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Ingres € as perversées do classicismo Ingres no foi homem de escritos. Em 1870, apenas trés anos apés sua morte, Henti Delaborde ja publicava um Ingres, sua vida, seus trabalhos, sua doutrina a partir de notas manuscritas e cartas do mestre,! que se tornoua principal fonte para o conhecimento das reflexes do artista. Porém, essas notas manuscritas, muito fragmentarias, constituiam-se de frases que o pintor rapidamente anotava em cadernos, e sobretudo, de observacées que seus discipulos tomavam durante suas ligdes. Nada de equivalente, portanto, a projetos tedricos ambiciosos, ou a inquietagdes como as que engendraram o Didrio de Delacroix e as milha- res de cartas escritas por Van Gogh. Mas eram convicgdes afirmadas e definitivas, sem diividas nem hesitagdes, sem necessidades demonstra- tivas, 0 que provoca por vezes efeitos contraditérios. E que sao, a rigor, dispensaveis para o conhecimento de sua arte. Um homem nem de escritos, mas de prética; nem de ideias, mas de con- vicgdes, que se exprimiam de modo breve. Muitas vezes, 0 préprio sentido desuas palavras parece nos escapar, e mesmo suas referéncias, seus modelos Proclamados, desde que os busquemos em sua pintura, tornam-se misterio- 50s, Rafael, por exemplo, foi seu objeto maximo de veneragao intransigente— ‘mas nao é muito ffcil descobrirmos aquilo que Ingres percebia em Rafael. Tomemos A escola de Atenas. Por ela penetremos no que é possivel chamar de um logos rafaelesco: dados que nos indicam os sentidos fun- damentais de sua obra e de seu processo criador. s nel Delaborde, ingres, sa vie, ses travaux, sa doctrine d'eprs des notes manuserites et es maitre, Paris: Plon, 1870. 123 Os personagens encontram-se dispostos eM BTUpos que se res. pondem, mas o rigor simétrico passa despercebido Btagas as variantes que sio neles introduzidas, e gracas a animagao dialégica, que cria um encadeamento de reagdes e distingue a “alma” de cada grupo. A compo. sigio cuida do espago, bastante amplo para permitir uma folgada circula- do da luz e da atmosfera, mas sem excesso, para que neles os seres nao se encontrem perdidos. A solenidade da arquitetura é compensada pelos efeitos de transparéncia que permitem entrever 0 céu, e que a tornam aérea. A altissima qualidade do desenho esta aliada ao tratamento nuan- ado da cor e ao jogo suave das luzes e das sombras. Tudo é essencial: tudo deve ser essencial. Nenhum sacrificio é feito ao pitoresco. Nada que nos desvie da intengao maior: sutilissimo equilibrio de elementos capazes de engendrar uma sintese harménica. Comparemos 4 escola de Atenas com a Apoteose de Homero [fig. 16], de Ingres, quadro exposto no Salao de 1827, espécie de manifesto classico oposto a Morte de Sardanapalo, de Delacroix, que se encontrava na mesma mostra. Homero é aqui concebido como o ancestral de todos os grandes artistas do Ocidente. Dentre os homéridas, se destaca Rafael, direita do bardo, dando a mao a Apeles. Ele é 0 tinico moderno admitido entre 08 antigos, que nos sfio mostrados no alto e de corpo inteiro.? Poussin,” 2. Dante também se encontra de pé, mas no plano inferior, sob a mao protetora de Virgilio, no alto, Ele constitu ali um elo histérico entre o passado e 0 presente clissicos. 3- Poussin esté no primeiro plano, ¢ indica Homero, com um gesto do brago esquerdo, isto 6a fonte clissica absoluta, modelo e origem. No desenho conhecido por Homero dejfeado, Pertencente ao Museu do Louvre, o quadro é retomado por Ingres. O desenho foi realizado entre 1840 ¢ 1865, momento de radicalizagio do combate antimoderno de Ingres, que PFO cede a cents remanejamentos iconogrifcos. Um deles é 2 introdugio de David, seu mestre restaurador recente das verdades clissicas, inserido atras de Poussin, e, aos pés de David, cae grey em ings, A mararezasimblica da filiagio se torna evident ao ~ 1 om € Paladino das tradigées classicas. Assinalemos ainda o caréter manifest pene nee SU pest dacrcigdo com a qual se reveste, toma o sentido de ints impos a ar mis Ou menos cifado que uma cera ingenidade do ais do posui cera cquivalénca coor ne stmt, A