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Paulo Sérgio de Vasconcellos Epica I o Enio e Virgilio ‘UsvensiDAnn EstADUAt D5 CAMPINAS Reitor Jost TADeU Jones Coordenador Geral da Universidade ‘ALVARO PENTEADO CROSTA CConselho Editorial Presidente Epvanpo Guimanaes| Esoaas Ropaioves Siva ~ Gutta Gxtw DEBeRT Joko Luu pe Canvatuo Pisto x Suva — Lurz Caos Dias ‘Lor FRaweisco Dias - Manco AURELIO CREMASCO -icanDO Luz CoLtRo ANTUNES ~ SEDI HIRANO Coleg Bibliotheca Latina (Comissio Editorial, Cooroenaponss ‘Maries TREvizan x PAUO Sxato Dk VASCONCELLOS IsABPLLA TARDIN CARDOSO ~ Lute Paanensco Dias ‘Mancos Makino bos Sawos ~ DRO PAULO ABREU FUNARI oe Paulo Sérgio de Vasconcellos Em suma, convém atentar para a caducidade e a relativida- de de estéticas e gostos, reconhecendo os méritos da obra de Enio por si mesma, nao a tratando apenas como se fosse um precedente ainda tosco de uma suposta perfeigio da Eneida de Virgilio. Notas 1 Gian Biagio Conte, Letteratura latina. Manuale storico dalle origin alla fine dellimpera romano, Milo, Le Monn, 2008.6. 2 Textos de Enio, salvo indicagio contréra, so transcritos da edigio de War- smington. 3. CE Sander M, Goldberg, “Early Roman Epic’, in John Miles Fowley, A com pron. BABS 4 ‘Atestado no comentério de Sérvio A Eneida , 412, nos gramaticos Donato (Ars {rammatica 4, 564), mas sem indicago de autora, e Pompeius. 5 Para Cicero, a0 falar em Faunos evates, Pnio tem Névio em mente (Brut, 19,7): ‘uma passagem em que se ironiza o trecho de Bajo, que teria tomado “multas coisa” do predecessor; tomado i, e ele o negar, “surrupiado. =46- sat geemeeie een seca. CAPITULO IV A Eneida de Virgilio IV.1 Introdugio Como vimos, antes de Virgilio (70-19 a.C.), 08 criticos latinos consideravam Bnio um “segundo Homero” (alter Homerus)'. Essa posigio, porém, caberd a Virgilio depois da publicacao (péstuma) de sua Eneida. Mesmo antes de a obra vir a publico, © poeta elegiaco Propércio jé a mencionava como um poema que até mesmo superaria o grande predecessor grego: Cedite Romani scriptores, cedite Grail nescio quid maius nascitur Hiade, (I, 34, 65-66) “Cedei o passo, escritores romanos; cedei, gregos! [Nasce no sei que mais grandioso que a Iliadat” Virgilio viria a ser considerado felos antigos romanos 0 grande poeta épico de Roma, celebrador das faganhas gran- diosas do império num poema épico a altura dos homéricos. Como veremos, porém, sua epopeia é tfo complexa e ambigua que deu azo a toda uma tradigéo exegética que cré ver, nas en- trelinhas de uma celebracao triunfalista, uma critica incisiva ao -47- Palo Sérgio de Vasconcellos império romano e até mesmo a Augusto. A chamada “Escola de Harvard”, a qual se costuma associar estudiosos importan- tes como Michael Putnam, fez. uma leitura da epopeia que se convenciona chamar “pessimista” e que coloca em relevo o que poderiamos chamar de “sombras” na construcio ideolégica do poema. Trataremos desse tema mais adiante. Se as duas epopeias homéricas estavam tradicionalmente di- vididas em 24 cantos cada uma, num total de 48, a Eneida tem ‘um quarto disso, ou seja, 12 livros, num total de 9.900 versos. Dentre esses, 58 esto incompletos, atestando que, de fato, 0 poeta nao teve tempo de concluir a obra. Segundo a tradigao, no leito de morte Virgilio pediu reiteradamente, sem ser aten- dido, que Ihe dessem os manuscritos do poema para os quei- mar®, Uma das biografias legadas pela Antiguidade diz-nos que Augusto encarregou Vario e Tuca, amigos do poeta, de editar 0 texto, suprimindo o supérfluo mas sem nada acrescentar’. IV.2 Resumo da intriga é fécil resumir o contetido da intriga de um poema tao ex- tenso e complexo; fornecemos abaixo um panorama sucinto: LIVRO I: Depois da proposicao, da invocagio & Musa e da exposigao das causas do édio de Juno contra Eneias e 0s troianos, comeca a narragdo propriamente dita. Os troianos, tendo deixado a Si cilia, navegam para a Italia, Juno, avistando-os, enfurece-se ¢ vai até 0 rei dos ventos e das tormentas, Bolo, e 0 faz provocar uma terrivel tempestade no mar. Eneias e os seus vao parar em Cartago, uma cidade em construcdo, no norte da Africa. Venus, 48- Epica 1 mie de Eneias, vai ter, queixosa, com Jipiter, que Ihe assegura © futuro brilhante dos descendentes de seu filho, aos quais concedeu “império sem fim” (imperium sine fine, 279). Se Jpi- ter Ihes “deu” essa prerrogativa, vé-se cue o pai dos deuses, na Eneida, parece se identificar com o destino, por cujo cumpri mento vela, intervindo, por vezes, na ago para apressé-lo. Dido, rainha de Cartago, gracas & inrervengao do deus, aco- Ihe hospitaleira os troianos e, durante um banquete, pede a Eneias que conte os acontecimentos da guerra de Troia e as errancias de sete anos por terra e mar. Viktor Péschl via, na primeira sequéncia de cenas (1, 8-296), ‘uma “antecipagao simbélica do poema em sua totalidade™. As- sim, o primeiro simile do poema, que brevemente comenta- ‘mos, anuncia um dos temas que lhe sao centrais: o controle das forcas do caos e do furor (aqui representadas pela tempestade ccOsmica que se abate sobre os troianos, comparadas ao furor de uma rebelido popular) por um poder superior (Netuno, com- parado a um velho cidadio respeitavel que controla, sé com a palavra, a multidao enfurecida). LIVRO II: Eneias conta o que ocorreu na noite em que Troia foi toma- tes, depois de nove anos de assédio ineficaz, simulam a partida, mas se ocultam em Ténedos, ilha da de assalto pelos gregos. que fica defronte a Troia. Deixam em frente a cidade enorme cavalo de madeira; em seu bojo, a fina fler dos guerreiros. Surge © grego Sino, capturado pelos troianos, que conta uma hist6- ria mentirosa: os gregos partiram e, em homenagem a Minerva, construiram o cavalo de madeira. Grande mal adviria para os troianos se violassem o dom: porém, se c abrigassem na cidade, a Asia venceria a Grécia, 49. Paulo Sérgio de Vasconcellos Ocorre terrivel prodigio: Laocoonte, sacerdote de Netuno que langara uma langa contra o flanco do cavalo (a ele o poema atribui a expressio proverbial “temo os gregos, mesmo quando trazem presentes”, timeo Danaos et dona ferentis, 49), parece castigado pelos deuses, pois duas serpentes monstruosas vem de Ténedos e Ihe devoram os filhos e a ele proprio. Diante de tal cena, 0s troianos acolhem o cavalo, acreditando nas mentiras de Sino. A credulidade fatal dos troianos é um motivo recor- rente neste canto; entretanto, é preciso ressalvar que a agao di- vvina por tris do prodigio das serpentes teve papel importante no fazer com que se desse crédito a fraude de Sino. Heitor, o grande guerreiro troiano que Aquiles matara, apa- rece em sonhos a Eneias, incitando-o & fuga. Quando acorda, diante da devastagio de Troia, j4 tomada pelos gregos, Eneias, em vez de cumprir a prescrigao de Heitor, prefere reunir ho- mens e tentar uma resisténcia que se mostra inutil. Advertido por prodigios celestes que o impelem a deixar a cidade, Eneias parte de Troia ao lado do pai, da esposa Cretisa e do filho As- canio (chamado Iulo quando Troia ainda estava de pés a fami- lia dos Jilios se dizia descendente de Iulo e, portanto, de Vé- nus), Na fuga precipitada, perde de vista a esposa, que depois Ihe aparece como espectro (simulacrum, 772) ¢ fala do destino de Eneias: longos exilios, viagem por mar, até chegar a “terra hespéria” (uma expressio poética e algo enigmitica para desig- nar a Itilia); ali reinaria e teria uma esposa real. Essa volta de do livro Eneias a Troia em chamas ecoa fortemente o epis6 quarto das Gebrgicas em que Orfeu desce aos Infernos para ten- tar resgatar a esposa Eurfdice. Nem Orfeu, nem Eneias, por motivos diversos, tém sucesso; no caso do troiano, os deuses retinham Cretisa em Troia, cuja morte, porém, nio € descrita nem mencionada diretamente. -30- eon ca Fpica 1 Por fim, Eneias chega a0 monte I¢a junto com os compa- nheiros de exilio, coloca o pai is costas (um belo exemplo de sua pietas filial) e se dirige as montanhas. Criticos tém apontado que os livros pares da epopeia sio mais dramaticos, 0 que se aplica bem ao livro II, com seu tom trdgico e cenas dramiticas. A ado tem unidade significativa, jé que se centra nos episédios dos iiltimos momentos de Troia e da partida de Eneias em exilio, Essa uaidade se vé também na imagética: permeiam o livro as imagens da serpente e do fogo, conforme mostra um estudo célebre®. As serpentes vém de Té- nedos, como depois os gregos; sio chamadas “gémeas”, como depois os dois chefes gregos Agamémnon e Menelau. O epis6- dio de Laocoonte parece, entao, prenunciar a invasio de Troia ea destruicdo da cidade pelos gregos. Por fim, observemos a morte de Cretisa quase no fim do se- gundo livro; no final de varios cantos, uma morte é mencio- nada ou descrita: no IIL, a de Anquises no IV, a de Dido; no V, a do piloto Palinuro; no VI, a do jovem Marcelo, sobrinho de Augusto; no X, a de Mezéncio; no XI, ada guerreira Camila; no XI, a de Turno, o rival de Eneias. LIVRO I Os troianos constroem uma frota e partem. Chegam a Tra- cia. Aqui, horrendo prodigio leva os forasteiros a abandonar aquela terra: do sepulcro de Polidoro, um filho de Priamo con- fiado a hospitalidade do rei Licurgo, uma voz adverte para que fajam daquelas terras cru 0 rei tricio, ao saber que os gre- 0s tinham vencido a guerra, matara Polidoro e se apossara do ouro que o troiano trouxera consigo. Os troianos consultam 0 ordculo éa ilha de Delos, que os incita a procurar a “antiga mae” (96). Entendendo que se tra- -31- Paulo Sérgio de Vasconcelos tava de referéncia a Creta, Anquises guia os troianos até lé, mas 60 deuses Penates (protetores da familia e do Estado) advertem pessoalmente Eneias de que ele deve rumar para a Hespéria. ‘Nova tempestade leva os troianos & terra das Harpias. Depois de passar por lugares variados, chegam ao Epiro, onde uma no- ticia espantosa os aguarda: Héleno, filho de Priamo e sacerdote de Apolo, desposara Andrémaca, a mulher de Heitor. Héleno profetiza sobre os percalgos da viagem e faz recomendagdes. Os troianos partem e chegam 8 Sicilia, onde topam com Aquemé- nides, um companheiro que Ulisses esqueceu na terra dos ci- clopes. Que Ulisses tenha esquecido um companheiro parece ‘uma invengio virgiliana e, por certo, langa sobre o her6i grego uma luz duvidosa... Em Drépano, na Sicilia, morre Anquises. Por fim, Eneias se cala, encerrando uma longa narragao. Neste livro, vemos os troianos vagarem sem rumo e incertos de seu fado até se esclarecerem sobre a terra que lhes estava destinada, Anquises parece ser o verdadeiro lider dos exilados, papel que, & sua morte, caberd a Eneias. Anuncia-se um tema importante: “a antiga mae” dos troianos é a Italia; assim, a ida para aquele pais sera como uma volta dos troianos ao seu berg, pois na Itilia é que estariam as raizes primeiras do seu povo. Esse é um tema importante para os que acreditam ser a Eneida ‘uma espécie de Odisseia com momentos iliédicos, um poema de retorno ou “nostos”, como se dizia em grego; voltaremos a essa questo mais & frente. Por outro lado, em mais de uma oportunidade os troianos parecem desejar reconstruir Troia. Andrémaca, numa passa- gem de que Baudelaire se lembrard, é representada ofertando dons a um timulo vazio que figura o de Heitor, junto a agua escassa de um falso rio Simoente. Essa “pequena Troia” e a “corrente seca do Xanto” (349-350) a que se apega Andromaca 52- Epica Parecem representar o passado troiano de que Eneias tem de se libertar: os fados nao Ihe destinam uma nova Troia que seria um simulacro vazio da outra, mas 0 estabelecimento das ori gens do que um dia seria uma Troia redimida e transfigurada, revigorada pelo substrato itélico: a futura Roma. LIVRO IV: Este livro, que, segundo o testemunho de Ovidio, era 0 mais lido de toda a epopeia (Tristes, I, 535-536), € composto em cha- ve tragica ¢ elegiaca (a tépica e a linguagem do livro colocam Dido na posigéo do amator, o amante, das elegias augustanas). Narra a paixio de Dido por Eneias e seu suicidio quando se vé abandonada pelo troiano. Juno e Vénus fazem um acordo para unir o casal, o que se da numa gruta, quando Dido e Eneias se refugiam da chuva du- rante uma cagada. Para Dido, uma espécie de matriménio, A Fama faz correr 0 boato de que os dois, esquecidos dos reinos, vivem de maneira indecorosa. Ocorre uma peripécia: Jarbas, rei dos gétulos e pretendente preterido a mao da rainha de Carta- 0, queixa-se a Jupiter, que envia Mercirio a Cartago para in- citar Eneias a deixar a cidade. Mercurio encontra Eneias “fun- dando cidadelas e construindo novos tetos” (260), esquecido dos fados, portanto. A imagem tem sua carga de ironia: Eneias, cuja missio providencial est nas origens da futura Roma, representado aqui ajudando na construcao da cidade que seria a grande rival de Roma no dominio de Mediterraneo. Dido, sabendo dos preparativos dos troianos para a partida, Janga queixas doidas a Eneias, tratando-o de pérfido (305) e cruel (310). Mas Eneias responde, entre outras coisas, que os ordculos mandam que ele busque a Italia: hic amor, haec patria est (347), “aqui, o amor; esta, a patria”. Pode-se especular que 0 Paulo Sérgio de Vasconcellos leitor contemporaneo dificilmente deixaria de ver, sob a pala- vra amor, o anagrama perfeito de Roma. Sucedem novas quei- xas ¢ imprecagbes de Dido, imiteis: At pius Aeneas, quamquam lenire dolentem solando cupit et dictis auertere curas, muta gemiens magnoque animnum labefactus amore iussa tamen dius exsequitur classemque reuist. (393-396) Mas o pio Eneias, embora abrandar deseje a sofredora, consolando-a, e com ditos afastar-Ihe as inquietacdes, gemendo muito e com o espirito abalado por grande amor, ‘cumpre, porém, as ordens dos deuses e volta a ver a frota” Eneias se abala com 0 grande amor que vé em Dido ou com seu préprio sentimento amoroso por ela? As opinides se di- videm, pois 0 texto ndo se enuncia claramente; alids, ao longo do livro, a narrativa cala sobre os reais sentimentos de Eneias, reduzido a papel secundério diante de Dido, uma espécie de personagem de tragédia ¢ amante de elegia, a qual se atribui a maioria das falas do livro. Criticos tém explorado, também, o didlogo da épica com a poesia elegiaca. Dois universos, entio, épica, com seus valores encarnados se confrontam: 0 da poesi a0 final por Eneias, e o da poesia trigica ¢ elegiaca, a cujos va- lores Dido sucumbe. Desde 0 livro I, a narrativa aproximara os dois personagens: ambos viivos, exilados, fundadores de ci dades; no livro IV, ressalta-se a diferenga entre eles, pois Eneias torna-se, por fim, capaz de renunciar a seus préprios senti- mentos diante do poder maior dos fados, a0 passo que Dido, descuidada dos deveres de rainha, entrega-se ao sofrimento da paixio contrariada, Epica 1 Quando vé caidas por terra todas as chances de reter Eneias em Cartago, Dido decide se matar. Faz construir uma pira a qual se juntam as armas deixadas por Eneias ¢ o leito em que se deitaram, que Dido, certa de que houve entre eles um casa- mento, chama de “leito conjugal” (lectumgue iugalem, 496). Ao ver 0 troiano partir, Dido, no auge do furor, invoca os deuses para que vinguem a perfidia de Eneias: ‘[..] mullus amor populis nec foedera surto, exoriare aliquis nostris ex ossibus ultor, qui face Dardanios ferroque sequare colonos, nunc, olim, quocumque dabunt se tempore uies. litora litoribus contraria, fluctibus undas imprecor, arma armis: pugnent ipsique nepetesque’. (624-629) “[.u] amor algum nem pactos entre os povos haja. Surjas de nossos oss0s, 6 vingador, € com tocha e ferro persigas os colonos dartanios, ‘agora, no futuro, em todo tempo em que houver forcas. Litorais contra litorais, ondas contra vagas, Impreco, armas contra armas: lutem eles priprios e os descendentes!” Dido clama aos deuses por vinganga e é atendida, 0 que sig- nifica que o her6i troiano, obedecendo és ordens divinas, com teu, de alguma forma, involuntariamente, ato ilicito com rela- Gio a Dido. Por isso é punido através de sua descendéncia, pois a prece anuncia a vinda de um vingador, Anibal, general carta- ginés que tanto trabalho daria aos exércitos romanos. Dessa forma, Virgilio motiva miticamente a inimizade visceral entre as duas poténcias: um édio nascido do amor contrariado da rainha de Cartago. Algo inglério para Encias? Preferimos falar de tragico: Encias nao tinha outra escolha senao a de obedecer -33- Paulo Sérgio de Vasconcellos aos designios de Jiipiter; fazends-o, provoca involuntariamente a morte da rainha e as guerras plinicas, com toda a carga de sofrimentos inauditos para sua propria descendéncia, LIVRO V: Eneias se dirige a Sicilia ¢ ali chega exatamente no dia em que, um ano atrés, morrera seu pai, Anquises. Realizam-se jo- g0s fiinebres: competi¢ao com barcos; corridas luta com cestos, uma espécie de luta de boxe; tiro a0 alvo (setas que devem atin- gir uma pomba). Ao final, o filho de Eneias conduz. 0s meninos troianos numa série de evolugées a cavalo, 0 Ludus Troiae. Juno envia fris as troianas, que, a parte, pranteiam Anquises € observam o mar chorando e desejando estabelecer-se por ali e nao ter mais de viajar. Transformada em Béroe, uma troiana, iris incita as mulheres a por fogo nas embarcagées. Ao saber da noticia, Eneias invoca Jupiter, que provoca grande tempestade: © fogo se apaga; exceto por quatro navios, a frota esta salva do incéndio, Vé-se mais uma vez a pietas do troiano e como ela é recompensada pelo rei dos deuses. Aconselhado pelo velho Nautas e pelo pai, que lhe aparece em sonho (e dentre outras coisas, incita-o a descer as regides infernais), Eneias deixa na Sicilia, fundando para eles uma cida- de, as mulheres e os homens nao aptos & guerra. Netuno, aten- dendo aos pedidos de Vénus, propicia curso favordvel & nave- gagdo. Numa cena que parece simbélica, Eneias substitui na pilotagem do navio a Palinuro, que, engantado por Hypnos, se deixara tomar pelo sono e cair no mar. Ao longo deste livro, Eneias é, por varias vezes, chamado “pai” (pater), uma espécie de confirmagio de que, com a morte do pai Anquises, é ele 0 comandante da expedigio, o lider de seu povo exilado. 36- Epica 1 Na celebracio de jogos fiinebres em honsa de Anquises, 0 leitor romano veria a associagio entre os heréis troianos que Participam da batalha naval e familias romanas da elite: Prima pares ineunt grauibus certamina remis quattuor ex omni delectae classe carinae. uuelocem Mnestheus agit ari remige Pristina, ‘mox Italus Mnestheus, genus a quo nomine Memmi, ingentemque Gyas ingenti mole Chimaeram, uurbis opus, triplici pubes quam Dardana wersu impellunt, terno consurgunt ordine remi; Sergestusque, domus tenet a quo Sergia nonien, Centauro inuehitur magna, Scyllaque Cloantus caerulea, genus unde tibi, Romane Cluenti. (114-123) “Quatro escolhidas naus, em linha, a remos Encetam o certame:a veloz Pristis. Move Mnesteu com vilidos cemeiros; Mnestew, ao depois Italo, a quem deve A familia dos Mémios 0 apelido; Gias a gra Quimera, mole imensa, Obra d'uma cidade dio-the impulso Em trés fileiras Dardanos mancebos, E em trés ordens 0s remos se levantam; Sergesto, de quem traz a origem sua A Sérgia casa, vai na gra Centauro; E na ceriiea Cila vai Cloanto, (Que da tua prosdpia esclarecida Foi, Romano CJuento, o autor primeito”® Se os versos dizem que a origem do nome dos Mémios esta no nome do troiano Mnestheus e a familia dos Sérgios no nome -37- Paulo Sérgio de Vasconceltos Go troiano Sergestus, @ familia dos Cluéncios deve sua origem 20 troiano Cloantus. O texto se dirige 20s Cluéncios, interpe- Iando diretamente contemporaneos romanos. Por outro lado, a estoria de Eneias era a historia da familia de Augusto; como teria dito 0 proprio César, na Jaudatio funebris de wma tia, con- forme relato de Suetonio, a Venere lulti (“de Vénus procedem 05 Jilios”Y. ‘Ao descrever 0s “Jogos Troianos” (Ludi Troiae), manobras realizadas a cavalo por um grupo de jovens da elite, que Tulo, 0 filho de Eneias, teria celebrado por ocasiéo do encerramento os jogos fiinebres a Anquises, 0 narrador diz: alter Atys, genus unde Atii duxere Latini, paruus Atys pueroque puer dilectus lulo. (568-869) “O outro, Atis, de onde os Atos latinos tiram sua origem, © pequeno Atio, menino amado pelo menino Iulo.” ‘A mie de Augusto pertencia familia dos Atios, por isso mesma chamada Atia*, assim como os Jilios de Iulo (c, como vimos, de Vénus): 0 afetuosa entre os dois meninos uma espécie de prentincio da relagio entre César ¢ Augusto, este adotado como filho por aquele, Este é um dos muitos momentos em que a narrativa projeta no passado fatos contemporineos. 