Professional Documents
Culture Documents
Internet e Suicidio Caminhos para Compreensao e Construcao de Acoes Preventivas
Internet e Suicidio Caminhos para Compreensao e Construcao de Acoes Preventivas
ARTIGO
Internet e Suicídio:
caminhos para
compreensão e
construção de ações
preventivas
Thiago Nagafuchi
thiagonagafuchi@gmail.com
Internet e Suicídio:
caminhos para
compreensão e construção
de ações preventivas
Palavras-chave Resumo
Internet Este artigo tem por objetivo fomentar diálogos
Redes sociais sobre as possibilidades de prevenção do suicí-
Suicídio dio que deem conta dos fenômenos que acon-
Prevenção tecem em meios digitais, por meio da apresen-
tação e da discussão de alguns casos. Os dados
são baseados em uma pesquisa de doutorado
que buscou investigar o suicídio das pessoas
LGBTQIA+ por meio de uma etnografia em am-
bientes digitais. Os casos mostram que o as-
sunto ganha ainda mais complexidade com o
advento do digital, e que é urgente discutir,
seja a partir de políticas públicas, ou a partir
de projetos de organizações específicas, as pos-
sibilidades de construir uma efetiva prevenção
do suicídio nos ambientes digitais.
260
V. 2 ⁄ N. 1 ⁄ JUNHO DE 2021 INTERNET E SUICÍDIO: CAMINHOS PARA COMPREENSÃO THIAGO NAGAFUCHI
PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS
Keywords Abstract
Internet This paper aims to promote a dialogue about
Social media the possibilities of suicide prevention that con-
Suicide sider what happens on digital media – two
Prevention cases are presented and discussed. These data
are based on a PhD research with focus on
LGBTQIA+ suicide through an ethnography on
digital environments. The cases show that the
subject is painted in a more complexity frame
within the digital, and it is urgent to discuss
and implement public policies and specific
programs that can design potential and effec-
tive suicide prevention on digital environment.
261
V. 2 ⁄ N. 1 ⁄ JUNHO DE 2021 INTERNET E SUICÍDIO: CAMINHOS PARA COMPREENSÃO THIAGO NAGAFUCHI
PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS
famosas que tiraram a própria vida, como o No início dos anos 1990, um pequeno grupo
caso do ator brasileiro Flavio Migliaccio14. Mas, criou um fórum on-line chamado Alt-Holiday
se tentarmos especializar a pesquisa, com a Suicide (em inglês, a partir do questionamento
busca de termos, por exemplo, podemos en- sobre o motivo de haver muitos suicídios em
contrar algumas tendências: ao buscar “como datas comemorativas e feriados, como o Natal e
cometer suicídio”, os termos relacionados são, o ano novo. O “alt” porque seria um lugar alter-
em ordem de importância, “veneno”, “senti- nativo para discutir o suicídio. Daqui em diante,
mento”, “eutanásia”, “pessoa” e “filosofia”, e no me referirei ao fórum pela sigla ASH). Logo, o
mapa do Brasil da própria ferramenta, o estado grupo cresceu e se tornou um dos maiores fó-
onde mais se pesquisou o termo no Google é o runs on-line sobre suicídio. O fórum se man-
Rio Grande do Sul, que tem uma das maiores teve ativo por muitos anos, porém, agora só é
taxas de suicídio no país, e onde muitos dos possível acessar seu arquivo por meio de login e
casos se dão nas áreas rurais com plantação de senha18. À época, não me detive ao fórum por-
fumo. Um dos termos associados à busca de que é uma quantidade gigantesca de informa-
“como se matar”, é “vingança”. ções que merece uma pesquisa própria. Porém,
Se buscarmos o termo suicídio no Google, para entender melhor como o suicídio surge na
temos um retorno de aproximadamente 9 Internet, foi necessário estudar a sua história e
milhões e meio resultados, o primeiro deles algumas iniciativas que tiveram origem no ASH.
