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O conceito de quilombo ea resisténcia cultural negra Beatriz Nascimento “+ Objetivos 1) Caracterizar 0 quilombo como institui- Gao africana, de origem angolana, na histéria da pré-didspora. 2) Indicar as conotagies que tal instituigao recebe no periodo colonial e Imperial no Brasil. 3) Caracterizar a instituigao quilombo na passagem para principios ideolégicos como forma de resisténcia cultural. 4) Historicizar a ideologia junto as etapas do movimento de conscientizagao do negro e da sociedade brasileira no século XX. Introdugao A visdo que 0 mundo ocidental procurou transmitir da Africa foi a de um continente iso- lado e bizarro, cuja Histéria foi despertada com a chegada dos europeus. Da mesma forma que se deu com o territério de origem do povo ne- gro, a Histéria deste s6 0 ¢ se tiver sido marca- da por acontecimentos significantes da Histéria da civilizagao ocidental. O risco maior de tal + Publicado originalmente em: Afrodiéspora Nos. 67, pp. > 49,1985, ‘++ Beatriz Nascimento éhistoriadora,professora da UFRJ © militante do movimento negro. procedimento de historiadores desta parte do mundo repousa na ruptura da identidade dos negros e seus descendentes, tanto em relacao a0 seu passado africano quanto & sua trajetéria na propria histéria dos paises em que foram alocados apés o tréfego negreiro. Numerosas foram as formas de resistén- cia que o negro manteve ou incorporou na luta 4rdua pela manutengio da sua identidade pes- soal ehistérica. No Brasil, poderemos citar uma lista destes movimentos que no Ambito social € politico € 0 objetivo do nosso estudo, Trata- se do Quilombo (Kilombo), que representou na histéria do nosso povo um marco na sua capa- cidade de resisténcia e organizagao. Todas estas formas de resisténcia podem ser compreendi- das como a histéria do negro no Brasil. O quilombo como instituicao africana Dois incentivos iniciais fizeram com que 0s portugueses, ao contrério dos demais euro- peus, se internassem no continente africano e procurassem conquistar uma colénia em Ango- la. O primeiro seria repetir 0 caso brasileiro, ou seja, adquirir terras préprias para se fixar como naquela colénia americana. Segundo objeti- vava encontrar minério precioso em Angola, objetivo logo frustrado. Os Europeus descobriram ainda no século XV que a maior fonte de riquezas era o trafico escravista. O Brasil passou a ser o maior recep- tor desta “mercadoria” nos meados do século XVL Decorrente da procura de escravos inten- 17 sificou-se a penetragio interior, geralmente or- ganizada pelo rei do Congo que orientava os ataques dos portugueses ‘A "zona de caca” preferida era a regido da etnia mbundu, no sul de Angola. No século XVII os portugueses verificaram definitivamente que 0 comércio humano mais que qualquer atividade atendia aos interesses coloniais. Trés métodos principais se mostraram eficazes para este empreendimento. O primeiro baseava-se na compra por traficantes nos mercados dos po- vos mais afastados, junto as fronteiras do Con- go e de Angola. Mpunbu, povo fixado préximo ao lago Stanley, deu nome a estes traficantes, os famosos pombeiros. O segundo método consistia na forma de obter escravos através da imposigao de tributos aos chefes mbundus con- quistados. Tal tributo era pago em jovens escra- vos adultos conhecidos sob o nome de pecas da india. © terceiro método de adquirir escravos era através de guerras diretas. Os governadores eram os mais interessados neste tiltimo proce- dimento. Alguns deles, com interesses no Bra- sil, preocupavam-se em abastecer de escravos suas préprias terras americanas. ‘Ao entrar no continente africano, os euro- peus encontraram sociedades de diversos tipos, naquele momento em proceso de redefinicao, na medida em que surgia em alguns pontos a organizagio do Estado. Este, como 0 exemplo do Reino do Congo, chocava-se com algumas formagies tradicionais, como no caso das for- magées baseadas no modo de produgéo de linhagem da qual o mbundus faziam parte. 