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ett Boats, sexpednenioais | a Segundo nivel da divida - Vigilia e sono nado se padem distinguir IMesmo senda certo que 05 sentidas nao sao fiavess, ha, todavia, muitas crengas com origem ha experiéncia sensorial das quais seria loucura duvidar, pondera Descartes, Por exemplo, parece insensato duvidar que ele, Descartes, esta neste momenta sentada junto a lareira, vestide com 0 Seu fGupao & que, Com urn par de mos que S30 as suas, toca a folha de papel em que escreve, Mas serd efetivamente desvario colocar tude iste sob suspeita? CO texte 2 ‘Com efeite, quantas vezes me acontere que durante 0 repouso noturno me deixo persuadir de coisas tao habituais como que estou aqui, com o roupao ves- tido, sentade 3 lareira, quando, todavia, estou estendide ma cama e despido! Mas agora, observa este papel seguramente com os oles abertos, esta cabega que move naa esta a dormir, voluntaria e conscientemente estendo esta mao e sinto-a; 0 que acontece quando se dorme ndo parece tdo distinto. Como se nao me recordasse de jé ter side enganado em sonhos por pensamentos semelhan- tes! Por isso, se reflito mais atentamente, veja com clareza que vigilia e sono nunca se podem distinguir por sinais sequras Penk Desranes (198) sAsdttactes sobve a Masala primaia almectna a. 108 4.0 A que conclusdo nos conduz Descartes? 2. 0 que leva Descartes a retirar esta conclussa? Mais uma vez, 0 exercicio da divida metidica parece dar razo ads céticas. Nao é possivel distinguir 0 sono da vigtlia, € perfettamente passivel que esteja neste mamento a.darmir e a sonhar, enquanto acredita estar acardada, com a seu roupaa vestida, sentada junto a lareira. Cantrariando o realisme de senso comum, 8 auséncia de um critéria seguro que permita diferenciar o sono da vigilia abre a possibilidade de as suas percecbes atuais, ainda que vindas e nitidas, serem falsas. A hipdtese de estar a sonhar no pode ser rejeitada. A conclusdo cética do arguments do sanho €, portanto, mais uma vez, inevitavel: os senti- dos € a experiéncia ndo 540 fonte de verdades indubitaveis. @ mividade a 4. Atenta na afirmacsa ‘(..) Consideranda que os pensamentas quando estamos acordadas nos podem ‘também ocorrer quando dormimos, sem que, neste caso, qualquer deles seja verdadeiro, resolvi super que tudo 0 que até entée tinha acolhimenta no meu pensamento nao era mais verdadeiro do que as iluses das meus sanhos, René Descartes (1991), Discursa de meade, Exighes 70, p. 74, 4.4. Compara as suspeitas avancadas na arqumente da sonho com as dividas que ante- riormente se levantaram a propdsita des sentides 1) tenets Terceiro nivel da divida - A possibitidade de um génio maligno Consideremos, entéo, a hipdtese de estarmos, de facto, a sonhar. Ainda que assim fosse, continuaria 2 ser inquestionavel, parece, que um tridngulo tem sempre trés lados, aue dois mais dois saa quatro em qualquer circunstancia, que Descartes tem um corpa @ que 9 mundo das coisas materiais fora da sua mente existe. Podera a duwvida estender-se tam- bém a estas & outras crencas semelhantes? Podera a suspelta alargar-se ao conhecimenta a prian e a existéncia da mundo fisico? Serao eles dubitaves? Descartes decide aceitar, mais uma vez. 0 desatio cético e, por isso, nesta fase da indagacao, introduz uma célebre e extravagante ficcde filoséfica, a hipatese da génio maligna. Trata-se da wersda cartesiana do argumento cético do cerebro numa cuba que abordamas ne capitulo anterior (p. 30). ‘Vou supor, por consequiincla, na um Deus sumamente bom, fante de verdade, mas um certo génio maligno, ao mesmo tempo extremamente podereso e as- tuto, que pusesse toda