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ARMAS E O VARAO JRA E TRADUGAO DO CANTO I DA ENEIDA [..] a meméria ¢ 0 dom de lembrar, dos quais provém todo desejo de imperecibi- lidade, necessitam de coisas que os fagam recordar, para que eles préprios nio ve- ham a perecer. HANNAH ARENDT (2000, p. 183). A tradugio € a procura de um equiva- lente, ¢ nao de um substituro. Requer pelo menos uma afinidade estlistica, quando nao psicol6gica. JOSEPH BRODSKY (1994, P. 84) ENEIDA, CANTO 1 Eneipa, Canto 1 As armas 0 varao primeiro eu canto, aqucle que o destino pés em fuga, e que do litoral de Troia veio até Itdlia, as praias de Lavinio. Ao mar ¢ a outras terras muitas vezes a violéncia dos deuses o langou por causa do rancor cruel de Juno. E muito ele sofreu também na guerra até poder fundar uma cidade* ¢ transferir seus deuses para 0 Licio: donde a raga latina e os pais albanos, donde as muralhas da altaneira Roma. © Musa, agora as causas me recorda: (Hex. $1] a rainha dos deuses, que sentiu? Em que se lhe ofendeu a divindade para impor ao vario piedoso e ilustre tantos esforcos ¢ perigos tantos? Quanta ira em espiritos celestes! Cidade antiga, de colonos tirios, (Hex 5) longe da foz do Tibre ¢ oposta a Italia, era Cartago rica e belicosa. no Eneias,filho de Venus. ‘trom: cidade da Frigia, na Asia Menor, destruida pelos Bregos, avinso: cidade fundada por Eneias, na regiéo do Licio, s0No: deusa que apoiara os gregos na Guerra de Troia € continuava a perseguir os vencidos * Referéncia a Lavinio. 1Acto: regio da Ita central, onde se estabeleceram os troianos liderados por Eneias. (05 Pars aLBANOS: nobres antepassados dos romanos, que remontam 3 cidade de Alba Longa. stusa: uma das nove filhas de Jipiter e Mnemésine, deusa da meméria, respon- siveis por toda a inspiragio do engenho humano. Tradicionalmente é Calfope a musa da poesia épica. [A RAINHA DOS DEUSES: Juno, esposa e irma de Jpiter. © vaRio PrEDOSO: expressio ‘que se refere a Eneias € virtude que melhor 0 carac~ ceriza, sua picts. ‘Trios: de Tito, cidade feni- «ia do Mediterraneo oriental, situada na costa da Siri. ‘pre: correndo desde os ‘Apeninos para desembocar no mar Tirteno, &0 principal tio da Iulia central; & sua ‘margem esquerda fundou-se a cidade de Roma, ccarraco: cidade da costa norte da Aftica, préxima asilhas da Sardenha e da Sicilia, destruida por Roma fem 146 a.C., 0 final das Guerras Piinicas. s ENEIDA, CANTO 1 A qualquer outra Juno a preferia, até & propria Samos, é 0 que dizem; ali as armas tinha e tinha 0 carro. A deusa esforgos j4 nao poupa e quer, se a sorte consentir, torné-la imensa. Mas, de sangue troiano, como ouvira, surgiria uma raga, a qual, um dia, abalaria os tirios baluartes, um povo poderoso, nobre ¢ forte que a ruina da Libia causaria: assim as Parcas vinham jé fiando. Preocupa-se Satiirnia ¢ rememora a guerra antiga que levara a Troia, pela carissima Argos indo a frente; ‘0s motivos da ira e a dura mégoa nao lhe deixam o peito e nunca esquece 0 juizo de Paris, que despreza ofende-lhe a beleza; a raga infame, cas honras do raptado Ganimedes. 