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a Laird Harris Inspiracdo e Canonicidade da Biblia Inspiragdo e Canonicidade da Biblia, de R. Laird Harris © 2004, Editora Cultura Crista. Reprodugao proibida. 1" edigdo em portugués ~ 2004 3.000 exemplares Tradugao Helen Hope Gordon Silva A Revisao laudete Agua de Melo Wilson de Angelo Cunha oe Editoragao Vanderlei Ortigoza 7 Capa yw Lela Design Harris, R. Laird (Robert Laird) 1911 - 315i Inspiragao e canonicidade da Biblia / Robert Laird Harris; [traduco Helen Hope Gordon Silva]. — So Paulo: Cultura Crista, 2004. 368p. ; 16x23x1,92cm. ‘Tradugio de Inspiration and canonicity of the Scriptures ISBN 85-7622-050-4 LAnspirago, 2.Canon. 3.Exegese. I Harris, R.L. IL-Titulo. CDD 2led. - 220.1 Publicagao autorizada pelo Conselho Editorial: Cliudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, André Lufs Ramos, Mauro Fernando Meister, Otévio Henrique de Souza, Ricardo Agreste, Sebastiio Bueno Olinto, Valdeci da Silva Santos. €DITORA CULTURA CRISTA ‘Rua Miguel Teles Junlor, 394 — Cambucl ‘01540-040 ~ Sao Paulo ~ SP — Brast Postal 1.136-Sio Paulo-SP-01599-870 Fone (0°11) 3207-7090 — Fax (0"11) 3200-1255 won cop.org.br ~ cep @cep.org.br Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Claudio Anténio Batista Marra Prefacio Bw A inspiracao é um tema que € tratado com freqiiéncia. Ela é, no entanto, de importancia perene. Ao autor parece bastante estranho vé-la ser considera- da, muitas vezes, sem que a devida atengio seja dada A questao da canonicidade. Parece que esta segunda questo é corolario da primeira, pois saber 0 que é inspirado é tao vital quanto conhecer a natureza da inspiragio. No presente estudo, portanto, a canonicidade, tanto do Antigo Testamento como do Novo, é tratada junto com a doutrina da inspiragao, e alguma aten- ¢do é dada também a uma outra questdo, que é complementar a da inspiragao: a transmissdo do texto biblico ao longo dos séculos, O autor nao procurou inovar. Sua visao da inspiragdo concorda ple- namente com a posicio histérica cristé. Do mesmo modo, seus pareceres com respeito 4 transmissao do texto sagrado e do cAnon nao sao novos, embora varias visdes diferentes a respeito do principio que determinou 0 canon — no necessariamente excludentes entre si ~ tenham sido mantidas ao longo dos séculos, e haja espago para algumas diferengas de opiniao a respeito desse ponto. Varias informagées novas sobre a questdo da trans- missdo do texto bem como do canon do Antigo Testamento podem ser obtidas dos Rolos do Mar Morto. O que se espera é que estas paginas ajudem os cristdos a avaliar esse Angulo do estudo dos rolos, cuja descoberta foi tio inesperada e que langam uma luz tao surpreendente e bem-vinda sobre a hist6ria da aceitagdo e das cépias do texto do Antigo Testamento. E util acrescentar que os novos rolos nao alteraram nenhum ponto que vem sendo sustentado ha muitos anos pelos estudiosos conservadores do Antigo Tes- 6 INSPIRAGAO F CANONICIDADE DA BIBLIA tamento tais como Robert Dick Wilson, Moses Stuart e outros. Varias das posigées de criticos extremistas foram refutadas pelos novos achados, como as paginas que seguem indicarao, embora os rolos nao sejam suficiente- mente primitivos para produzir um veredicto conclusivo para muitas das discuss6es entre os da alta critica versus conservadores. Foi feita uma tenta- tiva de avaliar os rolos pelo valor que eles tém e nao forgar seu testemunho além das provas disponiveis. O livro Theopneusty — or the Plenary Inspiration of the Holy Scriptures, de S. R. L. Gaussen, de Genebra, foi escrito h4 mais de cem anos. Esse livro tornou-se um texto padrao. Porém, durante 0 século 19 os ventos dos quatro cantos sopraram com forga de tornado sobre 0 edificio de Gaussen. Sera que a visio crista histérica ainda pode ser sustentada? No final do século 19, a alta critica destrutiva cresceu a proporgées tao imensas que conquistou quase por completo a erudigao biblica da Europa. Hoje, ela é ensinada como fato certo na maioria dos semindrios teol6gicos da Europa (que geralmente s&o vinculados a universidades) e nos semindrios teolégi- cos mais antigos da América — embora praticamente todos os semindrios teolégicos americanos mais novos sejam evangélicos e se oponham a isso. Durante o mesmo periodo, 0 ensino da evolugao de tal maneira cativou 0 mundo cientffico que a visao alardeada é que a ciéncia demoliu totalmente qualquer interpretagao rigorosa e justa dos primeiros capitulos de Génesis. Apareceram numerosos livros sobre temas como Em Que Podemos Ainda Crer? Muitos tentaram uma retirada estratégica ante esses dois antagonis- tas poderosos e optaram por tentar modificar esta doutrina consagrada pelo tempo — a de que a Biblia é realmente verdade em sua historia e ciéncia como o é em assuntos espirituais. O autor é um dos que créem no Livro. Ele cré que a alta critica — elaborada, como claramente foi, numa era em que praticamente nada se conhecia sobre os tempos antigos por investigag4o arqueolégica — nao tem correspondido as novas informagées e precisa ser muito modificada ou to- talmente rejeitada. Do mesmo modo, existem indicios, que serao apresentados nos pr6ximos capitulos, de que a evolucio nao possui nenhum mecanismo operacional conhecido, e que a explicacdo dela, pelo menos quanto as origens humanas, jé foi tio modificada que se pode dizer que simplesmente nao existe prova da passagem de um grupo de formas de vida para outro, e especificamente, das formas brutas para a humana. Hd provas de alguma variagao dentro da espécie ou dentro dos principais grupos de vida, mas nao ha nenhuma prova do desenvolvimento evolucionario. Ja & tempo de os cristdos se aperceberem desses novos fatos e reafirmarem, co- rajosamente, a posigao crista hist6rica. Essa posig%io foi mantida durante todos esses anos por incontaveis milhdes de crentes humildes. Eles basea- ram sua fé numa prova de uma espécie diferente — 0 testemunho do seu Senhor. Porém, a luz de novas evidéncias ¢ novos estudos, a fé humilde talvez possa ser demonstrada como sendo a ciéncia e a Histéria mais bem sustentadas. Essa € a convicgao do autor. PREFACIO 7 Questdes importantes dependem das conseqiiéncias da nossa posi- Go. Muitas vezes se mantém a visio de que a inspiragio verbal (a qual, cuidadosamente definida, é a visdo crista hist6rica) € opcional na teologia crista, que pode ser aceita ou entao omitida. Espera-se que este estudo de- monstre de forma convincente que o crente humilde sempre esteve certo na sua opiniao instintiva de que ou a pessoa precisa aceitar toda a Biblia, ou nao ter certeza a respeito de nenhuma parte dela. Um livro didatico sobre a Fisica pode estar 99 por cento correto e | por cento errado. Nés acreditamos na parte que esta certa porque é inerentemente verdadeira e verificdvel. O restante nds estamos livres para rejeitar. Mas quem cré na Biblia por partes ja negou que ela deva ser crida por ter autoridade, pois o mesmo Senhor que autentica os Salmos também autentica Génesis 3 e a autoria do livro de Daniel. Quando um cristao nega fatos e histérias do Antigo Testamento, ele duvida do seu Senhor. Aqui surge a seriedade de toda pesquisa crist em assuntos de autoridade biblica. Ainda é verdade que “se crésseis em Moisés, também crerieis em mim; porquanto ele escreveu a meu respeito” (Jo 5.46). Perguntas biblicas ainda so basicas. Espera-se que nestas paginas elas te- nham recebido tratamento justo e cuidadoso. Possa este estudo estimular outros nesse mesmo campo. E um dever prazeroso reconhecer o quanto se é profundamente deve- dor a outros — aos grandes homens que nos antecederam, mas também a varios amigos do presente. A visio apresentada aqui, a de que a divisio do canon do Antigo Testamento nao consistiu de trés segdes definidas, mas que elas eram em certa medida fluidas, e que alguns livros estavam ora na segunda divisio ora na terceira, nao é original deste autor. Aparentemente, foi sustentada em dias passados (ver cap. 6, n. 35), mas a visio de um desenvolvimento triplice ganhou crédito entre os criticos estudiosos no século 19. Depois, entre os conservadores, 0 prestigio do nome de William Henry Green se destacou a favor da teoria de um canon triplice. Robert Dick Wilson, ao considerar as evidéncias com novos olhos, ensinou essa visio de uma classificagao triplice fluida dos livros. Ela foi passada ao autor pelo seu professor, pupilo de Wilson, o Dr. Allan A. MacRae, que hd muitos anos vem sendo tanto colega como amigo. E um prazer reconhecer essa divida. No levantamento das provas desde os primeiros séculos cristéos quanto ao motivo que levou a escolha dos livros neotestamentérios atuais, 0 autor foi ajudado muito na preparacdo da primeira edigdo deste livro por um cole- ga e amigo mais novo, William A. Sanderson, que j4 havia tratado da evidéncia quando da preparagdo de uma tese de mestrado sob a orientacéio do autor. Outro dos orientandos do autor, Carl Cassel, que fez trabalho de mestrado semelhante no Wheaton College, havia chegado 4 mesma conclu- sao —a de que o teste de canonicidade aplicado pela igreja primitiva foi o da autoria apostélica. Essas duas teses foram usadas como referéncia aos da- 8 INSPIRACAO £ CANONICIDADE DA BIBLIA dos, embora os dados patristicos em si tenham sido conferidos constante- mente e sejam citados aqui com freqiiéncia. Talvez seja interessante observar que quando esses estudantes comegaram suas pesquisas, ambos tinham uma visio diferente do teste de canonicidade usado pela Igreja Primitiva. O exa- me das evidéncias os levou também as vis6es aqui propostas. E livremente reconhecido que as 6ticas sobre a canonicidade aqui expressas n&o sdo as tinicas mantidas pelos estudiosos conservadores da Biblia. Por essa razio, repetidamente citamos os préprios autores cristdos primitivos, de modo que 0 leitor possa ter maior facilidade em julgar por si mesmos os argumentos. Também, as questdes de canonicidade e inspiracao muitas vezes se baseiam nas mesmas testemunhas primitivas e assim, por- tanto, acontece de itens importantes 4s vezes serem objeto de referéncia mais de uma vez. Espera-se que esse tratamento dé ao leitor mais do que apenas uma introdugao a riqueza do testemunho cristiio, especialmente dos dois primeiros séculos. Varios desses autores primitivos sofreram martirio por causa da fé que professavam. Bem nos faria ouvir mais vezes 0 testemu- nho e a histéria deles. Gratidao é devida a estudantes pacientes que, no decorrer de anos de aulas, oferecerarn incentivo e encorajamento para o