You are on page 1of 25
Martin W. Bauer e George Gaskell Um manual pratico 2° EDICAO y EDITORA VOZES 9 ANALISE ARGUMENTATIVA Miltos Liakopoulos Palavras-chave: argumentagio; refutagio; apoio; ret6rica; pro- posicio; garantia; dados. Conforme Aristételes, nés somos “animais politicos”, e com isso, ele queria dizer que 0s humanos estao organizados em sociedades de acordo com prineipios comuns e com priticas de comportamento comumente negociadas. Politica foi o nome dado a instituicao que permitia a elaboracao e organizacao de praticas comuns na socieda- de. A forma principal de comunicacao dentro dessa instituigdo era a fala, mas no qualquer tipo de fala: havia um tipo especifico de fala formal, empregada na politica, chamada retorica Os sentidos das palavras politica e ret6rica mudaram desde os tempos de Aristételes, mas a maneira como as pessoas se organizam em sociedade e discutem sobre isso € ainda a mesma. Os debates sur- gem arespeito de assuntos de interesse social e, como a era da infor- macéo esté alcancando maturidade, mais e mais pessoas estio se tor- nando ativas nestes debates. O fato de grande quantidade de pes- soas estarem tomando parte nos debates sociais possui uma conse- qiiéncia importante: a forma preferida de fala est se tornando me- nos formal. Apesar de estar mudando sua forma, toda fala que inclui debate se desenrola ao redor de um bloco basico: o argumento. O argumento forma a espinha dorsal da fala. Ele representa a idéia central ou o principio no qual a fala esta baseada. Ainda mais, ele é uma ferramenta de mudanga social, na medida em que pretende persuiadir uma audiéncia em foco. Este capitulo trata da anlise argumentativa. Trata de trazer o argumento para o primeiro plano da pesquisa social sobre debates —218— 9. ANALISE ARGUMENTATIVA ptblicos. Tem como objetivo oferecer uma visio metodolégica compreensiva da andlise das estruturas da argumentacao, com pro- pésito de compreender melhor os parametros que influenciam os debates publicos. O termo argumentagio se refere a uma atividade verbal ou escrita que consiste em uma série de afirmacdes com 0 objetivo de justificar, ou refutar, determinada opiniio, e persuadir uma audiéncia (van Be- meren et ai., 1987). O objetivo da andlise da argumentacio é documen- tar a maneira como afirmagées sio estruturadas dentro de um texto discursivo, ¢ avaliar sua solidez. A andlise normalmente se centra na in- teragao entre duas ou mais pessoas que apresentam argumentos como parte de uma discussio ou debate, ou sobre um texto dentro do qual a pessoa constréi um argumento (van Eemeren et al., 1997). enfoque tradicional vé os argumentos tanto como um proces- so € como um produto. O processo se refere & estrutura inferencial do argumento: ele é uma série de afirmagées usadas como proposi- Ges, junto com outra série de afirmagées usadas como justificativas das afirmagGes anteriores. O argumento como produto se refere & maneira como Os arguientos se wrnam pare de uma atividade dentro do contexto geral do discurso. As caracteristicas basicas de um argumento sao (Burleson, 1992): a) a existéncia de uma asser¢io construida como proposi¢ao. b) uma estrutura organizativa ao redor da defesa da proposicao. ©) um salto inferencial no movimento que vai da justificativa para a assercio. A teoria de argumentac’o e Toulmin No passado, as teorias da argumentacio focalizavam a logica da estrutura de argumentacdo, e procuravam delinear regras que expu- nham as falacias no pensar (Benoit, 1992). A teoria do raciocinio de Arist6teles, por exemplo, foi um enfoque influente na avaliacao de um argumento a partir da perspectiva da légica formal. Desse ponto de vista, argumento € t4o valido quanto € o raciocinio existente por detras dele, ¢ existem determinadas regras universais que po- dem ser usadas na avaliagao da logica do argumento. Na era moderna de influéncia dos meios de comunicaao de massa, onde a argumentagio alcanga muito mais pessoas, em vez de apenas alguns privilegiados, novas teorias se desenvolveram. Estas teorias se deslocaram para uma visio interacional da argumentacio, —219— PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM passando a ser seu foco o uso informal dos argumentos na fala do dia-a-dia e dentro de um contexto especifico. Um notdvel exemplo desse novo tipo é a teoria da argumentacao de Stephen Toulmin, que é apresentada em seu livro The Uses of Arguments (1958). Ela € 0 exemplo de uma teoria de l6gica informal que se adapta melhor era moderna da interacio informal, da propaganda e da publicida- de. A énfase de Toulmin na persuasio e no convencimento sobre a validade formal, e seu tratamento mais funcional da linguagem, tor- naram sua teoria um referencial muito influente para a pesquisa na area da argumentacio (Antaki, 1994). Toulmin propée uma analogia entre um argumento ¢ um orga- nismo, e caracteriza a ambos como tendo uma estrutura anatomica e fisiol6gica. A estrutura anatémica de um argumento, do mesmo modo que um organismo, pode ser representada de uma forma esquems- tica. A representagio esquematica da estrutura do argumento é a base para sua avaliagio critica e solidez (isto , sua fungio psicolégi- ca). Neste sentido, o mérito de um argumento € julgado com funda- mento na fungio de suas partes inter-relacionadas, e nao com fun- damento em sua forma. O argumento mais simples toma a forma de uma proposi¢ao ou de uma conclusao precedida por fatos (dados) que a apéiam. Mas muitas vezes um qualificador dos dados é exigido: em outras pala- vras, uma premissa que nés usamos para defender que os dados so legitimamente empregados para apoiar a proposicao. Esta premissa € chamada de garantia. Garantias s4o cruciais na determinacao da validade do argumento, porque elas justificam explicitamente o pas so que se deu dos dados para a proposigao, e descrevem 0 processo em termos de por que esse passo pode ser dado. Uma representacao grfica da estrutura do argumento é apresentada na Figura 9.1 (adaptada de Toulmin, 1958). ‘Dados’ Desse modo, ‘Quolificador, ‘Proposigtio! ‘Ando ser que 'Refutagao" Pois hé 'Gorantio’ Por conta do ‘Apoio’ Figura 9.1 ~ Esirutura do argumento (adaptada de Toulmin, 1958). —220— 19. ANALISE ARGUMENTATIVA, Toulmin admite que em alguns argumentos é dificil distinguir entre dados e apoios, embora a distincao seja crucial na