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EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA E REFLEXÕES EM PROCESSO FORMATIVO:

EM BUSCA DE UMA METODOLOGIA VIVA1

Barreto de Santana, Iolanda.


Junior, Weligton.
Reis, Helisandra.
Silva de Souza Ribeiro, Marcelo.
Universidade do Estado de Pernambuco - UPE
Mestrado em Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares
e-mail: mribeiro27@gmail.com
Linha Temática: 1) Poéticas da sobrevivência e do inacabado: educar sentindo o inesperado

RESUMO
Este artigo, fruto de um relato de experiência, floresceu no âmbito de uma disciplina optativa
intitulada “O professor reflexivo e a epistemologia da prática”, que é ofertada no Programa de
Pós-Graduação em Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares (Ppgfppi), Mestrado
Profissional da Universidade de Pernambuco – UPE, campus Petrolina-PE. Tal disciplina
aborda a epistemologia da prática docente do ponto de vista teórico e vivencial. Teve a
colaboração ativa de três estudantes em todas as etapas, inclusiva na autoria do artigo.
Objetivou analisar as experiências que reverberaram nos processos formativos e na prática
profissional dos participantes, a partir de recortes dos relatos que indicassem significativas
experiências de aprendizagem. Utilizou-se do “diário de bordo” como instrumento de registro
e fonte irradiadora de vivências e reflexões, individuais e coletivas. Além disso, houve
mediação de uma metodologia viva que valorizou a presença sentida nas relações dos
participantes e dos processos de ensino e aprendizagem. Os relatos testemunharam uma
contribuição à formação e o desenvolvimento da prática profissional, via a vivência e
reflexão, no modo de sistematizar o fazer docente. A valorização da epistemologia da prática,
no contexto de processos formativos, indicou a afirmação do vivido, na dialógica do estar
com o outro, ao tempo que demandou reflexões na e sobre a ação. O desenvolvimento de
metodologia viva prescinde da vivência de consciência, de corpos afetados, de encontros, de
implicações com outro, mas também de reflexões que incidam sobre a ação e na ação.
Conclui-se que a postura reflexiva e vivencial, em uma relação dialógica, atualiza
acontecimentos criativos que reverberam na formação profissional.

Palavras-chave: Epistemologia da prática; Experiência; Reflexão; Formação docente;

