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RBowsamun We “Sobre efoural tin: Rrucelbin © Ones uolbaifee v3, Shab Bu Sobre Alguns Temas em Baudelaire Baudelaire teve em mira leitores que se veem em dificuldades ‘ ante a leitura da poesia Utica. O poema introdutério de As * Flores do Mal se dirige a estes leitores. Com sua forga de vontadz , conseqiientemente, seu poder de concentragio nao se vai longe; esses leitores preferem os prazetes dos sentidos e estio afeitos 20 spleen (melancolia), que anula o interesse e a receptividade. B surpreendente encontrar um poeta Iirico que confie nesse piiblico — de todos, o mais ingrato. # claro que existe uma explicagéo para isso: Baudelaire pretendia ser compreendido; por isso dedica seu livro aqueles que the so semelhantes. © “— Hipécrita leitor, mew igual, meu irmo!” A férmula se torna mais fecunde quando reestruturada, isto 6: Baudelaire escreveu um livro que, « priori, tinha poucas perspec- tives de éxito imediato junto ao pablico. Confiava no tipo de Teitor desctito no poema introdut6rio, E aconteceu que este ccloulo se mostrou de grande alcance. O leitor, para quem havia se preparado, serthe-ia oferecido pelo periodo seguinte, Que 104 WALTER BENJAMIN seja assim, que, em outras palavras, as condicdes de receptividade da poesia Ica se tenham tornado mais desfavoréveis, & demons- trado por trés fatos, entre outros. Primeiro, porque o lirico deixou de ser considerado como poeta ém si. Nao é mais “o aedo”, como Lamartine ainda o fora; adotou um género. (Verlaine nos dé um exemplo conereto desta especializagio; Rimbaud, j6 eso- térico, mantém 0 piiblico, ex officio, afastado de sua obra.) Segundo, depois de Baudelaire, nunca mais houve um éxito fem massa da poesia lirica. (A Iitica de Victor Hugo encontrou ainda forte ressondncia, por ocasiéo de sua publicacio. Na Alemanha é 0 Buch der Lieder* que estabelece a linha diviséria.) Uma terceira circunstincia, decorrente das duas primeiras: 0 piiblico se tomara mais esquivo mesmo em relagdo & poesia lirica que the fora transmitida do passado. O perfodo em questio| pode ser fixado a partir do meio do século dezenove. Nesta mesma época se propagou, sem cessar, a fama de As Flores do Mal. O livro, que contara com leitores sem a minima inclinagio © que, inicialmente, encontrara bem poucos propensos a com- preendélo, transformouse, no decorrer das décadas, em um cléssico, ¢ foi também um dos mais editados. Se as condigdes de receptividade de obras liricas se tornaram menos favordveis, é natural supor que a poesia Utica, s6 excep- cionalmente, mantém contato com a experiéncia do leitor. E isto poderia ser atribuido & mudanga na estrutura dessa experiéncia. ‘Talvez aprovemos esse ponto, mas s6 para ficarmos ainda mais embaragados em caracterizar essa transformagdo. Diante disso voltamo-nos para a filotofia e af nos deparamos com um fato singular. Desde o final do século passado, a filosofia vinha reali- zando uma série de tentetivas para sé apropriar da “verdadeira” experitncia, em oposigdo aquela que se manifesta na vida nor- matizada, desnaturada das massas civilizadas. Costuma-se inscre- ver tais tentativas sob a rubrica de “filosofia de vi ralmente, elas nao partiam da existéncia do homem na sociedade; invocavam a literatura, melhor ainda a natureza e, finalmente, a época mitica, de preferéncia. Das Erlebnis und die Dichtung (A Vivéncia e a Literatura), obra de Dilthey, € das primeires de uma série que termina com Klages e Jung, este comprometido com o fascismo.? Matidre et Mémoire (Matéria e Meméria), uma das primeiras obras de Bergson, destaca-se desta literatura como um monumento imponente, mantendo, mais do que as outras, ‘SOBRE ALGUNS TEMAS 105 relag6es com a investigasio cientifica. Orienta-se pela biologi Seu titulo- demonstra que a estrutura da meméria € considerada ‘como decisiva. para a estrutura filossfica da experiéncia. Na verdade, a experiéncia 6 matéria da tradigéo, tanto na vida pri- vada quanto na coletiva. Formase menos com dados isolados ¢ rigorosamente fixados na meméria, do que com dados acumula- dos, © com freqiéncia inconscientes, que afluem % memOri Bergson nio tem, por certo, qualquer intengfo de especificar hhistoricamente a meméria. Ao contrétio, rejeite qualquer deter- minagdo histérica da experiéncia, evitando com isto, acima de tudo, se aproximar daquela experiéncia, da qual se originou sua propria filosofia, ou melbor, contra # qual ela foi remetida. & a experiéncia indspita, ofuscante da éfoca da industrializagio em grande escala. Os olhos que s¢ fecham diante desta experiéncia confrontam outra de natureza complementar na forma por assim dizer de sua reprodugdo espontines. A filosofia de Bergson € uma tentativa de detalhar e fixar esta imagem reproduzida, Ela oferece assim indiretamente uma pista sobre a experiéncia que se apresenta aos olhos de Baudelaire, sem distoryées, na figura de seu leitor. Big Matidre et Memoire define o caréter da experitncia na durée (duragio)* de tal maneira que o leitor se sente obrigado a con cluir que apenas o escritor seria o'sujeito adequado de tal expe- riéncia. E, de fato, foi também um escritor quem colocau & prova a teoria da experiéncia de Bergson. Pode-se considerar a obra de Proust, Em Busca do Tempo Perdido, como a tentativa de eproduzit artificialmente, sob as condigées sociais atuais, a texperiéncia tal como Bergson a imagina, pois cada vez se poderd ter menos esperangas de realiz&-la por meios naturais.* Proust, alife, no se furta ao debate desta questio em sua obra, intro- duzindo mesmo um elemento nove, que encerra uma critica imanente a Bergson. Este nfo deixa de sublinhar o antagonismo existente entre a vita activa e a especifica vita contemplativa, + ‘No ensaio freudiano os conceitos de lembranga ¢ meméria no apre- sentam distingSes semfinticas relevantes Fara o presente contexto. 106 WALTER BENJAMIN f qual se abre na meméria. No entanto, sugere que 0 recurso | presentificagao intuitiva do fluxo da vida seja uma questio de livre escotha. Ja de Proust identifica terminologicamente sua opinido divergente. A meméria pura — a mémoire pure — da teoria bergsoniana se transforma, em Proust, na mémoire involontaire. Ato continuo, confronta esta meméria involun- ia com a voluntéria, sujeita & tutela do intelecto. As primeiras was de sua grande obra se incumbem de esclarecer esta rela- 0. Nas reflexes que introduzem o termo, Proust fala da forma precéria como se apresentou em sua lembranca, durante muitos anos, a cidade de Combray, onde, afinal, havia transcorrido Juma parte de sua inféncia, Até aquela tarde, em que o sabor da madeleine (espécie de tolo pequeno) 0 houvesse transportado de volta aos velhos tempos — sabor a que se reportard, entio, freqientemente —, Proust estaria limitado Aquilo que the pro- porcionava uma meméria sujeita aos apelos da atenglo. Esta seria ‘a mémoire volontaire, a meméria voluntéria; ¢ as informagGes sobre 0 passado, por ela transmitidas, nfo’ guardam nenhum trago dele. “E € isto que acontece com nosso passado. Em véo bbuscamos evocé-lo deliberadamente; todos os esforgos de nossa inteligéncia séo indteis."