anilise do argumento. Uma maneira de distingui-los € considerar que em ge- ral os dados sao explicitos, enquanto que as garantias so implicitas. Enquanto que os dados sao usados para legitimar a conclusao com referéncia explicita aos fatos, as garantias s4o usadas para legitimar © processo que vai dos dados a proposicio, e para encaminhé-la de volta para outros passos implicados nessa legitimagao — passos cuja legitimidade é pressuposta. __ Diferentes tipos de garantias dao forca diferente A proposicio. As vezes h4 necessidade de fazer uma referéncia especifica a forca do processo que vai dos dados & proposig4o, através de uma garan- tia. Essa referéncia é chamada de um qualificador, e toma a forma de palavras tais como necessariamente, presumivelmente, provavel- mente, etc, O processo que vai da garantia até a proposigéo pode muitas ve- zes ser condicional (por exemplo, a proposicéo € provavelmente verdadeira a menos que...). Isto se refere a condicdes sob as quais a garantia nao tem controle. Em tais casos, refutagdes so usadas como afirmagées condicionais semelhantes aos qualificadores. Em um argumento mais complexo, ha necessidade de explicar por que a garantia usada tem poder. Nesse caso, a garantia necessita um apoio (ver Figura 9.1). Normalmente, apoios so afirmagées ca- tegoricas ou fatos (tais como leis), ndo diferentes dos dados que con- duzem inicialmente a proposicao. A aparigio de apoios para garan- tia depende dea garantia ser aceita, undo, como nao tendo proble- mas. Apoios de garantia nao sio usados muitas vezes em uma discus- so porque isso tornaria uma discussio pratica t4o complexa que a tornaria impossivel A natureza categérica dos apoios cria certas semelhangas com a parte dos dados do argumento. A diferenga entre dados e apoio é, em geral, que dados sao particulares, e apoio é uma premissa uni- versal. Por exemplo, onde dados tém a ver com um referencial dire- tamente relacionado com a proposi¢ao, um apoio consistiria de uma afirmagao geral que se aplicaria a muitos outros casos. Na visio de Toulmin, a argumentagao é um ato social incluindo toda atividade que diz respeito a formular proposigées, apoid-las, fandamenté-las com razées, etc. (Toulmin et al., 1979). Por esta razo, ele introduz a nocao de campos do argumento. Ele sugere que alguns =221— PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM aspectos do argumento sio basicamente os mesmos, apesar do con- texto em que eles sao desenvolvidos; esses séo invariantes com refe- réncia ao campo. Por ouro lado, alguns outros aspectos diferem de contexto para contexto, como tais sio dependentes do campo. Exemplos de campos sao a politica, a justica e a arte. Cada campo possui seus proprios critérios para desenvolver e compreender os ar- gumentos, com a conseqiéncia que discordancias entre campos s4o dificeis de resolver, pois eles acontecem em diferentes esferas. A nogio de campos de argumento, ou contextualizacio da argu- mentagio, est diretamente ligada com a de validade formal eo tipo do argumento. Existem diferentes tipos de argumentos, de acordo com Toulmin, e sua classificagao esta baseada nas diferentes quali- dades de seus componentes. A distincio mais importante é entre ar- gumentos substanciais e analiticos. A diferenca é que o argumento analitico contém apoio para a garantia, cuja informagio autoriza, explicita ou implicitamente, a propria conclusdo. Em outras pala- vras, uma compreenso do argumento pressupde uma compreensio de sua legitimidade. Neste caso, a garantia é usada na forma tradi- cional de reforgo do processo da légica que vai dos dados 4 proposi- 4, mas sendo independente deles. O tipico argumento cientifico é © do tipo encontrado na l6gica, ou matematica, onde a conclusio é necessariamente resultado das premissas. A avaliagdo desses argu- mentos segue as regras da validade formal. Toulmin, entretanto, afirmou que a validade formal nfo é nem condicao necessaria, nem suficiente da solidez de um argumento. Por exemplo, em um argumento substancial a conclusio no esta necessariamente contida, ou implicada, nas premissas, porque as premissas ea conclusio podem ser de diferentes tipos logicos. Com- preender a evidéncia e a conclusio pode nao ajudar a compreender © proceso, ¢ desse modo garantias ¢ apoios de outro tipo l6gico sio usados para fechar a lacuna de compreens4o. Conseqiientemente, 0 uso de qualificadores tais como “possivelmente”, ou “com probabili- dade”, se torna inevitével. Um exemplo deste argumento poderia incluir a conclusio sobre o pasado, com premissas contendo dados sobre o presente. Neste caso, a discrepancia légica entre premissas ¢ conclusio s6 pode ser preenchida pela referéncia ao campo espectfi- co em que 0 argumento est se desenvolvendo. A teoria da argumentagio de Toulmin tem sido influente no campo da pesquisa sobre argumentacio, na medida em que significa —222— 9. ANALISE ARGUMENTATIVA, uma ruptura com o rigido sujeito da légica formal e oferece uma for- ma basica e flexivel, quase geométrica, de andlise de argumentacio. Suas idéias foram exploradas em uma quantidade de estudos. Por exemplo, na area da argumentacao formal textual, Weinstein (1990) empregou o esquema de Toulmin para analisar a estrutura da argu- mentagio tipica da ciéncia. Ball (1994) usou uma adaptagio compu- tadorizada do modelo de Toulmin para analisar argumentos de po- Iitica piblica. Na psicologia do desenvolvimento, de Bernardi & Antolini (1996), compararam o tipo de argumentacio e estrutura em trabalhos de escolas de diferentes graus. Putnam & Geist (1985) estudaram 0 processo de negociacdo entre professores de escola € administradores, em uma escola distrital local, a fim de examinar a maneira como a argumentacio configura os resultados. De maneira semelhante, Chambliss (1995) e Garner (1996) empregaram a estru- tura de Toulmin para pesquisar o efeito sobre os leitores de um tex- to persuasivo/argumentativo sobre a Guerra do Golfo. O modelo de Toulmin € uma generalizagao derivada de uma teoria desenvolvida no contexto do direito, como ele explica: Nos estudos que seguem, entdo, a natureza do processo racional seré discutida com a “analogia jurisprudencial” em mente: nosso tema serd o prudencial, néo simplesmente do jus, porém mais usu- almente da ratio... Nossas proposigées extralegais devem ser justi= ficadas, néo