Por uma introdução

1
RIBEIRO, MARCELO SILVA DE SOUZA; SANTANA, I. B. ; JUNIOR, W. ; REIS, H. .
EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA E REFLEXÕES EM PROCESSO FORMATIVO: EM
BUSCA DE UMA METODOLOGIA VIVA. In: VII Simpósio Internacional em Educação e
Filosofia - Filosofia, educação e acontecimento: encontros potentes com a catástrofe, 2017,
Recife. Anais do VII Simpósio Internacional em Educação e Filosofia - Filosofia, educação e
acontecimento: encontros potentes com a catástrofe. Recife: UFPE, 2017. v. 1. p. 1-15..
O presente artigo versa sobre experiências de desenvolvimento profissional docente no
âmbito de uma disciplina optativa intitulada “O professor reflexivo e a epistemologia da
prática”, que é ofertada no Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e
Práticas Interdisciplinares (PPGFPPI), Mestrado Profissional da Universidade de Pernambuco
– UPE, campus Petrolina-PE.
A referida disciplina propõe analisar a formação e a prática profissional via os recursos
que propiciem a reflexão individual e coletiva de modo a sistematizar o fazer docente como
"objeto de conhecimento", transformando e estruturando novas práticas, assim como a análise
de representações das ações (visões de mundo, crenças, valores e pressupostos). Almeja,
nesse processo, integrar recursos cognitivos e afetivos para o processo de objetivação como a
experimentação em ação, discussão e comparação com outras práticas e outras representações.
Em termos de objetivos é possível destacar que a disciplina, campo de nossa análise,
aborda a postura autorreflexiva a partir de uma abordagem metódica e analítica via os
referenciais teóricos, juntamente com a capacidade de reinvestir em ação os resultados do
trabalho de objetivação da prática existente, ou seja, tem como objetivo identificar problema,
fazer diagnóstico, desenvolver estratégia para resolver problemas da prática, formalizando a
experiência e construindo novas competências.
Aliado a essa postura autorreflexiva, a disciplina tem como princípio a implicação do
conceito de “Metodologia Viva” (RIBEIRO, 2016), que assume a valorização do
acontecimento, da abertura pelo inesperado, dos sentidos e de uma relação dialógica.
No que se refere aos conteúdos há contundente influência da perspectiva do chamado
profissional reflexivo (SCHON, 2000; PERRENOUD, 2001 e 2002), da epistemologia da
prática (TARDIF, 2002; ZAPATA, 2004; BONDIA, 2004), além do modelo de conceito de
ação (FREIRE, 1982, 1994, 2003, 2004 e 2005) e da ideia de comunidade de aprendizagem
(ELBOJ, 2002).
Desde a sua primeira versão, a disciplina vem concebendo o espaço de sala de aula
experimentado pelos alunos como um laboratório, que na sua etimologia latina significa
laboratorium, “lugar de trabalho”, de laborare, de trabalhar, mais também de oratório, de
dedicação e devoção. Portanto, assumimos a sala de aula como um espaço de trabalho onde
todos possam se envolver e se implicar.
A nossa disciplina (estaremos nos posicionando na primeira pessoa do plural para,
justamente, evidenciar a gestão coletiva das experiências e mesmo da produção deste artigo e
só na parte dos relatos haverá mudança na pessoa do verbo) sempre buscou, desde a sua
primeira oferta em 2015.2, uma dimensão prática, portanto vivida e implicativa, das ideias e
conceitos abordados. Para tanto, a construção e organização de um contexto de sala de aula
facilitador se fez necessário. Tanto na primeira edição, quanto na segunda edição da disciplina
(2016.2), o tempo dos encontros foi importante para que os participantes pudessem se
envolver, “mergulhar” em suas experiências e reflexões, compartilhar e elaborar sentidos e
significados, além de testemunhar mudanças em suas práticas profissionais.
A primeira edição teve, portanto, encontros com duração de 8 horas, a cada quinze
dias e a segunda versão, teve encontros de 4 horas a cada semana (a primeira edição houve
um número aproximado de 20 alunos, enquanto a segunda começou com 5 e terminou com 3
– o que é comum para disciplinas optativas de mestrado). Obviamente, além da
organização do tempo para se maturar as experiências e elaborações, o contrato pedagógico
da disciplina foi fundamental à medida que enquadrou o seu sentido para os alunos (de uma
disciplina que demandaria envolvimento intelectual e afetivo), dentro de um compromisso
ético de sigilo, respeito e empatia.
O presente artigo analisa as experiências da segunda versão da disciplina, que teve os
seguintes conteúdos norteadores e suas principais respectivas referências:
• Epistemologia da prática (ZAPATA, 2004; DEWEY, 1959);
• Epistemologia do saber experiencial (TARDIF, 2002; DEWEY, 1959;
Amatuzzi, 2007; ROGERS e KINGET, 1975; BONDIA, 2002 e 2004);
• Conceito do profissional reflexivo (SCHÖN, 2000; PERRENOUD, 2001 e
2002);
• Conceito do professor – pesquisador (ZEICHNER, 1998; NOVOA, 1992);
• Comunidade de aprendizagem (FREIRE, 1982, 1994, 2003, 2004 e 2005);
• Conceito de mudança intencional (HABERMAS, 1987a, 1987b e 1987c);
• Modelo de conceito de ação (HABERMAS, 1987a, 1987b e 1987c, FREIRE,
1982, 1994, 2003, 2004 e 2005);
Do ponto de vista operacional, um instrumento fundamental para tornar possível a
proposta foi a utilização do chamado “diário ou jornal de bordo”, ou “caderno de bordo
reflexivo”. Este servia de registros de modo que os estudantes anotavam suas experiências e
reflexões, entre uma aula e outra, sempre a partir de consignas dadas e tendo relação com os
conteúdos abordados. Por exemplo, se na semana o conteúdo seria sobre a “epistemologia do
saber experiencial”, os estudantes eram convidados a registrar acontecimentos que pudessem
destacar elementos que tinham a ver com o conteúdo a ser abordado. Isto significava narrar os
seus registros, compartilhando-os e ressignificando-os em diálogos coletivos. Avaliamos que
isso garantia a articulação entre teoria e prática, dando sentido, certamente, às aprendizagens,
além de implicar os estudantes no processo coletivo também de aprendizagem.
A seguir, somente para ter uma ideia, algumas das consignas que orientaram os
registros no “caderno de bordo reflexivo” quando estava sendo abordado o conteúdo
“professor reflexivo”:
a) Escrever situações que chamaram a atenção, sobretudo, e quando possível, em
contexto de trabalho. Algo da prática que marcou.
b) Registrar alguns acontecimentos marcantes ao longo dos dias, que possam ser
classificados como “positivos e ou negativos” e que estejam, preferencialmente,
relacionado a vida do trabalho;
c) Registrar acontecimentos, seguindo os passos:
• O primeiro passo envolve a ocorrência de um problema;
• O segundo passo envolve a intelectualização ou elaboração do problema;
• O terceiro passo envolve a hipótese e a construção desta compreende o uso criativo
da imaginação para desenvolver possíveis soluções;
• O quarto passo envolve o raciocínio, ou seja, as ideias que vêm à mente são
capazes de grande desenvolvimento, e esse ato de raciocínio analisa as condições
existentes e o conteúdo da hipótese, amplia o conhecimento ao mesmo tempo em
que depende do que já é conhecido e das facilidades de transmiti-lo;
• O quinto passo envolve a verificação da hipótese, fazer alguma coisa para produzir
o resultado previsto e assim por em prova a hipótese;
Diante da proposta e dinâmica da disciplina é possível caracterizá-la no âmbito da
compreensão da formação – ação (MACEDO, 2000 e 2015). Isto significa dizer que o
processo formativo é concebido na integração das mudanças vividas pelos estudantes e
também pelo professor, já que este se coloca implicado nos processos dialógicos e dialéticos
que foram vividos.
Muitos relatos de estudantes indicam que a disciplina cumpriu a sua proposta, assim
como indica a importância de Metodologia Viva (RIBEIRO, 2016) nos contextos formativos,
principalmente em programas de pós-graduação stricto sensu que se quer vinculado ao mundo
do trabalho.
Um dos relatos que fora problematizado resultou em publicação (LIRA e
SARMENTO, 2016), o que certamente estimulou a produção do presente artigo, também com
a intenção de compartilhar essas experiências, expor à crítica científica e, quiçá, estimular
novos e variados modelos ensino que valorizem a formação – ação.

