dos tratados, obtidos ou nao fraudulentamente, convergiu para a perda da soberania dos espagos geopo- Ifticos africanos. E importante registrar também os tratados bilaterais europeus, na medida em que as circunstancias nas quais sao feitos constituem-se em uma das razdes centrais para a eclosao das lutas de resisténcia africanas. Conforme se referiu no capitulo anterior, o século XIX encerrou-se com a partilha da Africa, prati- 86 LEILA LEITE HERNANDEZ camente concluida gracas a um conjunto de tratados, acordos e convencées bilaterais, realizados nas capitais curopéias, regulamentando as esferas de in- fluéncia no continente africano. No seu conjunto, os tratados delimitavam as grandes zonas de influéncia, embora no interior de cada uma delas as frontei- ras tivessem sofrido deslocamentos em razio de tendéncias centrifugas e cen- tripetas. Evidentemente, os estadistas europeus estavam perfeitamente cénscios de que a definico de uma es- fera de influencia em um tratado subscrito por duas nagées européias nao podia legi- timamente atingir os direitos dos soberanos africanos da regito afetada. Na medida em que a influéncia constituia mais um conceito politico do que juridico, determina- da poténcia amiga podia optar por respeitar esse conceito, enquanto outra, inimiga, nio o levaria a sério.® No que se refere ao entendimento contraditorio que afticanos ¢ curopeus tinham dos tratados, acrescido da preciria efetividade da resolugo da Confe- réncia de Berlim sobre a ocupagao territorial, era clara a tendéncia entre 1885 1902 de potencializar as situagdes de conflito. Significa dizer que houve reacio de confronto & conquista, ou seja, que os afticanos nao se resignaram pacifica- ali- mente a ela, defendendo seus costumes e interesses vitais como a soberani berdade e a independéncia. Essa observagio, basica para a interpretacao africana da partilha e da conquista, vale tanto para as estruturas politicas centralizadas (“Estados” centralizados), como na maior parte da Africa Ocidental, por exem- plo, quanto para as sociedades cujas estruturas politicas sao descentralizadas, como foi o caso dos khoi-khois, que nem por isso deixaram de reagir contra os béeres na Africa do Sul, durante os séculos XVII ¢ XVIIL Some-se o fato de algu- mas sociedades nao “estatizadas” (cujas estruturas politicas cram organizadas, mas nao complexas) como a dos agnis, dos haules ¢ dos ibos, terem marcado a sua presenga nesse capitulo da histéria africana pela guerra de guerrilha.’ A re- sisténcia africana, por sua vez, precipitou a conquista militar que esteve, em graus variados, marcada pelo despropésito e pela itracionalidade do exercicio da violéncia. Para a efetividade da conquista concorreu a supremacia européia, de- corrente do conhecimento geofisico, econémico e militar dos diferentes territé- rios do continente afticano, gracas as atividades dos missiondrios ¢ exploradores; o desenvolvimento da tecnologia médica, oferecendo drogas de uso profilitico 8. UZOIGWE, op. cit. p. 58. 9, THORNTON, J. “The state in African historiography: a reassessment”. Ufahamu, vol. IV, 197. p. 20, A AFRICA NA SALA DE AULA 87 contra varias doencas, como a maléria; ¢ os seus recursos materiais, sobretudo bélicos e financeiros. Vale a pena apresentar um sumério com alguns exemplos que conferem contetido histérico a essas afirmagées, destacando a alternancia dos tipos de resisténcia, com os africanos utilizando-se da diplomacia, respondendo com luta armada 4 invasao militar reagindo com a combinacao de ambas as estraté- gias, o que, alids, caracterizou a grande maioria das resisténcias no continente. Sob a fora das circunstancias, a diplomacia foi um tipo de resistencia pouco encontrado na sua forma pura. Um dos raros exemplos ocorreu no oeste do Quénia, onde Munia, o “rei” dos wangas, para se fortalecer no conflito com 08 povos vizinhos, itesos e luos, fez um acordo diplomatico com os ingleses. Como resultado, os povos africanos foram divididos, possibilitando que os eu- ropeus alargassem a sua influéncia em toda a regio, criando as condigées necessdrias para o estabelecimento de seu poder colonial em Uganda. De um ponto de vista comparativo, parece haver poucos motives para du- vidar da hipdtese de que foram em muito maior mimero as conquistas que deram ensejo a uma “luta militar efetiva”, em particular no nordeste do conti- nente, onde sudaneses, egipcios ¢ somalis, morreram em grande ntimero em sangrentas lutas contra tropas coloniais britanicas. Islamizados, os povos dessa regido lutavam ao mesmo tempo pela soberania de seus territérios ¢ pela sua fé, j4 que acreditavam ser inaceitével que mugulmanos se submetessem politica- mente a uma poténcia crista. Também a ocupagéo dos espacos geopoliticos da Africa Ocidental, entre os anos 1880 ¢ 1900, foi marcada por lutas sangrentas, destacando-se tanto as campanhas francesas no Sudao Ocidental (hoje, Mali), na Costa do Marfim e no Daomé (atual Benin), como as campanhas britanicas no Ashanti (atual Gana), na regiao do delta do Niger (atual Nigéria) e no norte da Nigéria, entre 1895 e 1903. E possivel afirmar que, no geral, houve uma tendéncia de a reagio africana contra a Franca ser mais violenta, uma vez que esse pais europeu optou por conquistar territérios predominantemente pela forga. A esta faceta militar asso- ciava-se 0 fato de as regides ocidental e equatorial africanas terem sofrido um processo de islamizacao, rejeitando fortemente o dominio branco dos “infiéis”, considerando-o como uma imposicéo intolerdvel. O exemplo mais classico de resisténcia armada 4 Franga foi o da Senegambia. Os africanos do império uni- ficado mandinga, sob a lideranga de Samori Touré, em 1882, contavam com um poderoso exército, cuja homogeneidade ¢ coesio permitiram que ganhasse um caréter praticamente nacional. Era também um exército bem-equipado, de 88 LEILA LEITE HERNANDEZ acordo com os moldes europeus, com armas modernas, adquiridas com a venda de marfim e ouro do sul da Costa do Marfim, e com cavalos, obtidos pela troca de escravos na regiao do Sael. Mas o poderio francés extingiiiu a luta quando capturou, em 1892, Samori Touré, deportando-o para o Gabao. Dessa forma, pés fim a resisténcia armada, conhecida como a mais duradoura das campanhas contra um mesmo adversdrio em toda a histéria da conquista do Sudao francés. Em contraste com os franceses, é consensual que a a¢ao britanica nao foi, no seu conjunto, basicamente militarizada. Os seus processos de conquista, em niimero considerdvel, foram advindos de negociago pacifica, da “diplo- macia”, sendo concluidos com tratados de protecio, como foram os casos do norte de Serra Leoa e do norte da Costa do Ouro, além de diversos pontos do pais Ioruba. Apesar disso, nao faltaram campanhas britanicas com 0 emprego da forga, como no pafs Ashanti, onde os conflitos surgiram em torno de 1760, culmi- nando, em 1824, com um violento choque militar. Ainda assim, os ashantis sé foram decisivamente derrotados cingiienta anos mais tarde, o que, alids, levou o seu “império” a desintegracao. Um segundo exemplo é 0 do “reino” do Benin