a sua industria em me enganar. Vou acreditar que 0 <éu, ‘ar, a terra, as cores, as figuras, os sons, ¢ todas as coisas exteriores nao so mais que ilusies de sanhos com que ele arma ciladas 3 minha credulidade. Vou consi- derar-me @ mim propria come nao tendo maos, naa tenda olhas, nem came, nem sangue, nem sentidos, mas crendo falsamente possuir tudo isto. Obstinada- mente, vou permanecer agarrado a este pensamenta e, se par este meio nao estd ne meu poder conhecer algo werdadeiro, pelo menas esta em meu poder que me guarde com firmeza de dar assentimento ac falso, bem como ao que aquele enganador, por mais paderose, por mais astuto, me passa impor. Ren Descartes (1988). Muchagtis sobwe'a esate primey, Amada, pp. 113-1 4 4. Ainda que 0 génic maligno existisse © pusesse tora o seu poder em engana-o: {A) A existéncia do mundo fisica ou material estaria assegurada (B) Os sentidos seriam fontes contiaveis de conhecimento. {C) A verdade das crengas a prion seria Indubitavel (D) Estaria em seu poder persistir na duvida. 2. Esclarece em que consiste s hipatese do génia maligne ou de devs enganador Suponhamos, propde Descartes, que, em alternativa 4 um deus bom e fonte de verdade, existe um ser infinitamente inteligente # poderaso, mas pleno de maldade, um génio ma- ligno, cujo nico propésite € enganar-nas. Um tal ser caso existisse ~ paderia fazer-nos acreditar em falsidades. Poderia, por exemplo, divertir-se, fazencia-nos crer que temos um corpo nao 9 tendo ou iludir-nos em relacdo a cdleulas matemdticos simples cama a soma de dois mais dois. A hindtese — trata-se apenas de uma suposicdo, nate-se — de estarmos @ ser manipulados por um espirito maléfico lana agora a desconfiangs sobre as crengas que frequentemente tamamas como certas, tal como as verdades matemsticas (a priori e Seinen aspera rtrscs | a a existéncia do mundo fisico fora das nossas mentes, Assim sendo, haverd algo de que possamos, sem qualquer hesitac3a, nado duvidar, algo que seja tao absolutamente certo que possa resistir, inclusive, 4 extravagante hipdtese de um deus enganador? ® paren 4. argumento do genio maligno mostra que a divida pade ser alargada também as crencas a priori porque (A) Ha um ser poderoso que o faz crer em falsidadas. {B) Ha um ser perversa que o impede de procurar a verdade. (©) Esta.a ser manipulado por um génio maligno ou deus enganador. (D) Existe a hipotese de estar a ser manipulado por um ser malévolo. Adescoberta do cogito D exercicio metédica da davida mostrou que as nossas faculdades padem nao ser confia- veis © pOs em questdo as crengas baseadas nos sentidos (a posterion) e na intelecto (a priar?). Nao podemas confiar nos nesses sentides nem nos poderes da razao enquante fontes de conhecimento fiaveis. Temos agora razGes para suspeitar de quase tudo. Mas o métado cartesiana faz surgir uma primeira certeza invulneravel a divida: a exit t€ncia do sujeito que duvida. A divida atua sabre tados os objetos do conhecimento, mas ndo pode atuar sobre a existéncia daquele que assim duvida. Duvidar ¢ pensar e para pensar é preciso existir. Pensar é, pois, condi¢o suficiente para existir: penso, logo existe (cogito ergo sum). Seria racionalmente contraditério pensar @ nao existir. A exis- téncia do eu que pensa (ou cogite) é assim uma certeza inabalavel que resiste, inclusi- wamente, a divida hiperbolica, a extravagante ficgao de um génio maligno que delibera- damente o enganasse Cogito: Substnca pensante descaberta par intulgdo racianal a partir da exercico da divida Primeica verdade mdubitével co sistema cartesiang, @ partir da qual € reconstruitio, desde as fundagtes, por dedugto, o edfcio de conhecimenta. J