Organização e sistematização dos relatos


Sendo este artigo fruto de um relato de experiência, os aspectos metodológicos
correspondem ao modo como organizamos as informações e os registros das experiências
atravessadas durante a disciplina. Nesse sentido, pedimos aos estudantes que escrevessem
relatos onde pudessem indicar suas principais aprendizagens. É válido relembrar que a
disciplina utilizou do instrumento “Diário de bordo” para as anotações das reflexões e
experiências vividas. Os relatos apresentados a seguir, portanto, foram extraídos dessas
anotações.
O artigo, na fase que se segue, está estruturado a partir de narrativas dos três
estudantes da última edição da disciplina. Cada um a seu modo particular, destaca
experiências vividas, as transformações na prática profissional e abre possibilidades para
refletir outros elementos que extrapolam os objetivos da disciplina, demonstrando a
transcendência dos alunos no que diz respeito aos seus processos formativos.
A primeira narrativa traz a questão da identidade, ou seja, o quanto a passagem pela
disciplina possibilitou a sua afirmação da identidade docente. A segunda, traz a capacidade da
aluna (que é professora de uma rede municipal) refletir sobre sua prática e reconhecer seus
potenciais de autodesenvolvimento. A terceira e última narrativa, que é de uma estudante e
também orientanda do professor da disciplina em tela, aborda o quanto a experiência do
“laboratório” foi formativo para apreender o modo de se trabalhar com o outro, inclusive
servindo de inspiração para a execução do próprio projeto do mestrado.
Temos que observar, por fim, que, por serem narrativas que trazem caminhos próprios
e percursos singulares, mesmo na tentativa de dar uma harmonia ao texto, há que se
considerar a variação da escrita e o uso dos pronomes.