que, embora tenha como marco de sua conquista a assinatura de um tratado de protetorado, em 1892, ainda assim procurava resguardar parte de sua soberania. A forcada submissao do “reino” se deu em 1897, quando os britanicos, sob o pretexto da morte do seu consul interino e de mais cinco compatriotas, enviaram contra 0 “reino” do Benin uma expedigéo de cerca de 1.500 homens, que pilharam os preciosos bronzes dos iorubds e incendiaram a capital. Processo semelhante ocorreu no delta do Niger, onde foram efetuados trata- dos de protetorado com a maioria dos chefes. Houve, no entanto, os que mani- festaram um descontentamento radical, desafiando as autoridades britanicas. Foi © caso de Jaja de Opdbo, cuja luta implicou um confronto em torno do paga- mento de impostos cobrados por uma empresa britanica. A medida que 0 proces- so de polarizacao avangava, a represilia tornou-se violenta € o seu alvo mais defi- nido. Atraido para uma emboscada, Jaja de Opdbo foi preso, julgado e deportado para as Antilhas. A dimensao simbélica desse ato teve a particularidade de ser usada pelos ingleses para persuadir os outros “Estados” do delta do Niger a se submeterem pacificamente as condigdes administrativas impostas. Também na Africa oriental, no Quénia, os nandis ofereceram uma oposi- ao militar 4 construcao de uma estrada de ferro em seu territério. Foi a mais prolongada das resistencias ao Império Britanico nessa regiao, estendendo-se de 1890 a 1905, quando seu chefe, atraido para negociacées, foi traigoeiramente A AFRICA NA SALA DE AULA 89 assassinado. Enfraquecida, a resisténcia dos nandis acabou vencida apés quinze anos de encarnicada luta, que reuniu diversos clas divididos em unidades terri- toriais, aproximando-os da organizagio de um exército regular europeu. Por sua vez, na Africa Oriental Alema, a reacao contra a conquista contou com o emprego da forca de aliangas diplomaticas com varios povos, tanto no interior quanto no litoral. Jé no Congo, na regiao fronteiriga com Angola, entre outros povos, os combativos chokwes, até sucumbirem ao dominio belga, resis- tiram com tenacidade por cerca de vinte anos, isto é, de 1890 a 1910, infligin- do pesadas perdas & Force Publique. Quanto ao sul de Angola, os luandas ¢ os diversos grupos da regiéo de Gambo aperfeigoaram suas técnicas de guerrilha, utilizando-as com freqiiéncia e vigor contra 0 colonizador portugués. De certo modo, esses embates assemelham-se ao que havia sucedido, na Africa do Sul, mais de dois séculos antes da Conferéncia de Berlim. Desde 1652 ja havia sido fundada a Colénia do Cabo pela Companhia Holandesa das Indias Orientais, visando estabelecer na regido uma estagio de reabastecimento para 0s seus navios. No século XVIII, os béeres (sobretudo migrantes holandeses) adentraram o interior, cacando e comerciando gado com os khoi-khois ¢, por vezes, tornando-se eles prd- prios criadores de gado. Seus descendentes vieram a chamar-se africinderes. Nos seus deslocamentos para leste em diregdo 4 zona de maior pluviosidade, onde fun- daram Natal, entraram em confronto com povos africanos locais, expulsando os boschimanes, dominando ou dispersando os khoi-khois (hotentotes para o coloni- zador) e, em 1779, guerreando com os bantos nas conhecidas “guerras cafres”, as- sim chamadas porque pela jurisprudéncia islamica os bantos eram considerados pa- gaos, nao tendo direitos em um “Estado” islamico. Entre 1793 e 1815, durante as guerras anglo-francesas, a Cidade do Cabo, apreciada por sua posicao estratégica de entrada para 0 oceano Indico, passou do dominio holandés para o inglés (1795). Esse acontecimento marcou o inicio de uma série de embates violentos entre béeres ¢ ingleses e béeres e povos afri- canos, como os khoi-khois, os sans, os xhosas, os upondos, os tembus € os mfengus e, mais tarde, os zulus. Em 1852 e 1854 a Gra-Bretanha reconheceu duas colénias de povoamento branco de lingua holandesa, a Reptiblica do Transvaal e¢ 0 Estado Livre de Orange, como independentes. Mas, pouco mais tarde, com a descoberta do ouro ¢ dos diamantes, os britanicos impuseram o seu dominio com uma politi- ca de confronto, tanto aos africinderes como aos zulus, ndebeles, bembas ¢ yaos, até 1947, quando ocorreu a independéncia da Uniao Sul Africana, que passou a se chamar Reptiblica da Africa do Sul. 90 LEILA LEITE HERNANDEZ Concluindo, € possivel afirmar que todos esses exemplos, embora em pe- queno niimero, sio suficientes para indicar que tanto a violéncia como as formas de resisténcia diante da perda de soberania, independéncia e liberdade desvendam 0 protagonismo africano perante a partilha e a conquista. Mas os exemplos evidenciam também a impoténcia bélica dos afticanos ante a supre- macia européia. Como bem resumiu o poeta inglés Hilaire Belloc: “Acontega 0 que acontecer, nés temos a metralhadora, ¢ eles nao”." A dominagio fundada no exercicio da violéncia fisica. Arte afro-portuguesa encontrada no Benin, no século XVI. 10. Apud BOAHEN, op. cit., p. 30. 4 “CIMLIZADOS” E “PRIMITIVOS” NA CONSTITUIGAO DO SISTEMA COLONIAL AFRICANO Notas sobre o “imperialismo colonial” A partilha deu infcio 4 conquista, processo por meio do qual se acelerou a violéncia geogréfica, com a exploracao ge- neralizada dos diversos espacos geopoliticos do continente africano. A essa fase inicial de perda da soberania dos africa- nos seguiu-se o perfodo da estruturagio do sistema colonial. 7 Embora seja hoje consenso que colonialismo foi re- sultante da concorréncia econémica e do expansionismo dos paises europeus, vale a pena incorporar como dimensio propria desses processos algumas consideragoes apresentadas por Hannah Arendt. Em “Imperialismo” a autora identifica trés aspectos fundamentais do “imperia- lismo colonial” europeu, na sua fase de 1884 a 1914, apresentando-os como prefiguracdes dos fendmenos totalitarios do século XX, quais sejam: 0 nazismo € o stalinismo. A novidade da argumentagio de Arendt reside em afirmar que 0 “impe- rialismo colonial” apresenta como tragos fundamentais 0 expansionismo, a bu- rocracia colonial ¢ 0 racismo. Segundo a autora, uma das mais importantes filésofas do século XX, a compreensao do expansionismo transcende a esfera econémica por ser um “objetivo permanente e supremo da politica”; portanto, a idéia central do imperialismo “contém uma esfera politica traduzida por uma base ilimitada de poder cujo suporte é a fora politica presente na vocacao para a dominacao global”.’ Daf que 0 modelo arendtiano, apresentando uma discor- dancia explicita da famosa idéia de Lénin de que o imperialismo é 0 tiltimo esta- 1. ARENDT, Hannah. “Imperialismo”. Jn: Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, to~ talitarismo. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 146-338. 2. Ibidem, p. 146-187. 