é uma caixa com o contato para o Centro de A Igreja da Eutanásia não foi uma igreja, no
Valorização da Vida (CVV), uma das principais sentido estrito, sequer um tipo de culto. Sua
organizações promotoras de prevenção do sui- existência se resumia a um pequeno grupo de
cídio no país, com o título “Encontre ajuda”, pessoas com ideologias muito próprias sobre
onde se divulgam o número de telefone e os o mundo e que fazia pequenos atos de protes-
horários de funcionamento. Por vezes, a busca tos, mas com grande atividade na Internet. Sua
vem associada com outros termos, como “nó” líder, uma mulher trans chamada Chris Korda,
ou “veneno”, mas informações precisas sobre fazia parte do ASH e tirou algumas ideias do
métodos e ferramentas não são tão facilmente seu grupo do antigo fórum on-line. O principal
encontradas, em parte por conta de esforço de lema do grupo era “Salve o planeta, se mate”19,
plataformas digitais para derrubar postagens na medida em que, acreditavam, um suicídio
que possam conter tais informações. coletivo de grande escala seria a única forma
Durante a pesquisa de doutorado, observei al- de salvar o planeta de um desastre ambiental
guns fóruns na deep web15 mas eles não tinham – uma vez que o ser humano seria o principal
muitas informações precisas ou mesmo intera- motor de um fim catastrófico. Os pilares mo-
ção entre os usuários. No entanto, se dava espe- rais do grupo se baseavam em suicídio, aborto,
cial atenção ao compartilhamento de um ma- canibalismo e sodomia20.
nual construído pela “Igreja da Eutanásia”16, com A igreja da eutanásia21 foi responsável por
diversas informações sobre aquele que seria formular, com base em muitas informações
considerado o melhor método de suicídio para trocadas nos fóruns do ASH, um documento
quem o criou; e em acordo com uma axiologia que continha, segundo seus autores, o que seria
muito particular17. Este fórum, especificamente, a melhor forma de suicídio, com base em uma
era um braço de outro localizado na rede Reddit, complexa análise das axiologias que envolviam
mas que nos últimos anos migrou para uma pá- os métodos mais conhecidos. Inicialmente,
gina própria, provavelmente por conta da sua o documento era facilmente encontrado no
natureza. Conto parte de sua história a seguir. site da “igreja”, porém, após uma pessoa que
267
V. 2 ⁄ N. 1 ⁄ JUNHO DE 2021 INTERNET E SUICÍDIO: CAMINHOS PARA COMPREENSÃO THIAGO NAGAFUCHI
PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS
se matou ter sido encontrada com este docu- O fórum tinha uma atividade intensa e bas-
mento impresso, ao seu lado, ele foi retirado tante complexa. Era comum encontrar pes-
da página. Além de itens necessários e onde soas divulgando alguns detalhes de suas vidas
comprá-los, é possível encontrar fórmulas para que as faziam pensar em suicídio, e os moti-
calcular quantidades (não entrarei em detalhes vos eram os mais variados possíveis. Muitas
sobre o método) e o tempo que levará para que informações técnicas eram desconsideras de
a morte aconteça. acordo com as crenças pessoas – por exemplo,
Apesar de ser um lugar digital em que qual- uma pessoa se dedicou, em várias mensagens
quer pessoa com acesso à Internet consegue e respostas, a “desmentir” a física de corpos
chegar, a partir do TOR, os fóruns na Internet em queda, criando uma teoria própria sobre a
não indexada assumem um espectro de não-lu- morte por precipitação, uma vez que seria seu
gar22. São públicos, mas demandam alguns co- método de escolha. Estas discussões tomavam
nhecimentos e informações específicos e certas proporções gigantescas.