diante dos Jutzes de Sua Majestade, mas diante da ‘Corte da Razéo (1958: 8). As proposiges de Toulmin, contudo, concernentes a generali- dade de seu modelo, foram questionadas por outros estudiosos da argumentagio. O modelo foi criticado como sendo demasiadamen- te simples para a andlise de estruturas complexas que ocorrem no mundo concreto (Ball, 1994); e como sendo mal definido em termos de suas partes estruturais ¢ seus tipos (Van Eemeren et al., 1987). Hample (1992) chegou até a afirmar que 0 modelo nao se mostra verdadeiro nem para os exemplos que Toulmin apresenta em seu li- vro The Uses of Arguments. A flexibilidade da estrutura do argumento de Toulmin, que per- mite varias interpretacdes dos componentes da argumentacio, é ou- tro problema. Por exemplo, argumentou-se que os termos “apoio” € “garantia” de Toulmin ndo sao claramente distingufveis, ¢ também gue cle nao oferece um modo consistente de se conseguir “dados” a partir da “garantia” (Hample, 1992; Van Eemeren et al., 1987). —223— PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM Toulmin reconhece essas limitagdes no modelo. Ao empregar exemplos de argumentos a partir de uma area de estudo especifica (direito), ele evita 0 problema das inconsisténcias em sua definigao das partes do argumento. Apesar disso, como foi dito acima, ele in- troduz uma importante nogio de especificidade de contexto em seu modelo. As inconsisténcias aparentes podem ser resolvidas se al- guém leva em consideragao a nocao de Toulmin do contexto em que © argumento é empregado. Em outras palavras, o contexto ird for- necer a estrutura em que a identificago dos componentes do argu- mento se torna clara (Burleson, 1992). Estudo de caso e definicao das partes do argumento Nesta seco, irei ilustrar a andlise de argumentagio em um estu- do de caso. O caso se refere & soja geneticamente modificada (GM), que entrou no mercado europeu em outubro de 1996, ¢ conduziu ao primeiro debate publico na Inglaterra sobre aplicacdes da biotecno- logia moderna, Cama foi discutida acima, as definigdes das partes da argumenta (dados, reivindicagées, garantias, apoios e refutades) nao s4o sempre dlaras. Os pesquisadores, usando o método de Toulmin, acharam apropriado criar suas definigbes préprias das partes do argumento, baseadas na conceptualizagao de Toulmin (ver de Bernardi & Antoli- ni, 1996; Marouda, 1995; Simosi, 1997). Suas definigdes dependem do contexto em que a pesquisa tem lugar (por exemplo, uma situacdo organizacional ou educacional), e dos meios para descobrir a estrutu- ra da argumentacio (por exemplo, ensaios ou entrevistas). No estudo do debate sobre a soja, a estrutura da argumentacio esta localizada nos artigos de jornais. A formalidade do assunto e as forcas da argumentacdo permitem uma aproximacdo menos contro- versa com respeito ao t6pico da definicao e a identificacao das partes do argumento, pois os préprios atores tém toda razo de serem for- mais estritos no seu esquema de argumentacao. Isto porque em um debate pablico que envolve sérios problemas, tais como satide pabli- ca, grandes ganhos financeiros e até mesmo relacées internacionais (como foi o caso no debate sobre soja), cada participante é muito cui- dadoso em articular e empregar apoios claros e adequados para suas reivindicagoes. Por isso nossas definig6es das partes do argumento dar-se-Ao no contexto de um debate social formalizado, que se fun- damenta em fatos explicitos ¢ com vistas a apoiar tomadas de deci- —224— 9. ANALISE ARGUMENTATIVA séo legais, nao diferentes do contexto em que Toulmin desenvolveu seu modelo original. Nossa unidade de anélise € composta de textos escritos (artigos de jornal) que se referem explicitamente a pontos de vista, crengas € convicgdes de atores no debate sobre soja. Um ator é definido como qualquer parte interessada no debate que expresse uma opinio es- truturada. Sendo que os pontos de vista dos atores esto algumas ve- zes dispersos no artigo, dependendo do espaco disponivel e do esti- lo jomnalistico, achamos necessério sintetizar os pontos de vista em um pardgrafo que foi subseqiientemente usado como a fonte para a desconstrugao da argumentacio. Além do mais, e & luz do que foi dito acima, nés definimos as par- tes do argumento como um ponto de referencia para o codificador que necessita desconstruir determinado argumento. Achamos as tentativas de definir as partes do argumento de de Bernardi & Anto- lini (1996), e de Simosi (1997) particularmente dteis, e as adaptamos Para nossos préprios fins: ~ Proposigao: uma afirmagio que contém estrutura ¢ € apresenta- da como o resultado de um argumento apoiado por fatos. Poderao existir numerosas proposigdes em uma unidade de andlise, mas nos- so interesse reside na proposicao central que é parte da estrutura da argumentacdo. Exemplos de proposigées sao: A biotecnologia é a solucao para a fome do mundo. Alimentos gerados geneticamente possuem efeitos imprevisiveis sobre a satide a longo termo. Aavaliagio do risco da soja geneticamente criada no € apropriada. * Dados: fatos ou evidéncia que esto a disposigao do criador do argumento. Os dados podem se referir a acontecimentos passados, ou A situacio, ago ou opinido atuais, mas de qualquer modo eles se referem a informagao que est4 relacionada com a proposicao central do argumento. Exemplos de dados so: crescimento da populagio é rapido e hé falta de alimento. Os reguladores na Comiss4o Européia j4 aprovaram plantacoes geneticamente criadas. 