estudo da Palavra de Deus. O autor agradece aos estudantes que o ensinaram! Também uma pa- lavra de apreciagio deve ser dirigida a uma neta e artista eximia, Amanda Dryden Smick, pelo desenho da capa; agradecimentos adicionais devem também ser feitos a amigos pacientes que ajudaram o autor a entrar na era do computador — o Rev. Gareth E, Tonnessen de Lewes, Delaware; e 0 Sr. D. Randall Iserman, de Wilmington, Delaware, que ajudaram com aconselhamento e material; e ainda, especialmente, ao Sr. Samuel B. Harvey, do Business Research Institute, de Stowe, Vermont, pelo incentivo e auxilio técnico. Finalmente, 0 maior agradecimento vai para minha esposa, Anne — ela mesma professora treinada na Biblia e suas linguas — pelas correcées, sugestdes, sabedoria e apoio nas horas de verificagao, busca e formulagao dos dados aqui apresentados — Provérbios 31.30. R. LAIRD HARRIS, Ph.D., Professor Emérito de Antigo Testamento, Covenant Theological Seminary, St. Louis, Missouri, agora domici- liado em 9 Homewood Rd. Wilmington, DE, 19803, Dezembro de 1994. Sumario Prefacio Abreviagoes Primeira Parte: Inspiragio 1. Introdugiio O Surgimento da Alta Critica A Evolugao e a Biblia A Difusdo da Descrenga Moderna 2. Por Que Cremos na Biblia O Ensino de Jesus (O Sermao do Monte) Ama teu Préximo Juramentos Olho por Otho Adultério Homicidio Divércio 10 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA O Ensino de Jesus em Outra Parte Reivindicagées da Inspiragao em Outras Passagens Biblicas 3. Inspiragdo Verbal na Histéria da Igreja 4. Critica Textual e Inspiragio O Novo Testamento O Antigo Testamento 5. Hermenéutica e Inspiragao 6. Objegées A Doutrina da Inerrancia Verbal Segunda Parte: O Canon do Antigo Testamento 7. Hist6ria da Aceitagéo do Canon do Antigo Testamento 8. O Princfpio Determinante do Canon do Antigo Testamento 9, A Extensao do Canon do Antigo Testamento Conclusao Terceira Parte: O Novo Testamento 10. O Testemunho do Novo Testamento sobre si Préprio 11. Hist6ria da Aceitagao dos Livros do Novo Testamento 12. Os Principios Determinantes do Canon do Novo Testamento 13. O Teste Patristico da Canonicidade 14, Livros de Autoria Questionada 15. Conclusio Notas Bibliografia Selecionada Refer€ncias para Materiais Fonte Antigos Rolos do Mar Morto Pais da Igreja Primitiva Papiros Biblicos Primitivos Referéncias Gerais Indice Remissivo 48 51 59 69 69 716 85 99 127 129 159 183 194 197 199 217 241 257 269 293 305 AB ALQ. ANET ANF BA BAG BASOR BCS BR BSac cbc DSsD DSS EBC EGT, HAC HE ICBI Icc IVP JBR JETS OTCNTC Q SCM SPCK TWOT VT WCNT ZINT ZPEB Abreviagoes Anchor Bible The Ancient Library of Qumran Ancient Near Eastern Texts Ante Nicene Fathers Biblical Archaeologist Bauer-Arendt-Gingrich Greek Lexicon Bulletin, American Schools of Oriental Research Bruce, The Canon of Scripture Biblical Review Bibliotheca Sacra Caito Damascus Covenant (também chamado Doc. Zadoquita) The Dead Sea Manual of Discipline (também chamado IQS) The Dead Sea Scrolls The Expositor’s Bible Commentary The Expositor’s Greek Testament Hermeneutics, Authority and Canon, org. pot Carson & Woodbridge Eusébio, Ecclesiastical History International Council on Biblical Inerrancy International Critical Commentary Inter Varsity Press Journal of Bible and Religion Journal, Evangelical Theological Society (originalmente BETS) Beckwith, The Old Testament Canon in the NT Church Qumra Cave Scrolls; 1Q = de gruta 1; 1QS = Manual de Disciplina (um Seder) da gruta 1; 4Q flor = Gruta 4 Floritegium, etc Student Christian Movement press Society for Promotion of Christian Knowledge Theological Wordbook of the Old Testament Vetus Testamentum Westcott, Canon of the New Testament Zahn, Introduction to the New Testament The Zondervan Pictorial Bible Encyclopedia Primeira Parte INSPIRACAO 1 Introdu¢ao Bs Tanto nos Estados Unidos como em toda a civilizagao ocidental, a maioria das pessoas tem a Biblia em alta estima. Ela pode nao ser lida tao fielmente como deveria ser. Em muitos lares, ela talvez esteja acumulando pé, sobre um aparador num dos cémodos da casa. Porém, sem diivida, a maioria dos lares americanos tem uma Biblia ¢ reverencia a Palavra de Deus, pelo me- nos em teoria. No lar e no coragio de milhdes de pessoas, ela é reverenciada de fato bem como em teoria, e as béncaos da sua doutrina enobrecedora ainda enriquecem muitas vidas, como jé abengoaram as vidas e os lares dos nossos antepassados. A Biblia foi o primeiro livro a ser impresso. Uma porgao da Biblia, o livro de Salmos, chamada 0 Bay Psalm Book, foi o primeiro livro impresso na América do Norte. A Biblia ainda é, de longe, 0 livro mais vendido nos Estados Unidos. Mesmo a partir da edigao original do presente livro, publi- cado em 1957, um bom ntimero de importantes novas versées da Biblia tém aparecido e sido usadas em larga escala. A mais popular, a New International Version (NIV), impressa em 1978, registrou quase cem milhdes de exem- plares da Biblia toda ou do Novo Testamento, até 1994. [Em portugués, ha a Nova Versao Internacional (NVI) desde 2000 — N.T.]. A Biblia ja foi traduzida para muito mais linguas do que qualquer outro livro: sua leitura abengoa seus leitores dedicados em mais de mil Iinguas. Sua forga na cultu- ra inglesa nao é resultado do estilo especialmente lindo da Versio do Rei James de 1611. Na verdade, é justo dizer que a King James Version (KIV) foi o produto daqueles que amaram a Bfblia em vez de ser a causa desse 16 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA amor. Varias versdes anteriores haviam tornado o povo inglés conhecedor e amante da Biblia como Palavra de Deus, em qualquer roupagem em que aparecesse. Na Europa Continental, o grande movimento de reavivamento chamado de Reforma Protestante foi deflagrado por uma énfase renovada na Biblia. Os dois grandes princfpios da Reforma foram a justificagao pela fé somente e a suprema autoridade da Biblia. Na Alemanha, um dos frutos mais duradouros da obra do grande Reformador foi a traducao da Biblia por Lutero. Geralmente se reconhece que a escolha que Lutero fez de um diale- to para sua versdo foi o que assegurou que esse dialeto tivesse um lugar de supremacia, de modo que acabou se tornando a lingua da nagao. Assim a Palavra de Deus cresceu e prevaleceu. Uma pergunta que tem sido feita repetidamente é: O que é que a Biblia tem que fez com que recebesse tao tremendo reconhecimeto — pelo mundo todo e de modo tao duradouro ~ de tantas pessoas de varios tempe- ramentos e civilizages, e gerasse nos seus adeptos uma devogao tal a ponto de eles sujeitarem-se ao martirio por ela? Qual € 0 segredo da atragdo que a Biblia exerce? Em si € um fendémeno estranho que a hist6ria das lutas e dos pecados dos reis e sacerdotes de uma nagio antiga e fraca tivesse um fasci- nio tao constrangedor até para as criangas dos nossos dias. E os homens se perguntam qual o sentido que poderia ter, para os nossos dias, a histéria de um professor religioso de Judafsmo e seu pequeno grupo de doze pescado- res. Se a Biblia fosse apenas uma coleténea de contos antigos, para nao dizer lendas, a imponente estrutura da Igreja Crista, com todos os seus em- preendimentos sociais de beneficéncia, repousaria sobre um alicerce de areia. Se a Biblia fosse meramente um livro classico, seria de interesse, mas nado haveria explicacdo para o poder que ela exerce sobre o coragiio dos homens. Que a Biblia é um livro de interesse, de beleza e de forga moral, poucos chegariam a negar. Porém, que ela é mais do que isso parece sobremaneira auto-evidente. O fato € que a Biblia vem tendo sua influéncia no mundo e no cora- go dos homens nos lugares em que foi recebida como nada menos do que o Livro de Deus, uma revelagao de vida e luz e imortalidade. Ali, sua beleza & vista como sendo a beleza da verdade. Suas histérias so os registros da intervengéo divina real na Histéria. Seus personagens so homens a quem e por intermédio de quem Deus falou. E sua figura central é o Deus encarna- do. Isso, como veremos, é 0 que a Biblia afirma ser — um Livro inspirado pelo Espirito de Deus, que traz uma mensagem de salvagdo a homens de- sesperados e desamparados. Varias definigdes sao necessdrias ao abordarmos um tema tao discu- tido como é a inspiragéio da Biblia. A palavra “inspiragio” € usada numa variedade de sentidos. Quando a bandeira esté sendo abaixada numa retira- da, a mdsica militar no campo de exercicios pode ser chamada de profundamente inspiradora. A poesia elevada, ou a arte, ou um apelo retérico por aco para uma boa causa também pode ser chamada de inspiradora. Isrropucio 7 Mas a Biblia é dita inspirada no velho sentido da palavra. O termo “inspi- rar”, naturalmente, dd a entender que hd um fdlego ou espirito dentro. Dizemos que a misica ¢ inspirada porque ela eleva o espirito dentro de nés. Mas 0 uso mais antigo da palavra com respeito & Biblia vem da referéncia em 2 Timéteo 3.16: “Toda a Escritura é inspirada por Deus”, no sentido de que o Espirito Santo de Deus trabalhou na produgiio da Biblia. O Espirito de Deus estava dentro dos autores que a produziram. Em palavras simples, a igreja crista tem crido, ao longo dos séculos, que a Biblia foi produzida por Deus, “respirada por Deus”, mas como a palavra “inspiragdo” € usada com diferentes sentidos até nos meios teolégicos, torna-se necessario agora qua- lificar 0 termo para indicar especificamente 0 que um homem quer dizer quando afirma crer na “inspiragaéo” da Biblia. Numa geraciio passada, a palavra “plendria”, com o significado de “cheia”, era usada como adjetivo qualificativo para indicar a crenga de que a Biblia era “completamente ins- pirada”. Essa é a terminologia usada por Charles Hodge na sua conhecida Teologia Sistemdtica do século 19. Ele quis dizer com isso que a Biblia é toda de Deus; é a Palavra de Deus in toto, e nao h4 mistura nenhuma de erro humano na sua produgdo.' O mesmo fato é agora expresso de outras manei- ras, muitas vezes, porque a expressao de Hodge as vezes tem sido interpretada como significando apenas que todas as partes da Biblia, de Génesis a Apocalipse, foram de alguma forma produzidas com a ajuda de Deus, mas nao sao todas, necessariamente, de verdade divina absoluta. Para preservar 0 conceito mais antigo, a expressao “inspiragéo verbal” ou “inspiragao pl naria verbal” veio a ser usada para declarar que Deus dirigiu até a prépria escolha das palavras no Santo Volume, de maneira que pode ser dito verda- deiramente que a Palavra de Deus é sem mistura de erro humano. Isso também pode ser expresso