apoease de Homero (ou 0 Homero deifend®) gotinho participa dos 's com O atelié do pincor, de Courbet. E neste quadro também um ode Ingres pot len oom simbslics.Porém,o menino de Courber€oexato contro ” ‘pla uma paisagem — isto é, um quadro em principio desprovide 124 Ingres eas perversies do classiciemo o outro grande pintor, herdeiro prvilegiado da tradigiocléssca, surge no registro inferior, ane 0s modernos, diante de Corneille. Aqui também a simetria é empregada. A composigao trata de ser rigo- rosa: uma frisa horizontal, um triangulo que contém e destaca Homero juntamente com as figuras da /Iiada e da Odisseia, O todo é reforcado pela arquitetura do templo, que serve de fundo e de cendrio. Deslocada diante da disposigao estrita, a gléria alada vem coroar 0 grande bardo. A simetria, entretanto, nao se revela agora instrumento de delicado equilibrio — ela é uma determinante, uma espécie de camisa de forga a qual os elementos nao podem escapar. O espaco Perspectivo de Rafael, abrigando com largueza os homens, 0s edificios, mas ainda a atmosfera luminosa, desapareceu. De que espago se trata, aliés? Temos apenas alguns degraus, e um amontoado de personagens, cuja prodigiosa qua- lidade de acabamento pictérico os faz como que fechados em si mesmos, prisioneiros das superficies impecdveis que os constituem e de seus gestos imobilizados. Nessa superposi¢o compacta de corpos, percebemos que o pintor teve que lutar para dispor os rostos de modo a que todos pudessem ser reconhecidos. No fundo, levanta-se a frontalidade achatada do templo. A simetria dura é contradita pelo realismo descritivo tio insistente dos retratos, que logo desviam nossa atengAo e nos atraem para um jogo um pouco pueril — o de quem é quem, nessa galeria cerrada. Sao rostos trabalhados na autonomia das feiges e das semelhangas, indiferentes ao projeto compositivo. Assim, aquele logos essencial, de sintese harménica, proprio a arte, que era o de Rafael, perdeu-se. Se partissemos dele para abordarmos o Homero de Ingres, seriamos obrigados a uma critica impie- dosa, o que alguns, alids, nfo se privaram de o fazer. : i Deverfamos portanto descobrir qual é 0 logos especifico 4 = ae tura para podermos discorrer sobre ela com pertinéncia. Mas isto _ é tao ficil. Porque, ao avangarmos com chaves interpretativas, descobrimos eon tradigdes que as emperram, descobrimos aporias, descobrimos paradoxos. ae ‘i ideia de uma filiagdo das alas referéncias eruditas da pintura de historia -, contrariando a = id infincia se cultura eissica — ou a qualquer cultura literdria —¢ ligando a inocénc Séncia da observagio da natureza. 125 Um primeiro. £ muito clara a unidade no conjunto da producto de Ingres. Gaétan Picon o assinala:‘ seus quadros iniciais quase nao se digin guem dos tiltimos, nem pela qualidade, nem pelas caracteristicas, Ingres surge, desde o principio, como um artista que ja possui todos os seus Meios, e nao conheceré fases, ou evolugées. Suas viagens, 0 tempo que passz no alterarao muito as certezas evidentes dos primérdios. E assim que Abbanhista de Valpingon, pintada em 1808, pode ser reencontrada, depois de varias reaparigdes em outros quadros, em 1863, no personagem da instru. mentista de O danko turco, essa sintese erdtica que o pintor conclui aos8 Inabalavel unidade 4 qual se opde, no entanto, “a espantosa diversidade de seus estilos”,’ para retomarmos a exclamagao de Robert Rosenblum, que enumera a coexisténcia nessa arte de: “o intenso rea- lismo descritivo dos primitivos flamengos, a elegante pureza linear das pinturas dos vasos gregos, as grandiosas simetrias de Rafael, ou as sofis- ticadas ambiguidades dos maneiristas”.’ Isto tudo no traria problema se tais derivagdes se sucedessem no tempo, criando fases. Mas Ingres nfio conhece fases, e as referéncias irrompem simultaneas. Rosenblum tenta contornar a dificuldade atri- buindo, acada “estilo”, um género. Essa interpretagao, entretanto, nao *inteiramente exata. Basta examinarmos Rogério e Angélica‘ pata pe™ cebermos a justaposigdo de maltiplas referéncias formais na mesma el A composigao deriva claramente de um modelo maneirista, que encon ‘ramos em Saraceni e no Cavalier d’Arpino, nos quadros que retomam™ 4 G.Picon, ingres. Genebra: Ski 5. Varios outros ‘Tus prépric A . Préprios i : - sonagem de O batho wrcoe dbeshin eo ere Ingres se superpéem ao rfeido Pe do Louvre, Senhista de Valpingon. Entre eles A pequena banhista, do MUS l, Ingres, ire 7 Ud, ibid "eres. Londres: Thames and Hudson, 1967- 8. Afora as tés vers é ado Museu ecg ‘its "tomam 0 personagem de Angélica, da qual a mais comple do Louvre, em formaro ean als Ingres realizou trés versdes do quadra. A do Nise mean teal £3 mais ampla, menos conentrada,€ por 0 talver mais Teattrocencer : ™uito mais since ne AS da National Gallery de Londres edo Museu de Mow rismo (vid ‘encontram clarament aa do mane lenota n. 9), te esquemas compositivos formais 126 Ingres e * Perversdes do classi iciemo ae o tema de Perseu e Andrémeda, fonte classica para o epis6dio de Ariosto, € que se encontram em Dijon e Bolonha.? Traz também, tal- ver, 0 eco do Sto Jorge e o dragéo, de Paolo Uccello." Mas, ainda, no personagem de Rogério em seu hipogrifo, tal como Ingres os conce- beu, existe a minticia descritiva dos flamengos. E Angélica possui essa incomparavel modulagio sintética da linha, derivada, entre outras fon- tes, dos vasos gregos. Ao paradoxo da unidade e da multiplicidade sucede-se um outro, 0 da certeza e da diivida. Ingres possui verdades inabalaveis: o desenho é superior a cor; as marcas do pincel devem ser absolutamente banidas; anatureza deve ser corrigida; a arte no surge da febrilidade, mas da paciéncia. Essas verdades compéem o cardter extratemporal, estivel, de sua obra, ao qual nos referfamos antes, e seus quadros surgem como que cristalizados num acabamento absoluto, por tras de uma superficie lisa ¢ brilhante como esmalte. Porém — é ainda Gaétan Picon que expoe melhor o problema —, Ingres foi um dos mais torturados artistas diante de sua prépria produgao. Trabalhava lentamente, com bloqueios, acre- ditando sempre que nao conseguiria fazer, que nao conseguiria termi- nar, passando por crises sucessivas, retomando sem cessar as pinturas, mesmo depois de acabadas, de envernizadas. Essa é uma das razdes pelas quais detestava o trabalho de retratista — porque este trabalho impunha prazos, e porque os quadros se iam definitivamente, escapando de suas mos para as maos dos proprietdrios, fugindo, assim, de sua obsessio corretora, Motivo pelo qual multiplica, infindavelmente, intimeras ver- ses da mesma obra, alterando alguns elementos, por vezes copiando-a no sentido inverso, como se a visse no espelho. Sua certeza enfrenta a contradicao de que o melhor nao pode ser atingido, de que nao ha final. Terceiro paradoxo. Ingres é 0 guardiao do belo ideal, é aquele que intitulava Géricault e Delacroix de “apéstolos do feio” ¢ julgava © romantismo francés insuportavelmente carregado de realismo. Ele libertada por Persew, Musée des Beaux-Arts, 9 Carlo Saraceni, Andrémeda acorrentada, Bolonha. Dijon; Cavalier d’Arpino, Perseu ¢ Andrémeda, Pinacoteca Nazionale, 0. Como o assinalou Rosenblum em “Ingres”, Revue de l'Art, n. 35 19693 PP- 101-03+ desenvolvera uma arte altamente depurada, que se baseava uma py mazia da linha idealizadora. Ingres fala sempre no Primado do deseniy, mas é preciso saber que, para ele, a ideia de desenho contém, antes de tudo, uma precisa ideia da linha. Ingres pertence, como capitulo maior, a uma historia da linha na pintura moderna que ainda esta para ser feita. Essa historia Atravessy todo o século x1x e se espraia no século xx. Mas ela irrompe como uma preocupagao internacional nos anos 1790. Flaxman — para citar apenas um dos agentes mais destacados dessa pinta — Fetomava as licdes dos vasos gregos para ilustrar a //iada, a Odisseia, Esquilo, Hesiodo ou Dante; gracas a essas gravuras, que conheceram imediata celebridade, estab. lece uma nova relagao entre o trago e o papel. O primeiro, ténuee pre- ciso, emerge na luminosidade clara da folha: ele é 0 constituinte tinico da forma, que abandona qualquer modelado. Sobre o fundo abstrato, a linha encontra-se na fronteira do mundo sensivel, empregando um minimo de