$ Por isso Proust nfo hesita em afirmar, concludentemente, que o passado encontrar-seia “em um objeto ‘material qualquer, fora do ambito da inteligéncia e de seu campo de ago. Em qual objetc, isso nfo sabemos. E é questio de sorte, se nos deparamos com ele antes de morrermos ou se jamais 0 encontramos”* Segundo Proust, fica por conta do acaso, se cada individuo adquire ou no uma imagem de si mesmo, e se pode ou nfo se apossar de sua propria experiéncia. Néo € de modo algum evidente este depender do acaso. As inquictagées de nossa vida {interior néo tém, por natureza, este caréter irremediavelmente privado, Elas s6 0 adquirem depois que se reduziram as chances dos fatos exteriores se integrarem & nossa experiéncia. Os jornais constituem um dos muitos indicios de tal redugdo, Se fosse inten¢ao da impreasa fazer com que 0 leitor incorporasse & propria experiéncia as informagdes que Ihe fornece, nao alcangaria seu objetivo, Seu propésito, no entanto, € 0 oposto, € ela o atinge. Consiste em isolar os acontecimentos do ambito onde pudessem afetar a experiéncia do leitor. Os principios da SOBRE ALGUNS TEMAS 107 informagio jornalistica (novidade, concisio, inteligibilidade ¢, sobretudo, falta de conexio entre uma noticia outra) contri- ‘buem para esse resultado, do mesmo modo que a paginacéo ¢ 0 estilo lingiifstico, (Karl Kraus no se cansou de demonstrar a que ponto 0 estilo jornalistico tothe a imaginago dos leitores.) A exclusio da informacio do ambito da experiéncia se explica ainda pelo fato de que a primeira néo se integra & “tradigéo”. Os jornais sfio impressos em grandes tiragens. Nenhum leitor dispoe to facilmente de algo que possa informar a outro, Hé uma rivalidade hist6rica entre as diversas formas da comu- nicagdo. Na substituigéo da antiga forma narrativa pela infor- informagao pela sensagdo reflete-se a crescente atro- fia da experiéncia. Todas essas formas, por sua vez, se distinguem da narragio, que ¢ uma das mais entigas formas de comunice- so. Esta ndo tem a pretensio de transmitir um acontecimento, pura ¢ simplesmente (como « informagio o faz); integra-o & vida do narrador, para passélo aos ouvintes como experiéncia. Nela ficam impressas as marcas do narrador como os vestigios das mios do oleiro no vaso da argila. 0s ito volumes da obra de Proust nos dio idéia das medidas necessérias & restauragdo da figura do narrador para a atuali- dade. Proust empreendeu a misso com extraordindria coeréncia, deparandose, desde 0 infcio, com uma tatefa elementar: fazer «a narragdo de sua prépria inféncia. Mensurou toda a dificuldade da tarefa a0 apresentar, como questic do acaso, 0 fato de poder ou nfo realizé-la, No contexto destes reflexdes forja o termo mémoire involontaire. Esse conceito traz as marcas da situagao fem que foi criado e pertence a0 inventfrio do individuo multi- fariamente isolado. Onde ha experiéacia no sentido estrito do termo, entram em conjunglo, na meméria, certos conteddos do passado individual com outros do passado coletivo, Os cultos, com seus cerimoniais, suas festes (que, possivelmente, em parte alguma da obra de Proust foram mencionados), produziam reite- radamente a fusdo desses dois elementos da meméria, Provo- cavam a rememorago em determinados momentos ¢ davam-lhe pretexto de se reproduzir durante toda a vida. As recordagies voluntérias © involuntéties perdem, assim, sua exclusividade reefproca. 108 WALTER BENJAMIN mw Na busca de uma definigo mais concreta do que parece ser um subproduto da teoria bergsoniana no conceito proustiano de meméria da inteligéncia, & aconselhével se reportar a Freud. Em 1921 surgiu 0 ensaio Além do Principio do Prazer, onde Freud estabelece uma correlacdo entre a meméria (na acepcio de ‘mémoire involontaire) e o consciente. Esta correlagao tem a forma de uma hipétese, As seguintes consideragées, nela baseadas, nfo tém a pretensio de demonstré-la, Tero que se restringir & comprovasgo de sua fecundidade para fatos distantes daqueles que Freud tinha em mente ao formulé-la. B mais provavel que conde Reik desenvolve sua teoria da meméria, em parte movem-se justamente na linha da diferenciacéo proustiana entre as lem- brangas voluntéria ¢ involuntéria. “A fungo da meméria — escreve Reik — consiste em proteger as impresses; a lembran- ga tende a desagregi-las. A meméria é essencialmente conser- vadora; a lembranga destrutiva.”” A proposigao fundamental de Freud, subjacente a essas explanacdes, formulada pela suposicao, segundo a qual “o consciente surge no lugar de uma impressio mneménica’.* © consciente “se caracterizaria, por- : 0 processo estimulador nfo deixa rele qualquer modificagio duradoura de seus elementos, como acontece em todos os outros sistemas psiquicos, porém como que se esfumaga no fendmeno da conscienti © axioma desta hipétese é “que a conscientizagio ¢ a permanéncia de um trago mneménico séo incompativeis entre si para um mesmo sistema”! Residuos mneménicos sio, por sua vez, “freqiientemente mais {ntens0s e duradouros, se 0 processo que os imprime jamais chega ao consciente”.! Traduzido em termos proustlanos: Sd pode se tornar componente da mémoire involontaire aquilo que nio foi expressa € conscientemente “vivenciado”, aquilo que nfo suce- dew ao sujeito como “vivencia”."? Segundo Freud, a fungSo de acumular “tragos permanentes como fundamento da meméria” em processos estimuladores esté reservada a “outros sistem: ‘que devem ser entendidos como diversos da consciéncia.* Ainda * Proust trata desses “outros sistemas” de manciras diversas, represen- tandoos, de preferéncia, por meio dos membros do corpo huimano, fe SOBRE ALGUNS TEMAS 109 segundo Freud, 0 consciente como tal nfo registraria ebsoluta- ‘mente nenhum trago mnemOnico. Teria, isto sim, outra fungio importante, a de agir como protesio contra estimulos. “Para o ‘organismo vivo, protegerse, contra os estimulos € uma fungéo quase mais importante do que recebé-los; 0 organismo esté dotado de reservas de energia préprias ¢, acima de tudo, deve estar empenhado em preservar as formas especificas de conversio de energia nele operantes contra a influéncia uniformizante e, por conseguinte, destrutiva das imensas energias ativas no exte- ior." A ameaga destas energias se faz sentir através de choques. Quanto mais corrente se tornar 0 registro desses choques no consciente, tanto menos se deveré esperar deles um efeito traumé- tico, A teoria psicanalitica procura “entender...” a natureza do choque traumético “... a partic do rompimento da proteso contra 0 estimulo”. Segundo esta teoria, o sobressalto tem “seu significado” na “falta de predisposigdo para a angustis ‘A investigagio de Freud foi ocasionada por um sonho tfpico dos neuréticos trauméticos, sonho este que reproduz a catéstrofe que os atingiu. Segundo Freud, sonhos dessa natureza “procuram recuperar o dominio sobre o estimulo, desenvolvendo a angéstia ccuja omissio se tornou a causa da neurose traumética”." Valéry parece ter em mente algo semelhante. E a coincidéncia merece registro, pois Valéry é dos que se interessam pela forma especial de funcionamento dos mecanismes psiquicos sob_as condi atuais de existéncia, (Este interesse,aliés, ele conseguiu conciliar com sua produsio poética, que permaneceu puramente rica. Desta forma, se constitui no tinico autor que se reports direta- mente a Baudelaire.) “Considerades a rigor — escreve Valéry — 1s impressbes e as sensagées humanas pertencem & categoria das surpresas; so 0 testemunho de uma insuficiéncia do ser humano... A lembranga é... um fenémeno elementar que pretende nos conceder tempo para organizar” a recepgio do Jendo incansavelmente das imagens mneménicas neles contidas © de como, repentinamente, elas penetram 1 consciente independentemente de ‘Qualqucr sinal deste, desde que uma coxs, um brago ou ume omoplata ‘sume involuotariamente, na cama, uma posigéo, tal como o fizeram fuma vez no passado, A mémoire involantaire dos membros do corpo & um dos temas favoritos de Proust. (Cf. Proust, A la recherche du temps perdu, tomo I: Du coté de chez Swann, id, i, 610, 1, p. 15.) 