insistindo-se que a Biblia é “verdade de comego a fim” ou especificando que é sem erro de “fato, doutrina ou jufzo”? A idéia de “inspiragaio verbal” foi rejeitada por muitos tedlogos do iltimo meio século. Naturalmente, rejeitar qualquer verdade é privilégio de qualquer homem. HA poucos ensinos que nao foram negados por ninguém! Mas parece muitfssimo desastroso que a doutrina da inspiragdo verbal te- nha sido, em dias recentes, nado somente rejeitada, como também mal entendida, depois caricaturada, caluniada, e ostentada para ser atacada como se maté-la significasse prestar um servigo a Deus. No momento, tudo o que queremos fazer é definir a doutrina. O apoio a ela vem depois. Alguns caricaturam a doutrina dizendo que nao podem crer numa “teoria do ditado” tio rigida e mecAnica. Ora, rigida a doutrina pode ser, mas ela ndo é mecAnica, a ndo ser que seja mantido que o Espirito de Deus nao tem meios para trabalhar que nao sejam mecAnicos. Segundo a Biblia, o Espirito de Deus levou o rei da Assiria numa grande expedigdo contra Israel e Judd sem que o rei soubesse de modo algum que estava cumprindo os propésitos de Jeova, o Deus de Israel (Is 10.5s.). O Senhor € capaz igual- mente, segundo nossa doutrina, de usar e supervisionar a boca disposta do 18 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA rei Davi para que ele diga o que é verdade de Deus e s6 a verdade (2Sm 23.2) sem que por isso ele tenha os seus préprios poderes naturais de retéri- cae canto sustados. Isso pode ser chamado de teoria da operagao concordante. E claro que ha partes da Biblia que foram ditadas. Deus nao apenas pronun- ciou os Dez Mandamentos, mas a Escritura diz que “as tabuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus” (Ex 32.16 cf. 31.18). Muitas das palavras do Cristo glorificado a Joao na ilha de Patmos foram escritas por ditado, Mas em geral a reivindicacaio dos profetas e apés- tolos é que suas palavras foram as palavras de Deus, porque esses homens foram impelidos, “movidos pelo Espirito Santo” (2Pe 1.21), nao porque seus escritos foram ditados palavra por palavra. Nenhum credo de qualquer importancia na Igreja Crista ensinou a teoria do ditado, embora, como iremos ver, os credos estejam cheios de afirmagées de que nao ha contradig6es na Escritura, que toda ela € para ser crida, que Deus é o Autor da Biblia inteira, etc. E h4 poucos — se € que ha algum ~ autores teolégicos de importancia que se tenham prendido a teoria do ditado, ainda que a visao geral durante a histéria da igreja cristé tenha sido que as Escrituras sao verdade até o menor detalhe. Talvez 0 tinico cre- do que possa ser acusado de ensinar o ditado seja a declaragdo catélico-romana escrita pelo Concilio de Trento em 1546. Nessa declaragao €é dito que as Escrituras eram wm Spiritu Sancto dictatas. Mas sem diivida devemos traduzir essas palavras simplesmente como “Faladas pelo Espiri- to de Deus”.> O método de Deus dar sua Palavra ao autor humano provavelmente nao esta especificado na declaracio tridentina, e a Igreja Catélica Romana hoje nao se prende a uma teoria do ditado mecanico, mesmo que oficialmente se atenha estritamente a inspiragdo plena das palavras. A declaragdo do Concflio Vaticano de 1870 foi que a Biblia (in- cluindo os Apécrifos) “contém revelagdo sem nenhuma mistura de erro”.* Ao manter a doutrina da inspiracao verbal, os credos protestantes e a Igre- ja Romana estac e sempre estiveram de acordo. Esse nao foi o ponto em questao nos dias da Reforma. Deve ser desnecessdrio, mas talvez seja prudente, acrescentar um pro- testo a mais contra a equiparagao de inspiragdo verbal com ditado mecanico. O protesto de Machen ainda é digno de ser reimpresso: “O Espirito, diz-se, € representado nessa doutrina como ditando a Biblia a escritores que foram realmente pouco’mais do que datilégrafos. Mas naturalmente essas carica- turas nao sao baseadas em fatos, e é um tanto surpreendente que homens inteligentes estejam tao cegos pelo preconceito sobre essa questao que nem examinam por si os tratados perfeitamente acessfveis nos quais a doutrina da inspiragao plendria é apresentada. Geralmente considera-se boa pratica examinar uma coisa pessoalmente antes de ecoar a ridicularizagao vulgar da mesma. Porém, com respeito a Biblia, essas reservas eruditas de alguma forma so vistas como fora de propésito. E tao mais facil contentar-se com alguns adjetivos infamantes tais como ‘mec4nicos’, ou semelhantes. Por InTRODUGAO, 19 que se ocupar da critica séria quando as pessoas preferem a ridicularizagaio? Por que atacar um adversdrio real quando é mais facil derrubar um espanta- Iho?’”’ Engelder cita A. H. Strong, T. A. Kantonen, E. E. Flack, A. Deissmann, GT. Ladd, W. Sanday e outros, que fazem essa confusio fatal (ele poderia ter citado também Karl Barth). Ele cita também Quenstedt da Reforma Luterana, Epifanio e outros antigos, Graebner, F. Pieper, B. B. Warfield e outros modernos como definitivamente nao se atendo a uma teoria mecdni- ca, todavia defendendo nada menos que a inspiracao verbal.° Warfield coloca contra a caricatura um protesto como o de Machen.’ Essa doutrina da inspiragao verbal, mesmo entendida corretamente, foi agora abandonada em larga escala. Ao longo dos séculos, a Biblia tem resistido a muitos ataques de inimigos de todo tipo. Mas no século 20 foi chamada a suportar ataques repetidos na casa dos seus amigos. A Biblia agora é livremente colocada em dtivida por pregadores em muitos ptlpitos € por professores na maioria dos semindrios tradicionais nos Estados Unidos. Os leigos de nossas igrejas custam a acreditar que nossos ministros, em muitos dos ptilpitos de nossas denominagées tradicionais, talvez a mai- oria deles, nao mais creiam que a Biblia seja verdade do comeco ao fim, como criam nossos antepassados. Os fatos chegam como um choque tio pouco bem-vindo que ou n&o sao cridos, ou entaéo, como é mais freqiiente, nao sao enfrentados. Mas essas atitudes nao levam a nada. A evidéncia € grande demais para ser negada. E a questao é crucial demais para ser negli- genciada. As igrejas tradicionais perderam terreno e seus nimeros cafram de modo marcante no tiltimo meio século.* Nao surpreendente, para dizer © minimo, que o periodo de apatia crescente dessas igrejas, sua perda de membros, a redugdo em suas missées, 0 fracasso de sua influéncia moral, e a perda de zelo evangelfstico corresponde quase que exatamente com o pe- rfodo da difusiio de sua falta de crenga na Biblia e nas doutrinas centrais que ela contém? Como prova disso, 0 crescimento dos seminarios e das organi- zacOes missiondrias, e a expansdo de denominacoes novas e mais rigorosas correspondem a um ressurgimento da fé na Biblia como Palavra infalivel de Deus. A questio da plena veracidade da Biblia precisa ser enfrentada pelos cristaos inteligentes. Como a pergunta ainda mais basica “Que pensais vés do Cristo?”, ela nao pode ser posta de lado. O Surgimento da Alta Critica Para compreender essa mudanga de atitude em relacao a Biblia, um breve esbogo histérico se faz necessdrio. Durante séculos, a Igreja havia crido no que esta A mostra na evidéncia biblica, que os varios livros da Biblia foram escritos pelos autores cujos nomes levam e que foram mais ou menos con- tempordneos dos acontecimentos que narram, como eles préprios afirmam. A unidade dos varios livros nao foi questionada, exceto, talvez, por um ocasional herege antigo e extremado como Celso. Esses pontos de vista nao 20 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA foram seriamente desafiados antes do final do século 18. Durante 0 século 19, pontos de vista completamente opostos vieram a tona e se tornaram popularmente conhecidos pelo nome de “alta critica”, ou como alguns a designariam, “alta critica destrutiva”. Nao é necessério ir além de um breve resumo do desenvolvimento desse movimento. Jean Astruc (1753) é creditado com a primeira observa- ¢do da variagdo dos nomes divinos no Génesis, tendo conclufdo disso que parte do Génesis era uma combinagao de fontes diferentes. Ele sustentava de mancira suficientemente ortodoxa que Moisés havia usado duas fontes histéricas antigas, uma que usava o nome hebraico de Deus, YHWH, ou “Jeova”,’ ea outra que usava a palavra hebraica Elohim, que significa “Deus”. Foram escritores posteriores que estenderam essa hipétese de fontes documentdrias a todo o Pentateuco e também a escritos posteriores. Eles declararam que o Pentateuco nao foi obra de Moisés, mas sim um composto de partes histéricas escritas por outras e desconhecidas mios. A hipétese foi apresentada por um alemao, Eichorn (1823), modificada por Hupfeld (1853), que argumentou que o préprio documento Eloista foi composto de dois do- cumentos, um “Primeiro Elofsta” e um “Segundo Elojsta”, depois modificado novamente por Karl H. Graf, cujas idéias foram popularizadas por Julius Wellhausen (1878). As novas teorias foram espalhadas na Inglaterra especial- mente por Robertson Smith, editor da Encyclopedia Britannica no seu tempo. A teoria entdo sustentada tomou forma em 1865, quando Graf deci- diu que o Primeiro Elojsta (que ele chamou de documento “P”) era realmente o mais recente dos quatro e o Segundo Elohist seguia, cronologicamente, ao documento “J”. Assim, dois documentos, como foi sustentado de inicio, tornaram-se quatro, porque Deuteronémio tinha sido atribufdo aos dias de Josias por DeWette em 1805. Esses quatro documentos foram chamados de “J”, a partir da idéia original de que usava o nome “Jeova”, “E”, por causa do uso da palavra Elohim para Deus, “D”, por causa da grande porgiio de Deuteronédmio nele, e “P”, por causa das caracterfsticas sacerdotais (“Priestly”) encontradas nesse documento. Portanto, a base da alta critica, conforme mantida durante muitos anos, é a divisdo dos primeiros cinco ou sete livros da Biblia nos Documentos J, E, D, e P.'