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santanten (0 )memreres Povos indigenas e ensino de Histéria: alein? 1.645/2008 como caminho para a interculturalidade Maria Aparecida Bergamaschi Posso conceber os outros como uma abstragao, como uma instéincia da configuragao psiquica de todo o individuo, como o Outro, outro ou outrem em relagdo a mim. Ou entéo como um grupo social concreto ao qual nés ndo pertencemos. Este grupo, por sua vez, pode estar contido numa so- ciedade: as mulheres para os homens, os ricos para os pobres, os loucos para os “normais”. Ou pode ser exterior a ela, uma outra sociedade que, dependendo do caso, seré préxima ou longinqua: seres que em tudo se aproximam de nés, no plano cultural, moral, historico, ou desconhecido, estrangeiros cujas linguas e costumes ndo compreendo, téo estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a mesma espécie. Tazvetan Todorov 1Nés e eles: nosso olhar para os povos indigenas Para iniciar a reflexéo que envolve “Povos Indigenas” e “Ensino de Historia”, tomo emprestado de Todorov essas palavras que, como epi- grafe do texto, mobilizam questionamentos e preocupacées postas pela lei que institui a obrigatoriedade do estudo da histéria e cultura indigena nas escolas brasileiras de Ensinos Fundamental e Médio.** O historia- dor as escreve na primeira pagina do livro A conquista da América: a questao do outro,” e, a partir delas, me senti instigada a pensar: por que uma lei para obrigar o estudo desses outros, os povos indigenas? Até 224 Trata-se da Lei n. 11.645/2008 de 10 de marco de 2008, que alterou o artigo 26-A da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (que ja havia sido alterada pela lei 10.639/2003), conferindo-Ihe a seguin- te redagao: “nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, ptiblicos e privados, tora-se obrigatério o estudo da histéria e cultura afro-basileira e indigena”. 225 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questao do outro. 2. ed. Sdo Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 3. os 151% = Ensino de Histéria - Desafios Contempordineos que ponto e em que medida os povos indigenas sao outros em relagao a nds? Em meio as intimeras perguntas que a lei n. 11.645/2008 pode susci- tar, escolhi essas para direcionar as ideias postas neste texto, que se assen- ta nas pesquisas que venho realizando junto a escolas de aldeias guaranie kaingang, na ultima década. Sao pesquisas geradoras de muitos questiona- mentos, mas também de convicgSes e crengas que, igualmente, permitem afirmacg6es. Uma primeira afirmagio foi proporcionada pela declaraciio da professora kaingang Andila Nivygsanh Inacio, por ocasiéo da aprovacio da referida lei: a conquista dessa lei é uma dadiva que os povos indigenas ofe- recem as escolas nao indigenas, para que todos os americanos tenham a oportunidade de estudar a sua histéria, a histéria da sua ancestralidade. E aqui ancoro a minha primeira convicgio: 0 outro nao é tao outro assim. Concordo com a intelectual kaingang, porque também entendo que estu- dar a histéria dos povos originarios é estudar a nossa histéria e reconhe- cer as marcas indigenas que fazem mestigo o continente americano, marcas muitas vezes camufladas, “entulhadas” sob uma visdo de branquitude, de pureza, de uma pseudoeuropeidade. Mais do que em outros paises latino- americanos, cuja presenca indigena é contundente, visivel “A flor da pel: predomina no Brasil um desconhecimento, uma desconsideragao dos povos indigenas e, em geral, sua existéncia é reconhecida e admitida na Amaz6nia, ou no Xingu. Quando se fala em indigenas no sul do Brasil, por exemplo, ¢ comum o espanto ou um julgamento, expresso em comentarios como: “es- ses jd nao séo mais indios, esto aculturados”. Reconhego que ha uma ambiguidade ao abordarmos a histéria e a cul- tura indigena: por um lado essa inegavel presenca como uma das matrizes etnoculturais que conforma as sociedades brasileira e americana, mesmo que apagada e silenciada; por outro, sociedades indigenas, com suas espe- cificidades, suas diferencas, suas singularidades. Mas de que especificidade falamos quando nos referimos aos povos indigenas? Conquanto a concep- co de indios que predomina no imaginrio da nossa sociedade é a do que mora na selva (amazénica) ou no Xingu e com uma cultura estatica, quan- do digo aqui “povos indigenas” ou “povos originarios,” estou referindo-me a sociedades reais, que correspondem as mais de 240 etnias que formam os povos indigenas do Brasil. SAo povos com cosmologias proprias, muit deles com suas linguas originais — mais de 180 linguas indigenas em nosso pais. So sociedades com uma dindmica cultural que as transforma, mas que também mantém uma continuidade desde perfodos anteriores & ocupa- co europeia na América. Os prdprios indigenas assim se consideram, conquanto afirmem suas identidades étnicas, que os tornam Kaxinawa, Apurina, Manchineri, Yawa- 0 1522 Parte lll - Questées Etnicas e Ensino de Histéria nawa, Ashenika, Jaminawa, Shawadawa, Kaxarari e Katukina*6 ou Gua- rani, Kaingang e Charrua,*’ ressignificam a denominagio atribuida pelo “branco” quando necessitam afirmar suas lutas enquanto povos originarios: Eu sinto que sou indio Porque meu pai é indio, minha mie é india, Meu avé é indio, minha avo é india, E meus parentes sao todos indios L.1 Somos iguais e diferentes. Diferentes na lingua, jeito e costume. Igual no corpo, na inteligéncia, no respeito.22" Ha que se considerar que é um direito constitucional no Brasil 0 autor- reconhecimento étnico, e, no