329) samos: cidade, em ilha ho- ‘ménima do mar Egeu, onde ‘a deusa era especialmente ccultuadsa AS ARMAS E 0 CARRO: 08 apa- ratos de guerra da propria deusa Lista: designacao geral para 0 norte da Africa: por incluséo, Cartago, ‘As PARCAS as tes emis fan- deiras que teciam os destinos. saTdanta: Juno, filha de Saturno, ‘A GuERRA ANTIGA: referéncia 4 Guerra de Troia, ‘ancos: cidade do Pelopo- neso,cujo rei, Agamenio, «era 0 comandante supremo las forgas perfiladas contra Troias por extensio, designa toda a Grécia. © suiz0 pe pints: escolhido como drbitro da beleza, ‘numa dispura em que Juno tomava parte, o woiano Paris, decidiu-se a favor de Venus. [A RAGA INFAME: a estnpe dos troianos, naturalmente odiosa a Juno, uma vex. que provinha de Dardano, fruto de uma das relagées extra- ‘conjugais de Jipite. [AS HONRAS DO RAPTADO ‘Gantmenes: encantado com abeleza do jovem troiano, Jlipiter arrebatou Gani- ‘medes 20 Olimpo, onde © admitiu como escangao dos deuses, Fungo que até entio cabia a Hebe, filha de Juno. “ ENEIDA, CANTO 1 Por isso inflama-se e do Lacio afasta 05 troianos, sobejos do furor dos dnaos todos e do acerbo Aquiles, que erravam tantos anos pelos mares, levados pelas forcas do destino. Quanta luta, fundar a forte Roma! ‘Assim que se afastavam da Si a (Hex. 34-49) rumo a0 mar alto e alegres davam velas, rasgando a bronze a espuma e 0 sal das ondas*, Juno, que traz no peito a eterna migoa, diz consigo: “Eu, vencida, desistir? Da Itdlia desviar o rei dos teuctos 1nio posso, sou tolhida pelos fados! Nao pode acaso Palas abrasar a esquadra dos argivos ¢ afundé-los por culpa insana s6 de Ajax de Oilleu? Das nuvens coriscantes, ela mesma, langando o fogo répido de Jiipicer, fendeu as naus eo mar volveu com ventos; num turbilhio, arrebarou Ajax, cujo peito varado ardia em chamas, © 0 encravou na ponta de um rochedo. -TROWANOS: 0 designative mais frequente para os oriundos de Troia;formado a partir de “Trés", nome de um antigo rei da regio, do qual tam- bém a cidade tra 0 seu, ANAos: nome derivado de “Dinao”, fundador e antigo tei de Argos; por extensio, aplicado aos gregos como uum todo. AQUILES: 0 herdi mais temivel dentre os gregos combatentes em Troia. * As quilhas dos navios cram revestidas de bronze. © REI DOS TEUCROs: desde a ‘queda de Troia, por dstin- ‘0 honorifica, €nacural- ‘mente Eneias. O apelativo “teucros”, que as vezes designa os mesmos troianos, deriva do nome de Teucro, tum antigo rei da regio, anterior 3 propria cidade. PALAS: nome grego de Mi- nerva filha de Jupiter, deusa das artes, da sabedoria eda guerra, -anc1vos: os habitantes de Argos; por extensio, todos 0s gregos ax [ratsto] De OMLEU: normalmente assim deno- minado para diferencis- lo de “Ajax Telaménio” (companheito 20 lado do qual aparece combatendo na Mada); wlerajara a sacerdo- tisa Cassandra no templo de Palas (© FOGo RPIDO DE jprrER: © raio, poderosa arma do deus supremo, 6 ENEIDA, CANTO 1 ‘Mas eu, que sou dos deuses a rainha, que sou de Jipiter irma e esposa, combato 0 mesmo povo hé tantos anos! E haveré quem adore ainda Juno, quem honre, suplicante, seus altares?” Remoendo-se, em brasa 0 coracio, Hex so a Eélia a deusa vai, pais dos nimbos, lugar repleto de Austros desvairados. Ali, em ampla gruta, os ventos brutos, bem como as retumbantes tempestades, sob seu mando, o rei Eolo presos tem € 0s refreia, no cércere, em grilhées Revoltosos, rugindo na prisio, abalam com clamores a montanha. No topo, cetro em punho, assenta-se Folo, modera os animos e abranda as iras. Eé certo que, se nao fizesse assim, 0s ventos varreriam pelos ares mares, terras € mesmo o céu profundo. Por isso, o onipotente pai prendeu-os em cavernas sombrias, Ihes impondo © peso enorme de elevados montes ©, entéo, lhes deu um rei que por fidticia as rédeas retesar ou distender soubesse quando fosse requestado. Aceste, pois, vem Juno assim pedir: Ou: a terra dos ventos situa-se no arquipélago vul- nico das Eélias, também denominado ilhas