materialidade, apenas suficiente para que o olhar se dé conta: a forma ide mal aflora aos olhos. E como se pairasse, nessas experiéncias, um esp Tito neoplaténico gragas ao qual a linha impalpavel, abstrata, carregada de espiritualidade e desembaragada das cargas do sensivel, atingisse as fronteiras do pais em que habitam puras formas intangiveis. Na Franca, uma dissidéncia dentre os alunos de David, a seit dos “barbudos”, ou dos "primitivos”, pré-rafaelitas avant la lettre, cho- ava aatengio para a arte anterior a Rafael, extraia dela a linearidade “sistente € as superficies simplificadas, e criava alguns quadros. po Cos, de espantosa abstraso geométrica, como é o caso do Ossian, é D 0 uqueylar," datado de 1800, pertencente ao acervo do museu Grant 1. Pal (ou Paulin) Duy autor de obras poderosa configuram 0 conjunto udos". 0 quadro a que © nome do pintor nag *6rias da pintura referentes a S°POIGIO de tone Dy Etienne-Jean Delécluse, fi Suelo, pinor de grande interesse & muito pouco ese.” mente abstratas — no sentido que Rosenthal di a essa palav™™ b ads mais radical ¢ expressivo do espirito que animava 4 2 1€ nos é i S * referimos € bastante precoce dentro da iconografia ase a «se dicionirios, enciclopé4 Sonia arrolado nos principais dicionirios, encic ‘e : Nos pr : im » Periodo, Ele nio foi mencionado no catilogo 42 im" de Aix-en-Provence. Nele, as anatomias reduzem-se ao minimo, e um prago, ov uma perna, sao tratados com o mesmo cilindro que engendra um tronco de arvore.'? Outro pintor, um dos mais brilhantes do periodo, Girodet, em 1801, saberd inventar ninfas etéreas ¢ artificiais, na parte inferior de seu Ossian, com longos bragos e pescogos, numa prefiguragio de muitos nus ingrescos. Estes anos 1790 sao os da formagao de Ingres. Ele no permanece snsensivel 20 clima criado pelos “barbudos”, nem, certamente, & pintura de Girodet. Ele se inspira muito diretamente de Flaxman" em algumas obras,"* copia vasos gregos, atenta para a pintura italiana anterior ao Renascimento classico. Dos relevos de Jean Goujon — e esta sua referén- cia parece-nos estar ainda para ser seriamente estudada — retoma as admi- rveis ondulagGes femininas. Pode assim formar esses corpos idealizados, nos quais o contorno define as formas, e adquire uma quase autonomia, em suas sinuosidades que tendem para o imaterial, como A fonte, quadro realizado entre 1820 € 1856. Paris: Macula, 1983, pp. Gt, 62, 95 € 96, onde se encontra uma ripida biografia, da qual ‘extraio esta passagem: “J exposa, en 2797, un tableau représentant Ossian chantant ses vers, courage qui sans doute n’était pas sans énergie, mais dont Uaspect était si sauvage et xi bigarre quilne rouva d’indulgence qu’auprés de quelques-uns de ses amis, dont deux ou trois devinrent ses admirateurs fanatigues" (Ele expos, em 1797, um quadro representando Ossian cantando tus versos, obra que sem diivida no carecia de energia, mas cujo aspecto era tio selvagem ¢ tio bizarro que ele s6 encontrou indulgéncia por parte de alguns de seus amigos, dois ou trés dos quais tornaram-se seus admiradores fandticos}. Breve mengio_ ainda em Jean-Pierre Mouilleseaux, “David et ses élves”, Beaux-Arts Magazine, n. 5, Set. 1983, PP. 54-59 Esse artigo traz imprecisées, em particular no que concerne a algumas datas citadas. O museu Granet, de Aix-en-Provence possui a maior parte das obras desse artista. 12, George Levitine cita um critico anénimo do Mercure de France que escreve sobre o Ossian de Duqueylar, dizendo que descobre ali “um cio que tendemos a confundir com um tronc® de drvore” e acrescenta “que mesmo a mais pura a mais rigorosa simplicidade tem limites”. G.Levitine, The Dawn of Bohemianism — The Barbu Rebellion and Primitivism in Neoclassical France. University Park/Londres: The Pennsylvania State University Press, 1978, Pp. "12-13 '5. Entre outros estudos, ver, para a relagio Ingres-Flaxman: Ferruccio Ulivi, “Flaxman, ideale e il suo calco”, in Flaxman e Dante, Corrado Gizzi (org,). Milo: Mazzotta, 1986. 44 & oportuno lembrar que, em seu Homero defcado, versio em desenho da Apmis de Honero, que atualiza iconogréficamente suas referéncias clissicas, Ingres inclui Flaxmann atte 0s homéridas modernos. 