225 — PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM Noventa e trés por cento do piblico respondeu sim a pergunta: “Vocé acredita que alimentos que contém alimento geneticamente produzido devem ser rotulados?" Algumas vezes os dados podem ser proposigdes que foram vali- dadas em argumentos precedentes. Por exemplo, em argumentos que so gerados a partir de uma fonte cientifica, os dados podem ser 6 resultado (proposigao) de um antigo experimento cientifico. Por exemplo: Genes estranhos podem passar as células intestinais (dados), por isso alimentos geneticamente criados podem alterar o DNA daque- Jes que os comem [proposicao}. E também no campo do argumento cientifico que afirmagées po- dem desempenhar os papéis tanto de dados, como de garantia, a0 mesmo tempo. Isto se deve ao estilo autoritativo dos argumentos ci- entificos (Weinstein, 1990). Por exemplo: Os cientistas descobriram que genes estranhos em plantacdes geneticamente criadas podem se incorporar as ervas daninhas, des- se modo a soja geneticamente criada pode transmitir o gene resis- tente a peste, também para outras plantas (proposi¢ao). Neste argumento, fica claro que a primeira afirmacao € tanto a evidéncia em que a proposigao est fundamentada, como também 0 apoio para a validade do processo de passagem dos dados para a proposicio. * Garantia: uma premissa consistindo de razées, autorizages € regras usadas para afirmar que os dados sio legitimamente utiliza- dos a fim de apoiar a proposicio. Ela é 0 passo légico que conduz conclusao, néo por meio de uma regra formal, mas pela regra da l6- gica do argumento especifico Por exemplo: Aavaliagio do risco de alimentos geneticamente criados nio in- clui a avaliagao do impacto total no meio ambiente. Nossa sociedade tem a habilidade de discernir entre os custos € os beneficios da nova tecnologia e decidir sobre isso. Tais afirmagoes incluem uma regra € um raciocinio pessoal res- pectivamente, que sio reivindicacées elas prOprias, se vistas a partir do contexto do argumento, mas sio usadas para legitimagao das conclusées do argumento (o porqué ou por conseguinte que prece- dem a conclusao). 226 — 9. ANAUISE ARGUMENTATIVA, + Apoio: uma premissa que é usada como um meio de ajudar a ga- rantia no argumento. Ele é a fonte que garante a aceitabilidade ea au- tenticidade da razdo, ou regra a que a garantia se refere. Semelhante no estilo aos dados, ela normalmente oferece informagao explicita. Por exempl Os quimicos desenvolveram 0 cloro ¢ os fisicos desenvolveram a bomba atémica E usado para legitimar a garanti Os cientistas s4o responsaveis pelas conseqiiéncias de seu traba- Iho e a ciéncia nfo é eticamente neutra. E também comum que 0 apoios nao sejam explicitamente colo- cados, mas que apenas a eles se aluda, ou que sejam deixados para serem presumidos pelo leitor do argumento (Govier, 1987). Por exemplo, a garantia: Aavaliagio de risco de alimentos geneticamente criados nao in- clui uma avaliacao do impacto total no meio ambiente. Alude as regulamentagécs da avaliagio do impacto total no meio ambiente que incluem artigos X, Y, etc. A incorporacao na argumentagio de premissas ocultas como es- tas € deixada a decisio do pesquisador e depende da necessidade que ele tem de inclui-las em sua andlise. No nosso caso, decidimos incluir estas premissas ocultas em nossa representagio esquematica dos argumentos, sempre que se fazia alusdo a elas, pois fazem parte da estrutura implicita do argumento, e por isso auxiliam nosso es- forco de compreender o processo da argumentacio. * Refutagdo: uma premissa que autoriza a refutagio da generalida- de da garantia. Ela mostra a excecao da regra que € afirmada no argu- mento, ou as condicdes sob as quais o argumento no possui legitima- Go e por isso a reivindicagio nao se sustenta como verdadeira Por exemplo: Areagio do consumidor pode minara tendéncia da biotecnologia 6 usada como uma refutagao da proposicao de que Atendéncia da biotecnologia é inevitavel, pois ela propicia enor- mes ganhos financeiros. As refutagGes no so usadas muitas vezes na argumentagio for- mal, como o foram no nosso caso, porque elas podem minar a pr6- 27 PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM. pria esséncia do argumento, que é persuadir 0 ptblico da legitimi- dade da conclusio. Esta é uma diferenca dos exemplos de Toulmin sobre o direito, onde as refutacdes contém até mesmo premissas de apoio separadas, pois cada lei tem também regras para excecdes. Do texto para Toulmin: um exemplo Apresentarei agora um exemplo de identificagio e decomposi- 40 dos argumentos que foram encontrados no material da midia impressa sobre o topico da soja geneticamente criada. O exemplo provém de uma carta ao editor que apareceu no Financial Times de 27 de junho de 1996, um pouco antes da introducao da soja geneti- camente criada no mercado: Prezado senor, a coluna de Henri Miller’s Viewpoint “A esquer- da se colocando a favor da revolugéo agricola” contém vdrias afi ‘mages que merecem ser questionadas. 1. A geragao de plantas ¢ animais geneticamente modificades ("transgénices"), implica a integracao aleatéria do material gené- tico buscado no DNA do organismo hospedeiro, e por isso difcil- mente pode-se afirmar que ela seja precisa. Este procedimento re- sulta no rompimento da planta genética do organismo com conse- (gidéncias totalmente imprevistveis a longo termo. 2. Oenfoque transgénico de gerar novas variedades de alimentos a partir das plantas e animais néio pode ser visto como uma extensdo natural dos métodos classicos de procriagdo, pois ee permite que as barreiras normais da espécie sejam burladas. Deste modo, até mes- ‘mo as proteinas animais podem agora ser criadas em plantas. 3. Géneros alimenticios de fontescriadas geneticamente jé causa- ram problemas de satide (¢, ao menos em um caso, fatal) devido a produgao imprevistvel de substancias taxicas (metabélitos como 0 tryptophan de bactérias criadas) ¢ reagdes alérgicas (a protetna da oz brasileira na soja). 4. A maioria das plantas transgénicas (57 por cento) que esto em desenvolvimento estdo sendo criadas para serem resstentes a her- bicidas que permite o uso mais liberal de agrogqutmicos, €néo sua diminuigéo, como é afirmado. 5. J se descobriu. que plantagées transgénicas criadas para serem resistentes a herbicidas (por exemplo, batatas, sementes de colza) se transpolinizam com espécies relacionadas de tipo seluagem, geran- do potenciais superplantas. Estes problemas ambientais ameagam aminar lowydveisiniciativas tais como as do esquema LEAF de ge- renciamento integrado de plantagées, no qual a maioria das ca- deias de supermercadas britanicos agora se inscrevew. 