92 LEILA LEITE HERNANDEZ gio do capitalismo, afirma que o “imperialismo colonial” é a expressao politica do actimulo de capital e, por isso, 0 primeiro estdgio politico da burguesia. Esses argumentos de alcance mais geral completam-se com a importante observagao de que, pela distancia e pela dispersio geografica dos impérios, faz-se necessdrio exportar 0 poder politico, obedecendo a um proceso no qual os instrumentos da violéncia do Estado — a policia e 0 exército — sao separados das demais instituigdes e promovidos a posigao de representantes nacionais nas coldnias, tendo por fungao controld-las. Ora, sob essas condigées, o imperialis- mo colonial instrumentalizou 0 poder politico da burguesia, “inventando” a burocracia colonial como seu corpo polftico, ao mesmo tempo que atribufa a ela o exercicio da violéncia e da forsa como esséncias da a¢io politica. A conclusio é ébvia: o emprego da forga fisica sem coibigao gera mais forga, e a violéncia administrativa em beneficio da forga e nao da lei (que regula as relagoes cotidianas entre pessoas e grupos) torna-se um principio destrutivo que sé é detido quando mais nada resta a violar, isto é, quando 0 terror se torna indiscriminado. Essas reflexdes pedem um ancoradouro tedrico que Arendt encontra na fi- losofia de Thomas Hobbes (1588-1679), em especial na nogao de obediéncia por coercao, que tem a propriedade de marcar a existéncia de um poder politi- co fortemente centralizado, “dotado de espada”, ou seja, armado para forgar os homens ao respeito e obrigé-los 4 obediéncia absoluta. A diferenga dos totalitarismos, no “imperialismo colonial” havia, segundo Arendt, um pequeno controle exercido por parte dos representantes do “fator imperial”, composto pelo Parlamento e pela livre imprensa. Ele era “expresso politicamente no conceito de que os nativos nao eram apenas protegidos mas, de certa forma, representados [...]”.? E rigorosamente verdadeiro que a histéria dos imperialismos (por exemplo, britdnico, francés, belga, alemao ¢ portugués) tem intimeras referéncias de con- flitos, nas quais os representantes do “fator imperial” criticam enfaticamente 0 despropésito da dominagao dos administradores coloniais e das suas desastrosas conseqiiéncias para as populagées africanas. Mas poucas vezes as contendas tive- ram como resultado diminuir 0 espaco politico dos administradores coloniais, ou mesmo, comprovadas as atrocidades cometidas contra os nativos, remover 0 administrador colonial, como ocorreu em 1897, com Carl Peters, no Sudeste Africano Alemao. Portanto, historicamente, nao se sustenta uma relacdo causal entre a exis- téncia do “fator imperial” e um suposto controle rigido e pontual das adminis- 3. ARENDT, op. cit., p. 162-163. A AFRICA NA SALA DE AULA 93 tragées coloniais. O que se procura enfatizar aqui, tomando como instrumental tedrico as andlises de Hannah Arendt, é 0 fato de que as praticas politicas cria- ram e mantiveram relag6es sociais fundadas na assimetria, na hierarquia ¢ na extrema desigualdade entre europeus e nativos. Conforme a autora, um elemento fundamental de enraizamento e sustenta- ¢40 desse dominio foi o racismo. Essa é uma de suas contribuigdes mais esclare- cedoras, na medida em que permite explicar que os homens europeus concor- dam quanto aos meios e aos fins da dominagio colonialista, plenamente justificados pelo racismo, o qual, provocando a perda do senso de realidade do europeu em contato com outros povos, fornece um conjunto de elementos para que as sociedades coloniais se ordenem internamente como um organismo regi- do por uma arbitrariedade justificada pela “superioridade da raga branca”. Nessa elaboracao, o racismo advém da quebra do valor atribufdo ao ser huma- No — no caso, o negro —, que, subtraido de suas qualidades substanciais, perde a possibilidade de ser tratado como “semelhante” em um “mundo compartilhado”. [...] Sua base ¢ sta justificativa ainda eram a propria experiéncia, uma terrivel experiéncia de algo tao estranho que ficava além da compreensio ¢ da imaginacio: para os brancos foi mais facil negar que os pretos fossem seres humanos. No entanto, a despeito de todas as explicagées ideolégicas, 0 homem negro teimosamente insistia em conservar suas ca- racterfsticas humanas, s6 restando ao homem branco reexaminar a sua propria humani- dade e concluir que, nesse caso, ele era mais do que humano, isto é, escolhido por Deus para ser o deus do homem negro. Era uma conclusio légica ¢ inevitével no caminho da radical negagao de qualquer lago comum com os selvagens. [...]4 As trés prefiguragées do totalitarismo presentes no “imperialismo colonial” do final do século XIX (expansionismo, burocracia colonial e racismo), como elementos constituintes de uma totalidade, carregam consigo a experiéncia de fundir a pratica politica As representagées. Em outras palavras, o “imperialismo colonial” est4 comprometido com a construcao de um aglutinante ideoldgico capaz de fundir a pratica das condig6es de exploragao e de dominagao com as formas de justificé-las. As experiéncias histéricas efetivas demonstraram que o “imperialismo colo- nial” dispunha de mecanismos ideolégicos que levavam as massas a se identifi- car com o Estado e a nagao imperiais, conferindo justificagao ¢ reconhecendo legitimidade ao sistema politico e social de seu pats. Valia-se de mostras etno- 4, ARENDT, op. cit., p. 225. 94 LEILA LEITE HERNANDEZ grificas, exposigGes universais ¢ feiras mundiais, imensos rituais de massa em que © Ocidente se auto-representava glorificando uma missio civilizatéria auto-atribuida. Nessas ocasides eram exibidas nagdes e mundos vegetal, animal ¢ humano, segundo um sistema classificatério que obedecia a escala evolutiva glorificada pela antropologia vitoriana. As exposig6es universais eram, sobretudo, as manifestagdes culturais mais evidentes de afirmagao dos grandes impérios, em que representavam a si proprios (o mundo “civilizado”) e aos outros povos (“exéticos”, “selvagens” e “barbaros”) com os quais tinham contato. Tornando evidentes homens e¢ culturas, as diferen- gas eram apresentadas como critérios para glorificar a misao civilizatéria dos eu- ropeus na Africa. Pavilhao reproduzindo uma cidadela senegalesa na Exposigio Universal de 1889, em Paris. Cartio-postal da loja de departamentos Au Bon Marché. Pavilhio reproduzindo uma rua do Cairo na Exposigéo Universal de 1889, em Paris. A AFRICA NA SALA DE AULA 95 Apesar das diferengas culturais e histéricas entre os Estados europeus por um lado ¢ entre os préprios espagos geopoliticos africanos por outro, esse con- junto de elementos pertence ao “imperialismo colonial”, refletindo-se nos va- rios momentos de constituigao e de desenvolvimento do sistema colonial. Faz-se necessério destacar que, assim como a conquista, a dominagéo apresen- ta-se diferenciada historicamente. Acerca dos sistemas coloniais Convém expor com clareza que 0 tema da Africa sob dominagao colonial serd tratado de uma perspectiva genérica ou universal que encerra um conjunto de questes de base que ressurge na forma de especificidade histérico-cultural, de acordo com o entrelagamento das caracteristicas particulares dos colonialismos europeus e da diversidade das sociedades africanas. Nessa elaboracio, dois esco- pos explicativos sio articulados: por um lado, consideram-se as relagdes, os pro- cessos ¢€ as estruturas de apropriagao econdmica, destacando a propriedade da terra ¢ as relagdes