habilidades. Assim, o acesso é ínfimo, quando Elizabeth 24, mulher que estava na faixa dos
comparado à Internet da “superfície”. De todo 40 anos, casada há mais de 10, descobriu que
modo, por ser acessível, há uma necessidade de possui uma doença incurável e chegou a pen-
entender o que se encontra por lá, em se tra- sar em buscar o suicídio assistido25. Porém, ela
tando do suicídio. não queria mais esperar tanto tempo e elen-
Na “superfície”, acompanhei alguns fóruns cou dois motivos que a levaram a tomar a de-
hospedados no Reddit, inclusive um que foi cisão de cometer suicídio em breve: a doença
fundado por antigos membros do ASH, que incurável que, além do sofrimento causado, a
aqui vou chamar de S. S possuía aproximada- debilitou e transformou seu corpo; e o desin-
mente 7 mil membros23, seu principal obje- teresse do marido, que a traía com outra mu-
tivo era promover discussões “casuais” sobre a lher. Ela estava ressentida. Quando descobriu
perspectiva cognitiva de pessoas que considera- a doença, sugeriu que eles se separassem por-
vam o suicídio como possibilidade; ou seja, em que ele não mereceria passar por todo o so-
suma, a ideia era criar um ambiente para di- frimento junto dela, mas ele declinou e disse
versas discussões sobre o tema sem o que eles que estaria a seu lado não importa o que acon-
considerariam uma moral salvacionista. Para tecesse. Ela queria se vingar.
os membros, o fórum não era pró-suicídio, O plano já estava traçado: aos amigos, ela es-
e sim pró-escolha, no sentido de que a esco- creveu um e-mail de agradecimento e suporte,
lha pertencia à esfera íntima e pessoal de cada e ao esposo e sua família, outro e-mail contando
um, sendo proibidas intervenções de qualquer sobre o caso extraconjugal dele e que o ato fora
forma que pudessem “prejudicar” a escolha. motivado por um sentimento de vingança. O
Para isso, o fórum contava com diversos media- e-mail era programado. Caso sua tentativa desse
dores que podiam apagar comentários ou pos- errado, bastaria cancelar o envio. Elizabeth pos-
tagens completas. Além desta proibição, tam- tou sua história no fórum S porque tinha dú-
bém não se podia discutir métodos, divulgar vida se as 8 pílulas que ela tinha, de um medi-
informações pessoas, imagens e vídeos de atos camento específico, e que conseguiu de forma
suicidas e, por fim, qualquer tipo de dado que ilegal, seriam suficientes para morrer. Ela tinha
pudesse permitir a identificação, como fotos, uma pequena dose de outro medicamento, por
telefones, endereços de e-mail, redes sociais isso perguntou aos outros membros se seria
etc.; propaganda de qualquer tipo também en- prudente misturar tudo. A recomendação dos
trava no rol das proibições. usuários que responderam foi que o melhor
268
V. 2 ⁄ N. 1 ⁄ JUNHO DE 2021 INTERNET E SUICÍDIO: CAMINHOS PARA COMPREENSÃO THIAGO NAGAFUCHI
PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS
tido 700 curtidas (ainda não havia as emoções na receber algumas mensagens que reclama-
rede social) e foi compartilhada por mais de 60 vam que as histórias geravam forte gatilho
pessoas e perfis. Muitas pessoas deixaram men- emocional e, com o passar dos dias, foi cada
sagens direcionadas à Alexa, como “Você nos vez mais raro encontrar posts com a hashtag
ensinou muitas coisas lindas, te amamos para #MinhaPrimeiraTentativa usadas com este ob-
sempre!”, que teve 41 curtidas, e tantas outras. jetivo27. Sobre isso escrevi:
No dia seguinte, outra ativista trans, aqui cha-
mada de Julieta, postou a seguinte mensagem: Com relação à comunidade e às
transformações que a rede social [Facebook]
Não foi apenas uma vez que tentei me nos traz, podemos observar o seguinte:
matar, foram muitas. A primeira delas ao mesmo tempo em que a hashtag
eu tinha apenas 16 anos, fui socorrida #MinhaPrimeiraTentativa tinha um viés
pela minha mãe, que chegava do trabalho. político – no que tange a importância
Naquele tempo, eu não sabia que podia ser de se discutir a questão do suicídio da
trans, eu era apenas um menino gay que população LGBTQIA+, ela teve reações
não me encontrava em lugar nenhum. A positivas (as pessoas que postaram [sob
solidão, a rejeição, a negação, me levaram a hashtag] e negativas (as pessoas que
à tentativa de suicídio. A última vez foi no ficaram incomodadas e pediram para ela
ano passado [em 2015], fui socorrida, na rua, ser extinta). Isso também vai ao encontro
às 3 da manhã por um amigo. O psiquiatra das normalidades e normatividades; a rede
já quis me internar. (...). O suicídio pode social enquanto comunidade funciona como
ser evitado. É preciso conscientizar a todos um filtro do que pode ou não ser postado –
sobre o risco do suicídio que pessoas trans e isso sem falar das normas de utilização do
e LGBTs enfrentam. Às vezes, parece ser próprio site [...]. (NAGAFUCHI, 2017, p.64).