110 WALTER BENJAMIN estimulo — tempo “que nos faltou inicialmente”.!6 A recepeio do choque é atenuada por meio de um treinamento no controle dos estimulos, para o qual tanto o sonho quanto a lembranga podem ser empregados, em caso de necessidade. Via de regra, ho entanto, este treinamento — assim supde Freud — cabe ao consciente desperto, que teria sua sede em uma camada do cértex cerebral, a tal ponto queimada pela acéo dos estimulos que pro- porcionaria “a sua recepgdo as condigées adequadas”.*7 O fato deo chogue ser assim amortecido e sparado pelo consciente emprestaria ao evento que 0 provoca o carter de experiéncia vivida em sentido restrito. E, incorporando imediatamente este evento a0 acervo das lembrangas conscientes, o tornatia estéril para a experiéacia poética. Surge uma interrogagSo: de que modo a poesia litica poderia estar fundamentada em uma experiéncia, para a qual o choque se tornou a norma? Uma poesia assim permitiria supor um alto grau de conscientizagio; evocaria a idéia de um plano atuante em sua composigio. Este é, sem divida, 0 caso da poesia de Baudelaire, vinculando-o, entre os seus predecessores, a Poe e, entre os seus sucessores, novamente a Valéry. As consideragées feitas por Proust ¢ Valéry sobre Baudelaire se complementam de forma providencial. Proust escreveu um ensaio sobre Bau- delaire, jd superado em seu alcance, por certas reflexdes em seus romances. Em Situation de Baudelaire (Situaao de Baudelaire) Valéry forneceu a cléssica introdugio a As Flores do Mal, ao eserever: “O problema deve ter-se apresentado a Baudelaire da seguinte forma — tornar-se um grande poeta, sem se tornar um Lamartine, nem um Hugo, nem um Musset. Nao estou afirmando que este propésito fosse consciente em Ravdelaire; tas deveria estar presente nele, necessariamente, ou melhor, este propésito era, ne verdade, o proprio Baudelaire. Era a sua razio de Estado”. Causa estranheza falar de razéo de Estado, com telagéo a um poeta. Mas implica algo notével: a emancipagio com respeito as vivéncias. A produgo poética de Baudelaire estd associada a uma missdo. Ele entreviu espagos vazios nos quais inseriu sue poesia. Sua obra néo s6 se permite caracterizar como histérica, da mesma forma que qualquer outra, mas tam- ‘bém pretendia ser ¢ se entendia como tal. SOBRE ALGUNS TEMAS a Vv Quanto maior 6 2 participagéo do fator do choque em cada uma das impresses, tanto mais constante deve ser a presenca do consciente no interesse em proteger contra os estimulos; quanto maior for 0 éxito com que ele operar, tanto menos essas impresses sero incorporadas & experiéncia, ¢ tanto mais corres- pondetio ao conceito de vivéncia. Afinal, talvez seja possivel ver 0 desempenho caracteristico da resisténcia ao choque na sua fungdo de indicar a0 acontecimento, as custas da integridade de seu contetido, uma posi¢do cronolégica exata na consciéncia. Este setia o desempenho méximo da reflexio, que faria do incidente uma vivencia, Se ndo houvesse reflexdo, 0 sobressalto agradével ou (na maioria das vezes) desagradével produzir-seia inva velmente, sobressalto que, segundo Freud, sanciona a falha da resistencia 20 choque. Baudelaire fixou esta constatagéo na imagem crua de um duelo, em que o artista, antes de ser vencido, Tanga um grito de susto.!* Este duelo ¢ 0 proprio processo de criagdo. Assim, Baudelaire inseriu a experincia do choque no mago de seu trabalho artistco, Este depoimento sobre si mesmo, confirmado por declaragGes de muitos contemporineos, € da maior importéncia. Tomaéo pelo susto, Baudelaire ndo esté onge de suscité-lo ele proprio. Vallés fala de seus gestos excén- tricos;2? baseado em um retrato feito por Nargeot, Pontmartin afirma ser a sva fisionomia confiscada; Claudel enfatiza 0 tom de vor cortante que utilizava em conversa; Gautier fala das “cesu- ras” e de como Baudelaire gostava de utilizélas ao declamar;** Nadar descreve 0 seu andar abrupto2 A psiquiatria registra tipos traumatéfilos. Baudelaire abragou como sua causa aparar os choques. de onde quer que proviessem, com 0 seu ser espiritual e fisico. A esgrima representa a imagem dessa resisténcia a0 choque. Quando descreve seu amigo Cons- tantin Guys, visita-o na hora em que Paris esté dormindo: (elo curvado sobre a mesa, fitando a folha com a mesma acuidade com que, durante o dia, espreita as coisas & sua volta; esgrimindo com seu lépis, sua pena, seu pincel; deixando a 4gua do seu corpo respingar 0 tefo e ensaiando a pena em sua camisa;® per- seguindo 0 trabalho, répido ¢ impetuoso, como se temesse que as imagens the fugissem ¢ assim ele tuta, mesmo sozinho, e Baudelaire se retratou na estrofe inicial do poema O Sol; talvez 4 Gnica passagem de As Flores do Mal que 0 mostra no trabalho postico. “Ao longo dos subdtbios, onde nos pardieiros Persianas acobertam beijos sorrateiros, Quando © impiedoso sol arroja seus punhais Sobre a cidade © 0 campo, os tetos e os trigais, Exercerei a 365 a minha estranha esgrim: Buscando em cada canto os acasos da rima, Tropeyando em palavras como nas calgada: Topando imagens desde hé muito jé sonhadas."25 A experiéncia do choque é uma das que se tornaram determi hnantes para a estrutura de Baudelaire, Gide trata das intermi- tEncias entre a imagem © a idéia, a palavra e o objeto, nas quais '@ emogio poética de Baudelaire encontraria sua verdadeira sede2* Rivitre aludiu aos golpes subterrineos, que abalam o verso baudelairiano. E como se uma palavra se desmoronasse sobre si mesma. Riviere assinalou tais palavras cambaleantes:”” 1 WALTER BENTAMIN apara seus préprios golpes”.2* Envolvido nessa estranha esgrima, “Et qui sait ces fleurs nouvelles que je réve | Trouveront dans ce sol lavé comme une gréve Le mystique aliment qui ferait leur vigueur? (CE quem sabe se as flores que meu sonho ensaia Néo achem nessa gleba aguada como praia | © mistico alimento que as fard radiosas?"* | | Ou ainda: “Cyblle, qui les aime, augmente ses verdures." ! ("Cibele, que os adora, o verde faz crescer.”\ Necessério acrescentar ainda 0 célebre inicio do poema: “La servante au grand coeur dont vous étiez jalouse.” (“A ama bondosa de quem tinhas tanto citime.”)° SOBRE ALGUNS TEMAS a3 Fazer justica a essas leis ocultas, também fora da poesia — cis 0 propésito a que Baudelaire se entregou em O Spleen de Paris, seus poemas em’ pross. Na dedicatéria da coletinea a Arstne Houssaye, redator-chefe da Presse, ele diz: “Quem dentre 16s jé ndo terd sonhado, em dias de ambiglo, com a maravilha de uma prosa poética? Deveria ser musical, mas sem ritmo ou ima, bastante flexivel ¢ resistente para se adaptar as emoobes IMricas da alma, as ondulagSes do devaneio, aos choques da consciéncia, Este ideal, que se pode tornar idéia fixa, se apossard, sobretudo, daquele que, nas cidades gigantescas, esté afeito & tramas de suas intimeras relagées entrecortantes” >" ‘A passagem sugere uma cupla constatagéo. Primeiro nos in- forma sobre a intima relagéo existente em Baudelaire entre a imagem do choque ¢ 0 coniato com as massas urbanas. Além disso, informa 0 que devemos entender propriamente por tais massas. Nao se pode pensar em nenhuma classe, em nenhuma forma de coletivo estruturado. Nao se trata de outra coisa sendo de uma multidio amorfa de passantes, de simples pessoas nas ruas.