oe Por canseguinte, suponho que é falso tude © que vejo. Crelo que nunca existiu nada daquilo que a memoria enganadora representa. Nao tenho, absolutamente, sentides, 0 corpo, a figura, a extensdo eo movimento e a lugar $40 quimeras. Entdo, 0 que sera verdadeiro? Provavelmente uma s6 coisa: que nada 6 certo. (...) No entanto, nao ha duvida que também existo, se [o génio maligno] me en- gana; que me engane quanto possa, n3o conseguira nunca que eu seja nada ‘enquanto eu pensar que sou alguma coisa. De maneira que, depois de ter pe- sado e repesado muito bem tudo isto, deve por Ultimo concluir-se que esta pro- posiggio Eu sou, eu existo, sempre que proferida por mim ou concebida pelo es- pirito, é necessariamente verdadeira, Fen Descaries (1988). Mechiaodes sobre a fikaoba primera Almedna, op. 118-113. 4. De acordo com Descartes, qual das seguintes proposicdes seria falsa, mesmo que um génio maligno existisse? (A) Aquele que duvide pode estar a sonhar. {B) Aquele que duvide pode ser iludide pelos seus sentidos (CQ) Aquele que duvide pade ser enganado por um génio maligno. (D) Aquele que duvida pade estar a ser enganado acerca da sua existéncia. 2. OC argumento cético da regressio ¢ abalado com a descoberta cartesiana da orimeira certeza? Porque? Eu, que penso e que me posse enganar au ser enganade ou mesmo duvidar da existéncia do meu corpo e da propria realidade fisica, bem como de tadas as crencas dos sentidas e da raze, devo necessariamente ser qualquer coisa ¢ ne nada, Eu sou, eu existo. Mas, quande afirme eu sou, ev existo, no DESC g ru hy Pere CESS ry Ce) Cr crits rr CL eed Goa Cee eeu ate OTC eC WAM, The Philosoohy Book, Darfling Kindersley, 2011, 9. 118 (adaptadol. Font Ducat, anspassocrein Sem eteie 4. Lé,atentamente, o excerto Se eu disser que vejo au que anda, e inferir dai que existo {...}, esta canclusao Nao é tao infalivel que ndo me dé ecasiaa de duvidar dela (,..). Porém, se ouvir falar somente da agdo do meu pensamente (...), quer dizer, do conhecimento que est em mim que faz com que me pareca estar a ver ou a andar, essa conclu- 380 € to absolutamente verdadeira que no a posso pér em duvida. René Descartes (1995). Os principios da fitesofia. Texto Editora, p. 29. 11.1. identifica o principio que serve de base ao fundacionalisma de Descartes 1.2. Porqué penso, logo exista & n&o vejo ou ando, OU compro, logo exista? Beetara Kruger (n. 1945). ( shton therefore fam (Compra, logo ewistol, 1990, Museu de Ante Modema de Nowe lame (Micha). Esta fololitografia insere-se numassérie de trabalhos en que a artista © ativata estacc-unidense questona, com sarcasmo, 05 nosso: habits de consume, Parafraseanda & declarardc cartesiana, Barbara Kruger interpela a socindade. ‘Mas, do ponta de vista flasifico, Camora, kage existo sera ouivalente a Fens, logo existo? Porquié? Clarezae distingdo Por que razdo esta Descartes ta segura da certeza do cogito? 0 que faz com que 0 cogita seja invulnerdvel 8 divida? Qual ¢ a chave da indubitabilidade do sujeito que pensa? O fi- lésofo responde: 0 facto de © cogito ser percebido com clareza e distingao. A descoberta da existéncia do sujeito que pensa, do cogito, acontece nao por inferéncia a partir de outras crencas ou conhecimentos, mas por intuicSa racional au intelectual, isto é, por conhaecimento direto e imediato, sem qualquer raciocinio e sem qualquer ciwida, Trata-se de uma evidéncia, de algo que é presente e manifesto a qualquer esplirite atento e que, & luz da razaa, percebemos de mode preciso, nitido, com toda a clareza e distingao. Daqui, Descartes extrai o seu critério de verdade: > E verdade tudo aquilo que concebemos muito clara e