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POR QUE Daniel Kupermann CoonDENnagao Daniel Kupermann GF 202 EDITORA a renciago entre eu e outro integradora das instancias egoicas, A riéncia da ternura seria, assim, a condi¢ao de possibilidade Para cio expansivo da introjegao, e mesmo para a constitui¢do do nai primario e do ego prazer freudiano. O desfrute da “irresponsabilidade da infancia”, por seu turno, sig- nificaria a possibilidade de experimentar a “ilusao de onipoténcia”, oy “sentimento de onipoténcia”, oriundos do “periodo animista” ensao da realidade por parte das criangas. Porém, fardo inteligiveis em referéncia as concepgses aj em O desenvolvimento do sentido de realidade e sel expe. exerci. cisismo na apre- essas ideias 56 se presentadas anos antes, us estdgios, de 1913, que expressa a tentativa de Ferenczi compreender o interjogo entre princi- 5. pio de prazer e principio de realidade, discriminados um pouco antes 2 por Freud (1911). 5 4.5.1.1, Sexualizacio do universo, simbolizacao e advento da s 7 s linguagem & ° Ferenczi (1913a) estabelece a origem do princfpio de prazer Ppos- tulando um mitico “periodo de onipoténcia incondicional” vivido pelo feto no titero materno, o qual o sujeito buscaria regressivamente reeditar a0 longo da sua existéncia. A onipoténcia, definida como “a impressio de ter tudo o que se quer e nao ter mais nada a desejar” (ibid, p42) sera, a.um s6 tempo, a génese e 0 destino almejado do principio de prazer. Como demonstrara Freud (1895, 1900a,b), apds o nascimento, a vivéncia de satisfacdo proporcionada pelo seio materno inauguraria o pensamento alucinatério que, relido por Ferenczi (1923, p. 43), seria 0 reinvestimento alucinatorio do estado de satisfagdo intrauterino perdido. Com o sucesso da adaptaco ambiental, a crianga passaria ao primado do “periodo da onipoténcia alucinatéria magica”, uma vez que o objeto alucinado estaria efetivamente presente quando necessario, satisfazen- do suas necessidades e realizando seus desejos. Mesmo apés a supe- Tacao desse periodo nés regrediriamos cotidianamente a ele por meio dos sonhos notumos; ja 0 seu equivalente patoldgico - indice de uma fixagao nesse estagio — seria a alucinacio psicotica. Com 0 tempo, 0 “mundo externo” deixaria de atender pronta- mente aos movimentos alucinatérios do bebé que passaria, assim, a tet que efetuar “trabalho motor” no sentido de fornecer indicios de a reivindicages aos cuidadores. fi verdade que desde 0 inicio dese aS motoras acompanhadas do choro eram si ignificadas pela mae by a 1m‘ Mecessidades vitais e atendidas. De acordo com Ferenczi, o infi Cotecao Granprs Psicanatistas ——————S oO idamente aprende a simbolizar por meio de “sinais especializados F espondentes” seus anseios: imitacao dos Movimentos de succao para ser alimentado, sons e contragdes abdominais para ser trocado e, i maneira mais elaborada, apontar com a mao os objetos que cobica, constituindo uma “verdadeira linguagem gestual” capaz de expressar a complexidade cada vez maior dos seus desejos. Adviria, assim, 0 “pe- riodo da onipoténcia com a ajuda de gestos magicos”. Superada essa etapa, sobreviveria no nosso cotidiano a crenca nos gestos supersticio- sos, como a béngao religiosa ou mesmo juntar as maos para rezar; ja no registro da vida social, os rituais corporais - como a danga nas culturas tradicionais ou os trabalhos de feiticaria -, bem como nosso prazer em exibigdes de magia seriam também expressao desse estagio. O equiva- lente patologico desse periodo, por sua vez, seria reconhecivel na “con- versao histérica”, entendida desde Freud como modalidade neurotica de realizagao de desejos. No processo de amadurecimento psiquico, duas forcas contribui- rao para a superagao desse segundo estagio do desenvolvimento do sentido da realidade. De um lado, o recrudescimento das necessida- des e a complexidade dos desejos “cada vez mais ousados [itdlico nos- so]" obrigarao a crianca a submeter-se a novas condigGes para vé-los satisfeitos (ibid., p. 46). De outro, uma “poténcia adversa” — 0 outro, 0 adulto cuidador — poderd nao atendé-la, ou mesmo se opor a ela. Nesse momento se estabeleceria efetivamente a distincao entre o eu e o mun- do externo. Lemos: “Se