* Esta multidfo, cuja existéncia Baudelaire jamais esquece, nio foi tomada como modelo para nenhuma de suas obras, mas esté impressa em seu processo de criagio como uma imagem ocul- ta, da mesma forma que também 2 representa a imagem oculta do fragmento citado acima. Nela, a imagem do esgrimista po- de ser decifrada: os golpes que desfere destinam-se a abrit-the © caminho através da multidso. £ verdade que os subéirbios, através dos quais 0 poeta de O Sol segue abrindo seu caminho, esto desertos. Mas a secreta constelagio (onde a beleza da estrofe torna-se transparente até o seu recindito) deveria ser assim apreendida: € a multidgo fantasma das palavras, dos frag mentos, dos infcios de versos com que o poeta, nas ruas aban- donadss, trava o combate pela presa poétice. + Emprestar uma alma a est: multidfo 6 0 desejo mais intimo do {laneur. Os encontros com ela sfo pare ele a vivéncia que nunca se can de narrar, Certos reflexos dessa iusto no podem ser abstraidos da obra de Baudelaire — uma ilusio que, de resto, continua afuando até hoje. ‘© unanimismo de Jules Romain 'é um de seus mais admirados frutos tardios. m4 WALTER BENJAMIN v A multidio — nenhum tema se impés com maior autoridade 08 literatos do século XIX — comesava a se articular como piiblico em amplas camadas sociais, onde a leitura havia se tornado hébito. Tornou-se comitente, pretendendo se reconhecer ‘no romance contemporaneo, como os mecerias nas pinturas da Idade Média, © autor de maior éxito do século acedeu a esta exigencie por imposigao intima. Multidao significava para ele a multiddo de clientes, do piblico, quase no sentido da antigiii- dade clissica. Hugo € 0 primeiro a dirigirse & multidéo, em tftulos como: Os Miserdveis, Os Trabalhadores do Mar. E foi 0 nico, na Franca, que podia competir com o romance de folhe- tim, © mestre neste género, que comesava a se tornar fonte de uma espécie de revelacéo para 0 pequeno burgués, foi, como se sabe, Eugene Sue. Foi eleito em 1850, por grande maiotia, para © Parlamento, como representante da cidade de Paris. Néo foi, portanto, por acaso, que o jovem Marx encontrou ocasigo para censurar severamente os Mistérios de Paris. Desde cedo, Marx tinha, como sua misséo, extrair daquela massa amorfa, na época bajulada por um socialismo literério, a massa férrea do prole- tariado. Por essa razio, a descrigdo que Engels faz desta massa ‘em suas primeiras obras prenuncia, ainda que timidamente, dos temas marxistas. Na Situapdo da Classe Operdria na Ingla- ferra encontra-se: “Uma cidade como Londres, onde se pode vagat horas a fio sem se chegar sequer ao inicio do fim, sem se encontrar com o mais infimo sinal que permita inferir a proximidade do campo, ¢ algo realmente singular. Essa concen- tracdo colossal, esse amontoado de dois milhdes e meio de seres humanos num tinico ponto, centuplicou a forca desses dois mi- Ihdes € meio... Mas os sactificios.... que isso custou s6 mais tarde se descobre, Quando se vagou alguns dias pelas calgadas ddas ruas principals. .. 96 ento se percebe que esses londrinos veram de sacrificar a melhor parte de sua humanidade para real zar todos os prodigios da civilizago, com que fervilha sua cida- de; que centenas de forcas, neles adormecidas, permaneceram ini tivas, ¢ foram reprimidas... O proprio tumulto das ruas tem algo de repugnante, algo que revolta @ natureza humana, Essas centenas de milhares de todas as classes © posigSes, que se empurram umas as outras, néo so todos seres humanos com as SOBRE ALGUNS TEMAS 45 mesmas qualidades e aptidées, ¢ com o mesmo interesse em serem felizes?... E no entanto, passam correndo uns pelos ‘outros, como se néo tivessem absolutamente nada em comum, nada @ ver uns com os outros; €, no entanto, o tinico acordo fcito entre eles € 0 de que cada um conserve o lado da calsada & sua direita, para que ambas as correntes da multidao, de sentidos opostos, no se detenham mutuamente; e, no entanto, no ocorre a ninguém conceder ao outro um olhar sequer. Essa indiferenga brutal, esse isolamento insensivel de cada individuo fem seus interesses privados, avultam tanto mais repugnantes © fofensivos quanto mais estes individuos se comprimem num exiguo espace”? Essa descrigio € notavelmente diversa daquela encontrada nas ‘obras do género dos pequencs mestres franceses — um Gozlan, um Delvau ou um Lurine. Faltam-the a desenvoltura © @ grava com que se move 0 fldneur 2m meio & multidéo ¢ que o folhe- tinista, zelosamente, apreende com ele. Para Engels, a multidio possui algo de espantoso, suscitando nele uma reagéo moral; paralelamente, também entra em jogo uma reagio estética; a elocidade com que os transeuntes passam precipitados o afeta de forma desagradével. © incorruptivel hébito eritico se funde ‘com 0 tom antiquado e constitui 0 encanto de suas descricdes. © autor provém de uma Alemanha ainda provinciana; talvez no tenha confrontado jamais a tentagéo de se perder em uma torren- te humana. Quando, pouco antes de sua morte, Hegel chegou pela primeira vez a Paris, escreveu & sua mulher: “Quando endo ppelas ruas, as pessoas se parecem com as de Berlim — todas ‘vestidas iguel, os rostos mais ou menos os mesmos —, a mesma cena, porém numa massa populosa”.** Mover-se em meio a essa ‘massa era algo natural para o parisiense. Néo importa qual fosse fa distincia que ele, por sua vez, exigisse © mantivesse desta massa, o fato € que ficou marcado por ela; no pode, como Engels, observé-la de fora. No que diz respeito a Baudelaire, a massa the é algo tho pouco exterior que nos permite seguir de perto, em sua obra, o modo como ele resiste a0 seu envolvimento © A sua atragio. _ ‘Em Baudelaire, a massa é de tal forma intrinseca que em vio ‘buscamos nele a sua descricdo. Assim, seus mais importantes temas quase nunca so encontrados sob a forma descritiva. Como Desjardins declara com argicia, a cle “interessa mais imprimir 116 WALTER BENJAMIN imagem na memstia, do que enfeitéla © cobrila”.> prosirarse-4, tanto em As Flores do Ma, como ext O Spleen de Paris, um tema equivalente aos afrescos urbanos, em que Victor Hugo era mestre. Baudelaire nfo descreve nem a - Jasfo, nem a cidade. Ao abrir mfo de tas desrigbs colocouse em condigées de evocar uma na imagem da outra. Sua multido 6 sempre a da cidade grande; a sua Pars ¢ invariavelmente super- povoaia Ito 0 que o faz bem superior « Barber, pra quem ts masias ¢ 2 cidade se dissoclem, por sero set um metodo descritivo.* Nos Quadros Parisienses 6 possivel demonstrar, em quase toda parte, a presenga secreta da massa. Quando Baude- Inire escothe por tema a alvorada, hé nas ruas desertas qualquer coisa do “burburinho silencioso", que Hugo presente na Pars * Tico do metodo de Barbier € 0 seu poems Londres, que descen a cide oo vine © unto Ines, pre cect deneftadiment co ‘os seguintes versos: sale com “Eatin, um amontoad de oss, sombvio, ime Um poro neg, vivendo 2 moreado em altace” Serer ac mary seuindo 9 inn fe, E eorendo ae do ost, puro bet ep © ma. tee tin, os yt a sete teas a = Be final de O Cepisclo Vespertino baudelaiiaas dro wcaaten «in 5 SRST. a eum ten emus Sect supe nunca bonis de ex se ecm oh de induce empobrecios esentembrngad. fa verdade, tratase de “gente de boa posicéo, negociantes, Nhaiseapeulares de Bolansaee POUR tla, * Em Um Dia de Chuva se encontra um paraelo para esa pass sent eS Cane meno ul pan (Gf. Charles Baudelaire, Vers retrouvés, Ed, Jules Mouquet, Paris, 1929), © imo veri, que di s0 poema o carter invalgarmentesombrio, tem f sun exaia corespondéncia em O Homem da. Mulidéo. “O brio inne fo do amie gfe — reve Poe — quméo vt © crepisculo, havin veacido; agora, os lamplées.langavam “ate afer vr, brian Tod eae ena coe pce, ome ébano, que alguém comparou 0 estilo de Tertulano op. et, p. 63, p. 94) O enconro de Baudelaire com Poe ¢ agul tanto mais surpesndente, porquanto os verss abaixo foram escritos, 0 mk imo, em 1847 — uma épocs, portato, em que néo conhecie Poe. “Cada um, nos acotovelando sobre a clgada esorrcga ‘Egofsta e brutal, passa e nos enlameia, sted wrsndia (Ou, para corer mus rida, stanclandose nos empure Em toda a parte, lama, diltivio, escuridio do ctu: " [Negro quad com que teria sonido negro Ezeq *(yp.2u) ** Os homens de negécio tém algo de demon/ ‘na obra. poles pensar tn Mart. 2 esponia » “movinesta joven ¢ {Cd rou nel ns Eda Uns po ote nn tempo, ne oprngs Je spin ebo mands ens (ea Nar Dr ahccne Bruna des Lost Bonras Wct, Blas Ed Rheanot 121930, Snusle eee comes ss elect de Tine tseahes we efscondam ae sper, cons hones Se sscio" 351) Ext passagem & O Creptisculo Vespertino talvez seja ‘SOBRE ALGUNS TEMAS ma de reslfstica a cena que Poe projetou. Go propositalmente desfigurante que distancia o texto daqueles costumeiramente recomendados como padrio de um ealismo socialista. Barbier, por exemplo, que é considerado um dos melhores representantes deste socialismo, expoe as coisas de maneira menos estranba, escolhendo mesmo ‘um objeto mais transparente — a mass dos oprimidos, que nfo € 0 assunto tratado em Poe. Esse tem a ver com “as pessoas”, pura e simplesmente, Como Engels, ele sentia algo de ameagador hho espetdculo que the ofereciam. B precisamente esta imagem da multidio das metrépoles que se tornou determinante para Baudelaire. Se sucumbia'® violéncia com que ela o atrafa para si, convertendo-o, enquanto fidneur, em um dos seus, mesmo fssim nfo 0 abandonava a seasagdo de sua natureza inumena. le se faz seu ciimplice para, quase no mesmo instante, isolar-se dela. Mistura-se a cla intimamente, para, inopinadamente, arre- messé-la no vazio com um olbar de desprezo. Esta ambivaléncia tem algo de cativante, quando ele a confessa com reservas. Talvez se deva a ela o charme quase insondivel de seu Crepiis- culo Vespertino Vit Baudelaire achou certo equiparar o homem da multidio, em cujas pegadas 0 narrador do conto de Poe percorre a Londres froturmia em todos os sentidos, com o tipo do flaneur. Nisto no podemos concordar: 0 horem da multidao nfo é nenhum laneur, Nele 0 comportamento trangiilo cedeu lugar 2o manir fo. Deste comportamento pode-se, antes, inferir o que sucederia fo fldneur, quando Ihe fosse tomado o ambiente ao qual per- fence, Se aigum dia esse ambiente Ihe foi mostrado por Londres, tertamente nfo foi pela Londres descrita por Poe. Em compa: agio, a Paris de Baudelaire guarda ainda alguns tragos dos ethos bons tempos. Ainda havia balsas eruzando o Sena onde vrais tarde deveriam se langar os arcos das pontes. No ano da ‘morte de Baudelaire, um empresério ainda podia ter a idéia i WALTER BENIAMIN de fazer circular quinhentas liteiras, para comodidade de habi- tantes abastados. Ainda se apreciavam as galerias, onde o fldneur se subtraia da vista dos veiculos, que no admitem o pedestre como concorrente.* Havia o transeunte, que se enfia na multidao, ‘mas havia também 0 flineur, que precisa de espago livre e nao quer perder sua privacidade. Que os outros se ocupem de seus negécios: no fundo, o individuo s6 pode flanar se, como tal, jé se afasta da norma, Lé onde a vida privada dé 0 tom, hé tio Pouco espago para o flineur como no transito da City. Londres tem seu homem da multidgo. Nante, 0 ocioso das. esquinas — ‘uma figura popular em Berlim, no periodo da Restauragéo — sua a Méneur patisiense seria o meio-termo.** ‘A forma como © homem privado vé a multidio nos é esclare- cida em tim pequeno conto de E. T. A. Hoffmann — o dltimo que escreveu. Intitulese A Janela de Esquina do Primo, Foi escrito quinze anos apés 0 conto de Poe e talvez seja uma das Primeiras tentativas para captar a cena de rua de uma cidade grande. As diferencas entre os dois textos merecem ser notadas, © observador de Poe olha através da janela em um recinto pi. blico; © primo, ao contrério, esté instalado em seu ambiente doméstico. O observador de Poe sofre uma atragdo que, final. mente, o arrasta no turbilhéo da multidio. O primo de Hoffmann na janela de esquina é paralitico; nfo poderia seguir a corrente, em mesmo se a sentisse na prépria pessoa. Esti, antes, acima desta multidie, como sugere seu posto de observacio no aparta- mento. Dali ele examina a multidio; € dia de feira, e ela se sente em seu elemento, © seu bindculo de dpera poe em evidén. sia eenas de género. O emprego deste instrumento corresponde $F aprendido esse pasto. Nio fol ele, contudo, a dat « titima pslavra, mas sim Taylor, tansformando em lema o "Abaixo @ Manerie”. ** No personagem de Adolf Glassbrener, 0 ocioso £e mostra como um {bento deplorével do cidado. Nante néo encontra qualquer moto pare se mexer, Ele se instala na rua, que obviemente noo condwsilé © Parte alguma, tio confortavelmente, quanto o burgués tacanho entte suas quatro paredes ‘SOBRE ALGUNS TEMAS es inteiramente 20 posicionamento {ntimo do usuério. Pretende, como ele proprio confess, inciar seu visitante nos “principios da arte de observar”,* que consiste na capacidade de se rego- zijar com quadros vivos, como se buscava fazer na época do Biedermeier:S A interpretagio se faz sob a forma de alforismos edificantes.** Esse texto pode ser considerado como'uma tenta- tiva cuja realizagio comesave a ter contornos. B claro, porém, que esta tentativa foi empreendida em Berlim sob condigées que frustraram seu completo éxito. Se algum dia Hoffmann houvesse conhecido Paris ou Londres, xe houvesse visado & representagio da massa como tal, nao se teria fixado, entio, em uma feira; nfo teria colocado as mulheres em primeiro plano; tera, talvez, aproveitado os temas que Poe extrai da multidio movimentan- dose a luz dos lampides a gis. Ndo teria, de resto, havido ne- cessidade desses temas para salientar os elementos sinistros que outros retratistas da cidade grande perceberam. Aqui seria opor- tuna uma observago de Heire: “Heine sofria muito. dos olhos na primavera” — escreve a Varnbigen um correspondente. “Da ditima vez, andamos juntos algum tempo pelos bulevares. O esplendor, a vida destas russ, tinicas no género, me excitava a incansével admiracdo; em contrapartida, nessa ocasifo, Heine «wt su sf nit sa st sma oe mm ot ent pn wie i toe er hc re Sel ls Nd et fats Po iat em Ma a a a ma, rl ee pe ee oe Lee ees ae Te Sie 2 lle ans re Se reo ene ores eae ae pe Se a hee ca oa Sint cet aes See Se ce + geo eee ee coe ami wae ee oh soa ee sete ae = a Gar dn em diego 20 (etre utr firs), que mentém sue cabeya er on adele que conbeca ete conto etal du obsrvso de fmaun tm vats no vero Gio de Gt Capos, dsmentino su et ‘cago moral: “... que buscam estes cegos ver no cfu”. (p. 343) 14 WALTER BENJAMIN acentuou, significativamente, o horror que se mesclava a este ‘centro cosmopolita.”™ vil ‘A multidéo metropolitana despertava medo, repugnincia horror naqueles que a viam pela primeira vez. Em Poe, ela tem algo de bérbaro. A disciplina mal consegue sujeitéla. Posterior- mente, James Ensor no se cansard de nela confrontar disciplina selvageria; gostava sobretudo de integrar corporagées militares bbandes carnavalescas. Ambas se combinam de forma f, porquanto exemplo dos Estados totalitérios, onde a policia se mancomuna com os saqueadores. Valéry, possuindo ia visio da sindrome da “civilizagéo”, assinala um hhabitante dos grandes centros urbanos — escreve — incorre novamente no estado de selvageria, isto é, de fsolamento. A sensagio de dependéncia em relagdo aos outros, outrora permanentemente estimulada pela necessidade, embota-se pouco @ pouco no curso sem atritos do mecanismo social. Qual- quer aperfeigoamento deste mecanismo elimina certas formas de comportamento, certas emosdes...