NIETZSCHE, CRITICO DA CULTURA
KATIA MURICY
A reflexio sobre a cultura constituiu 0 eixo central do pensamento
de Nietzsche, desde os seus textos juvenis, voltados para a cultura grega
e para as consideragGes estéticas — como 6, exemplarmente, o caso de
Onascimento da tragédia — mas também nos escritos posteriores. Assim
€ que nas anotagdes da primavera-outono de 1887, postumamente
publicadas sob 0 titulo Vontade de poréncia, Nietzsche indica, no
fragmento 462, o problema da cultura como o seu principal interesse.
O termo Kultur nao esgota sua compreensio na tradugao por cultura.
Na verdade, sua complexidade semantica, a aproximagao e a distancia
em relacdo a outros termos alemaes como Zivilisation e Bildung, per-
mitem consideragées definitivamente esclarecedoras da originalidade
da nogdo de cultura em Nietzsche, se comparada ao desenvolvimento
dado ao tema na filosofia moderna.' A-oposi¢dio.classica entre Natur e
Kultur inexiste em Nietzsche. Habitualmente, quando se opée natureza
€ cultura, est4 se opondo natureza ¢ natureza humana. Isto é, existiria
um dominio humano, o da atividade transformadora ou da liberdade, e
0 dominio oposto, da natureza, que € o da passividade e da necessidade. !
No pensamento moderno, as filosofias de Kant e de Rousseau podem
ser indicadas como exemplos de inflexées distintas da oposi¢ao que
remonta & Antigiiidade. Em Kant, o dominio do agir humano, a cultura
entendida como o “reino dos fins” e¢ do dever-ser, embora tenha se
constitufdo pelo desenvolvimento das disposig6es naturais do homem,
inaugura-se pela ruptura da natureza, dom{nio_imutével do ser. Em
Rousseau, a cultura € 0 esforgo racional pelo qual uma verdadeira e boa
natureza humana ser4 resgatada do artificialismo da sociedade dos
Rev. TB, Rio de Janeiro, 143: 55/71, out.-dez., 2000 55h dida como natureza ma. Esta oposig¢ao nao existe Para
jomens, enten Ja, como se sabe, uma moralizagao metaf
Nica a oe ‘eal Nietzsche afirma claramente, como x
a eric em on Escritos péstumos de 1870/1873: Quando se
fala de humanidade, temos a idéia de que ela seria eect ° que
separa e distingue 0 homem da natureza. Mas, na red idade, esta
separagdo ndo existe: as propr iedades naturais & mm die se dig
serem propriamente “humanas ” misturaram-se de modo int issocidvel
Em suas faculdades mais nobres e elevadas, 0 homem é inteiramente
natureza e carregaem sia estranheza deste duplo cardter natural. Suas
atitudes temiveis e que se tomam por inumanas sdo mesmo, talvez, 0
solo fecundo de onde somente pode surgir alguma humanidade, tanto
sob a forma de emogdes como de agdes € obras” 2 :
Para Nietzsche, so os instintos, as pulsdes “que se tomam por inuma-
nas”, que constituem o princfpio irredutivel da cultura. Sendo assim, a
cultura nao € 0 devir humano no sentido de seu progressivo aprimoramento
ou, tampouco, a restauragao de uma verdadeira natureza do homem. Nem
o kantiano dever-ser, nem a recuperagdo rousseauniana do ser degradado,
acultura nao nunca normativa para Nietzsche. Na formulacao tradicional
de uma “‘verdadeira natureza humana” Nietzsche encontra a negagao do
corpo pela espiritualizagio do desejo ou, oque acaba por ser amesma coisa,
a negacio do real na idealizagao de um dever-ser. Quando, em Além do
bem e do mal, propde-se a “retraduzir 0 homem de volta d natureza”,
Nietzsche esté enunciando o objetivo maior de sua reflexdo sobre 4
cultura. Esta proposta complexa indica, em seu sentido mais geral, uma
tentativa de decifrar, na codificacdo metafisica, os rastros de “um terrivel
texto bdsico homo natura” .Se nao existe uma ruptura entre natureza &
cultura, a proposta de uma retradugio do desnaturado homem da metafisica
no texto do homo natura, ou seja, a proposta de uma reconciliagao do
homem com a natureza, poderia parecer contraditéria. No entanto, n40
significa que Nietzsche esteja pretendendo a recuperacao de uma orige™,
isto é, a restauragaio de uma verdadeira natureza humana, modelar para 4
cultura, Ao contrério, o que pretende é desmascarar a mistificago metal
= oe ea eeet eee Tuptura, Retraduzir o homem na natureza sigh
0, na cultura, da dimensao tragica da realidad®,
do que Nietzsche chama de “a in i ir”, i
q jocéncia do devir”, jem
No jogo do acaso e da necessidade. aoe ee
eS
56 i
Rev. TB, Rio de Janeiro, 143: 5/71, out.=lez.. 20%Convivem, na reflexao de Nietzsche, duas concepgées de cultura. Hé, |
por um lado, uma compreensdo critica e negativa de cultura. E a que
denuncia a cultura como a fantasmagoria que encena as ilusdes consola-
doras do “otimismo te6rico”, isto é, a cultura que, em um procedimento
antropomérfico, desnatura o real. Mas h4 também uma compreensdo da
cultura como conciliagaio do homem com a realidade tragica do devir. Em
Aurora, Nietzsche dé um exemplo dessa construgaio fantasmagérica.