1F contemporineo veria nessa amizade LIVRO VI Aportando em Cumas, Eneias consulta a Sibila, sacerdotisa de Apolo, que Ihe ensina como ir as regides infernais. L4 des- cendo, em companhia da sacerdotisa, Eneias encontra, entre 0s que morreram por amor, Dido, uma ultima oportunidade -38- Fpica 1 para que o heréi se justifique diante da rainha, mas esta o re- cebe com 0 mais absoluto siléncio. Entre os que tombaram na guerra, Eneias encontra o troiano Deifobo, que fora barbara- mente mutilado pelos inimigos. © caminho se divide: & esquerda, o Tértaro, cuja entrada Tisifone, com seu manto sangrento, guarda dia e de noite. A Sibila conta a Eneias 0 que se passa no interior daquela morada onde os criminosos séo punidos. Chegam, entéo, aos Campos Elisios, “lugares alegees, amenos prados de afortunados bos- ques e felizes moradas” (638-639). Por fim, em nova demonstragdo de pietas, ha 0 encontro entre Eneias e Anquises. O pai Ihe explica como as almas se encarnam em corpos e, nesse contato, se degradam e experi- ‘mentam sentimentos como 0 medo, o desejo, 0 sofrimento ea alegria. Apés a morte, é necessério que as almas sejam purifica- das por ventos on fogo, até que possam se livrar de toda impu- reza. Depois de mil anos, sio chamadas até o rio Letes para que, bebendo de suas aguas, esquecam-se da vida passada e come- com a desejar voltar aos corpos. Segue-se a revista dos futuros herdis romanos: as almas que neles se encarnardo um dia como que desfilam diante de An- quises, que lhes tece o louvor. Mas. episédio termina com uma nota sombria, quando Anquises faz o elogio finebre do jovem, Marcelo, sobrinho de Augusto e esperanga de sua sucesso, que morrera jovem. As palavras finais, que teriam feito, a mengao do nome do rapaz durante uma récita, desmaiar Ota mae e irma de Augusto, so pungentes’: , sua, ‘hew, miserande puer, si qua fata aspera rumpas! tu Marcellus eris. manibus date lila plenis, purpurcos spargam flores animamgue nepotis -59- Paulo Sérgio de Vasconcellos his saltem accumulem donis et fungar inani ‘munere’ (882-886) “Ai, mogo miserando!, Pudesses tu romper os dsperos fados! ‘Tu serds Marcelo, Dai lirios a mancheias, Eu espalharei purpiireas flores ea alma de meu neto ‘Ao menos de tais dons cumularei, cumprindo inane Homenagem.” Entre os cAnticos que os anjos entoam na passagem do Pur- gatorio da Divina Comédia em que se anuncia a vinda de Bea- tria, estd um dos versos de Virgilio transcritos acima, levemen- te modificado: Manibus, oh, date lilia plenis! (XXX, 21). Por fim, 0 canto se encerra com um episédio famoso. Ha duas portas do Sono: uma, de chifre, por onde se dé facil saida ‘as sombras verdadeiras; outra, de marfim, pela qual os Manes ‘enviam ao céu sonhos falsos, Por esta tiltima porta é que saem Eneias e a Sibila, ¢ a critica tem debatido como interpretar esse elemento da narrativa. A dificuldade da passagem se reflete no comentario de Sérvio, que dé mais de uma interpretagio aleg6- rica, depois de afirmar que Virgilio “quer fazer entender que é falso tudo o que disse”, Uma interpretacdo proposta e repeti- da nao raramente é que se trata de uma referéncia temporal: os sonhos falsos surgiriam antes da meia-noite, e é antes dessa hora que Eneias e a Sibila teriam deixado o reino dos mortos. A seguir a letra do texto, porém, Eneias nao poderia sair pela por- ta de que partem as “sombras verdadeiras”: lembrando-se que umbra designa a alma de um morto, estando vivos, Eneias ea sacerdotisa nao sao “sombras verdadeiras” e s6 poderiam mes- ‘mo tomar 0 outro acesso. Seja como for, nao hé uma tnica in- terpretagdo do go undnime dos estudiosos. ignificado dessa passagem que tenha a aprova- -60- Fpica 1 Eneias volta a frota e embarca rume ao porto de Gaeta, Observemos que em seu longo poema Invendo de Orfets a0 retratar 0 mundo dos mortos, Jorge de Lima retoma versos do livro VI da Eneida através da tradugao que do poema fez Ma- nuel Odorico Mendes". LIVRO VII: Morre a nutriz de Eneias, Caieta, eo heréi lhe presta honras finebres: um episddio carregado de simbolismo, talvez, por ocorrer quando o troiano chega a seu destino. Nesse ponto da intriga, Eneias jé sentiu duas perdas profundas: a de sua esposa €.a de seu pai, como se o passado troiano encarnado nessas fi- Eneias contra Mezéncio™, “AEQUA PUGNA" LIVRO XI: Eneias desbasta um carvalho e reveste seus ramos desprovi- dos de folha com as armas de Mezéncio, 0 que os antigos cha- mavam “troféu”, consagrando-as a Marte; recomenda que 0s companheiros sejam enterrados e envia 0 corpo de Palante a Evandro, Embaixadores dos latinos pedem trégua para enterrar os mortos; Eneias responde que gostaria de dar paz aos vivos, justificando sua vinda até ali pela determinacio do destino. Propée que Turno o enfrente em duelo, Drances, um dos em- baixadores, mas hostil a Turno, louva a atitude de Eneias. Evandro recebe com lagrimas e lamentos 0 corpo do filho; num discurso cheio de pathos, coloca sobre os ombros de Eneias a obrigagao de vingar Palante: quod witam moror inuisam Pallante perempto dextera causa tua est, Turnum gnatoque patrique quam debere uides. (177-179) “se tardo numa vida odiosa depois da morte de Palante, A causa é tua destra, que Turno ao filho ¢ a0 pai Ves dever” 77 Paulo Sérgio de Vasconcellos Entre os latinos, parte recrimina Turno e exige que ele lute contra Eneias em um duelo, parte o defende; protege-o, sobre- tudo, o apoio da rainha Amata. A embaixada a Diomedes, en- carregada de incitar o heréi grego a combater os troianos ao lado dos latinos, regressa com a noticia de que nada pode con- vencé-lo, O rei Latino retine a assembleia. Vénulo, lider da embaixa- da, reporta as palavras de Diomedes, que Ihe dissera terem sido punidos pelos deuses todos os que haviam violado os campos troianos. No discurso do heréi grego, até a aventura com 0 Ci- clope é apresentada como uma punigo infligida a Ulisses. Dio- medes aconselha os latinos a firmar a paz com os troianos. Drances, em discurso virulento, investe contra Turno. A narra- tiva o apresenta como um invejoso do nitulo, um orador rico e cloquente, mas nao valoroso na guerra. Turno responde to- mado de grande agressividade. De repente, chega a noticia de que 0s troianos esto atacando, o que pée fim a assembleia € provoca a preparagao para a reagdo armada, Turno prepara uma emboscada para Eneias, num desfila- deiro, A narrativa se centra, entio, na rainha dos Volscos, Ca- mila. A ninfa Opis expressa a Diana sua preocupagao com Camila, e a deusa narra a historia da virgem: ao fugir de sua cidade, Métabo levou na fuga sua filha Camila, entéo menina. Ao ter de atravessar um rio, amarrou-a a uma langa e, antes de arrojé-la para a outra margem, dirigiu uma prece a Diana, con- sagrando a filha a deusa. Camila é criada de forma selvagem e, ao crescer, permanece virgem e sempre devotada protetora. Diana da a Opis a seta que vingard a morte de Camila, A narrativa se centra na aristeia (a narrativa focada nos feitos bé- licos de uma personagem) da guerreira volsca e em seu fim. Camila avista um sacerdote de Cibele, Cloreu, e arde no desejo Epica de se apossar de suas ricas vestes. Vé-se que a natureza infausta do ato de despojar um inimigo é tépica na epopeia virgiliana: Eurialo, Camila e Turno sofrem as consequéncias dessa atitude (no caso de Camila, apenas um desejo imprudente), Arrunte aproveita a distracao para alvejé-la com uma seta; é, depois, morto por Opis. A morte de Camila ¢ descrita com um verso que depois serd reiterado para Turno, anindo as duas persona- gens (verso semelhante fora empregado por Homero para re- tratar a morte de Patroclo e Heitor): uitaque cum gemitu fugit indignata sub umbras (831) “ea vida, com um gemido, foge indignada para debaixo das sombras” Notemos como a morte de jovens em batalha € tépica na Eneida: tombam Eurialo, Palante, Lauso e Camila, belos jovens cujas mortes sdo descritas com tons ersticos. Os batalhées riitulos se dispersam em fuga. A noticia da morte de Camila, Turno abandona o posto onde pretendia em- boscar Eneias, pouco antes deste chega: ao lugar, mais um erro estratégico do nitulo. O cair da noite pie fim aos combates. A critica observou 0 tom melancélico deste livro. Ha nele varias referencias ao pranto e ao luto. Significativamente, o ad- jetivo maestus (aflito, triste) aparece 11 vezes; tristis, 5 vezes. LIVRO XII: O livro comega com um simile em cue Turno é comparado a.um ledo ferido: Poenorum qualis in aruis saucius ille graui uenantum wulnere pectus -79- Paulo Sérgio de Vasconcellos tum demum mouet arma leo gaudetque comantis excutiens ceruice toros fixumaue latronis impauidus frangit telum et fremit ore cruento: aud secus accenso glisct wiolentia Turno. (4-9) “Tal nas campinas Painicas ferido, Do cacador por grave golpe, 0 peito, Garras vibra o leo, sacode ufano Na torosa™ cerviz as crespas jubas, Quebra impavido a lanca, que cravada Niele deixara o cagador,e solta Rugido horrendo da cruenta boca. Nao de outro modo ao furibundo Turno Cresce a violencia’...° Putnam analisa os ecos, nesse simile, da descrigéo da paixio de Dido (cf. At regina graui iamdudum saucia cura, 1V, 1)"7; no livro IV, a ferida da paixio se transformard na ferida real que Dido se inflige a si (assim como o fogo secreto da paixio se ‘materializard nas chamas da pira em que arderé seu corpo); no livro XII, que comesa com Turno, ao final teremos a ferida real infligida por Eneias... Neste livro, duas vezes (9 e 45) se aplica a Turno o substan- tivo uiolentia ¢ & significativo que s6 ele receba tal caracteriza- gio. Observemos, também, como se salienta a juventude de ‘Turmo (em face da mais idade e experiéncia do pater Eneias): “o praestans anim iuuenis... (19) “O jovem de animo valoroso..” -80- Fpica 1 ‘une iuuenem imparibus uideo concurrere fats (149) “agora vejo o jovem combater com fados desiguais” Pubentesque genae et iuuenali in corpore pallor. (221) “as faces pubescentes ea palidez.no corpo juvenil’ iiuwenem in certamine credit exstinctum... (598-599) “[Amata] acreditou que o jovem morrera em batalha. Turno, vendo o desbaratamento das jorcas latinas, aceita 0 duelo com Eneias. Latino e Amata tentam em vo demover 0 riitulo do combate. No dia seguinte, os dois lados se encontram diante de um altar para firmar o acordo de paz. Juno decide intervir: incita a irma de Turno, a ninfa Juturna, a ir em auxilio do irmao para arrebaté-lo & morte iminente, Eneias promete solenemente que, se vencer 0 duelo, no mandaré que os italos obedecam aos troianos, nem pedir reinos para si proprio: os dois povos governario sob as mesmas leis. Depois do juramen- to de Latino, fazem-se sacrificios. Os riitulos julgam 0 combate desigual, sobretudo ao verem Turno abatido e palido. Juturna se disfarga no rdtulo Camerte e incita os aliados de Turno a se envergonharem por deixar que ‘um sé pague por todos. Com sua fala, até 0 animo dos latinos muda: desejam armas e 0 rompimento ¢o pacto. Juturna, en- tio, provoca um prodigi ne dentre aves que voavam em bando; de repente, as aves se precipitam contra a éguia, que, por fim, solta o cisne que captu- tara, O éugure Tolimnio interpreta o sinal a favor dos ritulos, : uma guia no céu arrebatara um cis- -81 Paulo Sérgio de Vasconcelos pega uma lanca ea arroja em meio aos troianos. Um dentre os nove arcades filhos de Gilipo ¢ atingido. Os