caso dos povos indigenas, é um reconhecimen- to coletivo, dado pela definigSo técnica das Nacdes Unidas, de 1986, que diz: [...] as comunidades, os povos e as nagies indigenas séio aqueles que, con- tando com uma continuidade histérica das sociedades anteriores a invasio e a colonizacao que foi desenvolvida em seus territérios, consideram a si mes- mos distintos de outros setores da sociedade, e estiio decididos a conservar, a desenvolver ea transmitir As geragOes futuras seus territrios ancestrais ¢ sua identidade étnica, como base de sua existéncia continuada como povos, em conformidade com seus préprios padrdes culturais, as instituiges so- ciais e os sistemas juridicos2” Essas vozes indigenas nao cessam; porém, sao silenciados na e pela Historia. Por isso a lei que institui a obrigatoriedade do estudo da histéria e cultura dos povos indigenas remete também ao Ensino de Histéria essa atribuigao: § 1° O contetido programatico a que se refere este artigo incluiré diversos aspectos da histéria e da cultura que caracterizam a formagao da populagio brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como 0 estudo da historia da Africa e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indigenas no Brasil, a cultura negra e indigena brasileira e o negro e o indio na formagao da socie- 226 Sao poves indigenas do Acre, cujos professores participaram da publicacao Antologia da floresta ~ Literatura selecionada ¢ ilustrada pelos professores indigenas do Acre. 227 Povos indigenas do Rio Grande do Sul. 228 PROFESSORES INDIGENAS DO ACRE, 1997, apud. ALMEIDA, Maria Inés de. Desocidentada: experiéncia literdria em terra indigena, Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009. 229 LUCIANO, Gersem dos Santos. O /ndio Brasileiro: o que vocé precisa saber sobre 0s povos indigenas no Brasil de hoje. Brasilia: Ministério da Educagao, Secretaria de Educagao Continuada, Alfabetizagao e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006, p. 29. 06 15345, Ensino de Histdria- Desafios Contempordreos dade nacional, resgatando as suas contribuigdes nas 4reas social, econdmica e politica, pertinentes & Histéria do Brasil. § 2° Os contetidos referentes a histéria e cultura afro-brasileira e dos pov indigenas brasileiros serio ministrados no Ambito de todo o curriculo esco- lar, em especial nas reas de educaco artistica e de literatura e historia brasileiras.*° Sabemos da histéria que justifica a necessidade dessa lei, uma Histd- ria que, no seu ensino, materializou praticas pedagégicas desconhecedoras das diferengas significativas na vida das pessoas e dos grupos e criaram uma ideia de “que uns so mais iguais que os outros” e, portanto séo mais olhados, sao mais visiveis. Em relacSo aos povos indigenas predomina um incdmodo siléncio acerca do qual Orlandi? afirma a sua eficdcia: “é claro que esse siléncio, uma vez estabelecido, volta sobre o mundo com toda a sua violéncia”. Reconhece a autora que, partindo do apagamento, o passo seguinte é o exterm{nio: “desde o assassinato puro e simples até a exclusio do indio da discussdo de problemas que o afetam diretamente”. Vemos na escola uma sistematica de silenciamento, uma sistematica de entulhamento que, de antemAo, justifica uma lei que institui a obrigatoriedade do estudo na perspectiva de mostrar esses povos que resistem a investidas violentas de colonizag&o que perduram por mais de cinco séculos. Nesse sentido, podemos pensar no papel que a escrita da Histéria e seu ensino tém assumido, e, a partir disso, compreender o silenciamento, o “en- tulhamento” a que esse tema foi relegado. Heidegger** anuncia a necessida- de de um “mostrar-se” para que algo exista enquanto um “fendmeno”. Sob o olhar que se tem como parametro uma concepgiio “idealizada” de indio, produz-se um encobrimento, uma negacao de sua existéncia, um nao ver: “o fendmeno, o mostrar-se em si mesmo, significa um modo privilegiado de encontro”. Se o indio é visto como o preguigoso, como quem nao usa a terra corretamente ou tem terra demais, que é mendigo, que nao produz de acordo com a ordem social dominante, nao existem condigdes favoraveis para o “encontro privilegiado” que permite o “mostrar-se”. Penso que aqui se encontram muitas situa¢ées, inclusive as narrativas histéricas e as situa- Ges de ensino de Histéria, contribuindo para um “encobrimento”, um nao existir para os povos indigenas. Heidegger? diz que “um fendmeno pode-se manter encoberto por nunca ter sido descoberto”. Nao é 0 caso dos povos indigenas em relagaio 230 BRASIL, Lei n. 11.645 de 10 de margo de 2008. (Grifo nosso). 231 ORLANDI, Eni Puccinelli, Terra a vista: discurso do confronto: velho e novo mundo. 2. ed. Campi- nas, SP: Ed. UNICAMP, 2008. p. 69. 232 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte |, 12. ed. Petropolis, RU: Vozes, 2002, p. 59. 233 Idem, p. 67. of 1544 Parte Il - Questées Etnicas e Ensino de Historia a escola, pois é um tema que figura nos curriculos escolares. Penso que a explicaco mais adequada esta na fala que da continuidade a explicac&o do autor, quando diz que um fenémeno pode estar entulhado: “este encobri- mento na forma de ‘desfiguragao’ é 0 mais frequente e o mais perigoso, pois as possibilidades de engano e desorientagées sao particularmente severas e persistentes”. Em geral, as quest6es que envolvem a histéria dos povos indigenas na escola passam por silenciamentos, encobrimentos e, principal- mente, desfiguracdes, como, por exemplo, a ligdo que encontramos no Atlas Geografico Curso Elementar para uso das escolas, um manual de ensino usado nas escolas primarias da época e que, no ano de 1923, jé estava em sua 82 edigdo:*4 Todos os povos da Terra oferecem o mesmo aspecto fisico? Nao; por isso, dividem-se em quatro racas principais que so: 1° a raga branea [...]; 2° a raga amarela [...]; 3° a raga [...]; 4° a Taga americana ou vermelha [...]