™? O conforto Por outro lado, ele aproxima da mecaniza¢o os seus beneficiérios. Com a invengéo do fésforo, em meados do século passado, surge uma série de inovagdes que tém uma coisa em comum: disparar uma série de processos complexos com um simples gesto. A evo- lugio se produz em muitos setores; fica evidente entre outras coisas, no telefone, onde o movimento habitual da manivela do antigo aparelho cede lugar & retirada do fone do gancho. Entre 0s intimeros gestos de comutar, inserir, acionar etc., especial- mente 0 “click” do fotsgrafo trouxe consigo muitas conseqiién- clas. Uma pressto do dedo bastava para fixar um acontecimento por tempo ilimitado. O aparelho como que aplicava a0 instante tum choque péstumo, Paralelamente as experiéncias dpticas desta espécie, surgiam outras téteis, como as ocasionadas pela folha de anincio dos jomais, e mesmo pela circula¢do na cidade grande. © moverse através do tréfego implicava uma série de choques ¢ colisées pare cada individuo. Nos cruzamentos perigosos, iner- vvagées fazemvno estremecer em répidas seqiiéncias, como des- cargas de uma bateria. Baudelaire fala do homem que mergulha ‘SOBRE ALGUNS TEMAS ws ‘na multidio como em um tanque de energia elétrica. E, logo depois, descrevendo a experiéacia do choque, ele chame esse homem de “um ealeidowepio domdo de consitaia aed Poe, os passantes langam othares ainda apsrentemen F SitnJos em todas a3 dresses, os pedestes modemos sfo obrige- dos a faztlo para se orientar pelos sinais de trinito. A técnica submete, assim, o sistema sensorial "um treinamento & sate reza complexe. © dia em que o filme correspondeu uma saree ign necsinie de estimulos. No filme, a per- cepgdo sob a forma de choque se impée como principio formal. ‘Aquilo que determina o ritmo da produgdo ne esteira rolante esté subjacente ao ritmo da receptividade, no filme. - ‘vio que Marx insiste que, no artesanato, a conexéo 2 apes db trabalho € continua, J& nas atividades do operétio de fébrica na Tinha de montagem, esta conexio aps rece como auténoma e coisificada. A pega entra no raio de agdo do operdtio, independentemente da sua vontede. E escaps dele da mesma forma arbitréria. “Todas as formas de produgéo — esereve Marx — ifm em comum 0 fto de que nao € 0 operério quem utiliza os meios de trabalho, mas, contrério, ce tein de trabalho. que utilizam 0 operdrios ontudo, somente com as méquinas é que esta inversio adquire, tecnicamente, uma realidade concreta."” No trato com 2 mé- quina, os operérios aprendem a coordenar seu “préprio movi, mento 20 movimento uniforme, constante, de um autOnome’ CCom estas palaveas obtémse uma compreensio mais nitide ace ca da natureza absurda da uniformidade com que Poe pretends estigmatizar a multidéo. Uniformidade da indumenttis & comportamento ¢, nfo menos importante, « unifo oe estos. O sorriso — exemplo a dar o que pensar. B presumite mente, 0 que esté subentendido no hoje familiar keep smiling, que aiua no caso como um amortecedor gestual. — “Todo tra: Batho com a méquina exige — € dito no texto acme — adestramento prévio do operério."** Esse adestramento deve ser diferenciado da prética. Esta, decisiva ° artesanal, ainda encontrava aplicaglo ne pritca, “qualquer sefor da producto encontra siavés de experiéncia uma forma técxica que Ihe corresponda; e, lenic- ante, este setor a aperfeigoa”. certo que ele a cristaliza rapi 126 WALTER BENJAMIN damente, “tio logo seja alcangado certo grau de maturidade”. Por outro lado, contudo, a mesma manufatura produz ‘“em cada oficio de que se utiliza, uma classe dos chamados operérios nfo especializados, que 0 funcionamento das corporagdes excluia rigo- rosamente. Quando a manufatura eleva a especializacio inte ramente limitada a uma Gnica tarefa & categoria de virtuosismo as custas da capacidads total de trabalho, entio comeca a elevar a falta de qualquer formacdo & categoria de virtude. Paralels- mente & ordem hierdrquica, surge a divisio simples dos operé- rios em especializados e ndo-especializados”.® O operério nfo- especializado € o mais profundamente degradado pelo condicio- namento imposto pela méquina. Seu trabalho se tora alheio a ‘qualquer experiéncia, Nele a prética nio serve para nada.* O que © Lunapark realiza com seus brinquedos oscilantes, giratérios ¢ diversbes similares no € senfo uma amostra do condicionamen- to a que se encontra submetido o operdrio nio-especializado na fabrica (uma amostra que the substituiré por vezes toda uma ‘programago, pois a arte do cémico, na qual o homem do povo se permitia ser iniciado no Lunapark, prosperava nos perfodos de desocupacio). O texto de Poe torna inteligivel a verdadeira re- lagdo entre selvageria e disciplina, Seus transeuntes se compor- tam como se, adaptados & automatizagio, s6 conseguissem se expressar de forma automética. Seu comportamento 6 uma rea- 80 a choques. “‘Se eram empurrados, cumprimentavam graves aqueles que os tinham empurrado e pareciam muito embaraca- ie” Kx A vivencia do choque, sentida pelo transeunte na multidio, corresponde a “vivéncia” do operdrio com a maquina, Isso fainda nfo nos permite supor que Poe possuisse uma nogio do proceso de trabalho industrial. Baudelaire, em todo caso, estava * Quanto mais curto 60 tempo de adestramento do operério industri, tanto mais longo & 0 dos militares. Talver fasa parte da prepar dda sociedade para uma guerra total essa transferéncia do adestramento da produsio para o da destruisfo. SOBRE ALGUNS TEMAS wa ‘bem longe de tal nogio. Estava, porém, fascinado por um pro- Srerqme rartaicas reflex e atonado no operéro pela méquina pode-ser examinado mais de perto no individuo ocioso, ‘como em um espelho, Esse processo é representado pelos jogos de azar. A assergdo deve soar paradoxal. Onde haveria um antagonismo mais fidedignamente estabelecido, senio entre 0 tra falho os jogos de azar? Alsin esclarece: “O conceito. .. do jogo. .. encerra em si o traco de que uma partida no depende de quaiquer outra precedente. ... jozo ignora totalmente qual- ‘quer posi¢do conquistada, Méritos adguiridos anteriormente no Ho levados em consideragdo, e 6 nisto que 0 jogo se distingue do trabatho. © jogo... liquida rapidamente » importincia do passado, sobre 0 qual se apsia o trabalho” ** Ao dizer estas palavras, Alsin tem em mente o trabalho altamente diferenciado (que pode preservar certos tragos do artesanal, da mesma forma gue o trabalho intelectual); néo 6 0 mesmo dos operérios de fabrica, e menos ainda o dos ndo-qualificados. & verdade que falta a este dltimo o trago da aventura, a Fada Morgana que se- duz 0 jogador. Mas 0 que de modo algum the falta é a inutili- dade, 0 vazio, 0 nfo poder concluir, inerentes & atividade do trabathador assalariado na fébrics. Seu gesto, acionado pelo processo de trabalho automatizado, aparece também no go, [ue néo dispensa o movimento répido da milo fazendo a aposte Gu recebendo a carta. O arranque esté para a méquina, como o Tance para o jogo de azar. Cada operacio com a méquina mio tem qualquer Telagdo com a precedente, exatamente porque cons titui a sua repetisfo rigorosa. Estado cada operagéo com & miquina isolada de sua precedente, da mesma forma que um lance na partida do jogo de seu precedente imediato, a jomada do operdrio accalariado representa, a seu modo, um correspon: dente 2 {ria do jogador. Ambas as ocupagdes estio igualmente isentas de conteddo, ‘ 4 uma litografia de Senefelder que representa uma cast ¢ iow. Nenhunedos retratados acompanha 0 jogo da mancira habitual, Cada um esté possuido pela sua paixéo: um por uma alegria irreprimida; outro pela desconfianga em relagéo 20 par- feito; um terceiro por um surdo desespero; um quarto, por sua mania de discutir; outro, ainda, se prepara para deixar este 128 WALTER BENJAMIN mundo. Hé algo de comum:oculto nos vérios comportamentos: as figuras em questio demonstram como o mecanismo, a que se entregam os jogadores dos jogos de azar, se apossa deles, corpo ¢ alma, de tal forma que, mesmo em sua esfera pessoal, nio importando quéo apaixonados eles possam ser, nfo podem atuar seniio automaticamente. Eles se comportam como os passantes no texto de Poe. Vivem sua existéncia de autématos e se aste- metham as personagens ficticias de Bergson, que liquidaram completamente a prépria meméria, Nao parece que Baudelaire fosse adepto do jogo, ainda que hhaja encontrado palavras de simpatia e até de homenagem para os que a ele se entregavam.