228 9. ANALISE ARGUMENTATIVA Infelizmente, a Unido Européia parece estar seguindo o exemplo dos Esiados Unidos ¢ estd inclinada a introduzir decenas de dife- rrentes variedades de plantas geneticamente modificadas em um fu- turo préximo, sem os exames adequados de seguranga ¢ sem a preo- cupagao com o impacto destas plantas no meio ambiente a longo prazo. Além do mais, ndo hd. exigéncia de selo obrigatério de ali- ‘mentos geneticamente criados. Seguramente, devido aos problemas que j6 apareceram, até mesmo precaucdo maior & necessdria, com uma legislagao mais estrita com respeito d avaliagéo ed seguranga do que sejam realmente alimentos “experimentais” A eliquetagao clara destes novos alimentos ird também garantir que 0 consumidor nézo apenas tenha a escolha, mas também, caso problemas imprevistos surgirem, a fonte possa ser mais facilmente descoberta. Deveria ser Sbvio a necessidade de uma politica aberta ehonesta para construir uma confianca do consumidor com respei- to a estes produtos e assegurar um futuro econdmico saudével. Professor PhD. de Biologia Molecular. Primeiro, n6s identificamos a fonte da argumentagio porque é dada uma indicacio dos atores no debate. E comum na tradigao jor- nalfstica de grandes jornais. dar uma explicacdo completa das pers- pectivas sobre um t6pico especifico, antes que o jornalista apresente as suas. Como tal, um tinico artigo pode conter diferentes fontes, para os diferentes argumentos. Neste caso, 0 autor do texto é identificado como um doutor (PhD) e professor de Biologia Molecular. Por isso a fonte da argumentagio neste texto € identificada como ciéncia Como um auxilio pratico de decomposicao do argumento, nés sumarizamos a seguir os pontos principais. Isso ajuda tanto a coletar as partes dispersas da argumentacio em um texto contfnuo, como identificar possiveis conexdes que podem nao ser tao dbvias em uma primeira leitura do artigo. Aproducio de alimento geneticamente criado emprega técnicas aleatérias que rompem a planta genética de um organismo e por isso h4 conseqiiéncias imprevisiveis a longo prazo. A engenharia genética nao é um processo natural, porque ela permite burlar as barreiras da espécie transportando proteinas animais para plantas. A aprovagio da Uniio Européia de plantagdes geneticamente modificadas nao est4 baseada em exames apropriados de segu- ranga, no que se refere aos efeitos a longo termo sobre a safide e sobre o meio ambiente, pois os géneros alimenticios que provém de fontes geneticamente criadas causaram problemas de satide, 229 — PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM como no caso de reagées alérgicas ao soja com a proteina da noz do Brasil, e foi descoberto que plantagbes geneticamente criadas se trans-polinizam com espécies selvagens semelhantes. Nos termos da representacio esquemitica do argumento de Toul- min, podemos representar os argumentos acima como na Tabela 9.1. Tobela 9.1 ~ Carta sobre soja GM: representagdo dos orgumentos Argumento | Dodos Proposigéo (deste modo) A produgéo de alimento geneticamente Alimentos geneticamente criados tém criado usa técnicas aleatérias imprevisiveis conseqiéncias a longo termo Gorantio (pois) As técnicas rompem a planta genética do corganismo ‘Argumento I Proposigéo (deste modo) ‘Acengenhario genética ndo é um processo natural Gorantia (pois) ‘A.engenhoria genética permite burlar a borreira da espécie Apoio (porque) ‘A engenhoria genética pode ser usodo ‘para levar proteinas animais para at plontos ‘Azgumento Il Dados Proposigéo (desse modo) ‘A.Uniéo Européio oprovou plantagées A Unio Européia néo fez os exarnes ‘geneticamente modificadas ‘odequados de seguranca para efeitos a longo prazo sobre a sade e 0 meio combiente Gorantia (pois) ‘Alimentos geneticomente criados causaram problemas de sou plantagSes geneticomeente criadas se fronspolinizaram com espécies selvagens Apolo (porque) Soja geneticomente madificada com a proteina de uma nez do Brasil causou reagéer alérgicas —230— 9. ANALISE ARGUMENTATIVA Uma nota sobre a fidedignidade da argumentacao do esquema de codificacao Discuti acima os problemas da definicdo e, conseqiientemente, da identificagao das partes da andlise da argumentacao. Vimos que 0 modelo de Toulmin foi criticado por Ihe faltar definicées claras, € como 0 conceito de “contextualizacao” pode ser de grande ajuda na superacio de dificuldades de identificacio. As definicdes que nés demos As partes do argumento foram uma tentativa de resolver os problemas de identificacao e para criar um referencial de codifica- ao objetivo que pode ser usado por muitos codificadores. Uma medida de objetividade é a “fidedignidade intercodificado- res”, pela qual os codificadores empregam 0 mesmo referencial de codificagdo para codificar independentemente as mesmas unidades. A quantia de concordancia entre eles é uma estimativa da fidedigni- dade intercodificador (ver também Krippendorff, 1980). Em uma tentativa de esclarecer 0 processo metodolégico que nés seguimos neste estudo, desenvolvemos um teste de fidedignidade intercodifica- dor. A fidedignidade geral na codificagao de dois codificadores inde- pendentes, neste estudo, foi 0.77 (a fidedignidade para conceitos in- dividuais flutua entre 0.69 e 0.89). Este € um resultado satisfatério, pois ele mostra uma clareza significativa na definicdo das partes do material do texto que estamos usando para nossa investigagio. Alguns resultados do estudo de caso Tendo explicado 0 processo de identificagao € desconstrugio dos argumentos a partir de material textual com base na representa- ao esquematica de Toulmin, podemos agora voltar-nos para 0 exemplo de um estudo de caso de andlise da argumentagao. Nosso estudo de caso, como no exemplo acima, refere-se ao debate piiblico que surgin a partir da introducio do primeiro alimento GM ~a soja =no mercado europeu. Aanilise do debate da soja nos artigos de jornal foi parte de uma tese de doutorado do autor deste capitulo (Liakopoulos, 2000). O primeiro nivel de andlise foi a identificacao da estrutura de argu- mentagio de cada parte interessada na controvérsia. Com este fim, identificamos artigos da midia que se referiam ao problema da soja, durante o periodo de sua introdugao no mercado (outubro de 1996 ajaneiro de 1997), e seguindo o procedimento discutido acima, des- contruimos a argumentagio para cada ator principal do debate. 