. Como se dividem os povos no que diz respeito & civilizago? Dividem-se em trés classes: civilizados, barbaros e selvagens. Quem s&o os povos civilizados? Povos civilizados so os que possuem leis, cultivam as ciéncias e as artes, praticam o comércio e procuram, por meios louvaveis, satisfazer suas facul- dades intelectuais e Morais. [...] Como vivem os poves selvagens? Os povos selvagens vivem em deplordvel estado de degradacio; possuem sé ideias confusas de religiio, desconhecem os vinculos sociais e, as vezes, devoram os prisioneiros que fazem nas suas incessantes guerras. Creio que essa “ligdo” fala por sie contribui para elucidar a mentalidade que foi sendo construfda nas escolas em relagiio aos povos originarios e que contribuiu para criar e acentuar relagGes étnicas preconceituosas e discrimi- nadoras, e um predominio quase absoluto de uma concepgdo eurodescen- dente, branca e crista. Quantas geragdes se formaram estudando nesse livro ou em outros, que veiculavam contetidos similares? Quantos educadores aprenderam que raga branca tem “inteligéncia muito desenvolvida” e que a sua civilizacio é a mais adiantada? O quanto a ideia de “povos selvagens que vivem em deploravel estado de degradagio” marcou geragées de estu- dantes? Buscando outros exemplos na Histéria e, principalmente, nos livros di- icos que formaram geragées de jovens no Brasil, nao vamos muito longe do que ja foi anunciado aqui. Em recente estudo empreendido na literatura 234 O documento aqui referido faz parte de um conjunto de obras de literatura escolar analisadas no perfodo de pés-doutorado na UNICAMP, em conjunto com a professora Dr’. Ernesta Zamboni, cujo resultado constara na publicagao sobre livro didatico organizada pela professora Dr’, Maria Carolina B. Galzerani, pela Editora Contexto. 089 1558 Ensino de Historia - Desafios Contemporaneos escolar da primeira metade do século XX, Zamboni e Bergamaschi**s cons- tataram que ainda ha na escola e no material didatico que nela circula, a predominancia das ideias de: a) indio genérico, em que a pluralidade das identidades étnicas fica completamente apagada; b) indio exético, barbaro, apresentado por diferencas em sinais diacriti- cos muito especificos e descontextualizados culturalmente; c) indio romantico, vinculada a ideia do bom selvagem, apresentado, sempre no passado, como uma figura ambigua, de herdi e perdedor; d) indio fugaz, que anuncia um fim inexoravel, seja pelo exterminio fi- sico ou por processos de assimilagao a sociedade nacional e, por fim, ) indio histérico, concepc&o mais recente que enfatiza a historicidade, a dinamica cultural das sociedades indigenas. Estas constatagdes evidenciam um predominio, quase que absoluto, de parametros baseados no modelo civilizatério da sociedade europeia. 2 Eles, barbaros; nés, civilizados? Civilizagao é um termo que adquiriu contornos mais definidos na Euro- paa partir do século XVII, aproximando-se de uma moral crist& e compon- do um conjunto de valores para ser ensinado as criangas e aos jovens, espe- cialmente na escola. Expressa o lugar da pessoa distinta nas novas relagdes sociais que se configurou na sociedade da modernidade europeia, em geral vinculado a corte, em contraposigdo ao homem simples, que, na sua forma mais extrema, assume o lugar do selvagem, imagem também identificada com o indigena. De forma mais geral, podemos deduzir que o sentimento de civilizagao predominante no Ocidente nos iltimos trés séculos parte de uma autoimagem de superioridade diante das demais sociedades. Esse sen- timento tem correspondéncia em alguns setores das elites nao europeias, como no caso brasileiro, em que a perspectiva de progresso, de desenvolvi- mento, se colocou na esteira do processo civilizatério europeu. Nesse mo- delo de civilizaco nao cabe o indio, nao cabe o negro e nao cabe o mestico, referéncias que as elites, de distintas formas, quiseram apagar, encobrir, entulhar, deformar, tanto na histéria, como na escola. 235 ZAMBONI, Emesta; BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Povos indigenas e ensino de historia: meméria, movimento e educagao. In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL, 17., 2009, Campinas. Anais... Campinas, SP: ALB, 2009. Dispontvel em: . Acesso em: 8 dez. 2009, ISSN: 2175-0939. os 1564 Parte Til - Questies Etnicas e Ensino de Histéria Esse movimento torna-se forte no Brasil, principalmente na primeira metade do século XX, em que despontam praticas explicitas de “branque- amento” da nago, por meio de incentivos 4 imigracao europeia e de uma perspectiva eugenista que incentivava a integrag&o dos povos indigenas na sociedade nacional. Lévi-Strauss, em Tristes Trépicos** narra seu espan- to diante da declaragio do embaixador brasileiro em Paris, no ano de 1934, quando da vinda do etndlogo para o Brasil: “Indios? Infelizmente, prezado cavalheiro, la se vao anos que desapareceram. [...] Como sociélogo, o senhor vai descobrir no Brasil coisas apaixonantes, mas nos indios, nao pense mais, nao encontrara nem um tnico”. O autor mostra seu espanto diante da decla- rag&o, que revela o “horror a qualquer alusao aos indigenas” por parte das elites brasileiras, que, no maximo, admitiam uma bisavé