de trabalho; por outro, levam-se em conta os padrées de exer- cicio do poder politico ¢ a teia de crengas e valores que justificam uns ¢ outros. Vale enfatizar que 0 processo de colonizagao segue a fase final de perda de soberania e se concentra entre 1870 e 1914. Tudo indica que o sistema colonial segue dois principios fundamentais da doutrina colonial, sistematizados e codi- ficados pelo ministro das Colénias da Franca, Albert Sarraut, em 1923, que se alteraram nas décadas subseqiientes, em especial em fins dos anos 1940. O pri- meiro é que as colénias cram consideradas um recurso decisivo para as crises econémicas dos paises metropolitanos. O segundo principio é que as colénias deveriam ser financeiramente auténomas. Para viabilizd-los, colocando em funcionamento o sistema colonial, eram utilizados quatro mecanismos bdsicos: 1) as subvengoes e os meios de financia- mento; 2) 0 confisco de terras; 3) as formas compulsérias de trabalho; 4) a co- branga de impostos. Caracterize-se cada um deles. O primeiro diz respeito a um conjunto de subvengées e meios de financiamento, traduzido por garantias de empréstimos para o setor privado metropolitan, mediante incentivos para que este tomasse em suas maos 0 essencial da atividade econémica centrada no co- mércio de produtos africanos e europeus. Por sua vez, parte substancial do co- mércio ficava em méos de companhias devidamente subsidiadas pelos emprésti- mos de uma rede bancéria quase monopolista. Esse mecanismo também inclufa os meios de financiamento para os grandes proprietérios, como subvengoes para instalacies, crédito agricola para 96 LEILA LEITE HERNANDEZ compra de equipamentos e subsfdios para desmatamento, mecanizagao e plan- tio. Havia ainda grandes facilidades de pagamento ¢ isengao de taxas aduaneiras para a importagao de implementos agricolas. Deliberadamente essas medidas incentivavam a exploracao das diferentes regides africanas, enquanto o Estado metropolitano reservava para si os direitos alfandegérios, sua maior fonte de receita. Os investimentos e, como conseqiién- cia, 0 crescimento econémico das colénias concentravam-se no litoral, ao longo dos eixos de escoamento de produtos no interior e em torno de alguns peque- nos centros. Essa mudanga na economia africana trouxe problemas aos comerciantes lo- cais, que foram inteiramente dominados no mercado pelas companhias, tor- nando-se seus intermedidrios ou ficando restritos a agir nas zonas tradicionais, chamadas “excéntricas” da rede comercial, isto é, as que continuavam a efetuar a troca de noz-de-cola por gado ¢ peixe seco, por exemplo. Mais ainda, o sal passa a nao vir mais do deserto e sim dos portos do litoral, eo destino do ouro nao é mais o deserto e sim o mar. Significa dizer que o intercambio comercial interregional africano sofreu profundas alteragées no curso de sua atividade econémica didria, 0 que contribuiu de modo decisivo para que a agricultura de subsisténcia fosse, cada vez mais, deixada em tiltima posigao. Quanto ao segundo mecanismo basico para o funcionamento do sistema colonial, este se refere ao confisco de terras, sobretudo das mais férteis, tornan- do-se legal, por decreto, em torno de 1930. Essa situagdo catastrdfica para os africanos ocorria de duas formas. A primeira, por meio de guerras continuad: por exemplo, ao sul do continente, entre os béeres € os xhosas de 1811 a 1864. Nesse processo, em grande ntimero dos casos, além de as terras serem confisca- das, eram capturadas milhares de cabecas de gado. A segunda forma de confisco, “legalista”, era desvinculada das tradig6es e dos valores africanos de varias regides. Nesta, as autoridades coloniais exigiam dos africanos registros de propriedade, ignorando nao sé o significado da terra para a maior parte das comunidades culturais, como o papel dos chefes de terra. O problema é que, em relagéo & quantidade numérica, os chefes de terra eram as chefias tradicionais mais comuns exercidas nos “territérios linhageiros”, es- pagos geogrdficos constitufdos por aglomerados populacionais formados por muitos grupos de familiares com afinidades culturais comuns (tradigées, costu- mes, hdbitos, lingua e, por vezes, religido). Simbolicamente, o tertitério linha- geiro significava o espago de ligacao entre os seres vivos, os mortos e os ainda por nascer. Envolvendo a metéfora de tudo 0 que jé fora realizado ¢ 0 que viria a ser, encerra um sentido de continuidade que sustenta e reforca 0 coletivo. Por A AFRICA NA SALA DE AULA 97 sua vez, deve-se considerar também que o afticano estava potencialmente habi- litado a ocupar a terra segundo normas ancestrais que organizavam e sacraliza- vam essa relagao, destacando-se 0 principio de impropriedade do solo. De todo modo, essa explicagao nao deve ser tomada em sentido absoluto, levando a visio equivocada de que os mundos tradicionais africanos eram fe- chados ¢ estdticos até a partilha e a conquista pelos europeus. Vale registrar aqui a andlise da historiadora francesa Catherine Coquery-Vidrovite Na verdade, essas sociedades supostamente estaveis raras vezes desfrutaram do encan- tador equilfbrio que se presume ter sido rompido pelo impacto do colonialismo. A Africa Ocidental, por exemplo, fervilhou de atividade desde as ondas de conquista dos fulas no século XVIII, ¢ muito antes da criacdo das unidades de resisténcia 4 in- fluéncia européia [...]. A bacia congolesa foi palco de convulsées sociais ainda mais profundas, ligadas 4 penetragdo comercial. Nesses casos, a revolugao na produgio abalou os préprios alicerces da estrutura politica. Quanto ao sul da Africa, a revolta dos zulus ¢ sua expansio tiveram repercussées que chegaram a Africa Central. Até onde teremos de recuar para encontrar a estabilidade tida como “caracteristica” do periodo pré-colonial: até antes da conquista portuguesa, antes da invasio iskimica, antes da expansio dos bantos? Cada um desses grandes momentos de decisio marcou uma reviravolta em tendéncias de longo prazo, dentro das quais, por sua vez, seria possivel identificar toda uma série de ciclos mais curtos como os periodos de recessio (1724-1740, 1767-1782, 1795-1811 etc.) ea ascensdo da economia de comércio es- cravagista de Daomé. Em suma, 0 conceito estitico de sociedade “tradicional” nao consegue resistir andlise do historiador.> Por fim, outra forma substancial de confisco foi a alienagao de terras “estatais” e de terras coletivas africanas por parte das metrépoles européias, que efetiva- vam a distribuigao de concess6es a empresas, gratuitamente ou a pregos baixos, favorecendo a criagao de grandes propriedades. Em contrapartida, os colonos tinham como obrigagées residir nessas terras e desenvolvé-las. Cabe lembrar que a distribuigao de concessées era complementada pelo monopélio ou pela politica protecionista de precos que impunha aos produto- res a obrigatoriedade de negociar com 0 concessionario 0 produto de suas reser- vas, como ocorria, por exemplo, na compra de borracha na Africa Equatorial Francesa, e de algodao em Ubangui-Chari (hoje Reptiblica Centro-Afticana). 