129 Notemos que essa trajetéria da linha Possui uma natureza refleiy, Ela nfo segue 0 fluxo produzido pela dindmica do Besto que corre, desen, volto, sobre o papel ou sobre a tela, seguindo suas leis Proprias, intuitivase comporss Ao contri, écuidadosamenteestudada, modifcads,conigids é pensada e controlada. Até atingir essa precisa vibragao que se encontra numa miraculosa confluéncia entre 0 sensivel e 0 abstrato. A propria cor, unida, materializada em superficies esmaltadas, limitada com nitidez pelo contorno, mantém um didlogo secreto com a linearidade, que separa eune ao mesmo tempo. Mas Ingres é também o autor do retrato de Bertin (1832), espécie de quintesséncia da imagem do homem de negécios, do burgués endinhei- rado dos tempos do rei Luis Filipe. Emblema social do século passado, equivalente visual de personagem de Balzac, é muito evidente queaqua- lidade de um retrato como este depende daquilo que é oposto & abstracio, isto é, daquilo que se convencionou chamar de realismo. Ingres possui dois tipos de realismo, de naturezas diversas. Um deles é 0 herdado do neoclassicismo de David. Seria enganoso supormos que este classicismo davidiano, porque classicismo, derive de ideais formais abstratos: ele é, em verdade e antes de tudo, um realismo. Parte sempre da observacao empirica do objeto que adquire, em sua transposicao pictural, uma forga emblematica por meio de um tratamento antes de tudo técnico, Tratamento que se origina e depende da observa $40. A isto se acrescenta o fato de que, para essa arte, os modelos ofereci- dos pela Amtiguidade cléssica no so exclusivos. Isto é, a arte de David at eerie Breco-romanos — ao contro, ela se a pin mobs 05 08 fenémenos do mundo. O Iluminismo da it arian qui sua face: a arte prescinde de uma selegao entre objet0s WaNelsnabrese objetos visiveisvulgares. Nao hi tal para o artista neoc&* sico: i pate! dignos de representagio. A arte pass? Eapanirdeseeminon rocesso de conhecimento do ae Maree (795) fig 9) ms a que David pode realizar em 4 mo a objetos escolhidos, cs ma: ormidavel forga de concentraga0 ™ em Ogi Maseaee ay SeateBeamente colocados, que OME » € esse personagem, foram cuidadosa™ todos os objetos visiveis so ser, numa de suas fungées, um Pp 130 Ingres e Wet as perverse do classciemy eee ercebidos, e cuidadosamente reproduzidos. Nada de referencias & Anti guidade, alegorias, ou discursos culturais. A natureza de i crime politico contemporéneo permanece intacta e a observacio hasta ' como origem, Qs elementos banais, pertencentes a um episédio da atualidade — uma panheira, uma faca, um caixote que serve de mesinha, uma pena de &anso, o rosto desgracioso de um cadaver —, passam, com Prodigiosa forca, a fixar, visualmente, um momento da histéria contemporanea. E esse mesmo realismo neocléssico que permite o espléndido retrato de Jean-Baptiste Belley, por Girodet, de 1797—onde o Personagem negro étratado com a mesma dignidade de um tipo fisico classico, e sem que a representagao de um homem de outra raga seja feita através apenas do viés pitoresco.'* E é este realismo igualmente que preside a acuidade das ima- gens que Debret realizou no Brasil — o neoclassicismo lhe fornecia. ‘os meios paraapreender quaisquer mundos, mesmo os que lhe eram desconhecidos."* A observacao é percebida, aperfeicoada formalmente, depurada, embelezada, se se quiser. Antes de bela, no entanto, a forma é, para o neoclassicismo, um instrumento de clarificagio. O artista observa —é abase. Depois analisa, e oferece uma imagem do mundo reorganizada em clareza. Ha algo de cientifico, nesse procedimento: o empitico vem Purificado e estudado como numa mesa de laboratério. Assim, o realismo neoclassico autoriza o retrato de Bertin. Rosto envelhecido, cabelos despenteados, mos gordas, mas esta atitude tensa, este olhar fixo e agudo, este desdém ao apoio no espaldar da cadeira, 'S Entre as figuragdes de tipos exéticos deixadas pelo neoclassicismo, bastante numero- Ss cito aqui uma outra, por sua altissima qualidade, o soberbo Retrato de negra, de mme. Benoit, datado de 1800 (Louvre), onde a pose altiva do personagem mescla-se com uma Notével sensibilidade erotica, '6 Umcertonacionalismo brasileiro mal informado quer ver nessas obras de Debret uma pyiet com sua formagio neoclssicacausada por uma interferénciadeterminante do meio *rasileiro que, Por alguma obscura virtude subversiva, transformasse seu modo de ser artis- = Este raciocnio ignora dados elementare,dentre os quas eta cracerstcafardamen- *realismo neoclissico, que oferecia aos pintores o poder de retomar quaisquet ing, ett undos, ede incorpori-laspor vade instrumentosjé peteinmetposis fixoe ‘ewe E puerilidade ideolégica imaginarmos que a paisagem brasileira ‘ansformacées dos procedimentos artisticos de Debret. 431 estes bragos que fazem 0 corpo armar-se, como que a saltar: homem de negocios enérgico, ou animal de rapina. Notemos entretanto que Ingres nao abandonou os poderes do seu desenho linear: basta atentarmos para as curvas impecaveis e Penetrantes da cadeira, para as ondulagées no contorno dos arcos dos bragos, pro- duzidas pelas dobras nas mangas. Como no caso de 4 fonte, o resultado linear deriva de um trabalho de observagao do modelo. Este é 0 primeiro realismo de Ingres. O segundo é 0 produto de sua frequentacao dos primitivos fle mengos, e em particular dos Van Eyck. Um realismo da miniicia, do esmiugar o infimo, trabalhando como que com uma lupa. O retrato de Napoleéo no trono imperial nos mostra uma associa¢ao inesperada, con- traditéria: a de uma imagem monumental, amplissima, hierdtica ao modo de um pantocrata bizantino, contudo recoberta por uma abundancia de detalhes mimisculos. Sao rendas, bordados a ouro, franjas, metais fina- mente cinzelados. Ingres leva o rigor desse realismo ao ponto de fazer refletit, na base polida do trono de ouro, o desenho do tapete, que repre- senta os signos do zodiaco inseridos em circulos. Apenas o iltimo desses circulos é diferente: ele reproduz a Virgem da cadeira de Rafael. E ela Parece bem necesséria para testemunhar o amor que Ingres nutria pelo Brande pintor de Urbino, Porque, se ela nao estivesse ali, nada no quadro permitiria suspeitar desse amor. Ingres, o grande representante da tradicao classica, o Rafzel moderna, os langa um outro paradoxo: odo primitivismo em suas obras Primitivismo e classicismo naturalmente se excluem. Mas Ingres € cap = oe = Paolo e Francesca (o da versio do muse « 19, por exemplo),"” ea mesmo tempo tio claramente ingresco: tor procedeu com o cor tepadeira, até sua boc: Francesca, Sio as Francesca. Ele Propri genialmente pré-rafaelita, €@ basta percebermos como 0 pin Po de Paolo, que se desenrola, vegetal como um? 4 atingir, no apogeu de um estiramento, a face 4 as que compéem a imagem de Paolo que chegamat® © estdimobilizado por esse acabamento que cristalia "7 Ingres realizou sere verses dessa obra. "32 Ingres eas perverse da classicemy ‘Apintura de Ingres nao comporta a representacao do movimento: o livro que Francesca deixou cair paira, fixo no ar, interrompido na sua queda. Voltemos porém ao corpo de Paolo, que desafia todas as leis da ana- tomia em seu alongamento. Estamos diante de uma das caracteristicas mais célebres da arte de Ingres: seu desrespeito as verossimilhangas das estruturas do corpo humano. 4 grande odalisca, do Louvre, de 1816, foi objeto de criticas imediatas, e de perplexidades: onde se articulaa perna esquerda? E esse braco direito, desossado, absurdamente longo? E essa anca imensa acoplada as espaduas estreitas? Mas essa mulher tem trés vértebras a mais!, gritam os anatomistas. Eles tém razao: do ponto de vista das proporg6es do corpo humano, ela é sem diivida um monstro. De : as linhas serpenteiam, inefavelmente; as uma beleza suprema, no entant matérias possuem texturas preciosas e sedutoras; e o antiquissimo tema do nu feminino é aqui renovado com contribuigées definitivas. Originalidade e monstruosidade: aconteceu algo de estranho com a formagao neoclassica de Ingres. David levara como fundamental pro- cedimento de escola o estudo das partes que deveriam constituir um quadro. O mundo e os corpos eram trabalhados em seus elementos: cada objeto, mas também