distintamente, ‘Clareza e distingaa: Critéio de verdade, de certeza racional na epistemologia cartesiana. Qua- leader das quais no se pode dw idar, por muito que se tante & qudira, Bvidénc. Depois disso, considere] em geral o que ¢ indispensavel a uma proposi¢go para ser verdadeira e certa; porque, como acabava de achar uma que conhecia como tal, pensei que devia saber também em que consiste essa natureza. E tendo notado que no eu penso; logo, existo nao ha nada que me garanta que digo a verdade a nao ser que vejo muito claramente que, para pensar, preciso existir, julguei que podia tomar como regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente sdo todas verda- René Descartes (1991), Olscurse a metodo, Figdes 70, op. 73-7a, 4. Que regra geral aceita Descartes como critério de certeza? 2. Por que razao. pode o cogito, para Descartes, servir de fundamento sdlide para o conhecimento? Depois de ter aceitado o desafio cético e de ter estabelecido a divida coma método, Descar- Tes encontra uma crenga basica ou fundacional indubitavel que nao requer nenhuma crenca inferencial adicional e, com ela, refuta o ceticismo. O conhecimento possivel O cagite é uma verdade absolutamente primeira que o filésofo alcanca valendo-se exclusivamente da raza. Parque & uma evidéncia justificada a priori, a verdade do sujeito que pensa resiste aos argumentas céticos da ilusdo das sentides, do sonho e da génio maligne (ou de cérebro numa cuba). Sendo absolutamente primeira, autoevidente ou autojustificada, esta verdade resiste também a ameaca da regressaa da justificacao. O ceticismo glabal foi refutado. dened ied @ Atividade 7 4. Para Descartes, a clareza e distingao das ideias. (A) Eum critério empirico de verdade, (8) Eum método racional de verdade. (C) Eum critério racional de verdade. (D) Eum método empirico de werdade. (BE) Eumcri (F) Eum métado impossivel de alcancar. rio impassivel de alcangar. (G) € aplicével apenas ao cogita. (H) € aplicavel apenas a proposicies a pasteriori, ant Decent, asipaea rsetsta | Do cogito 4 existéncia de Deus ‘Dualismo cartesiano Eu sou, eu existo, sabe agora o filésofo. Mas 0 que sou eu? Sou apenas uma coisa pen- sante (res cogitans), uma substancia mental, cuja esséncia é pensar. Sou um intelecto ‘ou uma raza0 que duvida, compreende, afirma, nega, quer, n3o quer, imagina e sente Pade Descartes, nesta fase da sua indagacdo, estar certo da existéncia do seu corpo camo ‘o.esta da sua mente? Nao, pois 0 seu corpo, a0 contraria da mente, é matéria, faz parte do mundo fisico, ¢ os arqumentos céticos lancaram a suspeita sobre todas as crengas ba- seadas nos sentidos e na experiéncia Esta perspetiva cartesiana é conhecida como dualism de substancias, 0 nosso corpo e a nossa mente sao duas substancias radicalmente distintas. Por oposi¢do ao cogito, cuja existéncia ¢ absolutamente inegavel, 0 seu corpo, a coisa extensa (res extensal, o mundo fisico ou substancia material continua a ser dubitavel, A indubitabilidade da coisa pensante nada permite afirmar sobre a existéncia do compo e das coisas fora da mente. Res cogitans (coisa pensante) Res extensa (coisa extensa) Substancia mental {imaterial) ‘Substancia fisica (material) indubitavel Dwibitavel ee Clube de debate __ : ; ; A investigag3n neurolégica @ das ciéncias cognitivas tem contribuido para correlacionar de forma precisa fendmenos mentais e neu- rolagicos, Temos hoje, 20 contrario de Bes- cartes, informacao detalhada sobre as estru- turas e funcOes cerebrais e sobre a sua ligacdo com a alvidade e 05 estadas mentais. Mas as Ultimos anos sé0 também reveladores de ce- narios de mundos passiveis em que seres nic biolsgicas comseguem simular processas mentais de um mado tao sofisticado que se [27 Fabre, My anlynation simaginaion, 2014 assemelham a processos mentais genuinas. Tais descobertas adensam interroga- ges sobre a relagao entre sistemas fisicos e processos mentais. Sera o cérebro ou qualquer outra estrutura biolagica condicgao necessdnia para: que possamos falar em mente? Porqué? A mente é algo diferente do cérebra, ainda que ligada a ele, ou ela ¢ 9 cérabro? Ponqué? 