Do vacilo ao salto: reinvenção de si no encontro com o outro


Foi com frio na barriga. Assim, o mundo acadêmico da Educação se fez presente em
uma nova etapa. O conhecimento tácito, da práxis, precisava, para mim, de fato, de um
aprofundamento teórico que subsidiasse a mediação feita pela base bacharel e profissional.
A experiência de atividade nas disciplinas do Mestrado serviu, também, como uma
ação de terapia da postura do professor que desempenho em sala de aula. O olhar para dentro,
a reflexão e revisão de posturas foram as marcas inicias da troca de experiências vividas na
disciplina.
Paulo Freire (1982, 1994, 2003, 2004 e 2005) diz que não há docência sem discência e
essa observação ficou muito clara quando, de forma serena e meditativa, passamos a refletir
sobre o arcabouço pedagógico que se desempenha na mediação de saberes. O aprender, como
condição primordial da profissão docente impõe posturas de articulação de todas as
experiências vividas e aliadas novas que surgem no dia a dia da ação educativa.
Ainda tendo Freire (1982, 1994, 2003, 2004 e 2005) como norteador, percebo com
todas essas observações, que temos elucidado a questão que, mesmo com as diversas posturas
profissionais, todos necessitam de saberes comuns, centrais e que colaboram na formação do
cidadão.
No trilhar da disciplina, o debate sobre as diversas possibilidades de construção do
saber, onde o professor desempenha o papel de “mais um” construtor foi libertador.
Compreender, claramente, que o ensino não depende exclusivamente do professor (sem se
esquivar da responsabilidade), assim como aprendizagem não é algo apenas de aluno, mas sim
dos sujeitos corresponsáveis, foi reconfortante.
Os encontros, para tais reflexões, ocorreram de forma expositiva, com os debates
mediados pelo professor da disciplina que conduzia a análise das leituras prévias e organizava
o entendimento e aplicabilidades. A postura atenta, humilde e disponível do titular da
disciplina foi fundamental. Sua condução e encaminhamentos, como, por exemplo, suas
considerações sobre os textos tratados e os que precisavam ser mais bem estudados,
proporcionou novas visões sobre as questões abordadas e concatenadas a outros pensamentos.
Na progressão dos encontros, ficou claro que a troca entre os colegas seria o tom
norteador da nossa disciplina. Além do conteúdo da bibliografia indicada na disciplina ter
sido voltado para questões reflexivas e críticas da formação do profissional, os relatos de
experiência tomaram conta do ambiente.
No exercício proposto pelo professor para descrever uma experiência, lembro-me da
exposição sobre uma das dificuldades e aprendizados em sala de aula com a presença de um
aluno surdo. O referido aluno tinha a companhia de uma tradutora que o acompanha e
colaborava nos estudos de forma muito atenta, mas, até então, nunca tinha visto uma
apresentação dele. Quando houve a proposição de um seminário, me preocupei bastante com
o aluno, mas no dia da entrega, fui surpreendido pela capacidade cognitiva e clareza, através
da Língua Brasileira dos Sinais (LIBRAS).
Outro destaque é construção dos diários de bordo (ou jornal de bordo). Os escritos em
relato das aulas são fundamentais para a fixação dos assuntos debatidos, além de registro.
O semestre letivo foi extremamente prejudicado por duas questões: uma pessoal – o
período eleitoral; e a ocupação, do campus, por parte dos estudantes em protestos. Como
jornalista e assessor de comunicação, o período de campanha majoritária dando consultoria
em duas cidades da região foi intenso e me tirou, por vezes, o foco da disciplina. Apesar de
viajar muito me dediquei ao máximo às atividades.
Neste tempo, mesmo com todos os percalços, construí, atentando a um pedido do
professor, a minuta do projeto de pesquisa que seria apresentado ao processo seletivo que
pretendo me submeter. Com muita atenção, montei e apresentei o projeto, obtendo retornos do
professor que foram fundamentais para o aprimoramento e a lapidação do texto, das ideias e
dos argumentos.
Com as lutas estudantis em favor de suas pautas, o campus foi ocupado e nossas aulas
suspensas por mais de três meses, atrasando o calendário e desacelerando o ritmo. Apesar do
quórum reduzido na volta das aulas, o retorno geral foi positivo. Não havia mais frio na
barriga. Havia uma vontade de me lançar cada vez mais nas descobertas de ser professor.