° A teoria da alta critica esbogada acima representa 0 consenso dessa erudicao nos primeiros anos de 1900. Desde entao foram feitas varias mo- dificagdes, que no podemos detalhar aqui. A visto de Wellhausen foi seguida pela Critica da Forma; esta foi modificada pela Critica Tradicional-Histéri- ca, depois vieram outras modificagdes. A Critica da Forma procurou identificar varias formas ou géneros literdrios nos documentos e atribuir essas porcées a varias fontes ou a perfodos anteriores. A Critica Tradicio- nal-Histérica opera sobre os itens escolhidos pela Critica da Forma e estuda como podem ter sido modificados e ajustados por maos posteriores € entretecidos para formar unidades maiores. Esses pontos de vista foram aplicados de varios modos por varios estudiosos e com varios resultados. IntRopugAo 21 Mas 0 resultado no final de dois séculos de critica do Pentateuco foi negar que as leis e a histéria dos cinco livros de Moisés sejam primitivas ou que sejam fato. Como Otto Kaiser 0 coloca num livro representativo sobre in- trodugdo de um ponto de vista da alta critica: “O quadro, conhecido por todos pela narrativa biblica do Israel que, a partir dos doze filhos de Jacé, miraculosamente tornou-se uma nagao numerosa no Egito, escapou da ser- vidao sob a lideranga de Moisés, foi salvo no Mar, aceito em alianga com Deus no Sinai e finalmente depois de quarenta anos de andangas foi condu- zido por Josué que o fez entrar na terra prometida, para nés nao faz mais parte da Hist6ria”."" E claro que, se esses registros do Pentateuco no sio verdadeiramente hist6ricos, eles nao sao utilizados no estudo da religiiio do Israel primitivo, e as leis e os mandamentos nao tém forga de imposi¢do. Os Dez Mandamentos acabam sendo chamados entio, jocosamente, de as Dez Sugestées! E instrutivo olhar para a histéria da alta critica em dias mais recentes. Otto Kaiser reconstitui essa histéria de modo pratico.'? Ha uma variedade estonteante de opinides, muitas vezes contraditérias. Assim, a origem da nagao foi retratada por Alt e seus seguidores como devida ao ritual de um santudrio central no qual pessoas espalhadas se uniram num grupo de doze tribos, talvez relacionadas a obrigagées mensais de culto. Kaiser duvida disso e mantém que a nagao sé se tornou unida sob Davi. Ele diz mesmo que Israel se estabeleceu em Canaa em “duas ondas de invasées entre os séculos 14 e 11”." Ele considera isso como sendo “certeza”. Atualmente, porém, ha um ponto de vista que diz que os israelitas nao vieram de parte alguma. Eles eram os camponeses locais que se revoltaram contra os que os governavam e estabeleceram uma unidade diferente.'* Deve ser lembrado, no entanto, que seja como for que os estudiosos criticos possam diferir so- bre a pré-historia de Israel ¢ a formagao dos registros primitivos, ha concordancia bdsica a respeito da antiga hipé6tese documentéria de que Génesis a Niimeros sao compostos de trés fontes, J, E e P, escritos em cerca de 950, 750 e 450 a.C., que com toda certeza contém apenas material lendd- rio. Deuteronémio é tratado de varias maneiras, com Noth estendendo o trabalho do “deuteronomista” até o final de 2 Reis, outros sendo mais restri- tivos, mas todos concordando que Deuteronémio nao pode ter sido escrito por Moisés. O Dr. K. A. Kitchen, Meredith G. Kline e outros do lado conser- vador quase nio sio ouvidos.'5 O. Kaiser, numa nota de rodapé (p. 126) diz: “Os argumentos contrdrios de G. T. Manley... e M. G. Kline ... nao vao fazer voltar a roda da erudigiio”."* Tendo em vista as rapidas revolugdes de opi- nidio dos estudiosos criticos que o proprio O. Kaiser documentou, a metafora de uma roda giratéria de erudigdo liberal pode realmente ser mais apropria- da do que o intencionado. Tratamento posterior e mais extenso dos varios pontos de vista das origens e vicissitudes das variadas fontes se encontram nas introdugées padrao do Antigo Testamento. Os detalhes esto além do nosso presente propésito.!” 2 INSPIRAGAO & CANONICIDADE DA BIBLIA Nao se deve supor que qualquer pessoa que conhega hebraico pode pegar sua Biblia e ler alguns versiculos do Génesis e saber ao certo que esses versiculos pertencem a este ou aquele documento. As alegadas dife- rengas de estilo ndo sao tao distintas assim. Na verdade, existe ampla divergéncia de opiniao entre os criticos quanto a exatamente o qué pertence aos varios documentos. E os critérios que dao base para a divisdo falham com tanta freqiiéncia e apresentam um quadro tao confuso que um sem-fim de documentos subordinados e subeditores ou “redatores” sao acrescenta- dos para ajudar a sustentar a teoria. Nas mos de criticos extremistas a situagao ja ficou quase risivel. Por exemplo, no volume sobre Génesis no International Critical Commentary, (1910) Skinner, um estudioso compe- tente, dividia Génesis 21.1 em duas partes. A primeira metade, “Visitou 0 Senhor a Sara como the dissera”, é J: note 0 uso do nome Jeova. A segunda metade, “e o Senhor cumpriu o que lhe havia prometido” é de E; claramen- te, “Jeova” € usado nesta metade também, mas sem diivida € uma glosa (uma substitui¢io posterior) para Elohim, que deve ter estado aqui no docu- mento original. E. A. Speiser, no seu comentario sobre Génesis (1964) faz mesma afirmagao.'* E preciso usar lentes criticas fortes para se dividir versiculos assim com o uso de critérios que nao estdo 14! Faz lembrar o episédio de Alice no Pais das Maravilhas em que Alice, olhando para 0 caminho, diz: “Eu nao vejo nada”. “Que viséo maravilhosa”, comentou a Rainha, “poder ver nada, e a essa distancia!” Teme-se que a tendéncia da hipétese critica é possibilitar aos criticos extremados, pelo menos, nao ver nada, mas dividirem os documentos assim mesmo. Nosso objetivo no pre- sente momento, contudo, nao é tanto considerar a alta critica como mostrar arelagio dela com a questao da crenga na Biblia. Um ponto mais deve ser enfatizado. A objeg&o ortodoxa a alta critica nao é simplesmente contra a andlise do Pentateuco por fontes, mas contra as datas atribuidas a essas fontes. E bem possivel, até provavel, que Moisés tenha usado fontes para suas histérias no Génesis. Nada h4 nessa posigao que seja inconsistente com a doutrina da inspirago verbal. Lucas, no seu prélogo, nos assegura que ele tinha cuidadosamente usado todas as fontes que péde consultar. O uso de fontes escritas por Moisés no restante do Pentateuco seria mais dificil de aceitar, visto que ele proprio era a melhor fonte para todas essas histérias. Mas o grande afastamento da alta critica do ponto de vista antigo é a data atribufda a esses documentos. A reivindicagao € que eles foram escritos séculos, até mil anos, depois de Moisés. Eles sus- tentam que o Documento P é, quanto ao estilo e 4 perspectiva, muito semelhante ao Livro de Ezequiel, e que pode, portanto, ser datado segura- mente do perfodo das turbuléncias durante e depois do Exilio— cerca de 450 a.C. E dito que o Documento J tem afinidades com os grandes movimentos proféticos dos dias da monarquia, e foi entdo datado em cerca de 850 a.C. (agora colocado em aproximadamente 950 a.C.). O Documento E mostra um desenvolvimento a mais e é dito ser de cerca de 750 a.C. O Documento Dé confiantemente afirmado ter sido o rolo da Lei que Hilquias, 0 sacerdo- Intropucko. 23 te, disse ter encontrado no entulho do Templo durante os dias de Josias, e cuja descoberta causou tanta agitagao no reino. Realmente, dizem eles, Hilquias nao descobriu um livro hd muito perdido; ele simplesmente levou ao rei um livro que havia sido escrito recentemente e passou-o, ludibriando © monarca que de nada suspeitava, como produgao de Moisés, o grande doador da lei de dias passados. Sua data assim seria cerca de 625 a.C. Al- guns diriam mais cedo, outros mais tarde. Noth e alguns outros dariam ao “deuteronomista” também a forma atual dos livros de Josué a 2 Reis.!? O Pentateuco inteiro teria sido composto por volta de 400 a.C. Por esse esboco da hipétese documentiria, € facil ver por que aqueles que sempre acreditaram na integridade da Biblia, e especialmente na verdade das palavras de Cristo, esto grandemente preocupados. E inconfundivel- mente claro que o Pentateuco reivindica ser uma unidade; que os outros livros do Antigo Testamento se referem a ele como sendo a Lei de Moisés; que Cristo o declarou verdadeiro e como sendo obra de Moisés, que falou profeticamente a seu préprio respeito. E bem aparente que negagées tao amplamente difundidas da veracidade plena da Biblia inteira, incluindo o Novo Testamento, estao ligadas intimamente com essa visao da alta critica que cresceu tao tremendamente no tiltimo século e meio. Devemos admitir que Jesus Cristo nao era um alto critico. Sua visio da autoria dos varios livros era a que foi comumente mantida ao longo de séculos de Cristianis- mo. A questao torou-se, portanto, uma escolha entre Cristo e a critica. O efeito da alta critica é negar Cristo ou reduzi-lo a proporgdes puramente humanas. Ele foi, dizem, um filho de seus dias, sujeito aos erros e as limita- des do conhecimento do seu tempo. E problema da teologia moderna, tendo chegado a esse resultado, tornar a revelagao e a obra dele relevantes para os nossos dias. E parece mesmo ser um grande problema, quase igual a reter um fluxo de corrente depois que se jogou uma chave inglesa no gerador! Mas ainda a situagao nao esta toda diante de nés. Pés-datar 0 Pentateuco do modo descrito pedia um reexame do restante dos livros. E dito que a teologia do Documento J é primitiva e que tracos da velha idola- tria transparecem. Por exemplo, por causa da cena em que Aarao adorou 0 bezerro de ouro, é dito que todo o Israel em certa época adorava um bezerro de ouro — adorag&o de touros.”° De acordo com isso, a adoracao semelhante de bezerros de ouro por Jeroboao no Israel do Norte por volta de 920 a.C. & também tipica da velha pratica israelita. Mas os reformadores dos tempos do Documento J (por volta de 850) tentaram erradicar tudo isso e retrataram Aarao e Jeroboao como se estivessem introduzindo uma nova idolatria, apostatando do culto a Jeova. E depois que os homens do Documento J tinham elevado Jeov4 a posigio de supremacia em Israel, os homens do Documento E foram mais longe ¢ declararam que o Deus de Israel era su- premo em todo o mundo. Assim, a religiao de Israel evoluiu do estagio baixo do politeismo e idolatria para o henotefsmo (um Deus para cada na- ¢4o), e finalmente, os profetas do século 8° descobriram o monotefsmo. 