0) pangs Trés tipos de ideias Ao examinar a sua mente {a cogifo ou pensamento}, Descartes encontra trés tipos dis- tintos de ideias: > As ideias inatas, que parecem fazer parte desde sempre da sua propria matu- reza, como as ideias de pensamento au de verdade: > As ideias adventicias, que aparentarn proceder de objetos situedos fora da sua mente e ter sido adquiridas através dos sentidos, como as ideias de sol ou cle calor, ~> As ideias facticias, que encara como invencdes forjadas pela imaginacao, como as ideias de sereia e de hipagrife, Aveste propasito, diz Descartes, persistem, contude, interogagées ¢ possibilidades de erra, Ao contrario do que acredita, todas estas ideias podem ndo ser mais do que ideias facti- as, por exempla. Desconhece, para ja, a causa ou origem das suas ideias e nada lhe per- mite, por agora, estar seguro de que nagdes come as de sof au cafor tenham de facto ‘ofigem em objetos fora de si é, menos ainda, que sejam semethantes ou conformes a essas coisas. Ainda que perceba de forma evidente que possui um corpo e que o mundo fisico @ real, que hd um sol @ que este é fonte de calor, que garantia tem de que o que concebe como clara e distinto é de facte absalutamente verdadeiro? Aparentemente, nada. & hipétese de estar a ser enganado por um génio maligno nao estd ultrapassada & levaro a duvidar de quase tudo. Assim, para poder prosseguir, Descartes tera de afastar a possibilidade de um deus enga- nador @ provar que aquilo que conhece com clareza @ distingao é absolutamente verda- deiro, Sem tal garantia externa, o fildsofo corre o risco de cair no solipsismo, 2 perspetive epistemolégica segundo a qual nada pode ser conhecido, & excecao do proprio eu e dos conteddos da sua consciéncia, @ ativisage 8 4. identifica, no conjunto que se segue, proposigées que incluarn ideias inatas (), ideias adventicias (A) e ideias facticias (F), segundo Descartes. Estou sentada num banco. Ha pensamento Os poixes tém barbatanas. Imagino a fada dos dentes. Pon wp ‘A agua esta a ferver. F Averdade existe. G._Penso em centauras, H. Alua, hoje, esta cheia and Oca, a pana asenetita | Provas da existéncia de Deus Decidido a encontrar algo ou alquém exterior a sua mente que possa cumprir © papel de garante da possibilidade de verdadles indubitaveis, Descartes vai procurar comprovar a exsténcia de um Deus omnipatente, omnisciente € inteiramente bom Porque os seus argumentos céticas lancaram @ desconfianga sobre os sentidos e a expe- néncia, as provas que se sequem, apresentadas na obra Meditagdes sobre a filosofia pri- moira, sdo haseadas exclusivamente na razSo (a priori, portanto). Ambas tam como ponto de partida uma mesma premissa: ter em si uma ideia de perfeigéo ou a ideia de um ser perfeito. O argumento da marca impressa apoia-se na ideia de causalidade, Enquanto coisa pen- sante, Descartes sabe que duvida, Se duvida, consequentemente, nao é um ser perfeito, pois conhecer é daramente uma perfeigao maior do que duvidar, Aquele que duvida nao conhece, Contudo, encontra em si a ideia de perfeicao, Esta ideia de perfeicao implicara, forcasamente, pensa o filésofo, uma causa, @ a causa nao pode ser a prapria sujeito pen- sante, dado que este ¢ imperfeito. O