Caminhos desequilibrantes e recriadores na experiência da disciplina


Cursar esta disciplina me fez viver momento de amadurecimento profissional quanto a
minha prática docente através de análises de textos e discussões sobre a realidade vivida. As
trocas de experiências me trouxeram a possibilidade de conhecer realidades diferentes e de
refletir sobre a minha prática no cotidiano, compreendendo que o professor reflexivo é aquele
que pesquisa, analisa a sua prática, além de buscar transformá-la.
Como afirma Perrenoud (2002),
a prática reflexiva pode ser entendida, no sentido mais comum da palavra,
como a reflexão acerca da situação, dos objetivos, dos meios, do lugar, das
operações envolvidas, dos resultados provisórios, da evolução previsível do
sistema da ação (PERRENOUD, 2002, p.30) .

Nesse sentido, a disciplina proporcionou refletir sobre a importância da teoria e da


prática, onde se entrelaçavam, promovendo a reflexão na ação e na busca de transformações
vividos no ambiente do ensino-aprendizagem.
Atividades que foram propostas, como analisar situações no ambiente escolar que
chamaram nossa atenção, levaram-me a buscar informações sobre a prática docente de um
colega de trabalho que despertava nos alunos o interesse pela leitura através de práticas
diferenciadas. Após conhecer a metodologia de trabalho desenvolvido pelo colega,
compreendi como a prática docente de um profissional pode ser referência para a vida do
aluno. Descobri que, de acordo com a ideia de ação comunicativa e mudança intencional
(HABERMAS, 1987a, 1987b e 1987c), é possível um diálogo entre os pares de modo a
potencializar pequenas “revoluções”, pequenas, porém significativas, mudanças no contexto
escolar, mesmo começando na sala de aula.
Conhecer e compartilhar experiências da prática docente de uma das minhas colegas,
que trazia a arte através da música, do teatro, do curta metragem para as aulas da sua
disciplina de História, mostrando o envolvimento de seus alunos durante as apresentações de
trabalhos, foi algo muito revelador, pois a simples possibilidade da gente compartilhar essas
experiências reverberou, em mim, uma série de reflexões. A prática diferenciada de outro
colega, que leciona a disciplina de Matemática, pode desmitificar essa disciplina como sendo
o “bicho papão”.
Portanto, a cada encontro da disciplina, despertava a necessidade de reflexão sobre
minha prática docente, buscando transformar o que precisa ser mudado. Passei a estar
observando as práticas de meus colegas que me chamavam a atenção e adotá-las quando
encontrava possibilidades. Recriei minhas experiências.