até entio o ser onipotente podia sentir-se uno com 0 universo que Ihe obedecia e seguia seus sinais, uma discordan- cia dolorosa vai produzir-se pouco a pouco no seio da sua vivéncia”. No entanto, nem mesmo essa objetivagao do mundo “desfaz de chofre todos os vinculos entre 0 eu e 0 ndo-eu” (id.). A crianga recorrera ao estabelecimento das “relagGes simbélicas”, que 4 moda do periodo ani- mista que caracterizou a evolugao da espécie, percebe 0 mundo como Teproducdo da sua corporalidade. Dessa maneira, 0 mesmo gesto que estabelece a distincdo eu/outro, encarrega-se, por meio do pensamento animista, de criar dispositivos capazes de influenciar essas “poténcias Superiores” das quais ela depende para a realizacao dos seus desejos. Emergiria nesse momento o instrumento mais poderoso para in- fluenciar 0 outro e transformar a realidade, a linguagem; “o simbolismo 8estual é substituido.., pelo simbolismo verbal”, escreve Ferenczi (ibid., me a crianga tem acesso ao “periodo dos Pensiea belies origem, Bicos) - Porém, Na concepgao ferencziana, a ine sie " “Imitacao” segundo a qual se reproduz sons e ruidos e se estabe a Danie KurerMann 103 5 5 3 5 = ° 104 Couegao GRANDES Psicanauistas lece uma sequéncia de sons “em estrita relagao associativa com as COisas e processos determinados” (id.). Um caso particular, Pportanto, das Telacées simbélicas provenientes da percepcao da propria corporalidade da crianca, De acordo com Jé Gondar (2017, p. 115), na concepcao ferenczia. na de linguagem como mimesis “vai-se do sensivel para 0 sentido, e nao do significante para o sentido”. A linguagem adquire, assim, uma funcao evocativa com poder de apresentacio do mundo, sinalizando 9 movimento expansivo da subjetividade Para 0 encontro com os objetos significativos. “A palavra”, continua Gondar, “expressa mais do que significa, presentifica mais do que representa” (ibid., p. 119), Em dois ensaios nos quais trata especificamente do processo cons- titutivo das relacdes simbélicas, Ferenczi (1913b,c) reitera sua concep- sao de uma origem corporal da criagao dos simbolos, Inicialmente, 0 psiquismo da crianca se interessaria exclusivamente pelas sensacGes de Satisfagdo e de gozo advindas das suas zonas erdgenas, fungdes de absorgao de alimentos ou de excrecao. Justa dessas experiéncias sua atengio seria atraida para as coi: do mundo que lhe remetem ao corpo erégeno. Lemos: teferentes as mente a partir isas € processos Assim se estabelecem essas relacdes profundas, teira, entre o corpo humano e o mundo dos objetos, a que chamamos relagdes simbélicas. Nesse estagio a crianca s6 vé no mundo repro- ducdes de sua corporalidade e, por outro lado, aprende a figurar por meio do seu corpo toda a diversidade do mundo externo. Assim se manifesta a “sexualizagao do universo”. (1913c, p. 107) persistentes a vida in- Um exemplo oferecido por Ferenczi (id.) é bastante ilustrativo da sua compreensao do poder evocativo da linguagem. Uma crianga de um ano e meio, ao ver 0 Danuibio pela primeira vez, exclama: “Quanto cuspe!”. E evidente 0 jlibilo expresso por essa enunciaciio, que evoca a poténcia criadora do sujeito pulsional, sendo esse o significado do sen- timento de onipoténcia Proposto por Ferenczi como a forca motriz que conduz 0 sujeito do pensamento alucinatério ao gesto magico, e deste a0 emprego da palavra, nao havendo Tupturas traumaticas no process? de aquisigao do sentido de realidade. E interessante Perceber que o embriao dessas formulacées ota na pesquisa acerca da fungao do emprego das palavras obscenas as tem inicio na fase de laténcia. Para Ferenczi (1911a),” 0 entusiasm iit he es : os chistes “” Evidentemente inspirado no livro de Freud (1905b) sobre o Witz, traduzido come e sua relacdo com o inconsciente, elas palavras obscenas residiria no fato de que elas “sao dotadas do ‘oder de provocar no ouvinte 0 retorno regressivo e alucinatério [itdlicos nossos] de imagens mnémicas”; e naquele que as enuncia, de Tesga- tar a intimidade existente entre palavra e ato. Justamente Ppor isso se poderia concluir que as palavras obscenas “possuem caracteristicas que, num estagio mais primitivo do desenvolvimento psiquico, se es- tendiam a todas as palavras”. Ferenczi se refere, assim, a