india que marcara “uma fisionomia imperceptivelmente exdtica”. A declaragiio do embaixador nao representava 0 pensamento hegeménico da intelectualidade brasileira da época, pois importantes trabalhos, como, por exemplo, Casa Grande & Sen- zala, obra publicada por Gilberto Freyre em dezembro de 1933, evidencia o Brasil como nag&o derivada do “hibridismo etnocultural” que constitui nao apenas uma caracteristica, mas uma vantagem da sociedade brasileira, com presengas africana e indigena marcantes. Porém, par e passo com a moderni- dade capitalista que se instalava no pais, o esforgo das elites para implemen- tar um “processo civilizador” a exemplo das sociedades europeias apostou na transformacio do “primitivo” e na sua integracdo na sociedade nacional. A propria origem da palavra remete a reflex4o: civil, civilidade, civiliza- ¢do, civilizar, civico, palavras cuja conotac&o inscreve 0 conceito no espago ptblico da sociedade dos cidadios, demarcando um distanciamento hie- rarquico do homem das sociedades primitivas: os indigenas ¢ os africanos. Chartier**” explica que a ideia de civilizac4o esta intimamente ligada “a uma heranga cultural que une as nagées ocidentais 4 Historia da Grécia Antiga, primeira civilizadora”, reforgando também a nogio de que esse conceito, em geral, se contrapée ao de barbarie, criando e reforcando a dicotomia: izado X barbaro. Ser civilizado passou a significar polidez, honestidade, urbanidade e boa educagao, aquilo que, supostamente, convém a todos. Nessa perspectiva é possivel também compreender os motivos que fize- ram a escola nomear a barbarie a partir de uma concepcio de civilizado ea escolher o seu curriculo, cujo ensino se apoia em saberes, conhecimentos e valores ocidentais, do “berco da civilizagdo”, que todos nés aprendemos na escola, ao estudar, como ancestralidade tinica, a Historia da Grécia Antiga. 236 LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes trdpicos. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 46. 237 CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na Franga do Antigo Regime. Sao Paulo: Ed. UNESP, 2004, p. 46. 0$ 157% Ensino de Histdria - Desafios Contemporiineos “Conhecer as origens da Grécia antiga, desde seus fundadores, constitui-se num roteiro obrigatério para compreensao das transformagGes registradas ao longo do tempo’, ou ainda “A Grécia foi o bergo da Filosofia, da Histéria e de varias ciéncias naturais, as quais foram incorporadas pelos grupos so- ciais dessa sociedade”, costuma dizer 0 livro didatico, como se nao houvesse possibilidade para outro bergo, para outra filosofia, para outra histéria. Os saberes, os conhecimentos e os valores que dizem respeito a ancestralidade africana e a indigena ficaram relegados, apagados, entulhados, pois contra- dizem a ideia de civilidade que a escola ensina. Outro apagamento que é importante frisar diz respeito a pluralidade ét- nica que compe o conjunto dos povos originarios e que nao considera a di- versidade linguistica e cultural composta, no Brasil, por mais de 200 povos. Um primeiro equivoco, decorrente de um erro geografico que data da chega- da dos europeus na passagem do século XV para 0 século XVI, colocou sob o rétulo “indios” a diversidade etnocultural da terra dos mil povos, como diz Jacupé.** Com o passar dos séculos, essa ideia se cristalizou e assumiu uma naturalidade dificil de ser desconstruida, pois a escola, a cada ano, a re- forga, em geral, com rituais vazios de significado. Particularmente, na data escolhida para celebrar os povos indigenas, que na escola ficou reduzida ao “Dia do indio”,s° ainda hé o predominio de atividades descontextualizas e redutoras do profundo significada da histéria e da cultura de cada um des- ses povos. Alias, os povos indigenas figuram no curriculo escolar em poucas ocasides: nas comemoragGes citadas, ligadas ao dia do indio; nas aulas de Histéria do Brasil e do Rio Grande do Sul que abordam o periodo colonial e as redugGes jesuiticas. Todas essas acdes, somadas ao escandaloso siléncio, reforgam a ideia dos indigenas como povos do passado, negando-lhe a con- temporaneidade e a propria historicidade. Na atualidade, observamos a voz dos povos origindrios, ressignifican- do inclusive a expressao “indios”. As mais de duas centenas de etnias que vivem no Brasil defendem a ideia de “povos indigenas”, contraposigao 4 so- ciedade nacional. 288 JACUPE, Kaka Wera. A terra dos mil povos: historia indigena do Brasil contada por um indio. Sao Paulo: Peirépolis, 1998. 289 No | Congresso Indigenista Internacional, realizado na cidade de Patzcuaro, México em 1940, além de outras deliberagées importantes para a organiza¢ao dos povos indigenas de todo o mundo, {oi instituido 0 Dia do Indio, data referéncia para organizago e celebragdo dos povos indigenas que acalentam sonhos de uma vida melhor para todos que habitam a mae-terra. O governo brasileiro S6 acatou as decisdes desse Congresso em 1943, quando o presidente Getulio Vargas, por meio do Decreto-Lei n. 5.540, de 02 de Junho de 1943, adotou a data de 19 de abril como 0 “Dia do in- dio”. Uma reflexao mais aprofundada sobre as implicagGes do “dia do indio” na escola encontra-se em BERGAMASCHI, Maria Aparecida; PETERSEN, Ana Maria; SANTOS, Simone Valdete. Semana Indigena: agdes e reflexdes intercuiturais na formacao de professores. In. BERGAMASCHI, Maria Aparecida (Org.). Povos Indigenas & Educacdo. Porto Alegre: Mediacao, 2008. p. 143-155, 0S 15825 Parte I - Questdes Etnicas e Ensino de Historia 3 Lei 1.645/2008: caminho para construcao de um patriménio de interculturalidade? Institucionalmente, a criagdo e implementac&o da lei se inscreve na perspectiva das discussées e reflexdes acerca da diversidade etnocultural, inserida nas agdes do Ministério da Educagio a partir da Constituic¢&o Fede- tal de 1988. Uma anilise interessante dos discursos democraticos do MEC nas tltimas décadas que, ao mesmo tempo em que possibilita a “dissondn- cia”, normatiza, foi elaborada por Venera. Diz a autora: “os PCNs incen- tivam a incluso das diferengas e fazem delas a composigao da diversidade. A unificagao que o Estado brasileiro precisa, ganhou o nome diversida- de. Parece contraditério, mas no é: a diversidade é heterogeneidade fei- ta homogénea”.