5. COQUERY-VIDROVITCH, Catherine. “The political economy of the African peasantry and mo- des of production”, p. 91. Jn: APPIAH, Kwame A. Na casa de meu pai: a Africa na filosofia da cul- tura, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 179. 98 LEILA LEITE HERNANDEZ JA 0 terceiro mecanismo de funcionamento do sistema colonial diz respeito as formas compulsérias de trabalho. O discurso colonialista costumava afirmar que o trabalho era sempre considerado obrigatério, uma vez que era “obrigacao legal e moral” do africano, por meio dele, nao sé satisfazer o seu sustento como, gradativamente, “melhorar a sua condicao social”. Ao africano era reservada a es- colha do modo de cumpri-lo, desde que obedecido 0 prazo fixado, que nas colé- nias portuguesas chegava a seis meses ao ano nas culturas especulativas.° Mas nao ha duivida de que, se os agentes da administra¢ao colonial consi- derassem que o trabalho obrigatério nao estava sendo cumprido, o afticano era intimado e compelido a fazé-lo. Nao é pois acidental que a partir dai o trabalho passasse a ser forgado, sendo, nao raro, utilizado como sinénimo de correcional, uma forma de punicao dos “indigenas” considerados vadios. Em principio, o trabalho forcado sé podia ser empregado em servigos de interesse publico, quando avaliado como indispensdvel. No entanto, ainda que no plano do discurso fosse limitado ao carter correcional, historicamente era utilizado sempre que o Estado ou o distrito considerasse sua necessidade para “servicos de interesse ptiblico de urgéncia inadidvel”. Mas também era fre- qiiente alegarem que seus orgamentos nao permitiam arcar com a alimentagao e o alojamento dos trabalhadores encaminhados para servigos particulares. Assim, como confirmaram os fatos, era muito dificil distinguir 0 trabalho obrigatério do forgado, pois ambas as formas resultavam da manipulaco das elites dominantes, em prol de seus interesses, reforgando uma estrutura social irremediavelmente injusta. 1 Quanto as metrépoles européias, negavam que o trabalho fosse forgado, ao mesmo tempo que justificavam as suas formas compulsérias alegando serem imprescindfveis, dada a escassez da mao-de-obra (excego referente & Africa do Sul, ao Quénia, ao Congo e ao oeste afticano) ou naturalizando a existéncia das diferentes for- mas de escraviddo doméstica em certas socieda- re oe or des do continente, como no Tanganica, onde sé foi legalmente suprimida em 1922. Parece interessante reiterar que na maioria das vezes o trabalho forgado era justificado pela “lei divina do trabalho”. Segundo o jesufta A. Castelain: 6. Essas idéias fazem parte da legislacao ultramarina, por exemplo, dos impérios portugués francés. A AFRICA NA SALA DE AULA 99 O povo birbaro que se furte a estas leis nunca se civilizaré. Podemos, portanto, obrigié-lo ¢, como ele sé pode fornecer trabalho em compensagio dos servigos que se lhes prestam para melhorar a sua sorte, emos motivo redobrado para impor e exigir esse trabalho.” Esse quadro geral era, no entanto, muitas vezes negado no plano do discur- so em que os europeus se declaravam contrdrios, em particular ao trabalho for- gado, segundo eles porque incompativel com a liberdade, a moral e os senti- mentos humanitérios préprios de uma colonizacio civilizatéria. A Gra-Bretanha foi, virtualmente, a tinica metrdpole na qual, j4 em 1908, o trabalho forgado havia sido abolido, embora sejam muitas as suspeitas de que por trds de seu hu- manitarismo tenha havido uma clara preocupacao com a monetarizacao da eco- nomia. Embora possa soar paradoxal, foram justamente em dois dominios britanicos, a Unido Sul-Africana e o Tanganica, apés a Primeira Guerra Mun- dial, que se implementaram formas de regulamentacao do trabalho das mais opressivas, incluindo mecanismos para “disciplinar” 0 transito dos africanos mediante salvos-condutos e cédulas de identidade, além de fazer vigorar leis sobre “vadiagem”, que davam condigées para que a administragao colonial su- jeitasse os africanos a penas de trabalho forgado. Ainda que tenham existido semelhangas entre as praticas coloniais no que se refere & questao do trabalho, pragmaticamente elas apresentam especificidades. Foi bastante diversa a posicao de Portugal, que tentou estabelecer uma sutil dife- renga entre o trabalho em culturas obrigatérias de produtos especfficos para ex- portagio, por conta prdpria ou alheia, durante seis meses por ano, a todo afticano adulto, e o trabalho forgado reservado ao direito penal. Outra forma de manu- tengo do trabalho forgado foi a migracao forgada, cujo solicitante era 0 adminis- trador colonial, eixo principal de um sistema de abastecimento de mao-de-obra para plantadores e empresirios florestais. Um exemplo classico so as migracdes forgadas de Angola e Cabo Verde para Sao Tomé e Principe. Quanto aos “recrutas voluntérios”, estes migravam por razées diversas, co- mo meio de ganho para pagar impostos; para obter um pequeno excedente para a compra de alguns bens de consumo corrente; para escapar das secas, epide- mias, fome e mortes; para buscar alternativas ao esgotamento dos solos; por crescentes exigéncias da administra¢ao colonial. Além de sublinhar esses aspectos, é preciso apontar que, no conjunto, os colonialismos legalizaram as formas compulsérias de trabalho em “Cédigos de Trabalho Indigena”, que encerravam um regime de regulamentacao do traba- 7. Apud KI-ZERBO, op. cit., p. 142. 100 LEILA LEITE HERNANDEZ Iho, sobretudo do forgado, e que acabou por se constituir em instrumento para 0 controle dos alistamentos feito por recrutadores nomeados. Por exemplo, na Africa Equatorial Francesa, a partir de 1921, o alistamento nao podia exceder cerca de 33% da populagao masculina apta que tivesse atingido a idade adulta. J4 no Congo Belga, o limite de recrutamento, a partir da década de 1920, foi legalmente reduzido de 25% para 10%, embora essa determinagao tenha sido desrespeitada com freqiiéncia sob a justificativa de que os trabalhos nos cultivos obrigatérios eram educativos. Nao surpreende que esses cddigos de natureza juridico-politica nao te- nham precipitado mudangas por parte dos administradores governamentais. Elaborados quando se tornaram indispensdveis, em virtude do crescimento da mao-de-obra assalariada, de modo geral, suas prerrogativas deixaram margem a intimeras manobras para o seu descumprimento. Sem dtivida os Cédigos de Trabalho Indigena foram elementos de economias injustas, partes integrantes de uma ordem social extremamente desigual. Semelhantes em todos os terri- térios, eles fixavam: * a duragao legal do contrato, que era, por exemplo, de no maximo trés anos no Congo Belga e de dois nas provincias francesas ¢ portuguesas, nao sen- do obrigatério que o registro fosse feito na carteira do trabalhador; * 0 saldrio, magro, pago na sua maior parte em mercadorias e o restante em moeda. Por vezes, boa parte do saldrio, em moeda, era arrecadada pelo administrador colonial ou mesmo pelo patrao, que o retinha em nome de uma economia forgada em proveito do trabalhador, mas que, verdadeiramente, servia como fundo de maneio ou até como meio de presso por parte das