um “carater tangivel (sensorial) que somado a forte tendéncia regressiva, é proprio de todas as palavras” em certo estagio do desenvolvimento (ibid., p. 111-113). Ferenczi aproxima, entao, a dimensao alucinatéria e mesmo re- gressiva das palavras obscenas, bem como a intimidade com a motrici- dade e com o ato que certas palavras tém o dom de evocar, da “lingua matema” (id.). Em outro lugar demonstramos de que maneira a lingua materna remete, também na obra de Freud, a uma palavra encarnada edotada da poténcia expressiva de si e de afetacao do outro (cf. Ku- permann, 2003, Cap. 6). A novidade que Ferenczi nos apresenta, que contém 0 germe de suas maiores intuigées, é a transposicéo para a clinica das formulagées (e mesmo intuicées) freudianas presentes em Os chis- tes e sua relagdo com o inconsciente; algo que, efetivamente, nem Freud nem qualquer outro psicanalista das geragdes subsequentes se dedicou a fazer. Desse modo, a sugestio de Ferenczi (1911a) de que caberia ao Psicanalista “autorizar” explicitamente ao analisando 0 emprego das Palavras interditas surgidas no seu espirito ja apresenta a marca ca- Tacteristica que sua clinica assumiria: para que a associagao livre -e Seus desdobramentos na forma das repetigdes e atuagdes — pudesse efe- ‘Wamente Ocorrer, seria preciso que o psicanalista contribuisse com a ian espaco de fala propicio —esse o sentido do cer ae da ta a le da técnica e do principio de relaxamento. A ren lise se- 153, p eveme eee exercicio para “soltar a lingua’ ic nae in aoe avorecendo a possibilidade do emprego da Pe ef ome iva, da linguagem poiética capaz de criar o sentido re ae Concepcao de “linguagem da ternura” eae Sentada no aan nue tende a confundir ° a ae = “mbrigo no ane erradeiro publicado por Rerenczh Be ay ee “*NVolvimenne 3 lo dos pensamentos e das pelea, ee i “Otizada cai ‘© sentido da realidade, configuran 0 a Paz de sexualizar o universo e criar para si 0 campo a Daniet KurerMann © 105 Por que Ferenczi? ° 106. Covegao GRANDES PSICANALISTAS objetos merecedores dos seus investimentos libidinais. A ling ternura é delicada e sacana, terna e ao mesmo. tempo obscena ra da perversao polimorfa que caracteriza os estagios Pré-ger desenvolvimento da libido. Seu emprego implica 0 Tesgate da rancia” pulsional e da “brincadeira” por intermédio das quais a onipotente evoca objetos que possam servir aos desejos (Ferenczi, 1913b, p. 58). Para Ferenczi, a clinica psicanalitica — es nossa modernidade no qual o sujeito é convocado a Palavra evocativa ~ seria regida pelo princfpio da hospitalidade Para com o infans, aquele que nao sabe falar... fora da linguagem da ternura. Propositos dos seus Pago por exceléncia da ae O fildsofo Jacques Derrida se inspirou no julgamento de Sécrates Para encontrar uma definicéo da “hospitalidade incondicional” para com o estrangeiro. Da sua exposi¢3o nos interessa, sobretudo, 0 modo como define a condicgao de estrangeiro, que se oferece como uma ana- logia reveladora dos desafios do trabalho Proposto pela clinica psica- nalitica. Sécrates, diante do tribunal que iria julga-lo, profere um discurso que revela o niicleo essencial da condicao de “estrangeiro”. O ateniense justifica a inadequagao das suas palavras dizendo aos juizes que se sen- te completamente estrangeiro a linguagem dos tribunais, que s6 a Se expressar na linguagem que habitualmente utiliza na praca publica, onde ensina. Derrida (2003) infere, dessas palavras, a definigao do es- trangeiro como quem nao fala a lingua daqueles aos quais ditige se pedido de abrigo, Justamente, se (...) ele ja falasse a nossa lingua, com tudo o que isso impli en ia compartilhéssemos tudo o que se compartilha com uma ei estrangeiro continuaria sendo um estrangeiro e dir-se-ia, aa 4 15) dele, em asilo e em hospitalidade? E este 0 paradoxo (..) (ibid A discussao estabelecida por Derrida acerca da hospital condigao do estrangeiro pode nos auxiliar a acompanhar " sua leitura de que certos analisandos que apresentavam ee da mento, sintomas psicossomaticos e mesmo tendéncias oat sido héspedes nao bem-vindos na ‘familia, A questéo da host fi assim, expandida do contexto geopolitico - no qual pode

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