*" E, conquanto a diversidade proposta pelo Ministério da Educagio seja um discurso que homogeneiza, sob essa perspectiva, tém-se desenvolvido programas que até ent3o eram impensados pelo Estado, como as Escolas Indigenas Especificas e Diferenciadas, situac3o que evidencia a ambiguidade do momento vivido. A dissonancia, expresso da desordem criadora, é acompanhada pela norma que a institucionaliza e controla o mo- vimento numa aparente ordem institucional. Balandier** anuncia: “trata-se agora de produzir uma descrigio diferente do mundo, em que a ideia de movimento e de ‘suas flutuagoes prevalece sobre a das estruturas, das organizacées, das permanéncias”, usando a relagiio ordem — desordem como constitufda e constituinte do movimento; e, nesse sentido, as dissonancias, como desordem criadora de consondncias, uma nova ordem, representada pela lei. Nesse sentido, é importante considerar que 0 dispositi- vo legal que regulamenta a obrigatoriedade do estudo da histéria e da cultura indigenas na escola, na medida em que ordena e controla o movimento, tam- bém revela as conquistas dos povos indigenas em nivel nacional e internacio- nal, como se vislumbra na fala jé citada da professora kaingang. Também nesse Tumo, pode-se ler, na Convencio 169/1989 da Organizacao Internacional do Trabalho — OIT,*# entre tantos artigos e paragrafos que abordam as relagdes entre povos indigenas e nao indigenas, em especial 0 artigo 31, que diz: 240 VENERA, Raquel Alvarenga Sena. A construgdo da subjetividade cidadé, um jazz possivelt Consonancia ¢ dissonancia nas andlises dos discursos democréticos educacionais brasiieiros, Im- Plicagdes no ensino de histéria. 2009. Tese (Doutorado em Educagéio) - Faculdade de Educagao, UNICAMP, Campinas. 241 idem, p.95. 242 BALANDIER, Georges. A desordom: elogio ao movimento. Rio de Janelro: Bertrand Brasil, 1997, p. 10. 243 No Brasil, a Convengao n¢ 169 da Organizagao Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indigenas e Tribais foi promulgada pelo Decreto n. 5.051 de 19 de abril de 2004, of 1592p Ensino de Historia - Desafios Contemporaneos Medidas de cardter educativo deverdo ser adotadas em todos os segmentos da comunidade nacional, especialmente naqueles que estiverem em contato mais direto com esses povos indigenas ou tribais, com o objetivo de elimi- nar preconceitos que possam ter com relagio a eles. Para esse fim, esforgos deverdo ser envidados para assegurar que livros de Histéria e demais mate- riais didéticos oferegam descrigéo correta, exata ¢ instrutiva das sociedades e culturas dos povos indigenas e tribais. Colocando a perspectiva do estudo da histéria e cultura dos povos indi- genas, a lei interpela as sociedades nao indigenas para a construgao de um patriménio de interculturalidade, movimento que acreditamos muito forte nas sociedades indigenas. Canclini?#* reconhece que os povos originarios siio hoje os melhor preparados para exercé-la: Nao é pouca coisa este patriménio de interculturalidade numa época em que a expansao busca uniformizar o design de tantos produtos e subordi- nar os diferentes padrées internacionais; quando, por exemplo, a maioria dos estadosunidenses nao sente necessidade de saber nada além do inglés, conhecer sua propria historia e s6 imaginar com seu cinema e sua televisio. Os povos indigenas tém a vantagem de conhecer pelo menos duas Iinguas, articular recursos tradicionais e modernos, combinar o trabalho pago com © comunitério, a reciprocidade com a concorréncia mercantil. Nessa perspectiva, as escolas indigenas constituem um exemplo para o dialogo intercultural, pois também se ocupam de ensinar a lingua portugue- sa e muitos conhecimentos que compée o que chamam “o sistema do bran- co”. Pessoas guarani, perguntadas sobre para que querem escola em suas aldeias, elaboram respostas nos indicam que é para conhecer melhor a so- ciedade nao indigena, o jurud-reko.** A escola foi historicamente um brago da colonizagio entre os povos originarios. Quem j4 nao estudou as praticas catequizadoras dos missionarios curopeus no Brasil? Por mais de quatro séculos predominou uma escola imposta aos indigenas por meio de projetos colonizadores. Essa escola tinha, entre suas Diretrizes, a cristianizagdo dos povos origindrios e, posteriormente, sua integragao 4 suposta comunidade nacional, contribuindo sobremaneira para o enfraquecimento e a extingao de centenas de etnias. No entanto, movimentos mais recentes mudaram a 244 CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Ed. UFRI 2007. p. 69. 245 Na lingua guarani, jurud significa pessoa ou sociedade nao indigena; reko significa modo c= vida, sistema de saberes, conhecimentos e valores. O tema escola e sistema educacional do pov Guarani encontra-se aprofundado nesta obra: MENEZES, Ana Luiza Teixeira de; BERGAMASCH Maria Aparecida, Educagao amerindia: a danga e a escola Guarani, Santa Cruz do Sul: EDUNISC 2009. 