24 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA Essa evolugao da fé de Israel, que escritores criticos atribuem ao génio da nagio hebraica para a religiao, tem sido parte integra do pacote da visdo documentaria. De fato, teve um papel grande nos critérios dos criticos em selecionar as diferentes porgdes para os documentos tratados. Ora, é claro demais que se o monotefsmo foi uma invengao do século 8°a.C., entdo Davi nao escreveu os Salmos, Salomao nao escreveu Provér- bios, J6 foi uma criacio posterior, e muito de Samuel e Crénicas em grande parte ficgao. Todos esses precisam ser pés-datados. Com essa visio da reli- gido de Israel, é claro, nao hd espaco para predicao sobrenatural especifica. Naturalmente, os profetas ainda podem ser chamados de “videntes” e suas adivinhagGes sagazes sobre o que pode acontecer no cenario politico pode lhes ter trazido um bom renome, mas é impensdvel que Deus tenha dito a Abraio que seus filhos passariam por quatro séculos de escravidao (Gn 15), ou que Davi pudesse predizer a ressurreigdo de Jesus Cristo (SI 16) ou que Isaias pudesse predizer a vinda de Ciro ja dois séculos antes do tempo (Is 44 e 45) ou que Daniel pudesse predizer trés grandes impérios mundiais que se seguiriam a Babilénia (Dn 7 e 8). Mas o simples recurso de pés-datar resol- ve todas essas dificuldades para os criticos. Eles insistem, pois, que Isafas nao foi escrito por um s6 homem por volta de 700 a.C., e sim por dois homens; outros dizem trés, e ainda outros dizem muito mais do que trés. Deutero-Isafas, que escreveu a profecia sobre Ciro, trabalhou durante o Exflio, e longe de ser profecia, é uma linda reescrita de acontecimentos contemporaneos.”! Trito-Isafas escreveu mais tarde ainda. Quanto a Daniel, a visdo usual é que o livro foi escrito por volta de 168 a.C., durante os tempos herdicos dos macabeus, que lideraram os judeus na gloriosa revolta contra 0 dominio de Antfoco Ep/fanes, o rei da Sfria, que havia profanado 0 Templo e perseguido os judeus. E histéria passada apresentada como profe- cia, para que os judeus pudessem ser encorajados pelo fato de que Deus reina e certamente os livraria. Como matéria de fato bem como de légica, esses varios pontos de vista da alta critica permanecem unidos. E impossivel encontrar um autor que cré na alta crftica do Pentateuco, mas que creia, também, que Davi escreveu todos ou quase todos os salmos que lhe sao atribufdos. Alguém que cré na divisdo de Isafas também cré na data posterior de Daniel, etc. Eo que € mais importante para o nosso estudo, alguém que cré nessas coisas nao tem sendo desprezo pela doutrina da inspiragao verbal. Ela é mecfnica; nao est4 mais na moda; cheira a ortodoxia morta; seus adeptos sio obscu- rantistas; falta-Ihes amor na sua expres: uma minoria inconseqiiente. Nas edigées anteriores deste livro (1957, 1969) foi dito (p, 28): “In- felizmente pode ser verdade que aqueles que se atém a inspiragao verbal so uma minoria nos lugares de aprendizado teolégico de hoje.” Hoje, isso nao é mais totalmente verdadeiro, A multiplicagao e 0 crescimento de semi- ndrios conservadores tém surtido tanto efeito que a partir de cerca de 1985 io de um credo duro; trata-se de IntRopucAo 25 © mimero de estudantes que se graduam em semindrios conservadores a cada ano é maior do que o ntimero dos que se graduam em seminérios libe- rais. Ainda é verdade, no entanto, que o ponto de vista liberal prevalece na maioria dos departamentos de religiao das universidades estaduais ameri- canas e sociedades teolégicas de prestigio. Na visdo popular, a ortodoxia biblica esta fora de moda e desatualizada. Duvida-se, no entanto, que a por- centagem seria tao pequena, fosse a pesquisa feita com as pessoas que se assentam nos bancos de igreja. Muitos membros de igreja que reconhecem que no Igem a Biblia tanto quanto deveriam, iriam, no entanto, declarar que créem nela e seriam as pessoas mais surpresas da cidade se seu pastor dissesse, do piilpito, em algum domingo, o que ele realmente pensa sobre a Biblia, Devemos questionar a franqueza de milhares de ministros nos piilpi- tos que escondem dos seus paroquianos sua crenga verdadeira. O espirito profético nesses lugares parece ter sumido de Israel. Nao é de admirar que as pessoas estejam confusas e indecisas. Talvez devamos acrescentar aqui que nos tiltimos anos a hipédtese documentédria tem se dobrado um pouco sob o peso das descobertas arque- ol6gicas. A hipétese toda foi desenvolvida numa época em que muito pouco era conhecido sobre as antigas linguas semiticas e menos ainda sobre a hist6ria antiga. Ela envolve o ponto de vista de que o Pentateuco era na sua maior parte lenddrio, que Davi e seu império sao um tanto ficticios, que as expressées e formas aramaicas observaveis em varios lugares no Antigo Testamento — mais nas passagens poéticas — surgiram bem tarde na histéria da literatura semita. Todos essas concepgées sao colocadas em diivida hoje em dia. Descobertas posteriores em Nuzi e Mari forneceram tio grande riqueza de cendrio sobre os costumes ¢ as leis das familias patriarcais, que muitos agora admitem que os relatos sobre os patriarcas no Génesis estao corretos até nos minimos detalhes. E dificil manter que sejam meramente as lendarias retroprojegdes de autores que viveram mil anos depois dos acon- tecimentos descritos.” As exatiddes do Génesis indicam fontes contemporaneas dos acontecimentos. Seria até quase maravilhoso demais 0 proprio Moisés ter escrito com tanta exatidio a nao ser que o material tivesse sido revelado por completo a ele como num sonho, ou a nao ser que ele tivesse consultado documentos que usou sob Deus como fontes histéricas do seu trabalho. E as descobertas das edificagdes de Salomao em Megido e suas obras para marinha mercante em Eziom-Geber” lan- gam uma luz to reveladora sobre a época da monarquia unida que nao se pode mais lembrar de Davi como um rude chefe de tribo incapaz de escre- ver seus Salmos. Na verdade, agora jd se torna comum ter porgdes do Pentateuco declaradas auténticas e dar a Davi 0 crédito que Ihe cabe como o doce cantor de Israel.” Se isso é feito, no entanto, se Moisés era monoteista, como Albright alega (ver nota anterior), entao muito da estru- tura da visio da alta critica sobre a evolugao da religido de Israel precisa ser repensada. E mais, 0 velho argumento de que palavras de afinidade aramaica presentes nos Salmos e poemas do Antigo Testamento dao a 26 INSPIRAGAO F CANONICIDADE DA BIBLIA entender uma data pés-exilica j4 foi totalmente abandonado nos circulos mais avancados. Em vez disso, muitas dessas formas sao agora reconheci- das pelo que sao: caracteristicas poéticas arcaicas que evidenciam, ao contrdrio, uma origem primitiva para essas composigées. Em suma, as teorias da alta critica de uma geragao anterior ainda esto conosco, mas foram modificadas em varios rumos por causa de mais estudos e mais conhecimento da situacao do antigo ambiente. Muitos, natu- ralmente, diréo que nem todas as novas descobertas apdiam a Biblia, e eles ainda pdem obstdculos & manutengao da doutrina da inspirago verbal. E verdade que podem surgir problemas a partir das novas descobertas. Mas a torrente de luz agora langada sobre os registros do Antigo Testamento mos- tra uma propor¢do muito grande de exatiddo histérica bem clara. Provavelmente o critico mais inamistoso apontaria para menos de meia dti- zia de casos no Antigo Testamento nos quais o relato biblico esta em franca contradigfio com os fatos até agora alegados por investigagiio arqueolégica ~e j& houve, como veremos, alguns casos notdveis em que essas contradi- ges foram resolvidas por luz arqueolégica mais completa.?> A Evolucao e a Biblia HA outro lugar onde a inspiragao verbal sofre forte ataque hoje. Esse ataque afeta somente uma pequena porgio do registro biblico, mas é importante. Estamos nos referindo 4 questo da evolugao ¢ a Biblia. Quase nao & preci- so falar de ciéncia e a Biblia, porque a ciéncia como um todo atinge muito pouco a Biblia. Ha poucos pontos nos quais a quimica, a fisica, a matemati- ca, etc. apontam para as Escrituras, e muito menos a contradizem. FE verdade que as vezes esses poucos pontos sao levados a sério demais, mas realmente nao so de grande importancia. Por exemplo, alguns ridicularizam a Biblia dizendo que ela da um valor de 3 para pi, em vez de 3,1416. E verdade que em 2 CrGnicas 4.2 e também em | Reis 7.23 as dimensées da grande bacia de bronze sao dadas como trinta ctibitos de circunferéncia e dez ctibitos de diametro, mas o que isso realmente prova? Trés € 0 valor de pi ao primeiro algarismo significativo, e embora o valor de pi tenha sido calculado até muitos decimais, seu valor exato nao pode ser conhecido! Nao nos sao ditas com precisao as medidas da pia, nem sabemos se era exatamente redonda, nem sabemos 0 tipo de beirada que tinha ou de que pontos as medidas de largura foram tiradas. Nada ha aqui para perturbar a fé de qualquer pessoa, nem hd base para se dizer que as Escrituras esto erradas em sua matemati- ca. E assim € com muitas outras objegdes de menor importancia. E claro que nao é cientifico crer que o dia de Josué teve 48 horas, mas é igualmente absurdo crer que um machado podia flutuar, ou que uma virgem podia ter um filho, ou que Cristo podia andar sobre a Agua. Todos os milagres, gran- des ou pequenos, so impossiveis para os homens, e so uma interrup¢ao das leis regulares da natureza que formam a base da ciéncia. E por isso que InrropucaAo, 27 sdo milagres, e € por isso que Deus os deu ao homem: para provar que hé um Deus no céu que é mais poderoso do que qualquer que é sonhado em muita filosofia, como Hamlet disse a Horacio.” Mas esses nao so conflitos entre a ciéncia e a Biblia. Antes sio conflitos entre a filosofia e a Biblia, como C, S, Lewis argumenta tio lindamente.”” No campo da intervengao miraculosa direta de Deus, a ciéncia nao pode interpor uma objecao propri- amente Porém, os céticos acham que 0 novo conceito da evolugdo torna im- possivel manter os primeiros capitulos do Génesis. Sobre isso ha muitos diferentes pontos de vista. Sem divida é verdade que novas descobertas tornaram impossivel firmar-se nas datas determinadas por Ussher e Lightfoot no século 17 que muitas vezes aparecem nas margens das Biblias mais an- tigas. De acordo com elas, a criagio do mundo aconteceu em 4004 a.C. Nem € preciso dizer que essas datas no so inspiradas; clas nao aparecem em nenhum credo cristéo e envolvem certas suposigdes que Ussher e Lightfoot nunca deveriam ter feito. Deve-se observar que, durante a Idade Média, estudiosos judeus calcularam a data da criagao e 0 calendario judai- co atual é baseado nessa data. Ussher nao foi 0 tinico responsdvel, embora geralmente leve toda a culpa! Também, nao é necessdrio sustentar que os seis dias criativos de Génesis eram de 24 horas cada um. Isso, também, seria uma inferéncia da Escritura que foi bastante comum em algumas épo- cas, mas que nao é de modo nenhum declarado na Biblia. Ha muito tempo Agostinho jf mantinha que os dias eram perfodos de comprimento indefini- do.” como de fato parece provavel pelo fato de que seu cémputo comeca antes que o sol a lua tivessem aparecido. Também esse uso indefinido da palavra “dia” é evidenciado logo no capitulo seguinte (2.4), onde se fala da obra inteira da criagao como tendo sido feita em um “dia” (KJV). A NIV aqui traduz b‘yom corretamente como “quando” mas permanece a questao de que yom nao significa um dia de 24 horas. J4 houve muita discussio pré e contra a respeito dessa questéo. Que muitas vezes yor quer dizer um dia de 24 horas é verdade, mas que sempre tem esse significado ndo. Ao contra- rio, no capitulo | de Génesis, freqiientemente é ressaltado que os marcadores para o dia nao foram feitos (ou no eram visiveis no céu?) até o quarto dia. Talvez mais significativa seja a referéncia ao sétimo dia como sendo o dia em que Deus descansou da criagiio. Esse descanso de Deus é citado no Salmo 95.11 como durando até o tempo de Josué e é interpretado ainda em Hebreus 4.8-11 como durando para sempre. Nao hd “tarde e manha” depois do sétimo dia. Se 0 sébado semanal de Israe] de 24 horas era simbdlico do longo dia de descanso da criagao de Deus, pareceria natural que os outros dias de 24 horas do trabalho do homem poderiam ser simbélicos dos longos dias de criagdo de Deus. Se esse argumento for valido, entao a terra antiga que os cientistas agora alegam nao propde problema algum para 0 cristio. Isso nao diz que a terra seja na realidade muitissimo velha. Hé argumentos interessantes contra sua grande antiguidade como Whitcomb (veja abaixo) 28 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA e outros alegaram, Porém, se nosso argumento for valido, 0 cristo nio tem nenhum problema seja qual for 0 resultado do debate sobre a antiguidade da terra e do universo. Se Deus nao nos fornece nenhuma data para a criagao, nao devemos ir além da Biblia em nossas afirmag6es. “No principio... Deus...” Assim, essa conclusao da nova ciéncia de que 0 mundo é antigo real- mente nao toca a doutrina da verdade da Biblia, porém s6 as inferéncias que alguns deduziram da Biblia. Uma abordagem que est4 na moda em alguns meios é procurar resolver 0 problema da evolugio falando-se numa evolu- ¢do teista. Segundo essa visao, € dito que a Biblia declara o fato da criagdo; novas 6ticas cientificas apenas dao-nos os métodos da sua criagao, que foi por evolugao. Essa idéia é aparentemente bastante atraente, mas ao que pa- rece, hd alguns pontos fixos no registro biblico que devem ser mantidos; e sao esses determinados pontos que os cientistas evolucionérios na sua mai- oria aparentemente buscam negar. Muitas vezes se diz que a énfase no registro de G&nesis é que Deus interveio diretamente na criagéo da matéria, da vida edo homem. Parece dificil nao inserir na série que Deus também interveio na criag&o de certas grandes divisdes dentro da vida. Ora, o problema dos cientistas quanto a criagdo da matéria talvez seja menor do que ja foi, no sentido que a matéria é vista hoje como sendo mais volatil do que os estagios anteriores da ciéncia a concebiam. Ela parece nao ser nada mais que uma variedade compacta de energia que se converte em energia com conseqiiéncias catastr6ficas. A equagao fatal de Einstein ajuda a explicar a criagéo quando abre as possibilidades tragicas de destruigao! As concep¢ées atuais de um universo em expansdo imaginam um inicio, ha cerca de vinte (alguns agora dizem oito) bilhGes de anos atras, com um big- bang. Mas 0 que originou essa grande explosio no inicio da expansio? Os cientistas continuam a procurar por uma causa fisica, mas a mais dbvia é dada em Génesis 1.1. E verdade que alguns excelentes estudiosos cristaos questionam a teoria do big-bang e argumentam por um universo recente criado em meio ao véo, por assim dizer.» Se a teoria do big-bang € verda- deira, ela pelo menos parece apoiar Génesis 1.1! Nao precisamos insistir que a teoria do big-bang € verdadeira. Mais estudos poderao modificar es- sas conclusées atuais. Mas pelo menos é€ possfvel dizer que nao ha agora nenhum problema cientifico em dizer que a matéria nao é eterna e que ela teve um comego. Que Deus fez isso € tao crivel como sempre foi. Podemos estar certos confiantemente de que estudos futuros, se solidamente basea- dos, no derrubarao essa conclusio. Quanto & criagZo da vida, a ciéncia ndo tem mais resposta ao que a vida é do que tinha ha alguns anos. Sio muitos os bioquimicos que tém ingénuas esperangas de que por alguma nova sintese de moléculas protéicas eles possam criar matéria viva, mas ainda ndo chegaram a nenhum éxito nesse sentido. Os processos vitais estdo realmente sendo mais bem compre- endidos, e devemos ser gratos por isso, mas nio temos motivo para pensar InrRopucAo 29 que a criagdo da vida sera duplicada pelo homem. Que isso ocorreu por acaso em algum lodo primevo € pura conjectura. Em anos recentes j4 houve muito estudo da mecfnica da vida.O DNA no niicleo da célula serve como padrao para a sfntese das protefnas que compdem a maior parte do tecido vivo. As proteinas so feitas de compostos simples — vinte aminodcidos “canhotos” unidos numa seqiiéncia de cem a muitas centenas de unidades de comprimento. Eles podem estar arranjados em qualquer bandeamento, mas s6 em certas maneiras sao titeis, e cada proteina é especifica para seu préprio propésito. As chances de que isso possa ocorrer por acaso sao infi- nitamente pequenas. Do mesmo modo, o DNA é formado de cordées de fosfatos e agticares repetidos que podem ser feitos facilmente, mas os cor- dées duplos sao ligados entre si por bragos semelhantes a degraus de escada de corda, compostos de quatro bases nucleotidias. Essas bases podem ser feitas sem dificuldade, mas sua configuragéo em longos cordées permite um mtimero de combinagées variadas que é dificil de imaginar. Esses mode- los se reproduzem na célula e a seqiiéncia é o que faz o organismo funcionar. Que essas seqiiéncias pudessem ter surgido por acaso exige mais fé do que 0 criacionismo! Num importante livro que aponta os problemas da evolu- ¢fio, Michael Denton observou que o fato de que Fred Hoyle da Inglaterra e outros de seu porte sugeriram que a vida foi importada do espaco simples- mente mostra “quao intratavel o problema da origem da vida ja se tornou”.*! Quanto & questo da formagdo de espécies, deve ser salientado que “espécie” é uma palavra diffcil de definir. Quando a Biblia diz que Deus fez as criaturas “de acordo com as suas espécies” (Gn 1.11, NIV), ela nao espe- cifica em nenhum detalhe os limites de variacdo em geragdes que se sucedem. O que por vezes tem sido chamado de microevolugdo nao est excluido, embora o quadro geral pareca sugerir claramente a diversidade e estase de formas de vida. Cada vez mais 0 pensamento evoluciondrio atual reconhece que variagdes e pequenas mutagdes nao operam para mudar uma espécie ou um tipo principal de vida em outro. Observagao extensa e experimentacio repetida, especialmente com as moscas-das-frutas, convenceram a muitos que praticamente todas as mutagGes sao nocivas, e as pequenas muta¢Ges s6 ocasionam mudangas dentro da espécie ou familia. Em parte como conse- qiiéncia disso, a visdo principal parece ser que grandes mutagGes que surgem espontaneamente transformam uma criatura ou um sistema significativo de uma criatura em uma coisa nova, a visio chamada de evolugio por salto. Assim, uma asa, ou penas, apareceriam de repente. Isso nado foi observado, e, visto ser uma probabilidade remota, provavelmente nunca seria observa- 7 32, do, mas “deve ter acontecido”. A essa altura, € costume os bidlogos fazerem a retirada para outro campo. E impossivel provar por experimento ou observagdo que um tipo principal de vida transformou-se em outro, mas foi alegado que o registro das rochas provou que acontece. No entanto, esse registro j4 foi também posto em dtivida seriamente. Darwin, de fato, reconheceu que ele nao podia 30 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BIBLIA apontar para gradag6es na evidéncia fossil, mas achava que com o acimulo de mais evidéncia féssil, as formas de transigao esperadas apareceriam. Desde ento, miltiplos espécimes de fésseis foram coletados para encher nossos museus, mas as formas transicionais nao aparecem. Esse fato embaragoso causou uma mudanea significativa no pensamento cientifico. Gould reco- nheceu o fato, ¢ ele é seguido por muitos outros.”’ A conclusao aparentemente & bem aquela que os que se opdem A evolugiio vém dizendo h4 muito tempo. Aevidéncia de transformagao de um tipo de organismo em outro realmente nao é encontrada. Por causa de tudo isso, talvez possamos ser perdoados achamos mais razodvel crer que Deus teve seus préprios modos de formar as espécies durante seus grandiosos dias criativos e que dali em diante as coisas procriaram conforme suas espécies, que é tudo o que jd foi observa- do na maioria dos experimentos mais detalhados. Quanto a criago do homem, a Biblia torna bastante explicito que Deus no escolheu um par dos simios superiores e adotou-os como seus filhos, dando-Ihes um desejo ascendente de pintar figuras nas suas casas nas cavernas e finalmente conscientizarem-se de um Poder Mais Alto. A Biblia diz que Deus criou Adio primeiro e depois, do seu corpo, criou Eva e colocou o casal sem pecado no Jardim do Eden, de onde cafram. Ora, a teoria da evolugio podia concebivelmente permitir essa intervengao miraculosa, mas nenhum cientista evolucionario admite qualquer ocorrén- cia desse tipo no progresso ascendente do homem de ancestrais brutos. O argumento é que a vida animal tornou-se mais diversificada e complexa conforme indicada pelo registro nas rochas, originando finalmente os ma- miferos e depois um estranho animalzinho arb6reo que se tornou 0 ancestral dos macacos, dos simios e dos grandes animais chamados homens. E visto como sinal de ignorancia dizer que a evolucio agora ensina que o homem veio dos macacos. Ninguém sustenta essa visdo. Os evolucionistas agora ja avangaram para a posigéo de que tanto os macacos como os seres humanos vieram do mesmo ancestral. Nao somos mais netos de macacos — s6 seus primos distantes. Que assim seja. A distingéio sem divida € de importancia biolégica. Teologicamente, e ousamos crer, praticamente, nao ha grande diferenga. A idéia de uma gradacao fisica continua do bruto ao ser humano nao pode ser enquadrada no relato de Génesis. Porém, isso também nao pode ser provado pelos fatos cientificos. Durante anos pensou-se que restos humanos muito primitivos mostravam um fisico extremamente pouco desenvolvido, depois ossos de uma idade intermediaria mostraram as caracteristicas de Neandertal, ¢ ossos recentes mostravam 0 alto desenvolvimento do homo sapiens. Essa série natural foi desfeita em anos relativamente