irmaos reagem e se instala 0 combate novamente. Latino foge. Eneias, em vez de atacar, como fard Turno, tenta conter os animos: At pius Aeneas dextram tendebat inermem udato capite atque suos clamore wocabat: ‘quo ruitis? quaeue ista repens discordia surgit? ‘o cohibeteiras!ictum iam foedus et omnes ‘compositae leges; mihi ius concurrere soli: ‘me sinite atque auferte metus. ego foedera faxo {firma manu; Turnum debent haec mihi sacra? (311-317) “Mas o pio Eneias estendia a mao inerme, De cabega descoberta, e chamava os seus clamando: ‘Para onde vos precipitais? Ou que discérdia repentina ¢ essa? ‘Oh, contei as iras! o pacto ja foi firmado e todas ‘As condiges acordadas; s6 eu tenho o direito de combater: Deixai-me e tolhei os medos. Eu farei pactos Sélidos com a mao; jé me devem Turno estes ritos sacros!” De repente uma seta atinge Eneias, que é forgado a deixar a luta, Turno se aproveita da auséncia do inimigo e faz uma car- nificina, Enquanto isso, 0 médico Iépige tenta em vao retirar 0 ferro que ficara na ferida de Eneias. Vénus intervém, misturan- do 0 dictamno, uma erva do monte Ida, em Creta, e sucos de ambrosia ao liquido usado no ferimento do filho. Vai-se a dor, estanca-se o sangue, e a seta sai, fazendo o médico crer numa intervencao divina. Antes de voltar ao combate, Eneias se ditige ao filho, dizen- do, entre outras coisas: 82 Spica disce, puer, uirtutem ex me uerumque laborem, fortunam ex alis. (435-436) “Aprende comigo, menino, a virtude e 0 verdadeiro labor; A felicidade, com os outros” Juturna se metamorfoseia em Metisco, o auriga de Turno, dirigindo o carro do rittulo de forma a evitar que ele esteja a0 alcance de Eneias. Segue-se o relato dos massacres que Eneias ¢ ‘Tumo realizam no campo de batalha. Venus sugere a Eneias que ataque a cidade de Latino, entio desprotegida. Amata, julgando Turno morto e tudo perdido, se suicida por enforcamento. Turno descobre que a irma se escon- de sob a aparéncia de Metisco; informam-Ihe sobre a situagao desesperadora na cidade, 0 que o enche de vergonha, fuiria e dor. Vai a cidade desejando o duelo com Eneias. Jupiter poe na balanga os destinos dos dois herdis; porém, a0 contrério do episédio similar na Iliada, nao se revela quem esta condenado. A espada de Turno se quebra contra o escudo de Eneias; mais um erro do guerreiro: na precipitacao, tomara a espada do auriga Metisco, em vez da sua, e a arma nio fora péreo para 0 escudo divino do troiano. Turno foge e é perse- guido por Eneias. Juno faz. um acordo com Jipiter: desiste de intervir na luta, mas com a condigdo de que, com a vit6ria de Eneias, 0s latinos nao mudem de nome, nem de lingua, nem de traje; que Troia, em suma, pereca. O esposo lhe prevé que nenhum povo a ado- ard mais do que o dos descendentes de Encias. Jipiter faz com que uma das Farias, em forma de ave, esvoa- ce sobre a face de Tumo e bata as asas em seu escudo, o que faz o ritulo se aterrorizar. Juturna desaparece, lamentando-se por 83 Paulo Sérgio de Vasconcellos nao poder morrer, tendo-Ihe Jupiter concedido imortalidade em troca de sua virgindade. Ferido por Eneias, Turno roga pela vida ou que ao menos seu corpo seja enviado aos seus, reconhece que Lavinia é de Eneias e pede ao troiano que nao leve mais adiante seus édios. Eneias estaca, hesitante, mas de repente a aparigo do boldrié de Palante no ombro de Turno sela o destino do rutulo. Eneias ‘como que o imola aos manes do rapaz, afundando a espada em seu peito, O iiltimo verso do livro, encerrando a epopeia, é: tuitagque cum gemitu fugit indignata sub umbras (952) “ea vida, com um gemido, foge indignada para debaixo das sombras” IV.3 Estrutura da Eneida A estrutura da Eneida tem sido discutida hé muito tempo. Ge- ralmente se afirma (desde, pelo menos, Sérvio) que ha no poe- iriam ma uma bipartigao bésica: os seis primeiros livros con: uma espécie de Odisseia, pois tratariam fundamentalmente das peregrinagdes de Eneias por terras e mares; os seis tiltimos li- ‘yros, que narram a guerra entre troianos ¢ latinos e respectivos aliados, constituiriam uma espécie de Ilfada. As primeiras pala- vras jé trariam uma indicagdo da estrutura bipartida: arma (“ar- mas’ isto é, “batalhas’, referéncia & parte iliddica) uirumgue (“e ‘© homem’ referéncia & parte odissiaca, sendo “homem’; dvSpa, a primeira palavra da Odisseia). Ha varios argumentos em de- fesa dessa hipétese; destacamos que no livro sétimo temos nova invocagio a uma musa e o aniincio de tema “mais grandioso’ iliddico: maior rerum mihi nascitur ordo, 44. Além disso, varios -84- Epica 1 temas do primeiro livro parecem repetir-se no sétimo: de novo, Juno avista os troianos, tem consigo mesma um didlogo cheio de rancor ¢ toma uma atitude para tentar obstaculizar a ago de Eneias”. Deve-se advertir, porém, que essa divisio nao ¢ estanque: um episédio da Ilfada, os jogos fiinebres, tem seu equivalente na parte “odissiaca” da Eneida, 0 livro V etc. Além disso, anova invocagao a musa e a nova proposi¢do de tema nao ocorrem nos primeiros versos do livro VII, como se Virgilio desejasse evitar uma divisio esquemitica e rigida em duas partes. Recentemente, alguns estudiosos" propuseram que a Enei- da seria, na verdade, uma Odisseia, pontuada por momentos iliddicos. De fato, a ida de Eneias ao Lécio é uma espécie de re- torno a casa natal, o bergo de onde surgiram os troianos, assim como Odisseu regressa 4 sua [taca apds longa jornada por terra € mar. No Lacio, hé uma disputa com um pretendente, Turno, assim como Odisseu tem de combater os pretendentes & mao de sua esposa Penélope. E outros paralelos poderiam ser apon- tados, mas, como a maior parte dos estudiosos, continuamos a pensar que a epopeia virgiliana tem uma divisio bipartida, ass nalada claramente pela nova invocagio e proposi¢ao. Sob essa divisio geral em duas partes, alguns estudiosos, en- tre eles Duckworth*', vem uma triparticio: os quatro primei- os livros se centrariam na tragédia de Dido; os quatro livros centrais em Augusto e Roma; por fim, os quatro tltimos livros finais se focalizariam na tragédia de Turno, Duckworth ¢ ou- tros observam as correspondéncias entre livros da primeira e da segunda metade. Impressionantes, de fato, so as relagdes entre 0 livro Ie 0 VII, mas as outras associagdes nao nos pare- cem to convincentes. Um tesumo do quadro de correspon- déncias de Duckworth: ~85- Paulo Sérgio de Vasconcelos 1 vit Juno e tempestade Juno e guerra 1 vat Destruigdo de Troia ‘Nascimento de Roma 1m IK Interlidio (de errancias) Interhidio (no acampamento troiano) Vv x ‘Tragédia de guerra — Palante, Lauso, Mezéncio ‘Tragédia de amor — Dido v xI Diminuigio da tensio —Jogos _DiminuigSo da tensio — Trégua vl xu Futuro revelado Futuro assegurado™ ‘Notemos, por fim, um efeito de composigdo anular (ring com- position). No final do poema, Turno ¢ representado em situagao semelhante a de Eneias acossado pela tempestade no livro ‘Turno: as ili soluuntur frigore membra (XIl, 951, peniiltimo verso do poema) “mas a ele se dissolvem em frio os membros.” Eneias: extemplo Aeneae soluuntur frigore membra (1, 92) ‘imediatamente a Eneias se dissolvem em frio 0s membros.” ‘Menos observado pelos estudiosos é que o verso I, 93 mostra Eneias gemendo (ingemit), eo verso XII, 952 mostra a “vida” de Turno fugindo para o reino subterrineo “com um gemido” (cum gemitu). -86 Epica t Que Tumno seja retratado ao final da epopeia como Eneias em sua primeira apari¢do no poema é significativo. IV.4 Intertextualidade Como ler a Eneida sem notar que 0 poema esta em relagio di- reta com a epopeia homérica? De quando em quando, 0s per- sonagens mesmos se reportam a obra de Homero; assim, para dar um pequeno exemplo, Vénus menciona, na assembleia dos deuses, as feridas que o grego Diomedes Ihe causou (X, 29), tra- zendo a lembranga do leitor o episédio da Iliada (V, 335 e ss.) em que o herdi, com a langa, fere-a no pulso. O plural “feridas” parece ser um exagero retdrico da deusa; o ato é que as feridas de Venus s6 sio compreendidas (0 exagzro, inclusive) por quem Jeu 0 poema homérico e se lembra desse detalhe famoso da gesta de Diomedes. Turno mais de uma vez se compara a Aqui- les, como se a guerra de Troia, tal comocontada por Homero, se repetisse (cf, por exemplo, XI, 742). Em suma, é preciso algum conhecimento da intriga da Ilfada para compreender certas alusées na trama da Eneida, que parece continuar 0 poema do predecessor, prevendo leitores capazes de recordar a saga narra- da por le. Entretanto, as relagGes intertextuais podem ser menos ex- plicitas. Como vimos, em IX, 77-79, Virgilio invoca as musas para Ihe dizerem que deus impediu a Turno o incéndio da frota troiana; ora, os versos ecoam uma inveca¢io homérica 4s mu- sas em que se indaga como Heitor ateou fogo aos navios gregos (XVI, 112-113). E dificil resist a ideia de que o texto confronta ironicamente as duas ages: Turno se julga Aquiles, mas a lei- tura intertextual, a remissao a intriga grega, faz pesar sobre ele -87 Paulo Sérgio de Vasconcellos a sombra de Heitor, e de um Heitor que, ao contrario do ho- mérico, falha na agao de por fogo aos navios dos inimigos. $6 fruira desse efeito de sentido potencial o leitor que tiver a pas- sagem homérica viva em sua meméria e se dispuser a confron- tar os dois textos para extrair dai semelhangas ¢ diferencas. Gian Biagio Conte deve ser aqui citado como 0 pioneiro na compreensao mais profunda de como essa relacdo intertextual tia sentidos, em vez de ser mero material inerte®; entre os pre~ decessores de suas consideragoes influentes, é de praxe citar 0 artigo de Giorgio Pasquali, de 1942, sobre a “arte alusiva”, que se centra na obra de Virgilio“. Assim, pouco a pouco se foi su- perando o mero atrolar das “fontes” de um poeta (a Quellen- {orschung, como se costuma dizer, empregando palavra alema), prética comum no passado, ‘A Eneida “imita” os poemas homéricos, mas também est em relagao com uma série de outros autores gregos ¢ latinos: Safo, S6focles, Euripides, Névio, Enio, Catulo, Cicero, Lucrécio etc. Interpretar as relagdes que o poema estabelece com tantos outros textos da tradicao literdria greco-latina tem sido uma parte importante do estudo que se tem feito sobre a Eneida. Criticas a abordagem intertextual tradicional nao obscurecem 6 fato de que, seja como for, 0 poema incita os seus leitores a confrontar esse texto com uma série de outros, a que se alude ddas mais variadas formas. Na imitagdo de Homero, ser interessante recordar a dis- tingdo de Barchiesi e Conte sobre dois tipos de relagio com 0 modelo literdrio, tratando-o como “modelo-exemplar” (Mo- dello-Esemplare) ou “modelo-cédigo” (Modello-Codice)*. No primeiro caso, evocam-se, citando-as, mais ou menos transfor- ‘madas, passagens especificas, pontuais do modelo, No caso da relagdo entre Homero e Virgilio, nao podemos esquecer que se -38- Epica I trata de duas linguas diferentes, grego e latim; assim, se de vez em quando 0 poeta latino chega a traduzir verso grego, ao ver- té-lo para sua lingua, opera transformacao significativa no ori- ginal. Nao é preciso insistir nesse aspecto da imitaco, muito conhecido; nés 0 ilustraremos mais abaixo, mostrando como Virgilio imita uma passagem especifica da Iliada. Menos apa- rente para a maioria dos leitores é 0 tratamento do modelo como um cédigo, uma série de regras que sero imitadas, inde- pendentemente de se retomarem passagens especificas desse modelo. Os poemas homéricos sao, para a Eneida, “uma espé- cie de matriz gerativa: um modelo de competéncia [...] ‘Escre- ver a maneira de’ significa generalizar; o que de fato se imita so estilos, convengées, normas, géneros™”, Assim, Virgilio escreve como Homero mesmo em passagens em que nao imita uma cena especifica da Miada ou da Odisseia. Vejamos um pequeno exemplo de como a relacéo com o “modelo-exemplar” pode ser sutil. Reproduziremos aqui, em linhas gerais, um comentirio que jé detalhamos em outras pu- blicages; nao nos consta que essa alusdo tenha sido percebida e analisada na ingente bibliografia sobre a Eneida; sobretudo, ilustra como uma leitura que leve em conta os varios textos com que a Encida como que “dialoga” pode ser instigante para oleitor que detecte a alusio e frua do possivel efeito de sentido, No livro 1V, a rainha Dido, em seu furor amoroso, é compa- rada a uma corga em cujo flanco um pastor cravou uma seta que lhe seré fatal: uriturinfelix Dido totaque wagatur urbe furens, qualis coniecta cerua sagitta, quam procul incautam nemora inter sia fit -89 Paulo Sérgio de Vasconcelos pastor agens telisliquitque uolatle ferrum nescius:illa fuga siluas saltusque peragrat Dictaeos; haeret lateriletalis harundo. (68-73) “arde a infeliz Dido e por toda a cidade erra Furiosa, qual a corga, vibrada a seta, Que de longe, incauta entre bosques creteus, feriu 1, € deixou o volatil ferro, pastor, com dardos encalgando- {nscio; ela em fuga florestas e matas dicteus Percorre; permanece fixa em seu flanco a letal flecha” O simile acima ecoa um outro da Iliada: em XI, 473 58. Odisseu é comparado a um cervo, ferido por uma seta, em fuga Quando Eneias desce aos Infernos para encontrar seu pai, tem um derradeiro e comovente encontro com Dido, que assim sur- ge diante do herbi inter quas Phoenissa recens a uulnere Dido errabat silua in magna. (VI, 450-451) “entre elas, a fenicia Dido, com uma ferida recente, Errava em grande floresta’.. Talvez Virgilio esteja aqui explorando uma etimologia do nome Dido, “a errante”, mas o mesmo verbo é também aplica- do aos cervos que Eneias divisa em Cartago (I, 184-185) e a0 cervo de Silvia (VII, 491). Dido é representada ainda ferida da chaga de amor, que € a0 mesmo tempo a chaga que ela mesma se causou ao se matar com a espada de Eneias. Em nivel intra- textual, pode vir & mente do leitor uma rede de associagdes en- tre Dido ea figura de um animal ferido, que ainda nos Infernos, -90- Epicat em sua errancia, mostra em si a chaga incurdvel. Vimos que a rainha responde a Eneias com 0 mais gélido siléncio e, depois, se refugia junto ao marido Siqueu. O modo como Virgilio des creve sua retirada é significativo: tandem corripuit sese atque inimica refugit in nemus umbriferum. (VI, 472-473) “por fim, precipitou-se ¢, i Num bosque umbrifero” ga, se refugion O leitor que tem Homero na meméria lembrar-se-é que a expressio in nemus umbriferum & um equivalente da homérica Ev véwtet oxtepd empregada no jé mencionado simile que com- para Odisseu a um cervo ferido e em fuga... A expressdo latina traduz a grega e aparece na mesma posicdo do verso; a dife- renga é que em grego temos dativo, e em latim, acusativo. In emus] Ev véyet: mesmo sentido de base, sons muito préximos. Como leitores de Homero e Virgilio, podemos nos sentir inci- tados a comparar as duas passagens em que a expresso compa- ravel aparece e, a partir de toda a teia metaférica que compara Dido a uma corga ferida, vislumbrar, com assombro, na iltima aparigéo da personagem, a imagem do frégil animal, ainda feri- do, ainda errante, patético em seu sofrimento eternizado... Na- quela parte dos Infernos, onde ficam os que se consumiram por amor, as feridas nunca cicatrizam (curae non ipsa in morte re- linquunt, 444: “nem na morte mesma as inquietagdes amorosas ‘os abandonam”); e assim é representada Dido, cujas feridas, a real e a metaférica, ecoam nesse momento da narrativa, ponto de partida para quem se interessa pelas relagdes intertextuais entre Virgilio e Homero éa obra de Georg Knauer -91- Paulo Sérgio de Vasconcellos que traz uma lista extensa de passagens das epopeias homéricas ecoadas na Eneida; Die Aeneis und Homer. Studien zur poetis- chen Technik Vergils mit Listen der Homerzitate in der Aeneis. Gottingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1964 IV.5 Lingua e estilo Seguindo a tradicéo da épica latina desde Andronico, Virgilio emprega arcaismos que conferem solenidade a elocugio, Como diz Quintiliano, os arcaismos “tornam o discurso mais veneré- vel e admiravel” (VII, 3, 24). Também langa mao de compostos potticos e helenismos no vocabulirio e na sintaxe, o que afasta 0 discurso poético da fala cotidiana ou prosaica. Mas esse uso moderado: Virgilio obtém efeitos poéticos de forma geralmente muito mais sutil. Assim, 0 poeta muitas vezes cria densa poeti- cidade, combinando de forma engenhosa palavras do uso coti diano, dando-Ihes nova feigao, algo que se pode associar ao que Horacio denomina callida iunctura®. Essa caracteristica parece jo, Marco Vips ter provocado a critica de um detrator de Vir; rio, que o acusava de ter inventado “um novo tipo de afetacio” (nowae cacozeliae repertorem), a partir de palavras comuns (ex communibus uerbis)®. Um exemplo de como, com palavras simples, Virgilio cons- tr6i verso poderoso, denso de sentido, temos na célebre descri- Gio da ida de Eneias e Sibila a0 mundo dos mortos: Tbant obscuri sola sub nocte per umbram. (VI, 268) Literalmente; “Iam, escuros, sob a noite solitéria, através da sombra”, E mais ldgico (e prosaico) entender que houve uma -92- Epica 1 troca na adjetivacio, pois Eneias e a sacerdotisa de Apolo é que iam solitarios numa noite escura... Significativamente, em certa tradigo manuscrita se vé uma correcao do verso que o banali- za, desfazendo as sub nocte per umbram (“Iam, solitirios, sob a noite escura, atra- ngularidade da imagem: Ibant obscura soli vés da sombra"), metricamente possivel. Ao deslocar os adjeti- vos (uma dupla hipdlage), Virgilio cria um efeito de estranha- mento que faz a beleza semantica do verso: somos incitados a imaginar 0 que significa ir-se obscuro eo que significa uma noite solitéria (por certo, ainda nao um cliché na €poca...). A obscuridade se aplica aos homens e, pelo sentido mais banal, & noite, como a solidao & noite e aos homens, de tal forma que podemos falar em dupla adjetivagao para cada substantivo. So- noramente, é um verso magistral: as bilbiais de iBant oBscuri.. umBram, as nasais de ibANt UMbrAM, a reiteragio da vogal fechada obscUri sUb...Umbram, tudo se soma para criar musi- calidade delicada, marca do estilo virgiliano. Mas as varias sur- presas de um tinico verso nao terminam aqui: temos um ritmo fortemente espondaico (quatro esponéeus em sequéncia), que (08 antigos sentiam como pausado e solene™ e que marca aqui 0 avangar vagaroso em meio a treva da noite em direcdo aos In- fernos... Este é um pequeno exemplo da inefivel magia verbal virgiliana, a partir de palavras comuns em latim: 0 verbo “ir”, os substantivos “noite” e “sombra”, os adjetivos “escuros” e “soli- tdria”, num arranjo surpreendente”. Sons, ritmo, arranjo inusitado (ou, pelo menos, nao banal) dos termos da frase: Virgilio como que imanta de sentido poé- tico todos os elementos do material linguistico a sua dispo: a partir de um Iéxico geralmente nao marcado como propri mente postico. -93- Paulo Sérgio de Vasconcelos Descrigées da natureza costumam ser, na Eneida, um tour de force de arte sutil no manejo com a lingua. Vejamos um mo- ‘mento em que se descreve o mar sereno sob a luz da lua: adspirant aurae in noctem nec candida cursus una negat, splendet tremulo sub lumine pontus. (VIL, 8-9) “sopram as brisas pela noite e, brilhante, cursos Nao nega a lua; resplandece sob a luz trémula 0 oceano” ‘Nessa passagem, ha apenas uma palavra marcadamente res- trita a poesia, pontus, de origem grega. Note-se NOCtem NEC, com a reiteragdo da velar em Candida Cursus. Chama a aten- sao, sobretudo, a descricao splendet tremulo sub lumine pon- tum, destacada pela cesura, De novo, uma hipdlage: pelo senti- do légico, as aguas do mar é que sfo “trémulas”, mas esse adjetivo é aplicado a luz da lua refletida nas éguas. Um efeito impressionistico: o narrador descreve a luz tal como o persona- gem a veria, refletida nas dguas do mar, dando a impressio de tremular junto com ela. O efeito do tremular parece reproduzi- do sonoramente nos encontros consonantais SPLendet Tremu- Jo e na sucessio das laterais: spLendet tremuLo sub Lumine Note-se como a traducio de Manuel Odorico Mendes (1799- -1864) esta atenta a esses efeitos: “Auras & noite aspiram, nem seu curso Candida a Lua nega; 0 ponto esplende Ao trémulo clarao” No segundo verso, temos um ritmo ondulado, uma sucesso uniforme de datilos e espondeus: -94- pica 1 ‘ind ne (datilo) gat, splén (espondeu) déttrémti (datilo) lo sib (espon- ddeu) liming (datilo) pontus (com o alongamento da silaba final, em pausa de fim de verso, espondeu). Uma caracteristica instigante de certos versos virgilianos ¢ sua ambiguidade sutil. Um caso interessante é 0 de ambigui- dades para o falante de latim que se estabelecem por um mo- mento até serem aparentemente resolvidas ao final da frase. No livro IV, Dido aos poucos confessa a irma Ana sua paixdo por Eneias e deixa revelar o sentimento de culpa que sente por estar traindo a meméria do marido morto co pensar em unir-se em casamento a um outro: si mihi non animo fixum immotumque sederet ne cui me uinclo uellem sociare iugali, ostquam primus amor deceptam morte fefllit, si non pertaesum thalami taedaeque fuisset, Ihuic uni forsan potui succumbere culpae. (15-19) “Se a mim néo se assentasse firme no animo e inflexivel ‘A ninguém desejar me unir em jugo nupcial, Depois que um primeiro amor, iludida, me enganou, Se