118 David Birmingham dé bem a mediada dos conflitos existentes nas socieades bantus da Africa centro-ocidental no momento da penetracdo portuguesa. Diversas etnias se en- trechocam, se sucedem no mesmo espago, seja aderindo a0 nove momento, seja resistindo a esta penetrac3o. Dentre estas vamos encontrar os Imbangalas, também conhecidos como Ja- gas, cacadores vindos do Leste que, por volta de 1560, comegam a invadir o Reino do Congo © que por volta de 1569 tinham conseguido ex- pulsar o rei e os portugueses da capital, obrig- ando-os a exilar-se numa ilha no rio, Entre 1571 € 1574 0s europeus, usando armas de fogo, fa- zem recuar este combativo povo. Dez anos mais tarde os Imbangalas com- batiam ao lado dos mbundu contra a penetra- do portuguesa. Sua entrada no territério do mbundus foi precedida de uma luta feroz entre Ngola, chefe dos mesmos, e Kingui, chefe dos Imbangala. Os Imbangalas que dominaram Angola eram considerados um povo terrivel, que vivia inteiramente do saque, nao criava gado, nem possuia plantacao. Ao contrério das ouras linha- gens, ndo criavam os filhos, pois estes poderiam atrapalhé-los nos diversos deslocamentos que se faziam necessdrios. Matavam-nos ao nascer e adotavam os adolescentes das tribos que der- rotavam. Eram antropéfagos e em sua cultura aderegos, tatuagem e vinho de palma tinham especial significado. Esta caracteristica némade dos Imbanga- las, acrescida da especificidade de sua forma- Gao social, pode ser reconhecida na instituigao Kilombo. A sociedade guerreira Imbangala era aberta a todos estrangeiros desde que iniciados. Tal iniciagdo substitui o rito de passagem das demais formagées de linhagem. Por no con- viverem com os filhos ¢ adotarem os daquelas formacées com as quais entravam em contato, ‘os Imbangalas tiveram papel relevante neste periodo da historia angolana, a maior parte das vezes na resisténcia aos portugueses, outras no dominio de vastas regides de fornecimento de escravos. Por tudo isto, o Kilombo cortava transversalmente as estruturas de linhagem e estabelecia uma nova centralidade de poder frente as outras instituigdes de Angola. O ritual de iniciagao baseava-se na pratica da circunciso que expressava o rito de passa- gem incorporando jovens de varias linhagens na mesma sociedade guerreira. Kilombo aqui recebe o significado de instituicao em si. Seria Kilombo os priprios individuos ao se incorpo- rarem a sociedade Imbangala. © outro significado estava representado pelo territério ou campo de guerra que se de- nominava jaga. Ainda outro significado para Kilombo di- zia respeito ao local, casa sagrada, onde proces- sava-se o ritual de iniciagio. ‘O acampamento de escravos fugitivos, as- sim como quando alguns Imbangalas estavam em comércio negreiro com os portugueses, também era Kilombo, Mais tarde, no século XIX, as caravanas de comércio em Angola recebiam esta denominagao. Observando-se a interrelagao entre Brasil e Angola, frente ao trafico negreiro, nao é dificil estabelecer conexdo entre a historia desta ins- tituigdo na Africa (Angola) e aqui. A dificuldade est em se estabelecer linhas de contato direto, como por exemplo, entre a formagio de um quilombo aqui e suas origens territoriais e de composicdo étnica em Angola. Se os componen- tes nacionais eram descendentes diretos dos en- volvidos na Africa, ou ainda se haveria relagao direta com quilombos combativos aqui e gru- pos africanos que atuavam na zona de guerra naquele momento do outro lado do Atlantico, © quilombo como instituigao no periodo colonial e Imperial no Brasil A primeira referéncia a quilombo que surge em documento oficial portugués data de 1559, mas somente em 1740, em2.de dezembro, assus- tadas frente ao recrudescimento dos nticleos de populagao negra livres do dominio colonial, de- pois das guerras do nordeste no século XVII, as autoridades portuguesas definem, ao seu modo, © que significa quilombo: “toda a habitago de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que nao tenham ranchos le- vantados nem se achem pildes neles” Como esclarecimento, as guerras do nor- deste referidas acima dizem respeito a destruig3o do Quilombo dos Palmares, assim como toda a agitagao que se processou ao redor deste nticleo. Dos quilombos brasileiros, no século XVII, sem diivida Palmares se sobressai sem similar. 