0 1602) Parte M - Questies Etnicas e Ensino de Historia diregao da educagio escolar desses povos, e liderangas indigenas passaram a ter uma participagio mais ativa na politica nacional, intervindo principal- mente na legislacdo. Desde a tiltima Constituigéo Nacional (1988), seguida de outras leis educacionais, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educagao Nacional (1996), o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indi- genas (1998), entre outros pareceres e resolucdes do Conselho Federal de Educagao, tém assegurado legalmente a valorizagao das identidades etno- culturais também por meio dos processos de escolarizagao. “Guarani aprende fora [da aula], mas a escola é para fazer compras, ir 4 cidade, vender artesanato” declarou Dario Tupa, uma lideranga tradicional da Tekoa Jatai'ty — Cantagalo, RS.*° Sao palavras reveladoras do lugar da escola em sua aldeia, ideia compartilhada por outras aldeias guarani que, ao representarem a escola, descrevem-na como um espac¢o da interface entre duas concepgées de mundo e, portanto, como ponto de encontro das socie- dades indigena e nao indigena. Falando sobre esse assunto, Horacio Lopes, um importante Karai**7 da Tekod Guapo’y Pora — Torres, RS, declarou: “se guarani vivesse longe, uns cinco quilémetros dentro do mato, no precisava de escola. Quando tinha fome pegava bicho no mato, botava mondéu, caga- va. Vivendo na estrada, indio tem que saber se virar, tem que ter escola”.#* A fala de Seu Horacio também revela a escola como uma necessidade do contato, da aproximaciio do mundo indigena com 0 mundo ndo indigena. Um professor guarani, que atuou na Escola Indigena Anhetengua, da aldeia do mesmo nome,” fez um desenho para representar o lugar da escola na sua sociedade: reunido com as pessoas da sua comunidade no espago que era destinado 4 escola, dividiu o quadro ao meio, num dos lados representou o mundo guarani, e no outro, o mundo jurué,?5° um em oposicao ao outro, porém com uma zona de fronteira comunicavel. Sobre a linha diviséria, desenhou o sol — que é para todos ~ e a escola da aldeia, que é uma instituigéio de contato, de comunicagiio, a interface entre os dois mundos, indigena e nao-indigena, possibilidade de influén- cia mttua entre as sociedades, especialmente num mundo de crescente interdependéncia. Aescola abre uma passagem entre a aldeia e o mundo dos brancos, e ela propria aparece “mestiga”, metade indigena e metade ocidental, se conside- 246 BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Niembo’e! Enquanto o encanto permanece: Processos & praticas de escolarizagdo nas aldeias Guarani. 2005. Tese (Doutorado em Educacao) — Programa de Pés-Graduagao em Educagao, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 247 Karai 6 0 chefe espiritual na sociedade guarani. E também considerado educador na comunidade. 248 Idem, p. 49. 249 Esta aldeia Guarani situa-se na Lomba do Pinheiro, municipio de Porto Alegre, local onde fun- ciona a Escola Estadual Indigena de Ensino Fundamental Anhetengua. 250 Esta é a palavra do idioma quarani que significa pessoa ndo indigena. o 1614 Ensino de Histdria- Desafios Contemporineos rarmos as caracteristicas fisicas atribufdas ao prédio escolar. Na representa- co do professor guarani, o mundo indigena aparece ilustrado por elementos que s&o proclamados como valores tradicionais: uma natureza idealizada, com animais pequenos que, antigamente, eram cacados no mato, mas ainda perduram na meméria coletiva. No mundo guarani existem rios e peixes, mas a imagem central e que materializa sua forte presenga é a Opy, casa tradicional de reza, presente em todas as aldeias guaranis. Por outro lado, enxergam e representam o mundo dos brancos como o mundo da devasta- 40, o mundo do concreto, o mundo dos animais grandes, que contribuem para a destruicdo da mata e da natureza em geral. A escola, desenhada na linha de intersec¢ao, liga os dois mundo e, segundo intelectuais guaranis, é um espaco de circulac&o de duas culturas. Se considerarmos a escola na aldeia como encontro, como interface para a interacdo e a comunicaco entre os dois mundos, como regidio de fronteira, a escola significa o didlogo, possibilita a troca, permitindo, tam- bém, que se conhega e se valorize mais o mundo indigena. Entretanto, essa porta nao contém um filtro que regula o que é bom e o que é ruim. Saber ler é uma forga que potencializa as aldeias indigenas frente aos brancos; porém, é também um caminho para mostrar outras possibilidades de vida fora da aldeia. E ainda recorrente a descrig&io da escola como possibilitado- ra de uma vida melhor aos seus filhos, para as proximas gerag6es, atributo inferido por algumas pessoas mais velhas. O que fica patente para meu olhar é que pessoas indigenas de meia idade, com filhos jovens e criancas, est&o percebendo a importancia de conhecerem 0 mundo nfo indigena, com o qual estdo em contato constante. Necessitam com ele dialogar; portanto, almejam uma situacao mais simétrica ao mostrarem-se conhecedores do sistema dos brancos nas situagGes de contato.’5* Ao construfrem significados para a escola na aldeia, também a colocam como um espaco de dialogo, para nela realizar aprendizagens do mundo nao indigena. Todos os adultos referem-se as suas dificuldades de comunicagac e de entendimento do “sistema dos brancos”, e, para realizar esse possivel didlogo, sabem que precisam afirmar a sua cosmologia, necessitam forta- lecer-se etnicamente e marcar