ndo me aborrecessem télamos ¢ tochas de himeneu, $6 a este delito poderia talver ter sucumbido” ‘A tradugio destréi um jogo sutil que diz. muito sobre os sen- timentos de Dido: lendo-se na ordem das palavras, o ultimo verso diz, ou pode dizer, literalmente: “A este/a esta tnico/iini- «a teria podido sucumbi .. culpa”. Ou seja, num primeiro mo- mento se pode entender: “Sé a este homem [Eneias] poderia ter sucumbido...", até que a palavra final, “culpa”, desfaca esse Paulo Sérgio de Vasconcellos sentido e leve a entender que se trata de “a esta tinica culpa” ‘mas o sentido possivel continua presente, como se fosse 0 sen- timento reprimido que se deixa transparecer por tras de uma decisio aparentemente determinada. Alids, todo o discurso de Dido é sutilmente construido para figurar uma mulher cheia de culpa que entretanto parece balangar, inconscientemente considerando a hipotese de trair a meméria do marido e se en- tregar ao troiano Eneias, 0 que sua consciéncia vé como culpa (mas nao podemos oferecer aqui uma anilise detalhada desse brilhante retrato, pelo discurso direto, dos sentimentos con- fusos de Dido). Notemos que, alguns versos abaixo, Dido em- prega o mesmo demonstrativo, acompanhado de palavra sino- nimica a unus, para referir-se a Eneias. Confrontem-se: shui uni. culpae. (19) “a este tinico... delito!” solus hic (22) “sé este” Esse eco intratextual reforga a possibilidade da leitura em dois sentidos. Ja se notou que, em quam forti pectore et armis! (11), sob o aparente sentido “que coragem e que batalhas”, po- de-se ler, mais banalmente, referéncia a dotes fisicos do troia- no: “que peito forte e que bracos!”.. Para si mesma e para Ana, Dido esta mostrando admiragao pela coragem de Eneias e recu- sando totalmente a possibilidade do que, a seus olhos, seria uma culpa; para o leitor, revela-se encantada com 0 fisico do herdi e admitindo que s6 a ele teria cedido ( jé estd admitindo -96- Epica ceder) em seu intento de preservar-se casta em meméria do marido morto. $6 uma arte verbal extremamente sutil € capaz de criar camadas de sentido que demonstram os conflitos que uma personagem, sem o saber, esta vivendo, uma impressio que é dada apenas pelo seu discurso reportado de forma direta, sem nenhum aceno explicito do narrador. E notéria, na Eneida, a presenca preponderante da justapo- sigao de frases sem conectivo que as ligue ou parataxe, como na sintaxe homérica. Virgilio imita de Homero um modo de unir oragbes, por justaposigao, que na epopeia do predecessor estava em relagao estreita com a oralidade; embora seja um poema escrito desde sua composi¢do, a Eneida de alguma forma mime- tiza esse traco de oralidade como se ele fosse parte ineludivel do conjunto de regras de composi¢ao épica na tradigao homérica. Mas (0 que nao ocorre em Homero) a narrativa virgiliana privilegia o presente histérico ou narrativo que apresenta com vivacidade os acontecimentos como se estivessem ocorrendo diante dos olhos do leitor, ja que 0 tempo do objeto narrado (passado) é trazido para o tempo (presente) da leitura. Llustre- mos com o célebre episédio da morte de Laocoonte: Hic aliud maius miseris multoque tremendum obicitur magis aique improwida pectora turbat. Laocoon, ductus Neptuno sorte sacerdos, sollemnis taurum ingentem mactabat ad ara: e¢ce autem gemini a Tenedo tranguilla per aka (horresco referens) immensisorbibus angues ‘incumbunt pelago pariterque ad litora tendunt; 97. Paulo Sérgio de Vasconcelos pectora quorum inter luctus arrecta iubaeque sanguineae superant undas, pars cetera pontum ‘pone legit sinuatque immensa uolumine terga. {fit sonitus spumante salo; jamque arua tenebant ardentisque oculos suffecti sanguine et igni sibila lambebant linguis uibrantibus ora, diffugimus uisu exsangues. ili agmine certo Laocoonta petunt; et primum parua duorum corpora natorum serpens amplexus uterque implicat et miseros morsu depascitur artus; ‘post ipsum auxilio subeuntem ac tela ferentem ‘corripiunt spirisque ligant ingentibus; et am bis medium amplesi, bis collo squamea circum terga dati superant capite et ceruicibus alts. ile simul manibus tendit divellere nodos jperfusus sanie uittas atroque ueneno, clamores simul horrendos ad sidera tolit, qualis mugitus, fugit cum saucius aram taurus et incertam excussit ceruice securim. at gemini lapsu delubra ad summa dracones -98- Epica effugiunt saeuaeque petunt Tritonidis arcem sub pedibusque deae clipeique sub orbe tegustur (Ul, 199-227) Na sonora tradugao de Odorico Mendes (que prefere grafar “Laocoon”, em vez do mais frequente “Laooconte”): “Um portento maior, mais formidavel, Improvidos nos turba. A sorte eleito, O antiste® Laocoon sacrificava A Netuno com pompa um touro enorme. De Ténedos (refiro horrorizado) Jntas, direito a praia, eis duas serpes™ De espiras cento ao pélago” se deitam: De fora os peitos eas vermelhas cristas Entonam® sulca o resto o mar tranquilo, E encurva-se engrossando o imenso tergo™: Soa espumoso o péramo* salgado. Ja tomam terra, em brasa e em cruor® tintos Fulmineos olhos, com vibradas linguas Vinham lambendo as sibilantes bocas. Tudo exangue® se espalha. O par medonho Marchando a Laocoon, primeiro os corpos -99- Paulo Sérgio de Vasconcellos Dos dous filhinhos seus abrange™ e enreda, ‘Morde-os e come as descosidas carnes; Ao pai, que armado avanga, ei-las saltando Atam-no em largas voltas, ¢ enroscadas Duas vezes a cintura, a0 colo duas, 0 enlagam todo os escamosos dorsos, E por cima os pescogos thes sobejam. De baba e atro® veneno untada a faixa®, Ele em trincar os nés com as mios forceja, E de horrendo bramido aturde os ares: Qual muge a rés ferida ao fugir dara, Da cerviz sacudindo o golpe incerto, Vio-se 0s dragées serpeando ao santuério, E aos pés da seva®® deusa, enovelados, Sob a égide rotunda ambos se asilam.” HA trés verbos conjugados no pretérito imperfeito, trés no perfeito — ¢ 21 no presente, sendo 20 deles casos de presente historico ou narrativo. Eneias “se horroriza ao contar” (hor- resco referens), como se 0 fato ocorresse de novo; e essa im- pressio de terror que € secundada pela vivacidade de um relato presentificado. Predomina a parataxe: 6 ha uma subordinada 100 Epica temporal (fugit cum... adversativa (at). Cria-se certo suspense ao se anunciar 0 prodigio: , no simile, e uma coordenada sindética ecce autem gemini a Tenedo tranquilla per alia (horresco referens) immensis orbibus angues Notemos que 0 verso comega com um “eis, porém”, prosse- gue com a descrigéo do mar tranquilo, a expressio do horror que a cena provoca mesmo quando ¢ relatada (anos depois) € s6 no final do segundo verso saberemos de que se tratard: “de imensos anéis, serpentes”. Virgilio é mestre no uso da ordem ecpressiva das palavras. Notemos como a ordem das palavras reproduz o enlagamento dos filhos de Laocoonte nos nés das serpentes: et primum para duorum corpora natorum serpens amplexus uterque implicat et miseros morsu depascitur artus Colocando letras mimisculas nos adjetivos e maitisculas nos substantivos, destacamos o trecho: parua (a) duorum (b) cor- pora (A) natorum (B). No episddio, detalhes do corpo das serpentes so enuncia- dos na medida em que elas avangam mais para perto do foco, 0 grupo de troianos de que faz parte o narrador Eneias: serpen- tes, peitos e cristas acima das ondas, olhos (apenas quando ja estdo em terra)... Episédio apresentado, pois, do ponto de vista de Eneias. Notemos alguns dos jogos sonoros de episédio: 101 alo Sérgio de Vasconcellos ardentisque oculos suffecti sanguine et igni sibila lambebant linguis uibrantibus ora O silvo das serpentes é evocado pelas sibilantes e pela asso- nancia em /i/: ardentISque oculoS Suffectl Sangutn(e) et Ignl/ Siblla...lIngulS ulbrantIbuS; no segundo verso, a repeti¢ao da consoante lateral /V/, sibiLa Lambebant Linguis, pode sugerir © vibrar das linguas. Nesse verso muito sonoro, observe-se também a iteracao das bilabiais siBila lamBeBant... Obser- vemos também o acusativo de relagao na construgao poética que as tradugées tendem a banalizar; literalmente: “(quanto 2) os olhos ardentes tingidas (as serpentes) de sangue e fogo”: no s4o os olhos que sao apresentados “tingidos de sangue ¢ fogo”, mas as serpentes mesmas, embora 0 acusativo de rela- do ou grego ardentis oculos como que “corrija” a estranheza da representagao. Uma outra caracteristica do estilo virgiliano tem sido cha- mada de “tema e variagdo”®” ou dicolon abundans: nao é inco- ‘mum que ideia semelhante venha enunciada duas vezes em se- quéncia; a segunda ver, porém, introduz algo novo ao tema expresso primeiramente, como a palavra “variagao” deixa en- tender. Os exemplos na Eneida so muitos. Um deles: sed si tantus amor casus cognoscere nostros et breuiter Troiae supremum audire laborem. (Ul, 10-11) “mas se tamanho é 0 desejo de conhecer nossos infortiinios e brevemente ouvir de Troia 0 derradeiro sofrimento”.. Coordenam-se duas nogées que estio no mesmo campo se- ‘mantico: conhecer os infortiinios de Eneias é, sobretudo, saber © que ocorreu na noite derradeira de Troia, mas, obviamente, =102- Fpica 1 nao se diz o mesmo com palavras diferentes: aqui, a “variagio” ressalta, entre os infortinios que Eneias relataré, 0 que ocupa todo o livro II, 0s sofrimentos dos derradeiros momentos da cidade do heréi. ‘Mais um exemplo: quam luno his acuit uerbis ac talia fatur. (VU, 330) “Juno a provoca com estas palavras e assim fil: Coordenam-se aqui frases téo intimamente ligadas pelo sentido que poderiam ter sido unidas gramaticalmente de ma- neira mais estreita, algo como “Juno a provoca com estas pala- ‘vras, assim falando”, por exemplo. Virgilio é um habil criador de efeitos ritmicos. Vejamos um pequeno e muito citado exemplo no modo como Virgilio enfa- tiza no ritmo o gigantismo do ciclope Polifemo: ‘monstrum horrendum, informe, ingens, cui lursen ademptum. (Ut, 658) “monstro horrendo, informe, imenso, a quem a luz fora tirada” O verso tem trés elise: jonstr(umn) horrend(um)inform(e) ingens, criando no ritmo uma sequéncia de sete silabas, que de- vem ser lidas como se formassem uma palavra s6! Apoiando esse efeito, todas as sflabas desse conjunto ritmico sao longas, 0 que torna o ritmo mais vagaroso, Associzmos a isso a presenca marcante de sons nasais. Enfim, um verso expressivo do ponto de vista ritmico e sonoro para mimetizar no plano da expressio a monstruosidade de Polifemo. Em VII, 46, notemos como a situagao de tranquilidade e se- renidade no Lacio é expressa num ritmo ondulado, que alterna =103- Paulo Sérgio de Vasconcelos ditilos e espondeus (jé 0 encontramos em outro verso, analisa- do mais acima): lim senior