autoridades; * a alimentagio, que quase nunca correspondia & prevista na origem do con- trato, ocasionando, muitas vezes, fome e mortes. Daf a preocupacao, entre outros, de Albert Sarraut que, nos anos 1920, recomendava que fosse con- siderada com especial atengao a necessidade de conservar © aumentar a oferta de mao-de-obra. Afinal, advertia: “temos de fazer negros”; * as multas pesadas, que eram aplicadas & menor infracao. Além disso, em nome de uma proclamada liberdade do trabalho, aumen- tou o emprego de trabalho diarista, por “tarefa” ou por “pega”, persistindo por muito tempo sem nenhum tipo de controle, o que era um modo de escapar de regulamentagoes. A AFRICA NA SALA DE AULA. 101 Por fim, mas nado menos importante, foi a cobranga de impostos, quarto mecanismo de funcionamento do sistema colonial. Articulada as formas com- pulsérias de trabalho, a cobranga de impostos incidiu mais diretamente quando © montante relativo aos direitos alfandegdrios deixou de ser considerado satisfa- trio. Eram eles: a) imposto pessoal, incidente sobre todos os colonos europeus do sexo masculino; b) imposto indigena de capitagdo, cobrado de todos os aftica- nos do sexo masculino; c) imposto de “palhota’, isto é, uma taxa cobrada sobre as habitagdes conforme o ntimero de cémodos (“pegas”). E importante assinalar que os impostos de capitacao pagos em dinheiro eram fixados de maneira arbitréria, exagerando-se os ntimeros de recenseamen- to. Aplicando os critérios préprios da administracao colonial, impostos que nao fossem pagos eram revertidos em trabalho nos campos de cultivos obrigatérios ou governamentais ou mesmo em trabalho forgado em obras de infta-estrutura como estradas, portos e linhas férreas. Ha aqui algo além da reversibilidade dos impostos em formas compul- sérias de trabalho. Cumpre observar que a cobranga de impostos era um me- canismo que influiu de modo decisivo na criago de mercados; no cresci- mento da economia de troca, uma vez que compelia os africanos a buscar trabalhos assalariados; na prorrogacao de certas atividades predatérias; no prolongamento da monocultura, mesmo que por vezes, como foi 0 caso do algodao, em um momento em que a superprodugao ocasionava uma conti- nua depreciagao do produto; e no continuado abandono das atividades agropastoris de subsisténcia.® As estruturas de poder O que permanece freqiientemente pouco considerado em boa parte dos es- tudos sobre o continente africano sob a dominagio européia é a identificagao das estruturas administrativo-juridicas voltadas para atender aos objetivos e as imposig6es préprios dos sistemas coloniais, em particular manter a ordem, evi- tar despesas e constituir uma reserva de mao-de-obra para transporte de cargas, construgao de estradas e ferrovias. Gostariamos de sugerir que a estrutura de poder variava segundo a extensio ea dispersio do dominio, a heterogeneidade, a riqueza do ponto de vista eco- némico, além das razées propriamente histéricas dos paises colonizadores, em particular de suas estruturas e seus sistemas polfticos. O que talvez possa ajudar 8. A respeito desse tema, vale consultar os capitulos XIII XIV de BOAHEN, op. cit., p. 323-360. 102 LEILA LEITE HERNANDEZ a compreender o vinculo entre a nagao colonizadora e 0 territério colonizado africano seja a identificacao de dois modelos distintos de estrutura de poder. O primeiro, fortemente centralizado, verticalizado e hierarquizado, em nome da unidade do império, desenvolvido em particular por Portugal, pela Franga e pela Bélgica, que procuravam compensar certa inferioridade demogrdfica e militar pe- rante Gra-Bretanha e Alemanha. O segundo modelo tem como exemplo a estrutura administrativo-juridica imperial da Gra-Bretanha, voltada para o controle de territérios de maior den- sidade populacional, maiores instalagdes produtivas e preponderancia do co- mércio. Era, no seu conjunto, uma estrutura de dominio menos autoritaria ¢ hierarquizada, deixando inclusive pequenos espacos de representago politica passiveis de ser ocupados pelos africanos. Uma das diferengas bdsicas entre os dois modelos residia no fato de que do mais centralizador faziam parte 0 ministro das Colénias, 0 governador ou resi- dente-geral, o conselho do governador-geral (6rgao consultivo), o governador, o conselho do governador, os administradores distritais e as chefias locais. Pragma- ticamente, ao ministro das Colénias cabia decidir as linhas gerais do comando, a comegar pela deliberagao do que era justo ou injusto, permitido ou proibido, com as demais instancias de poder apenas reiterando suas decisdes. Ja no segundo modelo, abaixo do secretdrio de Estado para as Colénias e do governador e acima do administrador de distrito e das chefias locais, existiam dois conselhos, um executivo e 0 outro legislativo, ambos marcados pela hetero- geneidade de sua composigao. O executivo, depois de 1940, passou a ser consti- tufdo também por africanos designados, que iniciaram um pequeno controle sobre os assuntos relativos & governanga, em particular sobre os impostos. Por sua vez, 0 legislativo passou a ser integrado, desde 1948, por membros nomea- dos. Embora dependesse da aprovagao do governador e do secretario de Estado para as Colénias, tinha fungoes legislativas. E importante chamar a atengio para o fato de que os conselhos significa- ram verdadeiros nichos de poder. Se por um lado no ameagavam 0 monopélio do poder de coacao do Estado, por outro significavam um espago, ainda que restrito e controlado, de acao politica dos africanos, influindo mais tarde na cena politica relativa ao processo de conquista das independéncias.’ 9. Cabe ressaltar que esse processo diferiu radicalmente do ocorrido na Africa do Sul, onde a lei de 1936, que regulamentava a representacio afticana, foi suprimida dos registros eleitorais da Col6- nia do Cabo, tornando a participagio politica dos povos “autéctones” restrita a eleigio de um niimero limitado de brancos como representantes dos “interesses indigenas”. A AFRICA NA SALA DE AULA 103 Colocada a diferenga, parece ser necessdrio registrar a existéncia, em ambos os tipos de estrutura de poder do “administrador de distrito” e do chefe local. O “distrito” era considerado a instancia administrativo-juridica mais préxima da populagio, mesmo quando a circunscrigio era subdividida em unidades menores. O administrador de distrito, também conhecido como “chefe de residéncia” ou “comandante de circulo”, era um verdadeiro “deus do mato”. Exercia a autorida- de e 0 comando e executava decisdes com elevado grau de concentracao de po- der, assumindo as fungées de um administrador caracterizado pela polivaléncia, sendo ao mesmo tempo recrutador, engenheiro civil, fiscal de satide, fiscal de en- sino, juiz, chefe militar, chefe de policia e responsével pelo controle financeiro. Por fim, mas nao menos importante, existia o chefe local, tradicional ou designado, que se constituia no elemento nuclear da estrutura administrativa, exercendo fungées de instrumento auxiliar do administrador distrital para ope- rages de recenseamento, recrutamento de mao-de-obra e recolhimento de im- postos. Significa dizer que, quando o chefe tradicional era transformado em chefe designado, as novas fungées para as quais era cooptado pela burocracia colonial, sobretudo nos governos diretos préprios das politicas coloniais assimi- lacionistas, acarretavam uma diminuiggo ou mesmo violagio de suas atribuigdes e de seus poderes tradicionais, fundados, no plano religioso, em um cardter sa- grado e, no plano da realeza africana, nos seus aspectos culturais. Pelo exposto, é bastante compreensfvel a avaliacao das chefias locais feita pelo administrador colonial francés Robert Delavignette, segundo o qual [...] nao hé colonizagéo sem politica indigena; nao ha politica indigena sem comando territorial; ¢ nao ha comando territorial sem chefes indigenas que atuem como cor- reias de transmissio entre a autoridade colonial e a populacio."