constantemente suas diferengas, na mesma medida que necessitam apreender-nos. O didlogo intercultural que apontam esta ainda muito distanciado da escola, visto que as afirmagées ocidentais que se produzem nessa instituigao destoam dos valores indigenas, até porque, como coletivo de uma socieda- de, estamos muito longe de compreendé-los. Em geral, no existe na socie- 251 Um trabalho mais intenso e que aprofunda os significados atribuldos & escola pelos guarani encontra-se em BERGAMASCHI, 2005. — oS 162% - — Parte Ni - Questies Etnicas e Ensino de Histivia dade ocidental uma curiosidade que justifique a aproximago, a vontade de conhecer profundamente esse outro. Um exemplo disso é 0 modo como a tematica indigena é tratada na maioria de nossas escolas, em que os povos origindrios, nossos contemporaneos, sao tratados como povos do passado, “que viviam em ocas, que cagavam e pescavam, que andavam nus”. Ou en- tio, vistos nas cidades, em interacao com as sociedades envolventes, ja nao considerados como grupos etnoculturais, como se suas culturas nao fossem {do dinamicas — como outras tantas — e, com isso, passiveis de transforma- cio; contudo, mantendo-se indigenas. Que patriménio de interculturalida- de para dialogar com os povos indigenas a sociedade nfo indigena construiu a partir das suas escolas? 4, Que movimentos pode-se esperar da escola nao-indigena a partir da Lei 1.645 Se, por um lado, alei que instituia obrigatoriedade do estudo da histéria e da cultura indigenas nos inquieta, também nos acalenta a ideia de um di- Alogo etnocultural respeitoso, cuja condic&o pasica é o reconhecimento dos povos originarios como interlocutores legitimos, embasando a interagao no respeito aos seus conhecimentos e saberes, considerando sua histéria, sua cultura e os modos préprios de viver. E, nesse sentido, é importante consi- derar 0 que professores, liderangas e intelectuais indigenas tém a dizer-nos arespeito da implantacao da referida lei. O professor guarani Vhera Poty, ao ser perguntado sobre as possibilidades de implantaciio da lei 11.645/2008, falou que “primeiro, os professores nao indigenas precisam ser sensibili- zados pelo tema”. Contudo, relatando experiéncias vividas em escolas nao indigenas sensiveis 4 tematica, testemunham que s6 isso nao basta. Entéo Vhera diz que “em segundo lugar, os professores precisam conhecer de fato e profundamente a histéria e a cultura indigena”. Mas, qual Histéria ensi- nar? A historia dos povos indigenas escrita por historiadores nao indigenas? Vhera entdo explica que, para ensinar a “verdadeira histéria” dos povos ori- gindrios, os professores nao indigenas tém que deixar o préprio indigena contar a sua histéria, ou seja, reconhecer que os diferentes povos indigenas precisam elaborar ¢ ensinar a sua historia. Penso que esse ¢ 0 movimento: reconhecer que precisamos apreender ahistoria dos povos indigenas e debrugar-nos sobre ela, considerando a ne- cessidade das suas vozes, escrevendo e contando suas histérias. E, embora nao tenhamos construido um patriménio de interculturalidade, assim como descreveu Canclini, observando as possibilidades de trazer a tematica para 0$ 1634 Ensino de Historia - Desafios Contemporaneos o seio da escola nao indigena e trata-la com respeito e dignidade, torna-se importante considerar alguns aspectos que enumero aqui. Em primeiro lugar, considerar 0 passado dos povos indigenas, e nao os povos indigenas do passado. Estudar suas historias inseridas nos processos hist6ricos que explicam a formac&o da sociedade brasileira em sua comple- xidade. Abandonar a perspectiva pontual que silencia, apaga esses povos por longos periodos da Histéria e, em geral, desconhece a contemporanei- dade, a existéncia amerindia atual. Como segundo ponto, considerar os povos indigenas nossos contem- poraneos, postura que leva em conta a dindmica cultural comum a todos os grupos humanos e reconhece a presenga indigena em varios setores da sociedade: “o indio de hoje preserva suas tradigdes, mas também 6 capaz de se adaptar a novas maneiras de viver: ele estuda, trabalha, faz faculdade, habita em aldeias, cidades, trabalha na roca, no comércio. Muitos sao advo- gados, médicos, agrénomos, pedagogos, antropdlogos ete. Um terceiro aspecto é ter presente a diversidade etnocultural, aliada a outros aspectos da diversidade, como, por exemplo, o periodo e a forma de contato com a sociedade nacional, sua populagao atual, territério, entre outros. Maher?s* destaca as diferencas que constituem as mais de 200 et- nias indigenas e 180 idiomas, porém, evidencia que no s&o apenas essas as diferengas que precisamos considerar ao estudar a histéria e a cultura dos povos amerindios. Ha diferengas populacionais consideraveis, diz a autora, elencando povos que se constituem com uma populagio aproximada a 40 mil pessoas, e outras, com menos de 100. Ha também diferencas advindas do tempo e do tipo de contato com a chamada “sociedade nacional”: algu- mas sociedades indigenas interagem com sociedades n&o indigenas ha mais de 500 anos, enquanto outras tém contato recente, de pouco mais de 30 anos, como por exemplo, 0 povo waiapi. A dimensao das terras indigenas também impdem diferengas significativas no modo de vida das sociedades originarias. E por fim, um dos aspectos mais importantes a considerar: a voz dos proprios indigenas contando sua histéria e seu modo de vida. As publi- cacées produzidas hoje por intelectuais e professores indigenas oferecem possibilidades singulares para estudo na escola ¢ a relativa quantidade de publicagées de escritores indigenas no Brasil, produzidas na atualidade por 252 Entrevista a revista Dimensdo, maio/jun, 2008. Disponivel em: . Acesso em: 08 dez. 2009. 