Liparis, a nordeste da Sicilia [AUSTROS: ventos que sopram do sul, quentes e tempes- ‘tuosos; a, uma sinédoque, figurando a totalidade dos net foto: 0 deus dos o ontormre. pat Jupiter. ENEIDA, CANTO 1 “O Eolo, o pai dos deuses, rei dos homens, hex 6:75) concedeu-te acalmar ou sobreerguer com 0 vento as vagas: povo hostil a mim navega o mar Tirreno c leva a Itdlia flio com seus penates derrotados. Incute aos ventos forga ¢ as naus destréi, dispersa a frota ¢ os corpos pelo mar! Catorze esculturais ninfas possuo; de todas a mais bela, Deiopeia, por justa recompensa te darei em casamento estdvel para sempre, ¢ pai de bela prole tu serds”, Entio responde-the Eolo: “A ti, rainha, (vex 768) compete sé dizer 0 que desejas: € meu dever cumprir as ordens tuas, pois tu és quem garante o meu reinado €0 meu trono confirma junto a Jipiter; no banquete dos deuses, tu me assentas, e tu fazes de mim 0 poderoso senhor das tempestades ¢ dos nimbos”. Dizendo assim, com a ponta do bastdo, [Hers] fendeu de um lado o cavo da montanha: ‘8 ventos, fei exército que avanga, pela abertura irrompem com fragor as terras vio varrendo em turbilhao. 335 © PAL DOS DEUSES, REI DOS HomeNs: Jipicer. MAR TIRRENO: a porgio do Mediterraneo ocidental ‘compreendida entre as ilhas da Corsega, da Sardenha da Sicilia ea costa oeste da peninsul: fi10: outro nome para Troia, derivado de “Ilo”, como se chamava o fundador da cidade, filho de Trés. enates: divindades prote- toras da patria e da familia. unas: divindades femini- nas relacionadas a elementos dda Natureza como rios, ma- res, bosques e montanhas, ENEIDA, CANTO 1 Ao mar se langam juntos 0 Euro, o Noto, ¢ 0 Aftico abundante em tempestades ¢ desde as profundezas 0 revolvem cerguendo vastas vagas contra as praias: os homens clamam, rangem as amarras. ‘As nuvens arrebatam de repente 0 céu ea luz do dia aos olhos teucros: a noite escura deita sobre o mar. Os polos troam, fullge o espago em chamas, em tudo a morte aos homens se apresenta. Encias sente um forte calafrio, lamenta-se, abre os bragos para os eéus ¢ assim profere: “Oh! mil vezes feliz quem encontrou a morte junto aos pais, em Troia, ao pé das célebres muralhas! © Tidides, dos dnaos 0 mais forte, quisera ter vertido a destra tua esta alma ¢ ter tombado em solo iliaco, onde o dardo do eécida prostrou © bravo Heitor e o grande Sarpedio, por onde o Simoente corre ¢ arrasta debaixo da corrente tantos corpos ¢ escudos e elmos de vardes valentes!” Enquanto fala, vem ferir a vela He so] uma borrasca de Aquilio, que estruge 8s estrelas imensa vaga eleva. 337 ‘uno: vento que vem do deste, Noro: vento que sopra do sul, normalmente identifica- do com o Aust. ‘rrico: 0 vento sudoeste (sempre em relagdo a Ida, € caro) mipipes:flho de Tideu, ito 6 Diomedes, famoso herdi da Guerra de Troia. Na ia- a (Canto v), fete 0 proprio Eneias, que é socortido por Afrodite (Venus) e por Apolo. capa: descendente de Eaco, No caso, Aquiles, seu eto, error: 0 maior defensor da cidade de Troia, morto por Aquiles em combate singular, sanpeDao: chefe guerreiro aliado dos troianos. Filho de Jipiter, foi morto por Pieroclo quando este usava asarmas de Aquiles. stmoenre: rio da planicie AQUILAO: vento que sopra do norte fio e violento. us ss 0 6s ENEIDA, CANTO 1 Remos racham; a proa dé de lado, oferecendo as ondas 0 costado: um precipicio de éguas sobrevém. A uns suspende, a outros, se entreabrindo, a vaga mostra a terra em meio &s Aguas; a fiiria da maré revolve o fundo. Trés naus arrebatadas pelo Noto vio de encontro a rochedos