um nariz, uma boca, um pé, um gesto, uma expresso. Uma vez que esses estudos parciais tivessem chegado a um ponto satisfatério, as partes eram reunidas para constituir o todo. Ingres, a partir desse método, trabalha cuidadosamente, obsessivamente, as partes: ele deixou belas pranchas de estudo, como as do Martirio de Sao Sinforiano [fig. 17]. David, porém, tinha uma exigéncia fundamental para a formagao de um pintor: 0 estudo apro- fundado da anatomia, que garante a unidade coerente dos corpos. David ¢xigia mesmo que todos os personagens fossem primeiro representados nus, dentro de um rigor anatmico estrito. Esses estudos eram transpostos pare escala maior do quadro mediante o processo do desenho quadriculado. Um quadro inacabado de David, o Juramento do jogo de pela, per- Mite compreender uma outra etapa desse proceso. As cabegas foram ‘erminadas, Os corpos permaneceram desenhados, em seu Saree — 6, nus. Eles deveriam ser vestidos pee ee : ‘ava uma disciplina estrita de execuga0 que evitava, j Beracio de monstros. 133 Ora, se, por um lado, Ingres, herdeiro de David, desenvolye exaces. badamente o principio do estudo das partes, num perfeccionismo obses. sivo, por outro desdenha os instrumentos da unidade anatémica, Com isto, perverte a disciplina neoclassica que, em suas mos, se torna aber. rante. Por exemplo, um estudo para 0 Banho turco revela a hesitacio ng postura dos bracos. Primeiro, Ingres desenha o direito apoiado sobre 9 joclho. Em seguida, o imagina dobrado para trés, com a mio apoiandoa nuca, Serd essa a posigao definitivamente escolhida e transportada paraa tela. Ingres, entretanto, ndo se preocupa em corrigir as mudangas anaté- micas que a nova atitude determinaria — isto é, nao se importa em fazer as alteragdes que seriam necessérias, no ventre, no seio."* Basta uma con- tinuidade linear e a questo esté resolvida. Um outro quadro, Antioco e Estratonice, aqui na versio do Museu de Chantilly,” de 1840, mostra, na sublime figura feminina, um defeito anatémico que os criticos contemporaneos ja assinalavam:” é impossi- vel adivinhar onde esté o brago esquerdo, cuja mao parece sair do nada. Mais: as proporgées dos personagens, suas relagdes com 0 espago com- Partimentado, com o baldaquim, com as colunas, com os desenhos geo- métricos do solo, sao estranhas, aproximativas. Eles se encontram em situagbes imprecisas. Além da unidade anatémica, Ingres desdenha a unidade perspectiva. 48. Jacques Riviére, em “Ingres” (in nude ae e tees ae Ingres” (in Etudes. Paris: Gallimard, 1925), notou, P33 19. Ingres realizou quatro versdes dessa obra, 20. Assim, esta citacZo extraida do ve rousse du 1, siécles de calme. La tite ext sent ta pensée ou la : rbete Stratonice, do Grand Dictionnaire Universel Lo Cue figure de Seatonice, a dt T. Thoré, est admirable de simple “ppisyte sur la main droit, & la maniére des statues antiques gui 9! sidlcton inne, La diaper, d'un Bleu fin engent, ox din ene tlle ne laisse pas assez ranspartire le modelé dela forme. Por mall! Ue bras gauche est pers ‘ Beuche est perdu et la main vient on ne sai d’oh” [Esta figura de Estratonice, afirmo? "34 Ingres 0s perveries do classic Nao ha, entretanto, espirito de sistema. As defor eclodem além daquilo que é intencional. Temos a impressio de que elas ageontecem” nos quadros de Ingres. Ele nao Possui o pressuposto basic dos maneiristas, de um Pontormo, por exemplo, que é 0 do jogo proposi- tlcom as regres da anatomia e do espago, Poriss, Ingres é tempo por sua Pratica: ela no pode ser imitada, ela nao Pode ser ensinada, Tudo isto deveria falar & pintura do futuro. Sao fenomenais audécias -embora Ingres certamente recusasse com horror tal palavra. Manet, Renoir, Seurat, Matisse, Picasso viriam sucumbir ao fascinio dessa arte. Bis Ingres, 0 reacionario que se afirmava contrario a toda novidade em arte, que acreditava na natureza extratemporal do belo, que proclamava nao haver depois de Fidias e Rafael mais nada a inventar e que a fun- sao dos artistas seria a de “manter o culto do verdadeiro perpetuar a tradigao do belo”, retomado, admirado, louvado pela vanguarda que o sucedeu! Ingres, o