Alteridades constituidoras
Sou pedagoga e docente da rede pública municipal, especialista em Educação Infantil
e Psicopedagogia e mestranda em educação. Trago nesse relato as experiências vivenciadas na
disciplina “Professor reflexivo e a epistemologia da prática”. Uma disciplina organizada de
modo a trazer algumas discussões acerca da “epistemologia da prática” e do “professor
reflexivo” baseada nas práticas e nas bases teóricas que as sustentam. Foi desenvolvida a
partir de “momentos especiais” em que teoria e prática não aparecem de forma dicotômica,
mas como um encontro teórico-experiencial mediado, com vistas ao desenvolvimento pessoal
e profissional dos discentes. Teve como eixo central o professor-pesquisador de sua prática,
ou seja, trazendo a tematização da prática, de modo que os sujeitos (discentes e docente) a
cada aula e atividade realizada ou reorientada eram instigados a investigar e refletir sobre as
mesmas e, desse modo agir e pensar mais reflexivamente.
Ao relatar experiências vividas por e sobre nós mesmos nos permitiu um processo de
reorganização das ideias, além de buscar na memória a trajetória percorrida atribuindo-lhes
novos sentidos. Além do mais, o relato das experiências se configura nas representações que
fazemos das mesmas, funcionando como mecanismo reconstrutor e ampliador das
experiências, vividas e contadas, principalmente, porque a elas se atrelam as nossas
interpretações pessoais. Pois segundo Cunha (1997, p. 2), “[...] quando uma pessoa relata os
fatos vividos por ela mesma, percebe-se que reconstrói a trajetória percorrida dando-lhe novos
significados”.
Nessa perspectiva, empreendi esforços para recuperar na memória, nos registros do
jornal de bordo e na agenda, informações que me ajudassem a organizar o pensamento e,
consequentemente, ideias para a escrita reflexiva pontuando em cada momento as
aprendizagens desencadeadas de modo a retroalimentar reflexões futuras sobre a minha
prática e meu posicionamento frente a mim e aos outros. Não apenas teorizações, mas a
relação teoria-prática e como uma ilumina a outra, relação imprescindível de constituição do
professor reflexivo.
Desse modo o pensamento reflexivo nos impulsiona a constantes indagações e, por
conseguinte, a pensar mais reflexivamente. Nesse processo de busca por respostas nos
tornamos investigadores da nossa própria prática, de modo que as experiências vivenciadas
nessa busca, ampliam nosso repertório de conhecimentos.
Importante relatar, a necessidade em todo processo formativo, de estar com “espírito
aberto” (DEWEY, 1959), numa atitude de disponibilidade abrindo espaço para a circulação de
novas perspectivas.
Dito isso, o que está em “suspensão”, nesse momento, é minha prática, a experiência e
a relação estabelecida com a disciplina “Professor reflexivo e a epistemologia prática”, ou
seja, a trajetória formativa e os reflexos no desenvolvimento profissional, percurso que desejo
resgatar e cujo caminho será narrado, reconstruído e ressignificado, à luz dos referencias
teóricos e do compartilhamento de saberes.
Pensar a prática, na perspectiva do desenvolvimento pessoal e profissional, bem como
da autonomia intelectual do professor, se constitue como imprescindível no processo
formativo, haja vista as atuais demandas educacionais que impõem novos posicionamentos
frente à prática docente.
É mister explicitar o que me moveu nessa busca, trazendo inicialmente as ideias de
Freire (2003, p.65) quando pontua que “este é um saber fundante da nossa prática educativa,
da formação docente, o da nossa inconclusão assumida”.
Importante destacar que os relatos selecionados foram os que me tocaram e causaram
maior impacto na minha formação pessoal e profissional, como também a conquista
progressiva do processo de emancipação e autonomia, uma vez que percebo novos
posicionamentos frente a minha vida, tanto no campo pessoal quanto profissional.
Outro ponto que merece atenção nesse relato é como as coisas chegam até os sujeitos,
ou seja, uma mesma consigna nos levam a diferentes interpretações e escritas sobre a mesma.
Primeira aula, primeiro contato com o professor e colegas, disciplina e apresentação da
proposta de trabalho. Primeira semana de aula no mestrado. Tudo novo! Assim, pouco a
pouco fomos nos apresentando. Momento de grande expectativa para todos. Ao final da aula
fomos orientados a realizar uma atividade que comporia o “Jornal de bordo”, conforme
orientação do professor, cuja apresentação seria na aula seguinte.
Descrição da atividade: Para esta atividade fomos orientados a trazer para a próxima
aula uma situação de intensidade vivenciada, para apresentarmos e discutirmos coletivamente.
Inicio esse relato a partir do entendimento de que não se separa a pessoa do
profissional. Desse modo, o relato da atividade e a reflexão sobre a mesma estão afiliados as
ideias de Nóvoa (2000) e Tardif (2002).
Primeira aula e muitas informações, novas formas de ver as coisas. Comecei a refletir
sobre o que registrar e após muitas idas e vindas, duas situações de intensidade me vieram à
memória. A primeira foi o reencontro com meu pai, que há muito tempo não via. Deveras
marcante! O outro foi o encontro com a disciplina e o impacto que a mesma causou, no
sentido da novidade, das habilidades que teria de desenvolver. O novo sempre causa certa