menos perfeito ndo pode ser a causa do mais per feito. De onde the tera, entao, surgido a ideia de perfeicdo, se é¢ um ser cagnitivamente imperfeito e finite? A resposta, acredita Descartes, sé pode estar num ser cuja natureza e realidacle objetivas sejam tao perfeitas quanto a propria idela de perfeicao — a coisa per- feita e infinita, Deus. $6 Deus tem tanta realidade como a propria ideia de Deus. Assim sendo, Deus é ow existe ¢ imprimiu na mente do filésafo a ideia de perfeicao come uma marea inata da agdo do artista na sua obra. Este argumento nao se afigura, aos nossos olhos, mas também aos olhas dos contempo- réneos de Descartes, muita canvincente, Por que razaa nao pare a idela de uma coisa perfeita ter uma causa imperferta? Por que razao duvidar é menos perfeito do que conhe- cer? E, ainda que assim fosse, 0 que nos prava, no argumento, que a coisa perfeita e infi- nita que causa a ideia de perfeigdo tenha de ser, forgosamente, Deus e nao qualquer outra coisa perfeita e infinita? Ag argumento da marca soma-se um outro, 0 argumento ontolégico, uma prova a favor da eyisténcia de Deus, cuja formulacao historicamente mais importante remonta ao século Xl a0 filbsofe medieval Anselmo de Cantuaria, Mas consideremos a wersdo cartesiana, Deus deline-se como o ser mais perfeito que é passivel imaginar, um ser que possui todas as perfeigées. A existéncia é, forgosamente, um dos aspetos desta perfeicao. Um ser per- feito nao seria perfeito caso nao existisse, pois faltar-Ihe-ia uma das condicGes necessarias da perfeicao. Por conseguinte, se Deus é perfeito, Deus tem de existir na realidade, Deus @ ow existe. A ideia de perfeicda implica, necessariamente, a existéncia de um ser per- feito, do mesmo modo que a natureza de um tridngulo implica que a soma interna dos seus Sngulos seja igual a cento e citenta graus Tal como aconteceu com @ argumenta da marca, a'prova ontolégica de Descartes a favor da existéncia de Deus foi também alvo de violentas criticas. Mas deixemos, para jd, a8 ob- Jegdes que [he foram dirigidas e acompanhemas o raciocinio do filésofo racionalista 48 1) epeteneiga Deus como qgarante epistemalégica Deus é ou existe. Mas, 0 que nos autoriza a afirmar que este ser perfeito ~ Deus ~ nic é enganadar? A infinita bandade divina, incluida na sua perfeicao, atirma Descartes. Se Deus é perfeito, tera, repete, de incluir todas as perfeiches. A bondade é uma perfeicga e, por definicao, uma caracteristica incompativel com a intencaa maldosa de enganar. Assim, se Deus 6 perfeita, nda o pode querer enganar, ndo pede ser um génio maligno ou um Gientista perversa com as suas cubas € experiéncias ilusdrias, Deus - ideia inata impressa no cogito como uma marca do criador na cristura e, simulta- neamente, entidade exterior a sua mente, cuja justificacao se encontra na clareza e distin- cdo com que ¢ descoberta ~ garante que aquilo que € cancebida cama evidente ¢ neces- sariamente verdadeiro, incluindo a realidade das coisas corpéreas fora da sua mente, o conhecimento empirica do mundo & as proposicoes 4 prion da matematica e da geome- tria. E agora uma mente @ um corpe @ nao apenas uma coisa pensante. wo Mas, desde que reconheci que existe um Deus, aa mesmo tempo compreendi tam- bém que tudo o resto depende dele e que ele nao é enganador, e dai conclui que ‘tudo aquilo que concebo clara e distintamente é necessariamente verdadeira (....) Eassim vejo perfeitamente que a certeza ea verdade de toda a ciéncia depen- dem unicamente do conhecimento do Deus verdadeiro, a tal ponto que, antes deo conhecer, eu ndo poderia saber nada, de modo perfeite, de qualquer outra caisa. Porém, agora podem ser