académico, patrono de Picasso. Como entender tantas contradigdes? Poderiamos fazer apelo, tal- vez, aum principio basico na arte de Ingres, algo que chamariamos de colagem. Seu neoclassicismo Petverso permite ajuntar partes sem o rigor daescola. Essas partes, porém, apresentam nao apenas formas, mas trata- mentos distintos. Diante de Japiter, de torso fortemente modelado, des- cobrimos uma Tétis com tio pouco relevo que mesmo 0 ombro, visto de perfil, desapareceu, para que o personagem todo se transformasse em superficies planas e recortadas, em linhas trabalhadas tao poeticamente. Essas partes podem possuir naturezas culturais diversas: 6 assim que, no Yoo de Luis xm, de 1824 [fig. 18], 0 pintor cita Rafael na imagem da Vir- &m, ¢ Philippe de Champaigne na figura do rei. : Honello Venturi escreveu, a partir deste quadro, algumas das pagi- "28 mais cepas sobre Ingres, e sua acusagdo fundamental é a da auséncia deunidade. & verdade que essas colagens parecem justapostas sem preo- Pages de sintese que as justifique. Mas o Jogos de Ingres nao ae “unidade. O artista dispde imagens sobre uma superficie, bastando- ae Mm trabalho que se reduz quase ao artesanal, trabalho lento, — do no acabamento, na perfeigio da parte que guarda, cada ne as Principio de autonomia, e possui uma certa indiferenga em relag: mages, justaposicoes ico em seu 135 outras. Os elementos nao se harmonizam entre si ~ articulam-, 7 a i’ © com, podem, as vezes pelo meio admiravel da linha conduzida, as ve a finci 225 ely simples concomitancia. Nao é inutil assinalar aqui um trago biogrdfico: a origem de Ingres é modesta, sua formago muito pouco intelectual. Seu pai era attesio, escultor de ornamentos, dourador. Isso pode oferecer um dado para compreensio de tal pintura que busca seus caminhos através de uma pri ca, em cujos principios encontra-se, de maneira forte, o respeito pelo traba. tho perfeitamente acabado, Outro ponto & que a auséncia de cultura pode- ria conduzi-lo a um discurso ingénuo, feito de simbolismos e mensagens pessoais, nao muito longe de certos processos da arte naif, e que pode estar presente na obra de Courbet. Isto, em Ingres, nao aconteceu, pois ele se fecha em seus procedimentos, e nao busca estruturas mentais explicativas. Ingres, em seu tempo, julgava-se um incompreendido. Exilou-se icae voluntariamente na Itélia durante longos decénios, em reagio 4c ao piblico de seu pais. Foi admirado sobretudo por seus desenhos e por seus retratos, embora quisesse 0 respeito por suas pinturas mais ambi- ciosas e complexas. Investiu suas esperangas numa obra que considerava maxima: O mantirio de Sao Sinforiano [fig. 17], de 1834. Que foi um fre- casso, de critica e de piiblico. Ingres esperava que a posteridade o vingasse. Até hoje isto n40 aconteceu — Sao Sinforiano é 0 quadro mais mal-amado do pintor. 0 tecado do artista, entretanto, foi claro: era esta a obra-prima. Imagem poderosa, em que os gestos amplos dialogam, fazendo com que o martir e sua mae lembrem imensos passaros de asas abertas, lumi- nosos diante do actimulo de seres que se amontoam num triangulo. Sa Sinforiano, quadro de ressondncias Picassianas, guernicanas, pelaalta pro” clamagio dos gestos, da arte de Ingres. c aa Sues#mos nos perguntando qual seria 0 ogos dessa ares °° al é samos cada vez mais dentro da natureza inacessivel que 2 dela- Ingres ZB los Pela fixagao das express6es, concentra 0S segred 136 Ingres eas perversbes do classiciomo parece exemplar em seu radicalismo Porque, justamente, nao se dei reduzit a um Jogos. Seria tao facil, tao cémodo, se a - leixa alguma razio fundamental: a harmonia, a unida de, a = adeformaco; um projeto coerente de construgao, ou de deste a mundo visivel. Mas Ingres é, decididamente, um pintor desconf 0 do Séo Sinforiano, enigma maximo da esfinge, fica a distanci fortavel. de Autun, indecifravel. cla, na catedral Ingres ndo se entrega, e desafia 0 /agos — desafia 0 proprio principi logos. Sua arte nio se deixa desvendar pela palavra. Ela nos ae justamente ao mistério, a exasperante impossibilidade de nomear.

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