119 Das noticias da época, a quantidade destes es- tabelecimentos est diretamente relacionada a0 desmembramento deste grande estado que inaugura uma experiéncia singular na Histéria do Brasil Se inferirmos, através de coincidéncia de datas, vamos notar que 0 Quilombo de Pal- mares ndo deixa de ser fenémenos paralelo ao que esta se desenrolando em Angola no final do século XVI e inicio do século XVII. Talvez seja este quilombo 0 tinico a se poder fazer cor- relacao entre o Kilombo instituigdo angolana e quilombo no Brasil colonial. O auge da resistén- cia Jaga se da exatamente entre 1584 e meados do outro século, apés 0 qual esta etnia se alia a0 esforgo negreiro portugués. Neste mesmo mo- mento se estrutura AngolaJanga, conhecido como quilombo dos Palmares no Brasil. Alguns outros fatores coincidentes comare- alidade angolana podem ser remarcados, como por exemplo, a nominagao do chefe africano de Palmares Ganga Zumba. Tal titulo era dado a0 reilmbangala com uma pequena variacao: Gaga adorno da cabeleira verificado pelo cronista quando o rei palmarino conferencia em Recife a trégua que tem o seu nome: era costume do Imbangala Calando, por exemplo, usar 0 cabelo em trancas longas adornadas de conchas, como sinal de autoridade. O estilo da guerra, baseada numa maquina que se opunha em varias frentes aos provaveis inimigos da instituigao, ou seja, a corte transversal e a centralidade nova frente ao regime colonial. Por fim, o nome dual da insti- tuicdo no Brasil Angola-Janga. 120 Certo é que o nome Angola dado ao ter- ritério colénia africano derivou do nome do rei mbundu N’gola, 0 qual emprestou-o aos seus diversos descendetes-sucessores. Provavel- mente representantes desta dinastia africana sio transferidos pelo trafico para o Brasil. Cer- to & que estejam em Palmares também como. chefes do estabelecimento sedicioso. Provavel que o segundo nome janga — variacao de jaga — demonstra a unio destas duas linhagens che- fiando 0 Quilombo de Palmares, porque assim estavam relacionados no controle do territério mbundu em Angola, Estas consideracdes em torno deste Quilom- bo no Brasil nos dao a medida do quanto as re- alidades de Brasil e Angola estavam num esté- gio ainda possivel de inter-relacdo. Os demais quilombos vao se distanciando do modelo afri- cano e procurarao um caminho de acordo com. as suas necessidades em territério brasileiro. Falta ainda um esforco historiografico de, a0 estudar os quilombos brasileiros, defini-los se- gundo suas estruturas e sua dinamica no tempo. De um modo geral define-se quilombo como se em todo 0 tempo de sua histéria fossem aldeias do tipo que existia na Africa, onde os negros se refugiavam para “curtir o seu banzo”, No periodo colonial 0 quilombo se carac- terizou pela formagao de grandes Estados, como co da Comarca do Rio das Mortes em Minas Gerais, desmembrado em 1750, Podemos afir- mar que como Palmares este quilombo age de acordo com as condigées estruturais, inclusive econémica, no contexto dos “ciclos” econémicos no Brasil. Antes 0 agiicar de Pernambuco, agora © ouro em Minas Gerais. Dentro desta perspectiva se é poss caré-los como sistemas sociais alternativos, ou vel en- no dizer de Ciro Flamarion: brechas no sistema escravista ‘Um ponto importante e em certa medida controverso é a atitude desses grandes estab- elecimentos frente ao regime da escravidao. E preciso reforgar, que 0 Africano nao é um ser estereotipado na acepcao do “bon sauvage” e que a Africa nao era necessariamente um paraiso bizarro. A instituigdo da escravidao era conhecida e utilizada desde a Antiguidade africana, en- tretanto esta escravidao nao tinha o cardter de “propriedade” encontrado no sistema escra- vagista colonial. Antes, diversos fatores leva- vam um homem livre & condigao de escravo, entre eles as guerras vizinhas em momento de instabilidade politica; os filhos de mae escrava nao resgatados; dependéncia devido a castigo imposto pela quebra de normas grupais, peri- go de vida dentro do grupo que poderia levar ao pedido de protegio de outra linhagem, chamada “escravidao voluntaria”. Frente a este ultimo fator, 0 quilombo sendo uma instituigdo de homens egressos da escravidao colonial ou em perigo frente a esta, cujos lagos estavam baseados em condigées extraordinarias, poderia perfeitamente fazer uso destes mecanismos tradicionalmente con- hecidos e suportar no seu interior a pratica da escravidao. 