ansiedade. O quanto me desequilibrou no sentido de que, naquele momento me senti atônita
com tantas informações e que deveria me apropriar de todas. Após a reflexão coletiva, da
escuta e mediação do professor, fui me dando conta do que estava acontecendo.
Entendemos que um processo formativo que toma como base de formação a
tematização da prática, com base no conhecimento experiencial numa perspectiva dialógica e
reflexiva, pode despertar, em nós docentes, a necessidade de refletir nosso saber-fazer. E,
nesse processo não se dispensa a pessoa do professor, como protagonista responsável por sua
própria formação (NÓVOA, 1995 e 2000).
Concordo com Bondía (2002, p. 21) ao pontuar que “a experiência é o que nos passa,
o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”.
Pois, o que veio à tona ao planejar os relatos aqui narrados foram as experiências mais
significativas, ou seja, aquelas que me “tocaram” no decorrer do desenvolvimento da
disciplina, quando fui colocado frente as minhas experiências pessoais e profissionais, na
condição de pesquisador da minha prática. Portanto, as experiências aqui relatadas
representam processos originais e foram organizadas, a partir das lembranças e registros das
experiências vivenciadas. Isso permitiu compartilhar com os outros as experiências vividas, as
percepções e mudanças ocorridas em minhas práticas (TARDIF, LESSARD e LAHAYE,
1991; PIMENTA, 2005).
Em uma das atividades do “Jornal de bordo” a consigna foi construir nossa linha do
tempo, dar um título a ela e apresentar na aula seguinte. Importante ressaltar que o professor
não estabeleceu nenhum critério para construção da mesma. Assim a construí estabelecendo
como critério relatar o período entre 1990 até 2016. Organizei a linha em fluxograma
distribuindo seguindo a ordem cronológica dos momentos selecionados e a intitulei “Eu e o
tempo”. No dia combinado cada discente apresentaria a sua para o grupo.
Nessa aula estavam presentes apenas dois alunos, eu e um colega. Este iniciou fazendo
a leitura da sua linha do tempo. Ao ouvir o outro de forma atenta e cuidadosa, comecei a me
dar conta de mim. À medida que o colega lia, mais consciência de mim eu ia tendo.
Refletindo atentamente sobre minha linha a partir dos relatos do outro “Eu e o tempo”
evidenciava o quanto o “Eu” não aparecia naquela linha que trabalho, família, etc. ocupavam
todo o meu tempo. E eu? Por que não apareço? Ouvir o colega me levou a me tornar visível
para mim mesma.
Quando o professor pediu para apresentar minha linha do tempo, apreciei, refleti e,
naquele momento, já tinha tomado consciência de mim, ou seja, o tempo era maior que eu...
Isso eu já tinha me dado conta. O papel do professor (a forma como conduziu a atividade) foi
fundamental na tomada de consciência de mim. A forma como mediou a atividade fez toda a
diferença nesse processo reflexivo. Fica claro que processos formativos em que o mediador se
envolve e conduz o processo, como participe dele, nos leva a modificações significativas, haja
vista que impõe novas perspectivas metodológicas e maior envolvimento dos participantes.
Coisa que um tipo de formação estritamente técnica não possibilitaria.
Narrar a mim mesma a partir de contextos colaborativos, dialógicos, reflexivos e
desenhados para tal, funcionou como momento privilegiado e, conforme Cunha (1997, p.4),
permite “[...] fazer a pessoa tornar-se visível para ela mesma”.
Nessa perspectiva, ao tomar consciência de mim, por meio da escuta do outro e da
constante reflexão, me tornei mais segura, mais autônoma, nas tomadas de decisões e
prospecções futuras. Dessa forma, as reflexões que se dão na/sobre as práticas e seus
compartilhamentos, bem como as aprendizagens ocorridas, não se reduzem apenas ao cenário
formativo, elas se ampliam ao sujeito em todos os contextos.
A atividade seguinte vem complementar a anterior, fazer uma de linha do tempo para
daqui a 10 anos. A partir da proposta do “Jornal de bordo” da construção da linha do tempo,
do cenário formativo organizado, da mediação do professor e, sobretudo, da escuta do outro a
elaboração da segunda linha do tempo já tinha outro desenho. Nesse momento já tinha tomado
consciência de mim e a linha, agora apresentada, representava minhas aspirações pessoais e
profissionais para daqui a 10 anos, e “eu” ocupava espaço significativo em planos futuros,
coisa que não acontecia. A atividade proporcionou um amadurecimento pessoal que com
certeza, refletirá no profissional de modo que as decisões e escolhas se darão de forma mais
conscientes.
A realidade diversa dos colegas e suas experiências convergiam em um ponto comum:
a busca pelo desenvolvimento profissional. Atrelado a isso, a reflexão como elemento
imprescindível no processo de formação, constituição da identidade docente e
desenvolvimento da autonomia do professor. As discussões coletivas proporcionaram
momentos ricos de trocas de experiências e saberes entre os discentes e professor, bem como
a ampliação do olhar, a partir das diferentes experiências narradas no contexto formativo.
Construir e narrar relatos de experiências das práticas vivenciadas, funcionou como
um processo emancipador à medida que nos colocamos diante de nós mesmo e dos outros.
Isso possibilitou sermos protagonistas no processo de construção da nossa própria formação
pessoal e profissional, influenciando expressivamente na nossa constituição indenitária.