Considera como os homens acostumaram-se a crenca na existéncia de dois
dominios: um reino dos fins, da vontade e do agir racional, dotado de
sentido, um mundo dos “andes espertos” e aquele outro, o“ poderoso reino
da grande imbecilidade césmica” , do acaso desprovido de sentido. Este
mundo dos “gigantes imbecis”, 0 reino do imprevisivel e do acaso, cai
sobre a harmonia de nossas vontades ¢ fins. A Providéncia é 0 paradoxo
refinado, a fabula consoladora que os “andes espertos” inventaram para
manter sob controle o seu imenso temor da imbecilidade do acaso. Conso-
la-nos a crenga eficaz de que haveria, inacessfvel a nés, um sentido oculto
na irracionalidade do acaso. Para Nietzsche nao ha senao um reino, o do
acaso eo da necessidade, e o resto sio invengdes humanas: “Aprendamos,
que jd & tempo — no nosso pretenso reino reservado dos fins e da razéo
também reinam os gigantes”.
E interessante como Nietzsche retoma, invertendo-Ihe os termos, 0
argumento de uma astiicia da natureza ou da razdo, presente, em
contextos diversos, em Kant e em Hegel, com 0 objetivo de propor que
os individuos realizariam o propésito racional mesmo quando pensam
agir a partir de seus impulsos ¢ interesses préprios. Em Nietzsche, os
homens sao joguetes nao da razdo mas, ao contrario, da necessidade:
“As mdos de ferro da necessidade que sacodem o corno de dados do
acaso jogam o seu jogo em um tempo infinito: é necessdrio que se
produzam os lances que apenas parecem estar conformes a todos os
raus de finalidade e de racionalidade. Talvez as nossas ages volun-
tdrias e os nossos fins sejam s6 esses lances. Mas somos muito estreitos
€ vaidosos para compreender a nossa extrema limitagdo: isto é, aceitar
que nds préprios sacudimos com mdo de ferro a cornucépia de dados
€ que, mesmo em nossas agées aparentemente as mais intencionais, nao
fazemos outra coisa sendo jogar o jogo da necessidade”
Estes pressupostos de Aurora aparecem no Gaia ciéncia para expli-
Citar um programa filoséfico: “Minha tarefa: a desumanizagdo da
ee
Rev, TB, Rio de Janeiro, 143: 55/71, out.-dez., 2000 57natureza e depois, quando ele houver adquirido opie onli de
‘natureza’, a naturalizagdo do homem”. A desumanizagao da naturezg
consiste em submeter 0 desejo a desordem inumana do devir, Para
impedir que este desejo se sobreponha arealidade, antropomorfizando.
a. Esta submissio - 0 amor fati — junta-se & afirmagao do desejo, isto é,
a afirmaco da vontade de poténcia. Uma tensdo estaria assim na base
da segunda compreensio de cultura, desta vez positiva, encontrada em
Nietzsche: a cultura como esforgo para manter e conciliar 0 desejo com
o trégico. Mas é na distancia da natureza em relagao a si mesma, ou seja,
somente no proprio homem, que se fundam tanto o ideal e a moral,
quanto o amor fati. A cultura € 0 conjunto de procedimentos que a
natureza adota, no homem, para preencher essa dist4ncia. Ela nao é,
portanto, um incondicionado abstrato mas, ao contrério, um empreen-
dimento coletivo, proprio de determinada sociedade, época ou civiliza-
ao. Neste sentido, pode-se dizer que a cultura é a“ moral” — na acep¢ao
nietzschiana — de uma dada coletividade.