** © tema tratado por ele no poema noturno O Jogo foi previsto em sua visio do modemnismo. Escre- vélo constitula parte de sua tarefa. A figura do jogador se tornou, em Baudelaire, o verdadeiro complemento para a figura arcaica do gladiador, Para ele, tanto um como 0 outro so figuras historicas. Bane viu através dos olhos de Baudelaire, quando escreveu: “Se reunfssemos toda a forsa ¢ paixio dissipadas a cada ano nas mesas de jogo da Europa... — se isto suficiente para formar um povo romano e uma hist6ria romana? Mas € exatamente isto! Pois se cada homem nasce como um romano, a sociedade burguesa procura ‘desromanizé- 10’ © por esta razio foram introduzidos os jogos de azar ¢ de saldo, os romances, a épera italiana e os periédicos elega tes...”7 A burguesia somente se tomou afeita ao jogo de azar no século XIX; no século anterior apenas a aristocracia jogava. © jogo fora propagado pelos exércitos napolesnicos ¢ passou a fazer parte “dos espeticulos da vida mundana e dos milhares de existéncias desregradas, afeitas aos subterrénegs de uma cidade grande” — um eepeticulo, em que Baudelaire pretende ver 0 herdico, “do modo como nossa época o encerra”.5* Se examinamos o jogo de azar nflo tanto sob 0 ponto de vista técnico quanto pelo psicol6gico, entio a concepcéo de Baudelaire se mostra ainda mais significativa. O jogador parte do principio do ganho — isso ¢ 0 Sbvio. Seu empenho em yencer ¢ ganhai dinheiro ndo poderé ser considerado como um desejo no verda- deiro sentido do termo. Talvez esteja imbuido de avidez, de uma determinacéo obscura. Em todo caso, ele no se encontra SOBRE ALGUNS TEMAS 129 fem condigées de dar & experiéncia a devida importincia.* O desejo, 20 contrério, pertence & categoria da experiéncis. “Aqui- Jo que desejamos na juventude, recebemos em abundincia na idade madura”, escreveu Goethe. Na vida, quanto mais cedo alguém formular um desejo, tanto maior seré a possibilidade de que se cumpra. Quando se projete um desejo distante no tem- Po, tanto mais se pode esperar por sua realizacio. Contudo, 0 que nos leva longe no tempo é a experitncia que o preenche € 0 estrutura, Por isso 0 desejo realizado € 0 coroamento da experiéncia. Na simbélica dos povos, a distancia no espaco po- de assumir 0 papel da distincia no tempo; esta a rezio porque a estrela cadente, precipitando-se na infinita distncia do espaco, se transformou no simbolo do desejo realizado. A bolinha de marfim rolando para a préxima casa numerada, a préxima carta em cima de todas as outras, 6 a verdadeira antitese da estrela ca- dente. © tempo contido no instante em que a lux da estrela ccadente cintila para uma pessoa é constitufdo da mesma matéria o tempo definido por Joubert, cam a seguranga que the é peculiar: “O tempo — escreve — se encontra mesmo na eterni- dade; mas néo é 0 tempo terreno, secular... & um tempo que no destr6i; aperfeigoa, apenas”. E 0 contrério daquele tempo infernal, em que transcorre a existémcia daqueles a quem nunca € permitido concluir © que foi comesado. A mé reputagio do jogo de azar prende-se, na verdade, wo fato de que é 0 préprio jogador quem dé as cartas. (Um freqiientador ‘incorrigivel da Loteria no estaré sujeito & condenagio como alguém que se dedique 20s jogos de azar, em sentido restrito.) © recomesar sempre ¢ a idéia regulativa do jogo (como a do trabalho assalariado) ¢ adquire, por isso mesmo, 0 seu exato «pg la ee es, Ta on ten Soe de jogadores, o “apelo vulgar a experiéncia’. ‘meu ndémer ich ee leo ee Se, ee Hoge See i oes nn oo eon Rag ag epee Peeper een aod de emprestar aos acontecimentos um carfiter de choque, de subtrai-los do Soe cee ae cnc sae tet oie ee Po a oe 130 WALTER BENJAMIN significado, quando, em Baudelaire, 0 ponteiro dos segundos — 4a Seconde — entra em cena como coadjuvante do jogador. “Recorda: 0 Tempo € sempre um jogador atento Que ganha, sem furtar, cada jogada! & a lei." Em um outro texto & proprio Sati quem ocupa o lugar do pponteiro dos segundos imaginérios" Aos seus dominios também Pertence, sem divida alguma, 0 antro tacitumo, para onde o Poema O Jogo relega aqueles que sucumbiram ao jogo de azar. “Bis a cena de horror que num sonho notumo ‘Ante meu claro oltar eu vi se desdobrando, Eu mesmo, posto a um canto do antro taciturno, Me vi, sombrio ¢ mudo, imével, invejando, Invejando a essa gente a pertinaz paixio.”=? © poeta nfo toma parte no jogo; estd em seu canto, nio mais feliz do que eles — 0s que esto jogando: Também ele ¢ um hhomem espoliado em sua experiéncia — um homem moderno. ‘Apenas recusa o entorpecente com que os jogadores procuram emboiar 0 consciente, que os tormou vulneréveis & marcha do Ponteizo dos segundos.” * 0 feito entorpecents aqui tratado & cronologicamente especiticado, 44a mesma forma que o sofrimento que ele deve avr. © tempo € 0 Meco no qual as fantzanagorias do jogo slo urdidas. Gourdon excreve em seu Les Faucheurs de Nuit (Ceifeiros noturos): “Afimmo que & paixio pelo jogo 6 4 mal nobre das paixies, pois reGne em si todas as utes. Uma seqitnca de cartadas de sorte me proporcona mais prazer do que um homem que nto jogs pode ter em virios anos... Voces screditam que ev veja n0 ouro e que tenho dieito apents 6 lucro? Enganamse, Vejo nele ot prazeres que me proporcona e me delicio om eles. Chegamane por dems veloees pera que posam sme enfatiar ¢ em variedade grande demais para me enfadar. Vivo cem vides em uma nica vids, Quando visjo, ¢ da forma como visja a centlbn elética... Se sou avarenio © guardo mew dinhelro para jog, isso € porque conheso bem denis 0 valor do tempo, para gastélo como as utes pesous, Um prazer determinedo que eu tae concedeie me custaia mil outros prazeres... Tenho ox prazeres no esprito, © n80 pretendo ‘SOBRE ALGUNS TEMAS wt “E me assustel por invejar essa agonia De quem se lanca numa goela escancarada, E que, jé farto de seu sangue, trocaria ‘A morte pela dor e o inferno pelo nadat” estes iltimos versos Baudelaire faz da impaciéncia 0 subs- trato da paixéo lidice. Ele 0 encontrou em si préprio em sua condigao mais pura. Sua irascibilidade possuta o poder de ex- ressdo da Iracundia de Giotto, em Pédua. x Se damos crédito a Bergson, a presentificago da durée (du- ago) é que libera a alma humana da obsesséo do tempo. Proust simpatiza com esta crenga e, a partir dela, eriou os exercicios, através dos quais, durante toda a sua vida, procurou trazer & luz o pasado impregnado com todas as reminiscéncias que hhaviam penetrado em seus poros durante sua permanéncia no inconsciente. Ble foi um leitor incompardvel de As Flores do Mal, pois sentiu nelas afinidades atuantes. Nao existe nenhuma afini- dade possivel com Baudelaire que « experiéncia baudelairiana de Proust nfo abranje. “O tempo — escreve Proust — se desa- ‘gregou em Baudelaire de uma forma surpreendente; apenas alguns poucos raros dias tomam forma; ¢ so bem significativos. Isso nos faz compreender porque,ele se utiliza com freqii de locugdes do tipo ‘uma noite, quando’ ¢ outras anéloges. Estes dias significativos sio dias do tempo que aperfeigoa, para citar Joubert. Séo diss do rememorar. Nao séo assinalados por qualquer vivéncia. Néo-tém qualquer associagdo com os demais; antes, se destacam do tempo. O que constitui seu teor, Baudelaire © fixou no conceito de correspondances, situado imediatamente contiguo & nogio de “‘beleza modema” Colocando de lado a literatura erudita sobre. as correspon- dances (que sio patriménio dos misticos; Baudelaire chegou até ‘outros”. (Edouard Gourdon, Les foucheus de nuit. Joueurs et Joueuses, Paris, 1860, p. 142) Anatole France, em suas belas notas sobre o jogo, extraidas de Le Jardin d'Epicure (Jardim de Epicuro), apresenta 0 assun- to de forma andloga. 