° A instituigao das chefias locais como parte da burocracia colonial visava instaurar um espago marcado pela efetividade da dominagao, capaz de manter uma ordem relativamente estavel e equilibrada. Contudo, é importante anun- ciar desde logo que as chefias, sobretudo as tradicionais, eram por si mesmas consideradas incémodas e arriscadas aos olhos da administracao colonial. Dai 0 fato de as depuragées terem sido continuas, de modo que as chefias mais re- calcitrantes eram climinadas ¢ substituidas pelas designadas que deveriam conviver no espago € no tempo dos “civilizados”. Nesse sentido, o papel atri- 10. Apud BOAHEN, op. cit., p. 328. 104 LEILA LEITE HERNANDEZ buido & chefia local reforgava e, em grande parte das vezes, ampliava a indis- criminada rejeigao sociocultural por parte dos africanos. Esse aspecto, como é facil perceber, criava condigdes para que, em particu- lar no modelo de dominagao mais centralizado, a utilizagao de chefias locais tivesse incomodado a ponto de imperar a idéia de que deveriam ser suprimidas, como ocorreu no império colonial francés, em 1910. As politicas de assimilacdo e de diferenciacdo E importante registrar que, a despeito das contradigées e variages de sen- tido, as polfticas coloniais foram definidas, grosso modo, como de assimilacao (por exemplo, nos impérios portugués, francés ¢ belga) ou de diferenciacao (como no britanico e no alemao). A politica cultural de assimilag4o, defen- dendo os princfpios tradicionais das histérias das nag6es colonizadoras, tinha como objetivo converter gradualmente 0 africano em europeu, 0 que signifi- cava que a organizacao, o direito consuetudindrio e as culturas locais deveriam ser transformadas.'! Utilizavam-se para isso do ensino na lingua da metrépole, aliés a tinica ofi- cial; da religiéo e da moral que seriam cristas; dos costumes, das tradigdes ¢ dos modos de vida ligados & patria européia ¢ nao ao passado africano; e da divisio da sociedade em “civilizados, assimilados e indigenas”. Quanto aos “civilizados”, gozavam de igualdade de direitos politicos com os da metrépole européia. Por sua vez, os “assimilados”, na maioria das vezes, contavam com representagées no conselho-geral, também chamado conselho do governador; tinham um representante parlamentar na Assembléia Nacional; e, em geral, conservavam usos e costumes préprios do “estatuto pessoal”, como o direito a poligamia. Em contrapartida, os “indigenas”, a grande maioria da populacdo, eram regidos pelo Estatuto do Indigenato que, em geral, sobreviveu até apés a Se- gunda Guerra Mundial, tendo por eixo o regulamento geral do trabalho que institucionalizava formas compulsérias, como os trabalhos forgado e obrigaté- rio, além de incluir a fiscalizacgao das condicdes de vida do africano e a aplica- ao de castigos corporais. Teoricamente, todos os “indigenas” poderiam ascender a categoria de “assi- milados”, 0 que era regulamentado por decreto que enumerava os requisitos 11. Acerca desse tema, consultar “A idade de ouro dos estrangeiros”. In: KI-ZERBO, op. cit., p. 103-156. A AFRICA NA SALA DE AULA 105 necessérios. Tomando como exemplo o império portugués, era preciso que fos- sem atendidas as seguintes condigées: 1° — saber ler ¢ escrever a lingua portuguesa; 2° — possuir os meios necessérios & sua subsisténcia ¢ & das suas familias; 3° — ter bom comportamento atestado pela autori- dade administrativa da rea em que reside; 4° — diferenciar-se pelos seus usos ¢ costu- mes do usual da sua raga,!? Significa dizer que 0 proprio processo de assimilagio, privilegiando o caré- ter autoritdrio € coercitivo do sistema colonial, utilizava mecanismos para in- corporar um ntimero muito pequeno de africanos que, ascendendo a categoria de assimilados, poderiam se tornar mais coniventes com o colonizador e sua ideologia. Em poucas palavras, a assimilagao reforcava a segregacao.'> J& com referéncia a politica colonial de diferenciacao adotada em particular pela Gra-Bretanha, embora fiel ao projeto civilizatério ocidental da Africa como periferia, tinha como ponto basico de sustentagdo um conjunto de mecanismos e instrumentos voltados para viabilizar 0 “governo indireto”, idealizado e im- plementado desde 1850 e codificado em fins do século XIX e inicio do XX por Frederick Lugard, administrador colonial responsavel pela Nigéria do Norte (territério dos haugds e dos peuls). Essa politica baseava-se em generalizar os bens da civilizagao britdnica, a0 mesmo tempo “mantendo ¢ protegendo as so- ciedades indigenas”. A ambivaléncia que definia a prépria natureza da politica de diferenciagio (ou associagao) era resolvida, na prdtica, em primeiro lugar incorporando-se re- presentantes das sociedades africanas (as chefias tradicionais ou designadas) na administracao indireta das colénias. Em segundo lugar, introduzindo a educa- G0 inglesa, com o objetivo de tornar os africanos aptos a “entrar na economia moderna”, para a qual seriam necessariamente cooptados pela forca da mudan- ca inerente & sua propria dinamica, com o intuito de “melhorarem” as suas pré- prias sociedades. Dito de outro modo, nessa politica articulavam-se e movimen- tavam-se como feixes contraditérios: estimular igual oportunidade para todos ¢ respeitar a “pureza e o orgulho raciais”. 12. MARQUES, A. H. Oliveira (coord.). Historia de Portugal desde os tempos mais antigos até a presi- déncia do senhor General Eanes, Lisboa: Palas, 1986. v.3, p. 525. 13. MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeire terra, 1967. p. 30. Paze 106 LEILA LEITE HERNANDEZ Por sua vez, essa perspectiva era sustentada pela conviccao de que a mudan- ¢a econémica, social e politica deveria ser atrelada as préprias instituig6es afri- canas, pois seria mais eficiente construir partindo das préprias nogoes tradicio- nais de justica ¢ ordem do que arriscar impor padroes europeus compreenstveis apenas por uma minoria. Sintetizando essas idéias, afirmava o cientista inglés Julian Huxley que como os brancos se consideravam superiores aos negros pensavam sa- ber o que era melhor para eles, 0 que, no caso do império britanico, significava levé-los a se desenvolver apreendendo ao maximo as formas de pensar e os méto- dos de gestéo europeus, mantendo os modos de vida préprios dos africanos. Numa aplicagao concreta, a polftica colonial de diferenciagéo atrelada a questao cultural traduzia-se nas escolas, em que, com a importante acdo dos missiondrios, as criancas africanas eram obrigadas a seguir 0 mesmo curriculo das européias, porém sendo também alfabetizadas nas suas linguas maternas. Assim, conforme o historiador Ki-Zerbo: Em particular, os rudimentos de leitura ¢ escrita eram adquiridos para a lingua ma- terna, Este sistema, se por vezes limitava as perspectivas dos alunos, tinha a incompa- rdvel vantagem de nao os desenraizar do seu meio. Em geral, de resto o sistema in- glés, que resultava de um postulado menos “generoso” ¢ “humanista” do que 0 sistema francés, s6 aparentemente assim era. Apresentava a vantagem de nao dividir a sociedade africana, pois nao se encontravam cidadios e indigenas.' Além disso, devem-se recordar os principais tragos dos sistemas coloniais ale- mao e belga no continente africano. Eles apresentam uma combinagio dos meca- nismos préprios do colonialismo, como as subvengdes € concessdes a grandes companhias, o confisco de terras, as formas compulsérias de trabalho e a cobran- a de impostos. Mas essas semelhangas completam-se com caracteristicas particu- lares, levando-se em conta duas dimensées, a primeira relativa as particularidades de cada um dos impérios e a segunda que considera a efetiva politica adotada por toda metrépole européia em relagdo a cada um de seus tertitérios africanos. Os territérios sob dominagao alema até fins da Primeira Guerra Mundial, quando foram redistribufdos para Franca e Gra-Bretanha, pelo mando da Socie- dade das Nac6es, apresentavam administrativa e juridicamente um misto de ad- ministracao direta e indireta, por vezes em um mesmo espaco geopolitico, como nos Camarées ¢ no Sudoeste Africano. Jé em Togo, Ruanda e Burundi, a admi- 14. KI-ZERBO, op. cit., p. 124. A AFRICA NA SALA DE AULA 107 nistragao foi sobretudo indireta, enquanto na Africa Oriental Alem foi predomi- nantemente direta, assimiladora, com quadros compostos por suaflis. A especificidade ocorreu em razao de duas caracterfsticas implementadas nos Camarées, precursoras do moderno totalitarismo alemao. A primeira foi a iniciagao dos filhos dos chefes locais na inflexfvel tradigao do exército alemao. A segunda ficou por conta das grandes companhias exploradoras dos territérios, que inclufam a criag4o de couldelarias para a “apuragao das ragas locais”. Cabe registrar que no caso do Congo Belga foram combinadas as politi- cas de assimilagéo e de diferenciagéo. Por exemplo, a Carta Colonial, de 1908, que estabelecia o estatuto polftico-administrativo da colénia, aproxima- va-a do sistema francés, com a diferenga de considerar o direito consuetudind- rio no julgamento dos tribunais. No entanto, a semelhanga torna-se mais for- te se considerada a politica cultural assimilacionista que, como a portuguesa e a francesa, com fortes caracteristicas paternalistas, julgava que era missao dos belgas a evolugao dos africanos aos padrées europeus, processo muito lento, & escala de séculos.'? Por sua vez, quanto a escolaridade formal, a administragao belga aproxi- mava-se da britanica, utilizando-se das linguas mais faladas na regiao, como o kisuaili, o kiluba e o kikongo, entre outras. Havia intimeras variagées locais nesse padrao, cujos detalhes nao alteram a natureza do sistema. Nesse sentido, lembre-se que também no Congo vale a tese de que o imperialismo europeu sufocou a cosmogonia africana e os impul- sos nativos para a modernizacao. O mecanismo mais recorrente foi a violéncia fisica em alto grau, impondo aos africanos uma degradagao pessoal sinistra como poucas vezes a histéria registrou. Foram muitos os requintes de crueldade utilizados para que se obtivesse um fornecimento sempre crescente de toneladas de borracha. Ha uma estreita relacao entre o sentido histérico do sistema colonial ¢ a possibilidade de certo grau de generalizacao, a partir de um quadro comparati- vo das varias experiéncias colonizadoras no continente africano. Em relagao & fase de consolidagao do sistema colonial, entre 1900 e 1914, salta aos olhos a semelhanga dos processos, em maior ou menor grau, alicercados no exercfcio das violéncias institucional e simbélica, marcados na maioria das vezes pelo despropésito e pela irracionalidade da dominagao. Porém, é preciso reiterar a importancia fundamental de desenvolver pes- quisas voltadas para apreender como ocorreram as aplicagdes das politicas colo- 15. KI-ZERBO, op. cit., p. 140-147. 108 LEILA LEITE HERNANDEZ niais assimilacionista ou de diferenciagao, consideradas as variag6es administra- tivo-juridicas préprias da dominacao de cada metrépole européia. Da mesma maneira, é preciso compreender as particularidades histérico-estruturais de cada dominio, recuperando-se, com isso, caracteristicas decisivas da histéria do conti- nente africano antes dos portugueses, isto é, de 1415. Dito de outro modo: muita pesquisa histérica se faz necessdria para se ampliar o conhecimento acerca da natu- reza e do significado das colonizagées, assim como dos diferentes impactos que acarretaram nas diversas sociedades afticanas. Por fim, a esséncia desse argumento chama a atengao para as possibilidades de identificar as relagGes entre os colonialis- mos € os processos ¢ as estratégias de luta para a consecugao das independéncias. OS MOVIMENTOS DE RESISTENCIA NA AFRICA O desafio a autoridade: a concretizagao das resisténcias E preciso um cuidado especial para entender que, mesmo compartilhando um conjunto de pressupostos, ‘os sistemas coloniais apresentavam-se diversos quanto & forma e & intensidade com que utilizavam seus mecanis- mos e instrumentos de dominagao diante da rica varie- dade de culturas pré-coloniais africanas. Também nao resta duvida de que a dominag3o nao foi efetiva em todos os espagos geopoliticos, ficando, na pratica, cir- cunscrita aos pequenos centros ¢ seus arredores, nos es- pacos econémicos produtivos ¢ ao longo dos caminhos de escoamento dos pro- dutos de exportagao. De todo modo, o processo de colonizagao foi sempre marcado pela violén- cia, pelo despropésito ¢, nao raro, pela irracionalidade da dominacao. O con- fisco de terras, as formas compulsérias de trabalho, a cobranga abusiva de im- postos e a violéncia simbédlica constitutiva do racismo, feriram o dinamismo histérico dos africanos. Nao surpreende, portanto, que os movimentos de resis- téncia tenham pipocado em todo 0 continente, criando 0 enorme e quase invid- vel desafio de pesquisd-los criteriosamente. Por sua vez, os estudos efetuados sobre algumas dessas experiéncias histéri- cas caracterizam-se, no seu conjunto, por um eurocentrismo manifesto por trés equivocos bisicos. O primeiro deles diz. respeito ao fato da pouca importancia 1, Cabe salientar que este capitulo é uma versio revisada ¢ ampliada do artigo de HERNANDEZ, Leila M. G. Leite. “Movimentos de resisténcia na Africa”. Revista de Histéria, Departamento de Hist6ria. FFLCH/USP. Sao Paulo, n. 141, 2° semestre, 1999, p. 141-150.

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