perfeitamente conhecidas ¢ certas, para mim, inumeras coisas, quer do proprio Deus e das outras coisas intelectuais, quer tam- bém de toda a natureza corpérea que ¢ 0 objeto da matematica pura. ene Descartes (1986), MecltarSes sta sofa paimeve. Almedina, pp. 194-185, 4. Que papel desempenha Deus no sistema cartesiano? Com Deus como garante epistemolégico, Descartes pare agora inferit por dedugdo outras verdades (no basicas} e reconstruir, com toda a seguranca e confianca, um edificia ou sistema de crengas verdadeiras @ justificadas, Como? Avancande metadica ¢ cautelosa- mente de uma ideia clara € distinta para outra, a partir de alicerces ou fundacdes sdlidas, Um Deus perfeito nao poderia ter-nos dotado de sentidos e de poderes racionais que, inevitavelmente, nos conduzissem ao erro @ a0 engano. Desde que facamos um uso cor reto das nossas faculdades, o conhecimenta do mundo esta ao nosso alcance, Na ordem da investigacao, Deus é a segunda certeza descoberta por Descartes. Cantudo, é a primeira em grau de importancia, pois ¢ ela que suporta todo a sistema cartesian que garante a possibilidade de aquisicao e justificagaa de conhecimento ~ verdades uni- versalmente validas ¢ lagicamente necessarias. O ceticismo, quer global quer localizado, e 0 arguments céticos faram refutados, assegura Apesar da confianca cartesiana no seu sistema, 3 maioria dos pensadores, desde 08 seus contemporanes, avalia como frageis e problematicas as respostas apresentadas. © atividade 9 4. Atenta nas afirmacdes de Descartes. Com efeito, nao sau livre de pensar Deus sem a existéncia (isto é, um ente suma- mente perfeito sem a suma perfeicdo), como sou livre de imaginar um cavalo, quer com asas, quer sem asas. René Descartes (1988). MMecitacoes sabre o filesofia pameia. Almedina, pp. 188-189. 44.1. De acordo com Descartes, cain em contradicao logica (A) Quando imagino um cavalo com asas (8) Quando imagina um cavalo sem asas. (©) Quando imagina um ente perfeito inexistente (D) Quando imagino um ente perfeito existente. 1.2. De acordo com Descartes: (A) A existéncia de Deus é necessaria (8) Acxisténcia de Deus é possivel (C) A inexisténcia de Deus é possivel. (D) A inexisténcia de Deus é necessaria, 4.3, Clarifica as alirmagdes do texto, considerando 2 prova ontolégica de Descartes, L 1 Argumento: ilusio dos sentidos 22 Argumente: sono e vita L 3." Argument: genio matign: G] Ec) Crengaindubita note autojustificada ms Deus como garante a ‘ . omitte, __, RI Perret deconhecimento 5 (verdades indubitaveis) a 1 etenelagn Objegées ao racionalismo cartesiano Tendo coma ponte de partida 0 desafio cético, Descartes formula um sistema filaséfica que procura dar resposta as inquietagdes levantarlas pelos seus malores adversdrios, A desco- berta do cogito foi essencial para que Descartes e 0 racionalismo pudessem decretar a su- perioridade da razéo e a derrota do ceticisma, Mas, para que a coisa pensante pudesse servir de fundemento pare a construcao de um edificio de conhecimento ebsolutamente certo, infalivel, foi preciso estabelecer um garante externo da clareza @ distincaa das idelas, Deus. Quer a forma coma filosofou (o seu métoda e as consideragbes céticas que o acom- panharm), quer o conteddo do seu pensamento (as certezas que resultarn do método) foram, desde a época de Descartes, alvo de inuimeros questionamentos ¢ objecdes Adivida cartesiana é impraticavel e incurvel Um dos mais importantes criticos da racionalsmo cartesiano fai David Hume, fildsofo do. século XVIll de cujo pensamento nos ocuparemas ja no proximo capitulo. De acorde com David Hume, a duvida cartesiana ¢ universal e estende-se, por isso, a tadas as nossas