recentes. Primeiro, o homem de Java foi estudado e reestudado, com a conclu- so de que seus restos muito fragmentados podem fazer paralelo com os do homem de Pequim. Mas 0 homem de Pequim nao esta nada claro porque seus restos foram misteriosamente destrufdos durante a guerra sino-japone- Irropugio 31 sa e nds temos apenas reconstrugdes que com demasiada freqiiéncia sao tendenciosas. Gish conclui que a evidéncia é tao fragmentada e duvidosa a ponto de ser sem valor. Outros achados que foram muito estudados antes da mudanga de cendrio em 1959 foram o homem de Piltdown, o homem de Neandertal, o homem Cro-Magnon e alguns achados menores. Esses foram arranjados num padrdo ascendente. Mas apareceram problemas. Descobriu- se que o homem de Piltdown era um embuste. O homem de Swanscombe foi descoberto e reivindicado ser mais antigo do que o de Neandertal, con- tudo mais moderno. O homem do Carmelo foi descoberto, também mais moderno do que o Neandertal, mas mais velho (pensou-se que era de cerca de 125 mil anos de idade; mais tarde estudos de carbono 14 dataram-no em 35 mil anos). Os detalhes nao podem ser dados aqui, mas por causa desse quadro, os restos de Neandertal foram reexaminados e ficou decidido que tinham sido mal interpretados e o homem de Neandertal nao era significati- vamente diferente das pessoas de hoje. A evidéncia era de variacao em tipos humanos, nao evolugao. Em 1959 o quadro foi ampliado pelo primeiro dos muitos achados na Africa Oriental. Uma caveira foi encontrada no Desfiladeiro de Olduvai por Louis Leakey: foi chamado Zinjantropus e classificado primeiro como uma forma intermediaria entre 0 bugio e o homem. Estudo posterior definiu-o como um tipo de bugio extinto chamado Australopiticine. O filho de Leakey, Richard, mais tarde encontrou entre outras coisas, um cranio — numerado 1470 — num lugar mais ao norte chamado Lago Rudolph (Lago Turkana) Achou-se que era mais parecido com o ser humano embora de data anterior (2,9 milhdes de anos de idade) do que o achado pelo pai (1,75 milhées). Mais tarde, varios esqueletos mais ou menos completos foram encontrados no Lago Rudolph e ainda mais ao norte na Etidpia, por Donald Johansson Para a discuss&o completa sobre todos esses achados, referéncia deve ser feita a Gish.’ Johansson reivindicou que seu esqueleto famoso, Lucy (cujo cranio nao foi preservado), era uma forma intermedidria que andava em pé, mas tinha caracterfsticas s{mias, e foi datada de 3 a 3,6 milhdes de anos atras. Essa data motivou reexame da datagao do cranio 1470 de R. Leakey que recebeu nova data de cerca de dois milhGes de anos (uma corregao de cerca de 30% daquilo que tinha sido uma “data correta’”). Gish favorece 0 ponto de vista de que afinal sera demonstrado que todas essas formas sao australopiticinas, antigos sfmios que tinham um modo de caminhar semi- ereto, semelhante ao do orangotango. Ele também poe em diivida a datagao, tendo em vista a reviséo considerdvel da data do cranio 1470. O quadro todo é complexo e mais descobertas poderdo esclarecer as coisas. Gish diz que alguns restos encontrados por Richard Leakey, que ele chama de homo erectus € data de 1.5 milhao de anos atrds, s40 semelhantes a achados do pantano de Kow na Australia, que silo descritos de modo semelhante, mas que claramente tém apenas dez mil anos. Pode ser que achados claramente humanos venham a ser descobertos no Leste da Africa — afinal de contas, foram encontradas ferramentas, e também, numa camada “primitiva”, uma 32 INSPIRAGAO E CANONICIDADE DA BiBLIA enigmiatica estrutura circular que parece ser 0 que sobrou de uma casa. Mas nao ha acordo nem mesmo entre cientistas seculares de que esses varios restos de f6sseis australopitecinos sejam ancestrais do homem.** S6 uma palavra deve ser dita sobre as datac6es dos achados africanos acima citados. A maioria deles depende primariamente do método radiométrico de potassio-arg6nio. O princfpio é que um certo tipo de potas- sio, 0 potassio-40 (K-40) se desfaz formando argénio e cdlcio. Se é encontrada uma rocha que contenha potassio-40 e argénio, as porcentagens podem ser medidas, € visto que sabemos a razdo a qual se desfaz, a idade pode ser calculada. Teoricamente, 0 método é bom, mas ha certos pressupostos que podem facilmente levar a erro. Primeiramente, presume-se que nenhum potdssio j4 se dissolveu e nenhum argénio escapou ou entrou. Em segundo lugar, € preciso que nao tenha havido nenhum argénio na amostra original. Depois também, os fésseis (que no contém argénio) devem estar em ver- dadeira associagio com as rochas datadas. Todas essas so suposigdes duvidosas. O argénio é um gas e pode escapar das rochas. Na verdade, as quantias consideradas so tio pequenas que hd mais argénio no ar do que nas rochas e 0 perigo € que o argénio possa invadir em vez de escapar. O potdssio é um elemento muito comum e seus sais sio em geral totalmente soltiveis. Em alguns casos podem se desintegrar e ser lixiviados. As rochas que esto sendo datadas so vulcdnicas e 0 que se pensa é que a lava origi nal ejetada expeliria todos os gases na fervura, de sorte que nao haveria nenhum argénio original. Mas mesmo Ifquidos quentes como ago fundido ainda retém gases dissolvidos em pequenas quantidades que, no caso do aco, interferem na qualidade do produto. Uma rocha vulednica recente me- dida no Havaf deu resultados discordantes” e a revisao da datagio do cranio 1470 de R. Leakey nao é€ tranqjiilizadora. Muito mais estudo precisa ser feito, e sem dtivida mais descobertas ocorreraio, o que deve esclarecer 0 quadro. Gish cré que alguns dos achados demonstrarao claramente que sao da familia dos simios, e que outros seraio classificados como varios tipos do homem.* E notavel, assim mesmo, que essas duas investidas poderosas contra a plena veracidade da Biblia — a alta critica e a evolugado — tenham obtido vit6ria durante o século 20. Nao seria possivel, alguns perguntam, que todas as respostas tentadas sejam apenas criagao iluséria de fatos que se desejaria fossem realidade, que essas respostas sejam o tiltimo suspiro de uma ortodoxia ultrapassada? Devemos ainda crer na Biblia? A Biblia ja resistiu a muitos outros ataques; talvez esse moderno obtenha sucesso. Al- guns podem achar que sim. Mas nao precisamos crer que toda idéia moderna é necessariamente a certa s6 porque é moderna. Pode ser demonstrado que a alta critica esta, no seu desenvolvimento, muito proxima da filosofia da Histéria de Hegel, que retratou o homem como quase necessariamente de- senvolvendo-se através de novos estigios de progresso. A evolugao da religiao de Israel e o desenvolvimento evolucionario da espécie foram ape- nas grandiosas ilustragées da filosofia alema. Inrropucao, 33 Ora, é natural que haja algum progresso nas artes e nas ciéncias & medida que a experiéncia e a sabedoria dos homens se acumulam. Mas que haja um progresso inerente e necessdrio de todas as coisas em direcdo a sinteses mais novas e melhores, nds, pessoas da virada do século, estamos comegando a duvidar. O século 20 nao € todo ouro, embora seja em sua maior parte todo de brilho barato! Eas concepgées da alta critica e da evo lugdo que jé foram claramente despojadas dos seus argumentos originais basicos esto, provavelmente, com os dias contados. Elas podem nao ser a verdade sdlida, mas sereias que estdo nos atraindo com seu canto para nossa propria destruigdo. No minimo, para aqueles que ja encontraram na Palavra de Deus, a Biblia, esperanca e consolo numa era confusa, nao ha necessida- de nenhuma de desistir da sua f€ nesse Livro que s6 trouxe béngo sempre que foi crido e seguido, e que ainda garante esperanga celestial para as tris- tezas dos homens, bem como punicio divina para a brutalidade humana. A Difusao da Descrenca Moderna Mas até que ponto a descrenga na Biblia se difundiu entre os clérigos? Sabe- se bem que em muitos lugares, especialmente entre a nossa assim-chamada intelligentsia, € moda ver a Biblia como uma obra de literatura ultrapassada que nao tem sentido para os nossos tempos. Muitas das nossas instituigdes de ensino superior foram em grande parte fundadas por pessoas que criam na Biblia. Elas mudaram muito. Tendo desistido da Biblia, elas tem, em alguns casos, se tornado centros de filosofia atefsta e de teorias sociais es- tranhas, que aparecem de forma mais branda como idéias socialistas e de forma mais radical como idéias abertamente comunistas. Nossos lideres em educagao, as artes e a imprensa em grande medida se distanciaram da cren- ¢a na Biblia e do registro que ela contém a respeito dos modos nos quais Deus lida com os homens. Na América do Norte nao existe quase nenhuma universidade grande e importante, com excegio das catélico-romanas, que baseie a instrugdo sobre a verdade da Biblia. Essa situagdo estranha surgiu na terra dos “peregrinos” colonizadores; e a maioria das mudangas ocorreu nos tiltimos 75 a 100 anos. Mas, e a propria igreja? Certamente os lideres das nossas grandes denominagées protestantes resistiram aos dcidos da modernidade. Infeliz- mente, isso nao é verdade. E doloroso termos de relatar o modo como nossos lideres eclesidsticos na maior parte sentem que poderiam neutralizar esses dcidos simplesmente diluindo-os um pouco. Nao tém sido feito esforgos para enfrentar o ataque frontalmente, mas para apaziguar a descrenga mon- tante em cada ponto, e nesse fnterim tentar salvar alguns fiapos de fé da rufna geral. O resultado é uma pregacdo sem convicgdo, uma religiio sem autoridade, um Cristo de proporgdes humanas. E, num mundo doente até a morte, as igrejas tradicionais se voltaram para a panacéia do ecumenismo. para apresentar ao mundo uma frente unida — unida em descrenga. 