121 Além disso, aliado no espago e no tempo 20 sistema social escravagista nao seria de todo impossivel em alguns momentos tal instituigo interferir na economia dos grandes quilombos. Um exemplo de tal pratica infere-se do assen- timento de Ganga-Zumba em transformar os palmarinos nao-adesistas a trégua de Recife em escravos coloniais, Mas é preciso recordar que o escravo colo- nial, ao aderir ao quilombo, muitas vezes pode- ria fazé-lo na condigao do escravo voluntario. E perfeitamente compreensivel desde que tal pratica era largamente utilizada em Africa. Isto posto, 0 que difere entre quilombos do século XVII dos demais era a possibilidade de grupos e etnias comuns ainda poderem ser encontrados num espaco territorial e voltados para um tipo de economia, o que di a medi- da de risco que representavam para o sistema colonial. Podemos mesmo afirmar que estes quilombos so o primeiro momento da nossa histéria em que o Brasil assim se identifica en- quanto Estado centralizado, A partir do desmembramento dos quilom- bos do Tijuco e da Comarca do Rio das Mortes no século XVIII, © quilombo se redefine vari- ando conforme a area geografica, a repressio oficial e a diversidade étnica, que se torna cada vez mais comum quanto foi a politica negreira de misturar povos de origem diversa. Neste século a proliferagao de quilombos se faz em todo territério das capitanias coloni- ais. A diferenca basica ente estes e os do século XVIII esté diretamente vinculada & impossibili- dade de cada um em si representar um risco a0 sistema. Nesse particular, tanto no século XVII quanto no século XIX, esta instituigéo procede como frinchas nos sistema, muitas vezes con- vivendo pacificamente, que ao ser vista global- mente, ou seja, em todo o espago territorial e em todo o tempo histérico, traduzia uma ins- tabilidade inerente ao sistema escravagista. A oscilagao das atividades econémicas, ora numa regido, ora noutra, provocava muitas vezes o af- rouxamento dos lagos entre os escravos e senho- res. A fuga passa a ser uma instituicdo decor- rente desta fragilidade colonial e integrante da ordem do quilombo. O saque, as razzias, enfim © banditismo social, sio a ténica que define a sobrevivéncia desses aglomerados. E assim que no Cédigo de Processo Penal de 1835 0 quilombo no sentido de valhacouto de bandidos se distingue de qualquer outra forma de contestagao dos escravos. Mas se assemelha enquanto perigo & estabilidade e integridade do Império, sendo a pena para os seus integrantes correspondentes & mesma dos participantes de insurreigdes: ou seja, a degola. Neste periodo ele esta inserido no chama- do “perigo negro”, movimento que assim se denomina em fungao das guerras da Bahia e do Maranhao. Sindicancias policiais so feitas de acordo com deniincias, muitas vezes no confirmadas. Em outras ocasides so encon- trados grupos sociais que desenvolvem nos quilombos intensas praticas religiosas. Como © Exemplo do quilombo de N.Sa. dos Mares e Cabula, em Salvador. Outro dado importante do periodo & que 08 quilombos de grande porte se encontram em morros e periferias dos centros urbanos mais importantes como o de Catumbi, o do Corcova- do, o de Manuoel Congo, no Rio de Janeiro im- perial. Muitos destes quilombos se organizam dentro de um arcabouco ideolégico, ou seja, a fuga implica numa reagdo ao colonialismo. Jé existe neste momento a tradicao oral ao lado de referéncias literérias do fenémeno no pasado. © quilombo como