escondidos (rochedos que se postam entre as ondas, altares, como dizem os itdlicos, imenso dorso ascenso & superficie); trés outras o Euro arrasta do alto-mar a sirtes arenosas — cena horrivel! — as atira ¢ as enterra nos baixios. A do fiel Orontes ¢ seus licios © proprio Eneias vé ser atacada pelo mar que despenha sobre a popa: de cabega o piloto oscila e cais a nau trés vezes gira em torvelinho ¢ perde-se no pélago voraz: no vasto abismo, poucos homens nadam centre as armas ¢ as tabuas ¢ os tesouros de Troia que furuam sobre as aguas. ‘A nau robusta de Iioneu e ainda ado valente Acates e também as que levam Abante eo velho Aletes resistir & tormenta ja nao podem: com as junturas dos flancos afrouxadas, recebem todas a 4gua hostile fendem. 339 Licios: oriundos da Licia, regido do sul da Asia Menor, ‘as TAUAS: pranchas conten- do inscrigdes ou gravuras. (ORONTES, ILIONEU, ACATES, |ARANTE, ALETES: todos com- panheiros de Eneias, dentre ‘os quais se destaca 2 figura de Acates. ENEIDA, CANTO 1 Mas, cheio de apreensio, sentiu Netuno (ti sy tremer 0 mar imenso com rumor ¢ agitarem-se as Aguas mais profundas por forca de procela encomendada. Mirando ao longe, eleva a fronte plicida: na superficie, vé dispersa a frota, 08 troianos premidos pelas ondas ¢ pelo firmamento que desaba —de Juno a ira e 0 dolo 0 irmao percebe. Ao Euro diz, chamando, e diz ao Zéfiro: “Tio grande audicia vem de vossa raga?* (Hex 2-91 Ousais turbar, sem que eu conceda, ventos, 0 céu ea terra e erguer tamanhas vagas? Eu vos...!: mas urge as ondas aplacar, depois pagar-me-eis 0 atrevimento com pena nunca vista: agora ide! E.a0 vosso rei levai estas palavras: nem o Império do pélago the coube, nem o horrivel eridente por destino, mas a mim! Ele tem imensas grutas, vossas moradas, Euro, seus palécios; deles se orgulhe. Que Eolo reine mas... 14, no encerrado cércere dos ventos!” Assim fala e, mais répido que a fala, tec g-s) aplana a superficie revoluta, dispersa as nuvens, traz de volta 0 sol. NETUNO: 0 poderoso deus do mar. Netuno, como Juno, provém de Reia e de Saturno. zértno: vento que vem do oxste. Os ventos seriam descen- dentes dos Titi, gigantes que enfrentaram o poder dos deuses do Olimpo. -ENEIDA, CANTO 1 Cimétoe une-se a Tritdo, e, juntos, do perigoso escolho as naus empurram: © proprio deus as toma em seu tridente, as vastas sirtes abre, amansa as aguas ¢ em rodas leves sobre o mar desliza. Assim como acontece tantas vezes: na multidao rebenta uma tevolta, a turba vil se exalta e logo joga tochas e pedras (armas do furor); um homem de virtude e muitos méritos, respeitado por todos, aparece; entao cala-se 0 povo para ouvi-lo, s6 com palavras ele doma os animos ¢ abranda os coragées: do mesmo modo, jd cessa em todo o pélago o fragor depois que o deus, as aguas contemplando, 0s cavalos volteia ¢, limpo 0 céu, distende as rédeas e em seu carro voa. Exaustos, os Enéiadas procuram [Hex say9} seguir na diregao das praias préximas a0 litoral da Libia se dirigem. O lugar é um recéncavo isolado: uma ilha interposta forma um porto, as ondas do alto-mar ali se quebram, repartem-se ¢ recuam em refluxo. De um lado e de outro, fragas eminentes, penhascos gémeos, sobem para o céu; ao longo de seus pés as dguas calam. Frondosa e farfalhante cena acima, de sombra espessa um negro bosque assoma. 343 ccimbro®: ninfa marinha, uma das Nereidas. ‘rartho: divindade do mar, filho de Netuno; representa- do como homem, da cintura para cima, ¢ como peixe, da

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