231 PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM Identificamos um total de 37 artigos que continham material de argumentacio. A desconstrugio da argumentacio resultou em 59 argumentes principais. Os argumentos foram entio sintetizados para cada ator no debate (fonte de argumentagao). Aqui esto al- guns resultados preliminares de trés atores no debate: indistria, grupos ambientais e ciéncia. Argumentagio da indiistria A sintese da argumentagio da indiistria, a partir da representa- ‘sao esquematica de Toulmin, é mostrada na Tabela 9.2. Tobela 9.2 ~ Argumentagto da industria sobre a soja GM Dados Proposiges (desse modo provavelmente) ‘A soja GM foi aprovade pela EU A segregagto do soja ndo 6 necesséria ‘A populaséo mundial esté crescendo soja GM n6o & nove (© mundo tem falta de alimento ‘A soja GM 6 segura Nao & necessério efiquetor a soja GM Bivtearoloyia € u solvyde pura u forme de mundo Biotecnologia ¢ « chave para o desenvolvimento sustentével Os consumidores devem aprender mois sobre biotecnologia A tendéncia de investimento na Biotecnologia 6 inevtével Gorantia (sendo que) Refutoséo (a néo ser que) ‘As mesmas técnicas foram sodas por A reagBo dos consumidores iré minar a centenas de anos tendéncio da bioteenologio ‘A soja GM fo oprovada como segura por fiscalizadores em todo o mundo A efiquetagdo implicaria que a soja GM & diferente ‘A biotecnologia ossegura plantagBes mois baratas e compativeis com 0 meio ambiente A biotecnologia promete grandes lueros Apoio (porque) Apoio (porque) Asoja GM é idéntica ao soja normal A reago do consumidor se baseia na ignoréncia e em mal-entendidos As plontagées GM produzem 20% mois ¢ ecessitam menos pestcidas —232— 9. ANALISE ARGUMENTATIVA Vimos que a argumentagio da indastria para a soja GM segue uma variedade de linhas paralelas. A soja GM ¢ primeiramente vista como um produto seguro e econdmico, e um progresso, como a eli- minagio da fome no mundo. O apoio para essas proposigdes pro- vém do resultado do processo legal e dos dados de experimentos. O problema da imagem é também reconhecido ¢ é atribufdo & igno- rancia ¢ aos mal-entendidos. Ainda mais, os dados s4o também usa- dos como garantias de proposig6es: por exemplo, 0 fato de que a soja foi aprovada pelas autoridades legais é usado como uma garan- tia devido a seus credenciais de seguranga. No geral, a estrutura do argumento € clara, com apoios ¢ uma simplicidade que pode agra- dar ao raciocinio do senso comum. A instancia oficial reguladora para a soja GM, como representada no raciocinio nas partes que dizem que o Food and Drug Administration dos Estados Unidos aprovou a soja, é refletida nessa argumentacio. Ela é usada como uma garantia das proposigées de sua seguranca. A inica refutagdo na argumentagio da indistria € a questio da aceitagio pelo consumidor. A indistria vé claramente a aceitacao por parte do consumidor como um impedimento 4 promessa da biotec- nologia, reconhecendo, por isso, a necessidade de uma informacio € uma campanha de imagem (na verdade, a inddstria de biotecnologia ceuropéia langou uma grande campanha de informacio e de imagem). No que se refere a clareza da argumentacio, sua compreensao aceitagdo dependem da aceitacdo de seus pressupostos implicitos. Estes pressupostos podem ser lacunas no raciocinio dedutivo do argu- mento (isto 6, premissas que esto faltando), ou simplesmente verda- des universais sobre a realidade do contexto particular em que o ar- gumento tem lugar (Govier, 1987). De qualquer modo, estes pressu- postos fornecem pistas importantes para a validade do argumento. A argumentacao da indistria deixa certos fatos e garantias sem explica- Gao, pelo fato de pressupor que o leitor esta de acordo com sua verda- de ipso facto. Estes pressupostos podem ser sintetizados como segue: 1. O processo legal para a aprovacio de novos alimentos é rigo- oso € impecavel (pois a aprovacao legal ¢ igualada, no argu- mento, a seguranga do produto). 2. Afome do mundo ¢ resultado da falta de alimento (pois plan- tagbes maiores e mais baratas, propiciadas pela biotecnologia, so vistas como a solugio para a fome do mundo). 3. A biotecnologia é um processo natural e benigno (pois a bio- tecnologia é vista como idéntica aos métodos de produgio tra- dicional). —233— PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM 4. Os riscos podem ser quantificados (pois a soja GM é apresen- tada como idéntica a soja ordinaria, porque cles sao semelhan- tes em mais de 99 por cento de sua estrutura genética). A argumentagao da ciéncia O argumento da ciéncia pode ser representado na Tabela 9.3. Tobela 9.3 - Argumento da ciéncia com respeito & soja GM Dados Proposigéo (deste modo provavelmente) ‘A produséo de alimento GM emprega Os alimentos GM produzem efeitos técnicas aleatérios, imprevisiveis @ longo temo Os legislodores oprovaram a soja GM GM no é um processo natural Genes estranhos podem passar ds células O processo de regulamentacdo nao est intestinois fozendo exames apropriados de seguranga ‘As pessoas se preacupam com GM A soja GM pode alterar o DNA dos que a A.soja GM pode transmitir 0 genes resisiente & peste &s outras plantas Os centistos devern reogir ds preocupagdes das pessoas Garant (pois) As técricas de GM néo s60 precisos GM permite a passagem de proteinas animeis para plants ‘As plantagées GM jé cousoram problemas de soéde Seres vivos s80 muito complicados e imprevisiveis Aaavoliagéo do risco de alimentos GM deve incluir todo o impacto no meio ambiente (Os cientistos sdo responséveis pelas conseqiiéncias de seu trabalho ‘Apolo (porque) Na natureza néo hé transposigéo do borreira entre espécies Um experimento com soja GM do Brasil ‘com uma proteina de noz causou problemas de saéde para pessoas com alergia & noz brosileira (Os cientstas foram responséveis por descobertas destrutivas, fais como 0 gés loro e.@ bombs atémica —234— 9. ANAUSE ARGUMENTATIVA, A argumentagio da ciéncia é bastante técnica, como se poderia esperar. Ela se refere a aspectos técnicos especificos da soja GM, a seguranca legal dos procedimentos de exame e A pesquisa da enge- nharia genética anterior. Ela questiona a naturalidade da tecnologia da modificagao genética, a integridade dos procedimentos regula- dores para a aceitagio dos produtos da biotecnologia, e até mesmo 0s credenciais éticos da pesquisa cientifica. Bem de acordo com a argumentacio cientifica oficial, os dados sdo também empregados como garantias das reivindicacées, pois eles as vezes constituem uma descoberta em si mesmos (ver também Weins- tein, 1990). Por exemplo, a descoberta de que genes estranhos sio transmitidos as células intestinais é usada tanto como dado e como garantia da reivindicacao da seguranca da engenharia genétic A fala completa de refutagées € um indicativo da natureza autori- taria do argumento cientifico. Baseada em fatos concretos, a tinica coisa que pode desqualificar, ou trazer alguma divida sobre a reivin- dicacdo cientifica, é outra pesquisa sobre 0 assunto. Poder-se-ia, en- to, incluir uma refutagao geral colocando a menos que outras pes- quisas provem que isso seja falso. No geral, o argumento da ciéncia esta bem construido, com séli- do apoio que deixa muito pouco espaco para pressupostos. O tinico pressuposto geral desta argumentagao pode ser o de que o paradig- ma da pesquisa cientifica é objetivo e confiavel. Ainda mais, os argu- mentos atacam diretamente a linha oficial das autoridades regula- doras, especialmente as proposigées de que a soja GM € idéntica a soja comum e provavelmente no produzira nenhum efeito colate- ral negativo para o consumo humano. O argumento ambientalista A representacgio sintética do argumento ambientalista € apre- sentado na Tabela 9.4. 