cren: cas € principias, mas poe lambém sab suspeita as faculdades mentais € as operagdes do intelecto, Assim sendo, a duvida metddica de Descartes €, para David Hume, impratica- vel e incuravel. Na melhor das alternativas, considera Hume, o fildsofa racionalista esta ria apenas em condiches de decretar a sua propria existéncia enquanto sujeito pensante, Qu, mais rigorosamente ainda, 2 existéncia de estados de duvida ou pensamentas. Nao & possivel progredir na cadeia de raciocinios além disto, diz Hume. D texte s Existe uma espécie de ceticismo (...) que é muita inculcada por Descartes @ outros, ‘como o preservative soberano contra o erro ¢ 0 juizo precipitado. Recomenda uma duvida universal, ndo s6 de todas as nossas opinies e principios anteriores, mas também das nossas faculdades, de cuja veracidade, dizem eles, nas devemas assegurar mediante uma cadeia de raciocinie deduzida de algum principio ori nal que, possivelmente, nao pode ser falaz ou enganador. Mas, nao existe um tal principio original, que tenha uma prerragativa sobre os outros (...) ou, se hou- ‘vesse, n3o poderiamos avancar um passo para além dele, exceto mediante o uso das proprias faculdades, de que supostamente ja desconti mos. Por conseguinte, a divida cartesiana, se alguma vez fosse possivel a uma criatura hu- mana atingi-la (na realidade, nao é), seria intei- ramente incurdvel e nenhum raciocinio nos po- deria introduzir num estade de certeza e convicgdo acerca de qualquer matéria. David Hume (2014), tmestigacao sabre o entendimento: humane, Edges 70, pp. 159-160. 4, Por que razdo considera Hume que a divida cartesiana ¢ incurdvel? Fane oeccrs, aepara reecemea | Descartes incorre numa peti¢ao de principio Como jé destacdmos, os argumentos cartesianos a favor da existéncia de Deus ndo sdo bem-sucedidos. Alguns dos seus mais diretos adversarios acusam-no, por exemplo, de tar incorrido na falacia conhecida como petigado de principio. Esta objecko é conhecida come circulo cartesiano. Em linhas gerais, a critica assinala o facto de a fildsofo ter estabelecido que é absolutamente certo tudo o que concebemos com clareza e distin- 80, pois Deus existe e ndo tem a intengdo de nos iludir e, simultaneamente, afirmado que Deus existe e nao é enganadar. j4 que concebemas com toda a clareza e distincao & sua existéncia e bondade. Descartes e 05 seus sucessores deram-se conta desta circulari- dade viclosa ¢ procuraram responderthe, mas nenhuma das interpretacdes avancadas esta imune a criticas. “™ Estou certo de aera as ues idekes clara endo é enganador, pais cea ee a ideia clara e distinta. pies M4. Em sintese, * Descartes é um filésofo racionalista e, por isso, privilegia o conhecimento a priori. « Descartes elege a divida como métedo, mas iste nao faz dele um ceético. * O objetivo de Descartes é descobrir crencas basicas absolutamente certas, « Aduvida cartesiana progride através de trés niveis de argumentos céticos, + Atraves da divida, Descartes descobre, por intuigao racional, a indubitabilidade da sua existéncia enquanto coisa pensante: penso, /ogo existo. «© Dacerteza do cogito, Descartes extrai o seu critério de verdade: clareza e distingao. +O cogito ¢ uma verdade conhecida a priori, que resiste a todos os argumentas céticos. * No cogito, Descartes encontra trés tipos de ideias: inatas, adventicias ¢ facticias. * Apartir do cogito, Descartes conclui uma segunda certeza: a existéncia de Deus. * Deus, quesendo bom nao éenganador, é para Descartes o garante epistemalégico. «Para os criticos, o fundacionalismo cartesiano nao responde, satisfatoriamente, ao desafio cetico.

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