253 MAHER, Teresinha Machado. Formacao de professores indigenas: uma discussdo introdutoria. In. GRUPIONI, Luis Donisete Benzi (Org.). Formacdo de professores ind{genas: tepensando tra- jetérias. Brasilia: MEC; SECAD, 2006. p. 11-37. 08 16424 — Parte Il - Questes Etnicas e Ensino de Histévia dezenas de etnias, constituem um movimento que Almeida e Queiroz*5 denominam de “eclosio de uma literatura indigena”. Segundo as autoras, trata-se de um movimento intencional, em que intelectuais e professores indigenas, com a colaborac&o de nao indigenas, tém publicado suas produ- Ges literarias com 0 intuito de redirecionar 0 olhar para os conhecimentos e saberes dos povos origindrios, na perspectiva de mudar as imagens de povos indigenas até ent&o vigentes, geradoras de preconceitos e discriminagées. Autores como Daniel Munduruku, Kaka Wera Jakupé, e principalmente a autoria coletiva de professores e intelectuais de diferentes etnias oferecem a sociedade nao indigena a possibilidade de conhecer a histéria, a cultura ea tradicg&o de muitos povos originarios. Para a cultura Guarani, 0 ato de nomeacio é a manifestagdo da parte céu de um ser na terra. O céu é 0 mundo espiritual, a raiz de todos nés. A terra éa contraparte material do espfrito. Essa cultura se fundamenta em uma tradi- cde que vem desde quando a noite nao existia, chamada “Arandu Arakuaa”, que se pode traduzir como “A sabedoria dos ciclos do céu”, ou “O saber do movimento do universo” [...]. O indio mais antigo dessa terra hoje chamada Brasil se autodenomina Tupy, que na lingua sagrada, significa: tu = som, ba- rulho; py = pé, assento; ou seja, o som-de-pé, o som-assentado, o entonado. De modo que indio é uma qualidade de espfrito posta em uma harmonia de forma*®. Assim comeca 0 livro A terra dos mil povos: histéria indigena do Bra- sil contada por um indio, em que Jacupé fala da tradic¢ao de seu povo, dos ensinamentos que recebeu, da relagdo que mantém com a Mae-Terra, entre outros preceitos que conformam o nhande-reko.**° Diz o autor que “o nome ‘indio’ veio trazido pelos ventos dos mares do século XVI, mas 0 espirito ‘indio’ habitava o Brasil mesmo antes do tempo existir”, expressando 0 seu entendimento da Histéria. Durante muito tempo as narrativas indigenas foram consideradas folclore, ou ent&o como mitos que nao se adéquam ao conhecimento histérico construfdo cientificamente. Conquanto ainda pese esse axioma, vemos com maior forca outros entendimentos da Historia, e da propria ciéncia, em que a pluralidade se interpde ao pensamento tnico. Historiadores importantes, como por exemplo, Michel de Certeau,*” afir- mam que o tempo presente nos impée a necessidade de pensar “a cultura 254 ALMEIDA, Maria Inés de; QUIROZ, Sénia. Na captura da voz: as edigdes da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: Auténtica, 2004. 255 JACUPE, Kaka Wera. A terra dos mil povos: historia indigena do Brasil contada por um indio. Sao Paulo: Peirépolis, 1998, p. 11 13. 256 No idioma guarani: nhande = nosso; reko = modo de vida. 257 CERTEAY, Michel de. A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus, 1995. 08 165 8%) Ensino de Histéria - Desafios Contemporsineos no plural” e considerar outras narrativas, outras ciéncias, outros modos de vida, que precisam figurar num espago horizontal de reconhecimento. Nessa perspectiva, Manduruku, lembrando os ensinamentos referentes & histéria de seu povo e que os recebeu de seu avd, por meio da meméria oral, diz: “Tem histérias que aconteceram de verdade e que fazem parte da gente. Acontecimentos que fizeram a gente saber sobre nés mesmos... Mas sdo sempre fortes porque marcam a nossa personalidade, nosso modo de ser e agir no mundo”. E seguindo a narrativa, relembra que seu avo ensinou: “Nosso mundo esta vivo. A terra esta viva. Os rios, o fogo, o vento e as arvo- res, os passaros e os animais e as pedras, esto todos vivos. Sao todos nossos parentes. Quem destr6i a terra destréi a si mesmo. Quem n4o reverencia os seres da natureza nao merece viver”.*5* Oferece-se uma perspectiva comple- mentar para nossa sociedade, qual seja, de situar o humano integrante do cosmos, ser da natureza. _ S&o possibilidades que a lei nos oferece ao instituir a obrigatoriedade do estudo da histéria e da cultura afro-brasileiras e indigenas na escola, ten- do presente que, muito mais do que o estudo das questées étnicas, vislum- bramos a com-vivéncia e 0 didlogo. Contudo, temos presente que conviver com as diferengas é também conviver com incompreensées. Talvez a lei n. 11.645/2008 mostre nossas incompletudes e, com ela, a possibilidade de aprender com os povos indigenas e, quica, introduzir na educagao basica outros valores, outros saberes e outros conhecimentos que dizem da nossa humanidade. Retomando as palavras de Todorov apés a reflexfio aqui posta, pode- mos conceber os povos indigenas “como um grupo social concreto ao qual nés néo pertencemos”, constituido por “seres que em tudo se aproximam de nés, no plano cultural, moral, histérico”, e, por meio dessa convicgiio, a possibilidade concreta de sermos incluidos de verdade na América, encon- trando aqui um dos bercos de nossa civilizacdo, a civilizacio amerindia. 258 MUNDURUKU, Daniel. Meu avo Apolinrio: um mergulho no rio da (minha) meméria. So Paulo: Studio Nobel, 2001. p. 7 € 33. oS 1662

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