34 INSPIRACAO & CANONICIDADE DA BIBLIA Em 1893 ocorreu nos Estados Unidos algo de importancia consideré- vel que mostrou a tendéncia dos tempos do campo da teologia. Um professor do Union Theological Seminary of New York, chamado Charles A. Briggs foi levado a julgamento por heresia pelo seu presbitério da Presbyterian Church in the U.S.A. Os pontos de vista de Briggs eram bem conhecidos, e ele nao tentava escondé-los. Ele aceitava os ensinos da alta critica e negava claramente a verdade plena da Biblia. Seu principal adversério no processo foi Francis L. Patton, diretor do Princeton Seminary. Briggs foi condenado e afastado da igreja. Em protesto, o Union Seminary desligou-se da Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos e desde ento ficou conhecido como um lider da teologia liberal. Porém, diplomados do Union Seminary, infetados com as novas idéias, continuaram a entrar na Igreja Presbiteriana dos Esta- dos Unidos, bem como em outras comunidades religiosas. Outros semindrios, tais como o McCormick de Chicago, se voltavam na diregdio das novas crengas. Nos primeiros anos de 1900 os novos pontos de vista jé tinham uma literatura impressionante. Um dos livros mais importantes da alta critica, largamente usado nas suas sucessivas edigdes até os dias de hoje, é Introduction to the Literature of the Old Testament de S. R. Driver, publica- do em 1891 na série International Theological Library, que tem como editores Briggs e Salmond. Depois veio a série International Critical Commentary que vem sendo usada desde entdo por milhares de pastores para estudo € para o preparo de sermées. E uma série extensa, com muitos volumes, real- mente profundos e valiosos na sua erudigo, mas quase todos escritos do ponto de vista da alta critica. Nos primeiros anos, Briggs e Driver foram os editores da se¢io sobre o Antigo Testamento. A alta critica estava ganhando forga. Em seguida podemos notar 0 surgimento de um pregador popular e talentoso do novo modo de pensar. O nome de Harry Emerson Fosdick tornou-se conhecido por toda parte como simbolo. Muitas vezes ele foi chamado 0 sumo sacerdote do Modernismo. Na década de 20 ele, embora Batista, estava pregando no ptilpito da First Presbyterian Church of New York. Fosdick negava abertamente os simples fatos da Escritura — tais como 0 nascimento virginal de Cristo — e sua prega- ¢do suscitava muita reagdo das fontes ortodoxas. Sentindo a forga da nova teologia, Fosdick em 1922 pregou um sermao memordvel, “Os Fundamen- talistas Vao Ganhar?” Sua resposta negativa tornou-se profética para os rumos do partido ortodoxo nas décadas seguintes. Mas primeiro a Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, por agao de sua Assembléia Geral, desti- tuiu Fosdick do seu puilpito. Mesmo assim, sua influéncia cresceu ao tornar-se pastor da Riverside Baptist Church of New York, financiada pela fundagao Rockefeller, e pregador de radio, representando o Federal Council of Churches (agora a National Council). A agdo movida contra Fosdick em 1923, que incluiu uma declaragao da Assembléia Geral Presbiteriana, de que era imprescindivel que seus minis- InrropucAo tros cressem na inerrancia das Escrituras, no nascimento virginal de Cristo, nos milagres reais dele, na sua expiacao substitutiva e na sua ressurreigado corpérea, Ocasionou uma forte reagdo. Foi formada uma comissio de dez ministros, encabegada por homens do Auburn Seminary (que hoje j4 encer- rou suas atividades e transferiu seus bens ao Union Seminary), que emitiu a chamada Afirmagdo de Auburn. Esse documento declarou que “a doutrina da inerrancia (da Escritura), que tem a intengio de realgar a autoridade da Biblia, na verdade prejudica sua suprema autoridade para a fé e a vida”. Declarou ainda que as cinco doutrinas declaradas como essenciais pela As- sembléia eram somente “teorias” a respeito da inspiragao da Biblia, da encarnacio, da expiaciio, da ressurreigdo e da vida eterna e do poder sobre- natural de nosso Senhor Jesus Cristo. Eles insistiam que a inerrancia verbal, © nascimento virginal, os verdadeiros milagres, a expiagao substitutiva e a ressurrei¢io corpérea “nao sao as tinicas teorias permitidas pelas Escrituras e pelos nossos padrées”. A importéncia da Afirmagdo Auburn é que foi um dos primeiros de- safios formalmente levantados em nossas denominag6es americanas contra a teologia ortodoxa e em favor de uma visdo afrouxada que inclui todos os matizes de descrenga na Biblia e em seus ensinos centrais. Foi assinada por 1.293 ministros presbiterianos ~ cerca de 10 por cento do total — e no foi desafiada com eficdcia por nenhum processo por heresia em nenhum tribu- nal da denominagao. Houve dois débeis esforgos, mas eles morreram ao nascer, Nao podemos entender a descrenga tao generalizada da Biblia em nossos tempos sem reconhecer que a alta critica vinha fazendo seu trabalho ja por cem anos no nosso pais, e que ela nao foi desafiada como uma opi- nidio herética por mais de meio século nos coneflios de nossas assim chamadas denominagées principais. Uma interessante medida do progresso do liberalismo na década de 1920 esté registrada num pequeno livro de George H. Betts.” Betts enviou um question4rio a cerca de mil e quinhentos ministros protestantes e rece- beu respostas de quinhentos ministros e duzentos estudantes de teologia. Os ministros da ativa representavam principalmente as denominagées Ba- tista, Congregacional, Episcopal, Evangélica, Luterana, Metodista e Presbiteriana, e todos eram da area de Chicago. A pesquisa nao foi nada completa, mas foi indicativa e muito instrutiva. Das 56 perguntas, interes- sa-nos principalmente a décima quinta: “Vocé cré que a Biblia foi escrita por homens escolhidos e dotados sobrenaturalmente por Deus para esse propésito, que a eles era dada a mensagem exata que deveriam escrever?” Quarenta ¢ trés por cento responderam “Nao”. Parecia que o ataque contra a Biblia tinha progredido imensamente. Dos metodistas que responderam, 66 por cento responderam “Nao”. Talvez tenham sido ainda mais significa- tivas as respostas recebidas de duzentos estudantes de teologia de trés grandes semindrios denominacionais distantes um do outro. A essa pergunta sobre a plena veracidade da Biblia 91 por cento dos seminaristas responderam “Nao”. 36 INSPIRAGAO & CANONICIDADE DA BIBLIA Aparentemente, a descrenga era exatamente duas vezes mais difundida no ensino superior avangado para ministros do que nos nossos ptilpitos. Era como. se a pessoa devesse ir ao semindrio para aprender como atacar a Biblia! 7 peda dn Adan dn dn WM nnen ah Cie a nin A Iyrropu¢ao 37 e 0 extracanénico”. As tradigées do evangelho que aparecem num formato um tanto transformado no Evangelho de Tomé ou no Agrafa (Ditos Desco- nhecidos de Jesus) podem apontar na diregiio de tradigdes que sdo tio validas como as do Novo Testamento, Para 0 estudante da histéria crista primitiva, a limitagado ao ‘bfblico’ é um ato de pregui¢a textual ou um pecado 39 42 metodolégico”. Outro autor bem conhecido, James Barr, diz “.,.este livro € escrito pressupondo-se que para seus leitores — como para a corrente geral da fé crista moderna — 0 fundamentalismo dogmatico real nao é uma opgao viva”. E também, Otto Kaiser diz que a formacao do Pentateuco por combinagées posteriores de quatro documentos “faz agora parte do quadro geralmente aceito da origem do Pentateuco pela erudigao internacional a respeito do Antigo Testamento”.“ Uma fonte mais popular oferece um tratamento se- melhante do Novo Testamento. Artigos sobre “Quem Escreveu a Biblia” na revista U.S. News and World Report nos informam que “A maioria da opi- nido moderna erudita sustenta que todos os quatro livros (os Evangelhos) foram compilados durante 0 periodo de décadas depois da crucificagao de Jesus, como 0 prélogo a Lucas sugere. Muitos peritos créem que, depois de terem sido escritos, os Evangelhos foram revisados ou editados repetida- mente A medida que cram copiados e circulavam entre presbiteros da igreja no final do século 1° e comego do 2°”.*5 A opiniao expressa ha tempos por Shailer Matthews, da University of Chicago Divinity School é ainda aceita como valida: “Por quase um século a Biblia vem sendo estudada cientifica- mente... Mas tio logo os homens estudam a Biblia assim, aparecem fatos que tornam indefensavel a crenga na sua inerrancia verbal”.*° Nao € nosso propésito catalogar todos os clérigos modernos que ne- gam a veracidade plena da Biblia. Muitos e eminentes nomes poderiam ser citados. A importancia das citagdes acima de homens de meios teoldégicos diversos & que todos eles concordam que ninguém que saiba pensar pode mais crer na Biblia. Se a verdade est4 com a maioria, podemos jé terminar nosso livro com este capitulo, tornando o primeiro capitulo o tiltimo. Mas uma das convicgdes da humanidade é que a verdade pode ser, e na verdade muitas vezes 6, esmagada até o chido, mas que, no entanto, se levantaré novamente. E a fé crista, sempre associada com a crenga na Biblia, foi mui- tas vezes quase extinta, apenas para soerguer-se com novo e maior poder. possivel que também dessa vez seja provado que os atacantes da Palavra de Deus estejam errados, pois 0 povo de Deus tem uma convicgao da verdade da Béblia, intocada pela mudanga de culturas e pelo passar dos séculos. O cristo nao pode se esquecer de que o Senhor Jesus Cristo cria na Biblia e mandou que nés também créssemos. A nio ser que seja provado que Cristo € um impostor e que seu ensino é sem valor, teremos de continuar a nos apegar ao Velho Livro até o tiltimo recurso. E essa base positiva para o nosso posicionamento que devemos examinar agora. 2 Por Que Cremos na Biblia BO Nao deixa de surpreender 0 autor o fato de que a maioria dos cristdos, quan- do perguntados por que créem na Biblia, responde citando 2 Timéteo 3.16. Citar 0 versfculo nao esté errado, O versiculo é claro: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e util...” Mas essa citagdo d4 margem a acusagdo de raciocfnio circular: “Prova-se a Biblia citando a Biblia”. Mais séria ainda é aacusacao feita livremente em meios criticos (erradamente, cremos nés) de que 2 Timéteo nao é genufno e portanto nao deve ser considerado como base para uma doutrina téo importante. Em todo caso, mesmo assim, os dois textos famosos em 2 Timéteo e 2 Pedro 1.21 sao valiosos. Vamos supor que esses versiculos ndo sejam genuinos, mas apenas trabalho de algum sucessor do século 2° dos apésto- los, de cujos livros a Igreja se apropriou. Nesse caso, os textos aqui pelo menos provariam que essa doutrina da inspirago verbal foi o ensino da Igreja primitiva. Muitos fatores combinam para nos assegurar que isso esté correto. A Igreja primitiva colocava a Biblia, tanto o Antigo Testamento como 0 Novo Testamento, numa classe totalmente 4 parte porque os cris- tdos estavam plenamente persuadidos de que ela era a verdade de Deus. Porém, precisamos admitir essa reivindicagao dos criticos? Sera que precisamos raciocinar em circulo? Certamente uma doutrina tao universal- mente aceita como essa da inspiragao verbal tem uma base melhor. Cremos que essa base se encontra, simplesmente, no ensino do Senhor Jesus Cristo. Vamos supor, por amor a Iégica, que abordemos o Novo Testamento mera- mente como um livro fonte de muita antiguidade e Sbvio valor para a hist6ria

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