235 PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM. Tabela 9.4 ~ O argumento ombientalista com respeito & soja GM Dodos Proposigéo (deste modo provavelmente) (Os consumidores querem etiquelagéo Alimentos GM colocam rscos (esultodos de levaniamento) desconhecides ‘Asoja GM passou pelos testes de Eimprovével que o soja GM seja regulamentagéo efiquetada Deveria haveretiquelagéo dos alimentos cM GM néo 6 um procedimento natural processo de regulamentagéo néo 6 confivel Gorentio (pois) Refutagéo (a néo ser que) GM causou problemas de sade no Enegado 20 publica o direito de escolher passodo Monsanto ndo separou a soja GM Muitos pessoos querem etiquetor climentos GM GM permite que proteinas animois assem as plantas (s processos reguladores fesiam efeitos de curto termo e no de longo termo Apoio (porque) Um experimento da soja GM com uma proteina de nor do Brasil cousou problemas de sade para pessoas com lergia 8 noz brasileira ‘Monsanto 6 uma companhia itresponsével ‘Annatureza néo permite a transposigéo da borreira do espécie ‘Vemos que a argumentacao ambientalista se desenvolve em trés niveis. Um é 0 nivel da ciéncia, onde vemos a repeticao de alguns ar- gumentos que foram originalmente desenvolvidos pela parte cienti- fica, Por exemplo, a proposicio de que os alimentos GM colocam riscos desconhecidos, baseada no fato de que experimentos com ali- mento GM (soja) provaram que seu genes estranho produziu alergi- as em algumas pessoas, é uma clara repeticao do argumento cientifi- co. O segundo nivel de argumentacao se refere as credenciais da tec- nologia como um todo. Novamente a tecnologia é retratada como no natural, e 0 apoio para esta reivindicacao vem de seus procedi- 236 — 9. ANALISE ARGUMENTATIVA mentos técnicos (o fato de que o gene de um animal pode ser trans- ferido para uma planta). O terceiro nivel tem a ver coma ética de to- madas de decisio politicas sobre a soja GM, e especialmente com a questo da etiquetacio. A proeminéncia desse argumento é tao clara que se poderia dizer que o argumento ambientalista esta centrado ao redor da etiquetaco de alimentos GM aprovados em geral, e da soja GM em particular. Ha muitas raz6es possiveis para isso. Primei- To, a questo da etiquetacdo est associada a uma clara e forte atitu- de pablica, pois muitos levantamentos mostraram uma impressio- nante maioria de pessoas querendo etiquetar os alimentos GM. Em segundo lugar, a etiquetagao é um argumento ético que vai além dos impasses da argumentacao técnica. Em terceiro lugar, € um tema que traz A superficie muitos outros problemas politicos préximos & agenda ambiental (tais como a relagio entre a indtistria ¢ os legisla- dores, ¢ 0 conhecimento piblico e as atitudes com respeito aos pro- cedimentos de regulamentagio). De maneira geral, o argumento ambientalista esta construfdo in- teligentemente, com suporte apropriado para cada nivel, e com um raciocinio simples. A refutacao € usada nao como uma negacio da garantia, mas ao contrério, como um alerta da dimensio ética da questéo. Hi dois pressupostos implicados no argumento que podem ser sintetizados como segue: 1. A condicao atual das plantagées € natural (pois 0 acrésci- mo de um tinico gene os transforma em ndo naturais) 2. Auutilidade de um desenvolvimento tecnolégico tem me- nos valor que seus aspectos éticos e de risco (pois 0 uso de soja GM nem sequer merece uma mengio no argumento). A andlise de argumentagao como uma forma de anilise de contetido Aanilise de contetido é um exercicio de redugao de dados onde © texto € codificado em determinadas categorias. A transformacao do texto original em categorias quantificadas € feita através de um referencial de codificac4o que abrange todo aspecto importante do material de pesquisa. O desafio é reduzir uma grande quantidade de material em unidades significativas de andlise, sem perder a essén- cia (contetido, intengio) do material escrito original (Bauer, cap. 8 neste volume). Medidas de fidedignidade, tais como a fidedignida- de inter e intracodificador, foram desenvolvidas para avaliar a obje- tividade durante o proceso de transformacao. —237— PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM A anilise de argumentagao pode também ser teorizada como uma forma de andlise de contetido. Ambas as andlises tentam redu- zir grandes quantidades de material, captando certos aspectos im- portantes do texto e transformando-os em unidades de andlise. Ne- cessita-se apenas considerar as partes do argumento (dados, propo- sigdo, garantia, apoio, refutagdo) como categorias, e a andlise de contetido se torna um proceso alternativo viavel. Por exemplo, um exercicio tipico de analise de contetido resultaria em uma tabela com variaveis de categoria v e de casos ¢: vl v2 v3. v4 el x x x x 2 x x x x 3 x x x x <4 x x x x Na andlise de argumentagao a mesma tabela iria consistir das partes do argumento (dados D, proposigaes P, garantias G, apoins A, € refutagdes F) € casos ¢: D Pp G A F el x x x x x 2 x x x x x 3 x x x x x 4 x x x x x chidas com dados, pois cada parte do argumento poder-se-ia relaci nar a mais de uma das outras partes do argumento. Por exemplo, a tabela acima poderia parecer como a que segue: D P G A i cl 2 3 of —238— 9. ANALISE ARGUMENTATIVA Neste exemplo, os mesmos dados levam a diferentes, mas talvez semelhantes, proposicées. Por sua vez, diferentes garantias ap6iam uma tinica proposicio e assim por diante, Este