Do acontecido ao acontecimento: Metodologia Viva em tecimento


Os desequilíbrios vividos que recriam as experiências, as alteridades que nos constitui
e nossos medos e coragens foram as tônicas desses registros. De modo semelhante, do lado do
professor dessa disciplina, o encantamento dos e nos encontros foram essenciais para todo o
processo.
Reencontrar e valorizar as “epistemes” das práticas vividas no âmbito da aventura
dessa disciplina (ZAPATA, 2004; DEWEY, 1959) proporcionou a produção de saberes da
experiência (TARDIF, 2002; DEWEY, 1959; AMATUZZI, 2007 ; ROGERS e KINGET,
1975 ; BONDIA, 2002) e, consequentemente, na ressignificação na identidade pessoal e
profissional. A postura reflexiva e vivencial, em uma relação dialógica e, ao mesmo tempo,
sistematizadora do ser e do fazer docente-pesquisador, recuperou os acontecidos de nossas
existências, atualizando-os em acontecimentos criativos.
O tecimento de uma Metodologia Viva prescinde da vivência de consciência, de
corpos afetados, de encontros (dialógicos), de implicações com outro, mas também de
reflexões que incidam sobre a ação e na ação. O “segredo” não está na técnica em si, seja de
um diário de bordo ou do que quer que seja, o segredo está na qualidade de ser e estar com o
outro.
Esses relatos, acreditamos, testemunham uma contribuição à formação e o
desenvolvimento da prática profissional via a vivência e reflexão no modo de sistematizar o
fazer docente. Uma epistemologia da prática, portanto, no contexto de processos formativos
parece indicar a necessária afirmação do vivido, na dialógica do estar com o outro, ao tempo
que demanda reflexões na e sobre a ação.

REFERÊNCIAS

AMATUZZI, M.. Experiência: um termo chave para a Psicologia. Memorandum, 13,


2007, n 13, p. 08-15.

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