passagem para principios ideolégicos E no final do século XIX que o quilombo recebe o significado de instrumento ideoldgico contra as formas de opressao. Sua mistica vai alimentar 0 sonho de liberdade de milhares de escravos das plantacdes em Sao Paulo, mais das vezes através da retérica abolicionista Esta passagem de instituigio em si para simbolo de resisténcia mais uma vez redefine © quilombo. © surgimento do quilombo do Jabaquara é 0 melhor exemplo. Os negros fugi- dos das fazendas paulistas migram para Santos em busca de um quilombo que era apregoado pelos seguidores de Antonio Bento, quilombo este que na verdade viria a ser uma grande favela, frustrando aquele ideal de territério livre onde se podia dedicar as préticas culturais africanas e ao mesmo tempo uma reagdo mili- tar ao regime escravocrata E enquanto caracterizagao ideolégica que © quilombo inaugura 0 século XX. Tendo fin- 122 dado o antigo regime, com ele foi-se 0 estabe- lecimento como resisténcia escravidao. Mas justamente por ter sido durante trés séculos concretamente uma instituigdo livre, paralela ao sistema dominante, sua mistica vai alimentar 0s anseios de liberdade da consciéncia nacional Assim é que na trilha da Semana de 22, a edigao da coleco Brasiliana da Editora Nacional pu- blica trés titulos sobre o quilombo, de autores como Nina Rodrigues, Ernesto Enne, ¢ Edison Cameiro. Nao deixando de citar Artur Ramos € Guerreiro Ramos, além, da verso romanceada um pouco anterior de Felicio dos Santos. Este momento de definigéo da naciona- lidade faz com que a produgio intelectual se debruce sobre este fendmeno buscando seus aspectos positivos como reforco de uma iden- tidade histérica brasileira. Mas ndo sé nela, em outras manifestagées artisticas 0 quilombo 6 relembrado como desejo de uma utopia. A maior ou menor familiaridade com as teorias da resisténcia popular marcam esta producio, que é inclusive demonstrada em letras de samba. Muitas vezes referidas em instituicgdes escolares. E comum até 1964 a narrativa da histéria oficial ser encontrada nos livros esco- lares. De todo modo, até os anos 70, 0 quilom- bo adquire este papel ideolégico fornecendo material para a ficcio participativa como 0 caso da peca teatral Arena Contra Zumbi, bus- cando 0 reforgo da nacionalidade brasileira através do fildo da resisténcia popular as for- mas de opressao, confundido num bom sen- tido o territério palmarino com a esperanca de um Brasil mais justo onde houvesse liberdade, unio e igualdade. ‘Ao analisarmos esta conotacée, nao poderiamos esquecer da heroicidade tio in- trinsecamente ligada a histéria dos quilombos. Como nao poderia deixar de ser, a figura do heréiéenormemente destacada, principalmente a figura de Zumbi, e isto mais do que tudo neste periodo ganha uma representacdo capaz de ao lado de muito poucos a imagem deste chefe se confundir com uma alma nova nacional. Nao chega a ser exagero afirmar que en- tre 1888 e 1970, com raras excegdes, o negro brasileiro nao pode expressar-se por sua voz na luta pelo reconhecimento de sua participagao social. Soa interessante que tal expresso vem hia acontecer num momento em que o pais es tava sufocado sob uma forte repressao ao livre pensamento e a liberdade da reunido. Este era ‘0 momento dos anos 70. Talvez por ser um grupo extremamente submetido e que nao oferecia um imediato perigo ds chamadas instituigGes vigentes, os ne- gros puderam inaugurar um movimento social baseado na verbalizacao ou discurso veiculado a necessidade de auto-afirmagio e recuperagio da identidade cultural Foi a retérica do quilombo, a anilise deste como sistema alternativo, que serviu de simbo- lo principal para a trajetéria deste movimento, Chamamos isto de corregao da nacionalidade. A auséncia de cidadania plena, de canais rei- vindicatérios eficazes, a fragilidade de uma consciéncia brasileira do povo, implicou numa 123 rejeigdo do que era considerado nacional e di- rigiu este movimento para a identificacdo da historicidade herdica do passado. ‘Como antes tinha servido de manifesta- G0 