longa plaicidas in pace régebat. “Ja velho regia em longa paz. as plécidas [cidades]?” Ou: Iam séni (datilo) dr lon (espondeu) ga plci (datilo) das in (espondeu) pace ré (datilo) gébat (espondeu, pelo alonga- mento da iiltima silaba em final de verso). Esses siio apenas uns poucos exemplos de uma extrema- mente refinada arte da metrificagéo. Destacaremos, neste capitulo sobre lingua e estilo da Eneida, a discutida questio do “estilo subjetivo” virgiliano. Criticos tém observado como, em Virgilio, a narrativa em terceira pessoa se impregna de subjetividade. Em seu seminal Virgils epische Technik, traduzido para o inglés em 1993, Richard Heinze dis- tinguia Empfindung (que Otis depois chamaria de empathy) de Subjektivitat (sympathy, segundo Otis)”. No primeiro caso, 0 narrador deixa transparecer, no discurso de terceira pessoa, afetos e emogies do personagem, como que se identificando afetivamente com ele, vendo os acontecimentos sob seu ponto de vista”, No segundo caso, terfamos, na narrativa em terceira pessoa, a intromissao da subjetividade do poeta (preferimos dizer, do narrador, a “voz” autoral construida no texto, distin- guindo-a do “poeta”, categoria que pode ser confundida com a do “autor empirico”). Primeiramente, alguns exemplos célebres de empathy. Quan- do Eneias recebe, através de Mercirio, o incitamento de Jipi- ter a deixar Cartago, o narrador diz 104 Epica 1 aardet abire fuga dulcisque relinquere terras. IV, 281) “arde no desejo de partir em fuga e abandonar as doces terras”” As terras de Cartago eram “doces” para Eneias; 0 narrador, aqui, assume seu ponto de vista. Notemos que a observacio mostra como o pio Eneias supera seus sentimentos pessoais (afinal, as terras Ihe eram doces) para cumprir a ordem dos deuses e partir. Outro exemplo temos na descrigao dos pesa- delos de Dido: git ipsefurentem in sominis ferus Aeneas. (IV, 465-466) “Persegue-a, furiosa, Em sonhos o feroz Eneias?” “Feroz” expressa o que Dido pensa de Eneias, que esté para abandoné-la. f tipico da polifonia virgiliana que essa visio ne- gativa do heréi irrompa na narracdo em terceira pessoas 0 nar- rador acolhe o ponto de vista da personagem, em seu julgamen- to negativo do protagonista da epopeia Outro exemplo famoso se encontra na descricéo da morte do guerreiro Antor: sternitur infelix alieno wulnere caelumque aspicit et dulcis moriens reminiscitur Argos. {X, 781-782) “E derrubado, o infeliz, por golpe de: adc a outro, o céu Contempla e, morrendo, recorda a doce Argos” -105- Paulo Sérgio de Vasconcellos Novamente, Argos é “doce” para Antor, que de la vinha. ‘Nos versos acima, o guerreiro é chamado “infeliz”, uma intro- missio da subjetividade do narrador (Subjektivitat, sympathy), mais evidente nas vezes em que a narracio dos fatos estaca para expressar um comentirio a respeito da ago narrada, como em: improbe Amor, quid non mortalia pectora cogis! (IV, 412) “{mprobo Amor, a que nao impeles os corages mortais!” Ou no jé citado: nescia mens hominum fati sortisque futurae et seruare modum rebus sublata secundis! Turno tempus erit magno cum optauerit emptum intactum Pallanta et cum spolia ista diemque oderit, (501-505) “Mente dos homens insciente do fado, da sorte futura E de conservar a medida, exaltando-se na prosperidade! Havera um tempo em que o grande Turno desejara a todo prego Palante intacto e estes despojos e este dia Odiara?” No exemplo acima, o narrador adianta um dado da intriga: ‘Turno haverd de se arrepender de ter matado Palante e revesti- do seu cinturao, o que remete a cena final da epopeia. £ uma passagem curiosa também por mostrar a onisciéncia do nar- rador: ele sabe qual seré o fim de Turno, o papel que o cinturéo de Palante tera em sua morte e, de forma algo enigmatica, deixa que o leitor entreveja que Turno seré punido pela atitude des- rita naquele momento da intriga. ~106- Epica Um exemplo interessante para avaliar a caracterizacao da personagem de Dido se encontra neste julgamento que o narra- dor faz de sua conduta: neque enim specie famaue mouetur nec iam furtiuum Dido meditatur amorem: coniugium uocat, hoc praetexit nomine culpam. (IV, 170-173) “Pois nem se deixa mover pela aparéncia ou pela fama, Nem pensa jé Dido num amor furtivo: CChama-o comtibio; com este nome cobriu sua culpa.” Em um célebre estudo”', Conte defende que a Eneida é um texto “policéntrico” e polifénico, que dé espago as diversas vo- es, 08 diversos pontos de vista relativos que convivem em si- multaneidade, nao se anulando diante da objetividade da nor- ma épica e sua ideologia; no extremo, da-se relevo a vozes que vao de encontro a ideologia do poems e nele convivem, con- tradizendo-se entre si, sem possibilidade de conciliagio. Mes- mo no caso de Mezéncio, o cruel inimigo de Eneias, a partir da morte de Lauso, ganha predominancia no tratamento da per- sonagem 0 amor ao filho, eo leitor “aprende a ver, entio, a rea- lidade também na perspectiva do inimigo” (p. 79). Conte, por- tanto, vé duas fungdes muito diversas para a emphaty ea sympathy. A primeira introduziria efeitos de desagregacio da norma épica, através da multiplicagéo de pontos de vista que a relativizam; a segunda, ao se antepor a forca dissolvente da pri- meira, como que recompondo os elementos de cisio, impediria que a objetividade épica se fragmentasse: “E justamente essa sympatheia do poeta, de fato, que funciona num sentido objeti- vante e reduz a estitica fragmentacéo do quadro do mundo re- -107- Paulo Sérgio de Vasconcellos propondo a objetividade do cédigo épico” (p. 84), a0 qual sio submetidas as verdades individuais. Tomemos o iltimo exem- plo de “subjetividade” que invocamos: a personagem de Dido é construfda de maneira a comover o leitor, mas 0 seu compor- tamento diante do amor por Eneias é, pelo narrador, chamado (explicitamente!) de “culpa”; por mais que o leitor, como Santo Agostinho (Confissées 1, XIII, 20-21), se emocione com a traje- téria trdgica da rainha até 0 suicidio, uma voz objetiva, a do narrador de terceira pessoa, enuncia como 0 leitor deve julgar © modo como Dido apresenta sua relagéo com Eneias: casa- ‘mento legitimo, na visio da personagem, mas, de fato, um sim- ples pretexto para ocultar uma falta. Obviamente, cada leitor construira sua apreciagdo da personagem a partir desses (e de outros) elementos do texto, j4 que nao se pode controlar a re- cepgao dos textos por leitores variados, tanto mais ao longo dos séculos, em contextos culturais diversos. F ingente allteratura sobre os “vencidos” da Eneida, o modo como Virgilio daria voz. afetividade dos inimigos de Eneias e induziria a certa simpatia para com as vitimas do destino e do heréi da epopeia, Jd mencionamos a escola de criticos de Har- vard (porque alguns de seus principais representantes estavam ligados a essa instituicao), que tendeu a ver na Eneida uma vi- sio pessimista da histéria, no limite, uma condenagao do pro- tagonista e, portanto, do império romano e de Augusto. Em oposicdo a essa tendéncia, uma espécie de “escola” europeia, formada por criticos alemaes e ingleses, tenderia a ressaltar a isdo otimista da ago de Eneias e de Augusto. Outros, como 1nés mesmos, preferem ver, na epopeia, uma exaltagao de Au- gusto e de Roma que, porém, nao oculta, pelo contrario, dé vor vistosa ao sofrimento dos vencidos, as contradigdes do pro- tagonista, a perda de vidas humanas que a agdo de Eneias =108. 4 Epica t provoca, as ambiguidades da Histéria, de tal forma que longe estamos de uma visio triunfalista monolitica ou de um patrio- tismo ingénuo. (Os que salientam a visio “pessimista” da Eneida exploram, sobretudo, as contradigdes de Eneias. O poema conota negati- vamente o furor: Juno, a perseguidora dos troianos, age levada por ele; Jupiter prevé que um dia o Furor sera aprisionado de- finitivamente no templo da Guerra (J, 294-296); no entanto, e apesar das recomendagées de Anquises a0 Romano no sen- tido de “poupar os que se subjugaram” (parcere subiectis, VI, 853), Eneias, na cena final, mata, inflamado de fitria (furiis accensus, XII, 946), um inimigo desarmado, ja submetido. E a epopeia termina com a palavra “sombras”, num verso que des- creve a alma de Turno indo para o reino dos mortos, um final nada réseo. Por outro lado, os “otimistas” podem invocar, por exemplo, 0 fato de que Anquises aconselhara a “debelar os soberbos” (de- bellare superbos, V1, 853), € a soberba de Turno é um t6pico re- corrente (X, 445, 514; XII, 326), embora ele apareca suplicante na cena final. E esse dossié poderia continuar. Como um dos primeiros estudos influentes a propor uma versio mais sombria e polifonica da Eneida, cumpre citar 0 en- saio de Adam Parry “The two voices of Virgil’s Aeneid””’: sob a ‘yor triunfalista, far-se-ia ouvir na Eneida uma voz elegiaca que chega a lamentar até mesmo as vitimas de Eneias, como 0 “for- tissimo Umbro”, a quem a propria paisagem itdlica, sua terra natal, pranteia: te nemus Angitiae,uitrea te Fucinus unda, te liquidi flewere lacus. (VII, 739-760) -109- Paulo Sérgio de Vasconcelos “a tio bosque de Angicia, em sua vitrea onda a ti o Fécino, A ti choraram os limpidos lagos.” ‘Além de representar a propria paisagem itélica lamentando ‘0 destino do heréi que sucumbird a “langa dardania” (756), a subjetividade do narrador emerge para se dirigir diretamente ao personagem, um inimigo de Eneias, com evidente “empa- tia”. E dessa passagem, detalhadamente analisada, que parte 0 influente estudo de Parry, para quem, entio, haveria duas vo- zes na epopeia: a publica e a privada, a voz da ideologia triun- falista a que se contrapée a voz do individuo e seus sofrimen- tos e perdas. Numa espécie de desenvolvimento da leitura de Parry, R.O. A.M, Lyne dedicou todo um livro a explorar as further voices da Eneida, Para ele, haveria na epopeia uma voz épica, “obje- tiva’, confidvel, univoca””, mas, sob essa voz épica, outras vozes se fariam ouvir ao leitor atento: “Vozes outras [further voices] fazem irromper outro material e opiniées, e eles podem ser per- turbadores, até mesmo chocantes. Vozes outras acrescentam a, comentam sobre, questionam e por vezes subvertem as impli cagées da voz épica””* essa forma, é como se varias camadas de sentido se sobre- pusessem, ¢ 0 leitor se vé 4s voltas com a interpretagdo dessa polifonia, sem ter certeza de qual das vozes predominaria na interpretagao conforme a intengéo do autor, impossivel de identificar com certeza. Esse tipo de postura hermenéutica tem a vantagem de deixar ao leitor a descoberta e a interpretaco da polifonia do poema, ressaltando a complexidade de sua construgao dialégica, e evi- tar a dicotomia da visio