é um retrato realisti- co de uma estrutura de argumentagéo provinda de uma grande quantidade de texto. Tal retrato nos permite uma descrigéo das re- laces entre as categorias: por exemplo, que tipos de dados produ- zem determinadas proposicées ¢ garantias, que tipo de apoios se adequam a certas garantias, e assim por diante. desafio é identificar um proceso que iria dar conta de todas as relagdes entre as categorias como retratadas acima. Uma folha de da- dos comum, do tipo SPSS, nao conseguiria, na nossa opinido, funcio- nar adequadamente, pois nao seria possivel dar conta de todas as com- binagdes possiveis entre as categorias. Um pacote sofiware de andlise de contetido, como o ATLAS/ti, seria mais adequado, pois ele permite uma apresentacio esquematica das relagdes das categorias. Virgil € um programa de bancos de dados para informacao qua- litativa, nao diferente do ATLAS/ti, que € um primeiro passo para a completa implementagio da andlise da argumentacao como andlise de contetido. Ball (1994) usou o Virgil dentro do HyperCard 2.0 para analisar argumentos de polfticas dentro do modelo de Toul- min, O software pode analisar o enfoque esquematico de Toulmin com argumentos relativamente simples, permitindo a apresentacéo de muitos elementos (como por exemplo as partes do argumento) ao mesmo tempo, e em diferentes versdes. Na versao simples, o ar- gumento é representado em uma forma concisa de acordo com ele- mentos, com a possibilidade de acrescentar notas extensas para cada elemento. Na forma complexa, cada elemento é referido a partes anteriores do texto original, contextualizando-o, deste modo, de acordo com a teoria de Toulmin. De resultados preliminares para uma anilise completa Os resultados preliminares da andlise da argumentagio do estu- do de caso mostrado acima constituem um primeiro passo para uma melhor compreensio da estrutura do argumento em debate. A des- crigio do contetido do argumento e a andlise das premissas implici- tas no argumento sao apenas uma maneira de nos aproximarmos da questo. Outras perspectivas de onde se poderia abordar a anélise dos argumentos sio as que se seguem. A completude das partes do argumento O exemplo de Toulmin de um argumento contém todas as par- tes (dados, proposicao, garantia, apoio, refutacio) dentro de um —239— PESQUISA QUALITATIVA COM TEXTO, IMAGEM E SOM. todo significativo. Em um texto usual, néo é comum encontrar um argumento “completo”, pois muitas partes sio deixadas a interpre- tacio do leitor. Poder-se-ia argumentar que um argumento bem-su- cedido é o que nao deixa espaco para interpretacao subjetiva, mas a0 contrario inclui todas as partes relevantes. Uma medida da “com- pletude” da argumentacio seria, entdo, uma indicagdo da forca do argumento. Tal medida poderia tomar a forma de uma comparagao entre a argumentacio grupal no debate, como uma fungio de seu “indice de completude” (por exemplo, o percentual de argumentos que contém todas as premissas necessarias, menos os argumentos que nao sao necessarios). Tipos de garantia A importancia da garantia na argumentagao é indiscutivel. Ela é a mais importante justificacao légica da proposicao. Diferengas na estrutura da argumentagao s4o também refletidas nos tipos de ga- rantias. Brockriede & Ehninger (1960) oferecem trés categorias de argumentos, de acordo com a maneira como as garantias sio usadas: + Em um argumento substantivo, a garantia nos est4 dizendo algo sobre as relagdes das coisas no mundo, a nosso respeito. + Em um argumento motivacional, as garantias nos dizem algo sobre as emogées, valores ou motivos que tornam a proposigao aceitével pela pessoa a quem o argumento é dirigido. + No argumento autoritativo, as garantias dizem algo sobre a fi- dedignidade da fonte de onde os dados foram tomados. A comparacio entre tipos de garantia na argumentagio grupal ir fornecer uma visio melhor do emprego pretendido do argumen- to na esfera piiblica. Logos, ethos, pathos As palavras acima se relacionam com a idéia aristotélica de que cexistem trés qualidades principais em uma fala: logos (raz40, l6gica), ethos (moralidade, cédigo moral, ética), e pathos (emoc4o, afeicao). Cada estrutura de argumento da especial peso a um destes trés prin- cipios, conforme o publico alvo que ela quer influenciar. Por exem- plo, Aristételes acreditava que a fala piiblica estava compelida a con- ter mais pathos, pois o componente emocional possui uma influéncia forte nas pessoas leigas. —240— 9. ANALISE ARGUMENTATIVA, ‘Transportando essa idéia para a anilise de nossos dias, poderfa- mos buscar uma comparagio da estrutura do argumento baseada nestas trés caracteristicas. A cada argumento pode ser conferido um valor numérico em trés escalas (logos, ethas, pathos) que, contanto que clas se mostrem fidedignas, podem ser usadas para comparagdes descritivas. Leitura semiética e andlise de argumentagéo E verdade, como mostrou Arist6teles, que o argumento pode também ter um componente emotivo que funciona em um nivel di- ferente da pura razio. Em debates que introduzem novos conceitos no campo piiblico, metéforas e imagens sao constituintes importan- tes da estrutura da argumentagao que funciona ao nivel emotivo. ‘Asemidtica é a ciéncia da compreensao e da anilise de tais conceitos simbélicos no discurso cotidiano. Uma combinacio itil entre semié- tica e andlise da argumentagio poderia fornecer uma compreensio mais profunda da dinamica que afeta o desenvolvimento do discurso ptiblico (Manzoli, 1997). Por exemplo, representagoes pict6ricas (fo- tografias documentérias, desenhos, gréficos, etc.) comumente usa- das em textos de midia podem ser analisadas como partes de uma estrutura do argumento (por exemplo, como garantias para a rei- vindicagao principal). [Passos na andlise argumentativa 1. Colete uma amostra representativa que incorpore os pontos de| vista de todas as partes interessadas no debate. 2. Sintetize os pontos principais em um pardgrafo, parafraseando o| minimo. 8. Identifique as partes usando as definig6es apresentadas e teste-as quanto a sua fidedignidade. 4. Compare todas as partes do argumento em uma apresentacio es- quemitica a fim de que elas possam ser lidas em relago umas| com as outras. 5, Apresente uma interpretagio em termos do contexto geral ¢ do mérito da completude do argumento. 241 —

You might also like