reativa ao colonialismo de fato, em 70 0 quilombo volta-se como cédigo que reage 20 colonialismo cultural, reafirma a heranca afri- cana e busca um modelo brasileiro capaz de reforcar a identidade étnica. Toda a literatura e a oralidade histérica so- bre quilombos impulsionaram este movimento que tinha como finalidade a revisao de concei- tos histéricos estereotipados. Com a publicagao de artigo no Jornal do Brasil em novembro de 1974, o grupo Palmares do Rio Grande do Sul, do qual participava en- tre outros 0 poeta Oliveira Silveira, sugeria que a data de 20 de novembro, lembrando o assas- sinato de Zumbi e a queda do Quilombo dos Palmares, passasse a ser comemorada como data nacional contrapondo-se a0 13 de maio, Argumentava que a lembranga de um acon- tecimento em todo os sentidos dignificante da capacidade de resisténcia dos antepassados traria uma identificagdo mais positiva do que 2 Aboligao da escravatura, até entao vista como uma dadiva de cima para baixo, do sistema es- cravagista e de S. Altera Imperial. Sua sugestio foi imediatamente aceita e a procura de maiores esclarecimentos sobre aqueles fenémenos de resisténcia tomou forma de aulas, debates, pesquisas e projegies que alimentaram o anseio de liberdade de jovens através de entidades, escolas, universidades e da midia. Quilombo passou a ser sindnimo de 124 povo negro, sinénimo de comportamento do negro e esperanca para uma melhor sociedade. Passou a ser sede interior e exterior de todas as formas de resisténcia cultural. Tudo, de ati- tude & associacao, seria quilombo, desde que buscasse maior valorizagao da heranga negra. Hoje, 0 20 de novembro é data instituida de fato no calendario civico nacional, como Dia da Consciéncia Negra ou Afro-Brasileira. Consideragées finais Este esboso de estudo tentou trazer uma unidade no tempo do fenémeno quilombo. Foi escolhido um método descritive por acharmos que caberia este esforco na medida em que as varidveis do quilombo sio negligenciadas ofi- cialmente. Por outro lado seria necessério um corpo analitico para se compreender por que este fendmeno sobrevive no inconsciente cole- tivo dos negros e da inteligéncia brasileira. Durante sua trajetéria o quilombo serve de simbolo que abrange conotacées de resistén- cia étnica e politica. Como instituigao guarda caracteristicas singulares do seu modelo afri- cano. Como pratica politica apregoa ideais de emancipagio de cunho liberal que a qualquer momento de crise da nacionalidade brasilei- ra corrige distorcdes impostas pelos poderes dominantes. O fascinio de heroicidade de um povo regularmente apresentado como décil € subserviente reforca o carter hodierno da comunidade negra que se volta para uma ati- tude critica frente as desigualdade sociais a que esté submetida Por tudo isto © quilombo representa um instrumento vigoroso no processo de reco- nhecimento da identidade negra brasileira para uma maior auto-afirmagio étnica e nacional. © fato de ter existido como brecha no sistema em que negros estavam moralmente submeti- dos projeta uma esperanga de que instituigdes semelhantes possam atuar no presente ao lado de varias outras manifestagées de reforgo & identidade cultural. Bibliografia BIRMINGHAM, David (1973). A conquista Portuguesa de Angola: a Regra do Jogo. Lisboa. CARNEIRO, Edison (1965). © Quilombo dos Palmares. Rio Civilizacao Brasileira CONRAD, Robert (1975). Os tltimos anos da escravatura no Brasil. Rio: Civilizagao Brasileira/ MEC. FREITAS, Décio (1971). Palmares, a guerra dos escravos. Porto Alegre: Editora Movimento, NASCIMENTO, Abdias (1980). © Quilom- bismo. Rio/Petrépolis: Editora Vozes. NASCIMENTO, Maria Beatriz (1978). “O quilombo do Jabaquara”. Revista de Cultura Vozes (maio-junho). RODRIGUES, José Honério (1970). “A re- beldia negra e a abolicao”, Histéria e Historio- gratia. Petrdpolis: Vozes. SERRANO Carlos (1982). “Historia e antropologia na pesquisa do mesmo espaco: a Afro-América”. Africa ~ Revista do Centro de Estudos Africanos da USP (n° 5). 125

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