pessimista/visio otimista. -110- Epica 1 Fagamos uma breve menco & obra Virgil’s Aeneid. Cosmos and Imperium, de Philip Hardie (Oxford, Clarendon Press, 1989), que explora as relagdes entre ordem césmica e a ordem politica, a luta entre as forcas do caos ¢ as da ordem, expressas, por exemplo, nas alusdes & Gigantomaquia, luta dos mons- truosos Gigantes contra Zeus, inclusive no episédio da morte de Turno. Nesse livro, a interpretagac da ideologia da Eneida vai na contramao da visio “pessimista”: o império representa © equivalente politico da ordem césmica que triunfa sobre as forgas do caos. Hardie oferece, em anilises instigantes, contra- ponto a visio “pessimista” mais unilateral, numa anilise essen- cial para a discussio do tema, Conte, num estudo relativamente recente, fala em contradi- Ses nao concilidveis, oposigdes que Virgilio justapde no poe- ma, diferentes pontos de vista, difereates perspectivas postas lado a lado, “ambas simultaneamente verdadeiras, sem que ‘uma possa se proclamar mais verdadeira que a outra””, de tal forma que “otimistas” e “pessimistas” teriam visto apenas uma das facetas das contradigdes”. A épica virgiliana, rompendo com a Verdade univoca da vor épica tradicional, apresentaria contradig6es inconcil iveis de um modo semelhante ao que se fazia na tragédia. Esta seria a caracteristica que mais vistosa- mente diferenciaria a epopeia virgiliana da de seus predecesso- res gregos e latinos. Tendemos a perfilar esse tipo de interpre-~ tagio, que ndo escamoteia as contradigdes ¢ ambiguidades da trama da Eneida, Leitores de Dom Casmurro podem arrolar os indices de que Capitu nao traiu Bentinho e os sinais contrérios de que o fez (mas é sempre bom lembrar que a narrativa em primeira pessoa langa sobre o todo uma ambiguidade de fundo), e uns optaro pelo sim, outros pelo nao; outros hao de julgar essa questo aun Paulo Sérgio de Vasconcelos indecidivel. Leitores da Eneida podem arrolar raz6es para que Eneias se comportasse de uma maneira ou outra diante de Tur- no e, a partir disso, julgar de forma positiva ou negativa a agéo do protagonista. Obras complexas, o romance de Machado ea epopeia de Virgilio parecem incitar o leitor a tirar suas prOprias conclusdes, que sempre poderdo ser confrontadas e contesta- das... como se o proprio texto se recusasse a fechar-se numa interpretagao facil e univoca Sob esse aspecto também, a Eneida mostra sua qualidade de classico, através dos séculos colocando-nos questionamentos instigantes a cada leitura, sem esgotar sua capacidade de nos intrigar e assombrar. Notas Horicio, Epistula, Uh, 1,50 Vita Danatiana, 39. Sérvio, it, 39-1, [images an symbol inthe Aeneid. Traduzide por Gerda Seligson. Ann Arbor, The University of Michigan Pres, 1966 p. 13, Bernard M. W. Knox, "The Serpent and the Flame: The Imagery of the Second Book of the Aeneid’ in The American Journal of Philology, vol. 71, n. 4 1950, pp. 379-400, “Tradugao de Barreto Fei. Vite Caesars, 6 [Lembremos que a mulher romana recebe o nome da gens no ferinino; asin, a filha de Marcus Tullue Cicero, o grande orador, chamava-se Ti, como a filha, de Gaius lulius Caesar, ua. Se havia mais de ura filha clas se distinguiam pelo numeral: primeira, segunda, terceira...(prima, secunda, teria), 9 Via Donatiana, 32. 10 Edicao Thilo; Hagen, 1986, vol I, p. 122. 11 Ver Luis Busatto, Montagem em Invengio de Orfeu. Rio de Janeiro, Ambito Cul tural Edigies, 1978 12. Tradusio de Barreto Feio, 13. Mircio Thamos,“O Musa, agora as causas: Una leitra da invocas In Classica, vl. 2, n ,jan.-jn. de 2007, p. 121 14 David Quint, Epic and empire. Princeton, New Jersey, Princeton University Press, 1992, p25, da Eni’, -112- 3 2 B a 35 6 ” 8 » a a 8 Epica t “em armas varadas’ “impelindo os italos: “com os pais ¢o pow ‘patio astro’ “esposa epipcia® (= Cleépatra), “ie pé na alta pops “parecia que a rainha em pessoa dava velas,invocados os ventos” ‘na outra parte, Agra, com ventose deuses favoraveis “arrancadas Ciclades ‘montanhas investi contra montanhas” ‘monstros de deuses de todo tipo oladrador Axis “Marte, As Farias, Discord, Belona [=a dewsa da guerra)’ “voto imortal’ “marcham em longa fla 0s povos vencidos’ “o Araxes [rio da Arménia] indignado’. J.D. Reed, Virgls gaze. Nation and poetry in the Aeneid, Princeton/Oxford, Princeton University Press, 2007, p. 3 ‘Tradugio de Barreto Feio Tradugio de José Maria da Coste Silva Gian Biagio Conte, The poetry of pathos. Studies ia Virgilan epic. Oxford, Oxford University Press, 2007, p. 194 “Lettura del decimo libro dellEneide’, in Marcello Gigante (e.), Leture Vergi liane. LEneide, Nipoles, Giannini, 1983, p. 352, Robusta. ‘Tradugdo de Jose Maria da Costa Siva. ‘Michael C.J. Putnam, “Aeneid 12. Unity in Closure’ in Christine Perkell (ed), Reading Vergis Aeneid. An interpretive guide. Neeman, University of Oklahoma Press, 1999, p. 211 Para uma caracterizacio nuangeda da personagen, ver Francesco Giancoti, Vie tor triss. Lettura dlFutimo lio del! “Eneide” Bolonha, Patron, 1993, pp. 38s. ‘Mais detalhes em Paulo Sérgio de Vasconcellos, Fits imtertextuals na Eneida de Virgil, Sao Paulo, Humanitas/Fapesp, 2001, rp. 193 es, Destaquemos o capitulo “The Aeneid as Odyssey” do liveo de Francis Cairns Virgls augusta epic. Cambridge, Cambridge Lniversity Press, 1990, pp. 177 -214, e, mais recentemente, de Edan Dekel, Vngls homeric lens, Nova York! Londres, Routledge, 2012 George Duckworth, Structural patterns and proportions in Vergls Aeneid. Ann, ‘Arbor, University of Michigan Pres, 1962, In Stephanie Quinn (e.), Why Vergl? A collection of interpretations. Waaconda, Bolchazy-Carducci, 2000, pp. 151-152. Duckworth apresenta um quadeo mais detalhado, que aqu reduzims a0 essenca Seu influente Memoria dei poate sistema letterario de 1978 foi recentemente re Publicado: Gian Biagio Conte, Memoria dei pot e sistema lttraro, Palermo, Sellerio, 2012. Una traducdo para o inglés foi ineluida na coleténea de ensaios The rhetoric of imitation. Genre and poetic memory in Virgiland other latin poets Ithaca/Londres, Cornell University Press, 196 (eimpressio da obra de 1986). -13- Paulo Sérgio de Vasconcelos ‘44. Glorgio Pasquali, “Art alusiva’ in Pagin sravaganti, vol. I, Florenca, Sansoni, 1968, pp. 273-282 45 Vejam-se, por exemplo, os artigos do nimero 39 (1997) da revista Material e Aiscussion per Tanalis dei tet classic eo livro de Stephen Hinds intitlado Alli- sion and intertext. Dynamics of appropriation in Roman poetry. Cambridge, Cambridge University Pres, 1998, 46. Gian Biagio Conte e Alessandro Barchies, “Imitazione e are alusiva, in Gu- glielmo Cavallo; Paolo Fedeli e Andrea Giardina (eds), Lo spazio lettvario di Roma antca. Vol, 1 La produsione del esto. Roma, Salerno, 1989, pp. 81-114 Essa dferenciagiojéaparccia em Memoria de poti de Conte 47 48 motum scalida werbum/ reddit inctura nowum (Arte Poética, 46:47), "se & ‘uma palavraconhecida tornares nova através de uma hab associagdo” Entende- mas que Horicio se refere a um modo de combinagio de palavras que as torna carregadas de uma densidade postica nova: pela construcio na fase, palavrasdo ‘uso comum ganham inesperada signiicagi. 49. Vita Donatiana, 43. E. RO.AM. Lyne, Words and the poet. Characteristic tech niques of style im Vrgils Aeneid, Oxford, Clarendon Press, 1989, p. 18, nota 66 50 "Nem mesmo o espondeu deve ser repelido, embora, composto de doas longas, parega mais dil evagaroso: tem, porém, uma espécie de andamento regular ¢ nao desttuido de dignidade” (Ne spondeus quidem funditus st repudiandus, ets, quod este longs duabus, hebetiorwidetur et tardior; habet tamen stabilem quem dla et non expertem dignitatis gradum ~ Cicero, Oraor, LXIV, 216). Cicero co: ‘mena que Eforoevitavao espondeu, que tornariao discurso “demasiado vaga 030" (rimis tarda orationemt — Orater, LVM, 191). Para Quintliano (Inst. Or, 1%, 4,83), se a frase € rica em silabaslongas,o discurso se torna “mals grave” (greuiorem facunt orationer) 51 Para uma anilise detalhada das hipdlages (ou endlages) vrgilianas, com seu feito de “desfamiliarizagio” da lingua comum, ver o capitulo “Anatomy of a Style in Gian Biagio Cont, The poetry of pathos... pp. 58-122. 52. Desprevenidos,incautos, 53. Sacerdote 4 Serpentes 58° Mat 6 Erguem, 57 Dorso. 58 Planicie, 59. Sangue, % Pilido 81 Cinge,abraga, 62 Negro 63 A fita queo sacerdote eas vitimas sacrificadas portavam, 6 Altar 65 Cruel ferox (6 Escudo redondo, 114 o « 70 n n 7 76 Epica 1 Kenneth Quinn, Virgils Aeneid. A critical description. Londtes/Henley, Routledge & Kegan Paul, 1978, pp. 423-428 Richard Heinze, Virgil epic technique. Traduido por Hazel ¢ David Harvey € Fred Robertson. Londres, Bristol Classical Pres, 1993 Veja-se 0 capitulo “The subjective style” em Brooks Otis, Virgil. A Study in civ lized poetry. Oxford, Clarendon Press, 1963, pp 41-96 E bom lembrar, porém, que essa “fcalizacio" 1a subjtividade do personagem, que, prem, é“filtrada’ pela voz narrativa em tceira pessoa, nfo € exclusiva de Virgilio, nem da épia antiga. Porém, ve a erica tem apontado exemplos viios de empathy em Homero, a intromissi dite da voz do narrador (sympathy) 6, rele, muito mais rara. Falta, na bibliografia sobre a Eneida, ao que salbamos, em aplicagio sistematica de teorias narrativas ma modernas, um estudo como os de Irene de Jong (ver referénciasbibliogifics) sobre a Iiada e a Odisseia, a partir das ideias de Gerard Genettee Mieke Bal Sobre “ponte de vst na Eni dda, citemos o estudo de Marzia Bonfanti: Punto di vista e modi della narraione nel!Eneide. Giardini Giardini, 1985, *Saggio di interpretazione dell “Eneide, Mdeologiae forma del contenuto’ in Gian Biagio Conte, Virgilio. I! genere ei suoi confni. Modell del senso, model dela forma in una poesia coltae“sentimentae” Mili, Garzanti, 1984, pp. 55-96. © ensaio foi depois publicado em inglés: “Virgls Aeneid: Toward an Intepreta- tion’ in Gian Biagio Conte, The rhetoric of tation. Genre and poetic memory jn Virgil and other latin poets. haca/Londses, Cornell University Press, 1996, pp. 14-18, In Arion, vo. I, 4, 1963, p. 6680 (reproduzide em Stephanie Quinn, Why Ver gl? A collection, pp. 155-167) “objective credible, univocal” R.O.A. M. Lyne Further voices in Vergis Aeneid. Oxford, Clarendon Press, 1992, p.2. “Further voices intrude other material and opinions, and these may be dis turbing, even schoking. Further voices add to, commente upon, question, and ‘ocasionally subvert the implications ofthe epic voice bidem. The strategy of Contradiction’ in Conte, The poetry of pathos. p. 157 Leia-se todo o capitulo mencionado,ibidem. -115-

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