O problema da cultura foi formulado por Nietzsche em uma época
refratéria 4 razao especulativa, imbufda de um espirito anti-sistemdtico
¢ hostil a qualquer intelectualismo, semelhante, em suas reagGes, as do
romantismo alemo contra o espfrito da Aufkldrung. Foi 0 momento
filos6fico de valorizagéo da dimensao da Erlebnis, da experiéncia
vivida, do imagindrio e da arte. Quando pensa a cultura, Nietzsche parte,
em seus textos juvenis, desta dimensao sensfvel, tomando como priori-
téria a questo existencial privilegiada por Schopenhauer, o seu “edu-
cador”. Mas a importancia da indagacao sobre o valor da vida ou da
exist€ncia permanece no seu pensamento maduro. Ao rever os trabalhos
de juventude no Tentativa de autocritica, de 1886, Nietzsche reconhece
a importancia do “grande ponto de interrogacao sobre o valor da
existéncia” .” B a partir da perspectiva existencial — inusitada para as
exigéncias da Tazo cientffica —que iré julgar a razio. Eric Blondel
indica a importéncia da proposta: “O gesto espectfico de Nietzsche (...)
mak os bases de sma espécie de revolucao andloga, mas inversa, @
do esprit sobre a vida porumaporspechec tat 0 tdgamente
relevo.avida, pontodepartidairrecud ch es crerios ponham en
asia, ‘cusdvel, para avaliar a prépria razao
0 prdprio esptrito "8 Desde 0s textos juvenis, 6 na perspectiva da vida
que Nietzsche considera a problemética da cultura, Posteriormente, @
58 Rev. TB, Rio de Janeiro, 143: 55/71, out Nietesche. Além do bem e do mal, 230. Si0 Paulo, Cia das Letras,
1997, pp. 137 e138.
“Nietzsche. Aurore, 130, (tomo IV]. Paris, Ed. Gallimard, 1970.
> Ibidem.
° Nietzsche. Le gai savoir, 11, {tomo V]. Patis, fa, Gallimard, 1970.
TNietesche. O nascimento da tragédia. Sio Paulo, Cia das Letras, 1992,
p. 14,
"Bric Blondel. Op. cit, p. 81.
° Nietzsche. Considérations inactuels,[4, 6d]. Pats, Aubier-Montaigne,
(Col. Bilingiie], 1976.
Rev. TB, Rio de Janeiro, 143: 55/71, out.-dez., 2000 69>!
10 si muito esclarecedoras, para analisar estas influ
consideragdes de Charles Andler, em seu classico eg
encias
Studo Nj eh
Gallimard, vols. I, I, TH, Paris, 195g.
sa vie et sa pensée,
' Nietasche. Além do bem e do mal, 8, p. 14, éd. cit.
'2 Nietzsche. Considération inactuelles, I, (1. éd.]. Paris, Aubier-Monia
1976.
3 Ibidem.
'gne,
4o projeto inicial de Nietzsche era o de escrever uma quarentena de
panfletos criticos a atualidade alema, sob o titulo Significativo de
Anzugreifen Teveu, NO entanto, apenas Os quatro que constituem
as Consideragées intempestivas (deixando um quinto esbocado),
Sao eles: “David Strauss, crente e escritor” ; “Da utilidade e dos
inconvenientes da historia para a vida”; “Schopenhauer
educador"; “Richard Wagner em Bayreuth” . Cf. Charles Andler,
op. cit, v. Il.
'5 Nietzsche. Considérations inactuelles, 1,1. ed. cit.
"6 pbidem.
" Nictasche. Considérations inactuelles, I, 2, ed. cit.
'8 Ioidem.
' Nietzsche. Considérations inactuelles, I, 1, ed. cit.
20 Ibidem.
21 Ibidem.
2? Ibidem.
5 Nietzsche. Considérations inactuelles, I, 2, ed. cit.
4 Ihidem, 1, 4.
* Nietzsche. Considérations inactuelles, II, ed. cit.
6 Ver, por exemplo, em Conversas com Eckermann.
7 Alusio ao projeto de Kant da Aujkidrung como a ocasido par 4
emancipagio da humanidade, ou seja, para a conquista de
ee
7
7” Rev. TB, Rio de Janeiro, 143: 55/71, out-de2 7maioridade. Cf. Resposta a pergunta: que é Esclarecimento? em
Immanuel Kant — textos seletos. Sio Paulo, Ed. Vozes, 1985.
28 Nietzsche. Considérations inactuelles, III, ed. cit.
29 Nietzsche. Aurore, 48, ed. cit.
30 Neste sentido, a qualificacdo de empirica e subjetiva, dada por Aléxis
Philonenko, a critica da cultura das Intempestivas, parece-me
problemitica. Ver Nietzsche, le rire et le tragique. Paris, Librairie
Générale Frangaise, 1995, pp. 42 a 66.
31 Bric Blondel. Op. cit., p. 82.
32 Nietzsche. Ecce homo, Sao Paulo, Cia das Letras, 1995, p. 72.
33 Ver sobre a relago corpoe cultura o importante estudo de Eric Blondel
jAcitado (nota 1).
44 Nietzsche. Além do bem e do mal, 230, ed. cit.
Rev. TB, Rio de Janeiro, 143: 55/71, out.-dez., 2000 1