132 WALTER BENJAMIN las por intermédio de Fourier), Proust nio dé muita importincia ‘is variagdes artisticas sobre o tema fornecidas pelas sinestesias. Exsencial € que as correspondances cristalizam um conceito de experiéncia que engloba elementos cultuais. Somente a0 se apropriar desses elementos € que Baudelaire péde avaliar intei- ramente 0 verdadeiro significado da derrocada que testemunhou ‘em sua condigéo de homem moderno. $6 assim pode reconhe- céla como um desafio destinado a ele, exclusivamente, ¢ que aceitou em As Flores do Mal. Se existe realmente uma arquite- tura secreta neste livro — tantas foram as especulagdes em tomo disto—, entio. ciclo de poemas que inaugura a obra bem poderia estar dedicado a algo irremediavelmente perdido. Entram neste ciclo dois sonetos, idénticos em seus temas. O primeiro, intitulado Correspondéncias, comeca ass “A Natureza 6 um templo onde vivos pilares Deixam filtrar no raro insblitos enredos; © homem o cruza em meio a um bosque de segredos ‘Que ali o espreitam com seus olhos familiares. Como ecos longos que & distincia se matizam Numa vertiginosa e ligubre unidade, Tao vasta quanto a noite ¢ quanto a claridade, Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.”# O significado que estas correspondances ttm para Baudelaire pode ser definido como uma experiéncia que procura se estabe- lecer a0 abrigo de qualquer crise. E somente na esfera do culto cela & possivel. Transpondo este espaco, ela se apresenta como ““o belo”. Neste, o valor cultual aparece como um valor da arte” * 0 ‘belo pode ser definido de dois modos: em suas relasées com @ histéri, ¢ com a natureza. Em ambas, a aparéacia, o elemento proble- sitico no belo, iré se impor. (A primeira relasio seré apenas exbosada. (© belo 6, segundo a sus existéncia histrica, um apelo & unito com aqueles que outrora o haviam admicado. © sercepturado pelo belo é um ad bbuscado pela admiragéo nio se encontra na obra. Esta admirapio recolhe ‘© que geragtes anteriores admiraram na obra. Um pensamento de Goethe ‘SOBRE ALGUNS TEMAS 133 As correspondances sio os dados do “rememorar”. Nio sio dados hist6ricos, mas da pré-histéria. Aquilo que dé grandeza © importiincia aos dias de festa é o encontro com uma vida anterior. Isto foi registrado por Baudelaire em um soneto intitu-\ lado A Vida Anterior. As imagens das grutas ¢ das plantas, das niavens ¢ das ondas, evocadas nc inicio deste segundo soneto, elevamsse da bruma quente das Iigrimas de nostalgia. “O vian- dante olha estas vastidées envolias em luto, ¢ em seus olhos Catabelece aqui a time conclusdo de sabedoria: “Tudo aquilo que produziu grande efeito, na verdade ao pode mais absolutemente ser julgado") Em sua relagio com a natureza, 0 belo pode ser definido como aquilo que apenas “permanece ewencialmenie iéntico « si mesmo quando velado". (Cf. Neue deutsche Beitrige, hrog. von Hugo von Hofmannsthal, Munique, 1925, 11, 2, p. 161 Le. Benjamin, Afinidades Eletivas de Goethe). As correspondances nos dizem 0 que devemos entender por ese véu. Podose considera este dltino (para resumir de forma cert ‘mente ousada) o elemento “reprodutor’ na obra de arte As correspondan- ces representam a instiaca, diante da qual se deacobre o objeto de arte ‘como um objeto fielmente reproduzido ¢, por consegulnte, inteirameate pproblemético, Se quistssemos reproduzir esta aporia com os recurtor 4a lingua, chegarfamos a defini 0 belo como o objeto da experincia no estado da semelhanga, Essa definkfo coinciiria com 1 formulasio dde Valery: *O belo exige talver a imitaséo servil do que 6 indefinivel nas coisas’. (Valéry/ Autres Rhumbs, Paris, 1934, p. 167.) Se Proust, tio prontamente, yélta a falar sobre este tems (que aparece em sua ‘bra. como © tempo reencontrado),,nfo se pode aflrmar que cit tage- relando. & antes im dos aspectos dzsconcertantes de seu proceder, que © conceto de umd obra de arte como 26pia, 0 conceito do belo ou, em bbreves. palavras, 0 aspecto pura e simplesmente hermético da arte seja por ele ‘de modo continuo © loquaz no centro de suas conside- opees. Ele score sobre a origem ¢ as intengGes de sun obra com & Eatocia e a urbsnidade que ficariam bem a um refinado amador. Isto, tem divide, encontra em Bergson 0 seu equivalent. As frases que s© Ssequem, e nat quais 0 filésofo insinua tudo o que se podetin esperar de ‘uma presentificagfo visual do tninterrapto fluxo do devir, tem uma infle- ‘io que lembra Proust. "Podemos deisar nossa existéncia ser perpasiada, tia ap6s dia, por tal visio ¢, assim, gragas 2 filosofia, gozar uma satsfe- fio semelhante Aquela. alcansada por lntermédio da arte; ela apenas feria mais freqdente, mais constante © mais fecilmente sceatvel 20 simples mortal.” (Henti Bergson, La pensée et le mouvant, Essais et conié rences, Paris, 1934, p. 198) Bergson vé ao alcance da mio 0 que, 2 melhor compreensio goethiana de Veéry, se apresenta como 0 “a ‘onde o insuficiente se transforma em evento, 134 WALTER BENJAMIN afloram Idgrimas de histerin — hysterical tears" — escreve Baudelaire em sua introdusio sos ‘poemas de Marceline Desbor- des-Valmore. Aqui néo hé correspondéncias simultfineas, como foram cultivadas posteriormente ‘Pelos simbolistas. O passado ‘murmura em sincronia nas correspondéncias baudelsirianas, ¢ a experiéncia canénica destas tem seu espago numa vida anterior: “O mar, que do alto cfu a imagem devolvie, ’ Fundia em misticos ¢ hierdticos rituais As vibragdes de seus acordes orquestrais A cor do poente que nos olhos meus ardia. All fol que vivi. .."7 Que a vontade restauradora de Proust permanesa cerrada nos limites da existéncia terrena, que a de Baudelaire se projete para além deles, pode ser interpretado como indicio de que as forgas adversas que se anunciaram a Baudelaire eram mais pri- mitivas € poderosas. Dificilmente alcancou éxito mais completo, do que quando, subjugdo por elas, parece terse resignado. O Recolhimento reproduz no céu profundo as alegorias dos anos passados, -Vem ver curvarem-se os Anos passados nas varandas do céu, em trajes antiquados”. Nesses versos Baudelaire se resigna a homenagesr na fo do antiquado o imemorial que the escapou. Quando, n0 time volume de sua obra, Proust volta a falar da sensacio que experi- mentou a0 sentir 0 sabor da madeleine, pensa nos anos que aps. ecem no terrago como fraternalmente ligados acs de Combray. “Bm Baudelaire... estas reminiscncias séo ainda mais numero. sas; note-se: no 6 0 acaso que as evoca; por isso sio decisivas, em minha opinigo, Nao existe outro como ele, que no odor de uma mulher, por exemplo, no perfume de seus cabelos de seus scios, persiga — seletiva e, a0 mesmo tempo, indolentemente = 8s correspondéncias inspiradas, que Ihe evocam entdo ‘o azul do oft desmedido ¢ abotadado’ ou ‘um porto repleto de chemas © mastros’.”*° Estas palavras so uma epigrafe declarada & obra SOBRE ALGUNS TEMAS 135 de Proust. Sua obra tem afinidades com # de Baudelaire que reuniy os dias de rememorar em um ano spiritual: As Flores do Mal nfo seriam, porém, 0 que sfo, fossem regi- das apenas por esse éxito. O que as torna inconfundiveis ¢, antes, 0 fato de terem extrafdo poemas & ineficécia do mesmo lenitivo, a insuficiéneia do mesmo ardor, 2o fracasso da mesma obra — poemas que nada ficam devendo aqueles em que as

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