melhor não estar no mundo. Hoje, Alexa
se foi, se fizermos nada, muitas mais
de nós continuaremos a ir embora. Esta é uma das formas como o suicídio se faz
presente no Facebook, são diversas mensagens
de despedida deixadas na rede social, muita
O texto de Julieta tinha aproximadamente delas públicas, e muitas são compartilhadas, in-
300 curtidas e, além dela, deixou uma hashtag clusive em grupos específicos, como o “Profiles
com o nome #MinhaPrimeiraTentativa, su- de gente morta”, que é um grupo fechado e
gerindo que as pessoas LGBTQIA+ contassem tem mais de 161 mil membros28. Os participan-
sobre as suas primeiras tentativas de suicídio tes, no grupo, compartilham perfis do Facebook
e marcassem com a hashtag. Uma hashtag, no de pessoas que já faleceram, como regra, pede-
fundo, é um agregador de informações, onde -se que na descrição se aponte a causa e algu-
um usuário pode identificar suas postagens e mas informações extras; nos casos de suicídio,
procurar postagens parecidas. O texto e a su- muitas vezes isso envolve colocar as mensa-
gestão geraram movimento no Facebook, na gens de despedida (às vezes não são públicas,
época, muitas pessoas contaram suas experiên- mas os usuários colocam “prints” de tela) e, até
cias e muitas mensagens ficaram públicas e mesmo, método utilizado. Alguns casos geram
eram facilmente encontradas pela ferramenta muita comoção, e é muito comum, em casos
de busca. Com grande alcance da postagem, de suicídio, outros membros do grupo respon-
no dia seguinte, Julieta decidiu apagá-lo após derem que também têm intenção de se matar.
270
V. 2 ⁄ N. 1 ⁄ JUNHO DE 2021 INTERNET E SUICÍDIO: CAMINHOS PARA COMPREENSÃO THIAGO NAGAFUCHI
PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS
Em um evento acadêmico sobre suicídio, co- governos municipais, estaduais e federais são
nheci uma mulher que me contou que, na falta inexistentes. Há raros projetos de leis esta-
de ações efetivas das plataformas para tentar duais, mas eles pouco avançam nas casas le-
minimizar as exposições de ideação suicida nos gislativas. Embora as populações indígenas,
grupos, ela mesma fazia uma espécie de pre- as pessoas negras e as LGBTQIA+ já tenham
venção, enviando mensagens na ferramenta de estado no radar do Governo Federal e da
“chat” para as pessoas que tivessem comentário Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)
com ideação, indicando o número de telefone no passado recente30, o trabalho foi suspenso
do CVV, e se dizendo disponível para conversar. em 2018. No momento, a pauta do suicí-
Ela disse que, quando podia, dedicava uma ou dio e da automutilação faz parte das ações
mais horas do dia neste trabalho, inclusive no do Ministério da Mulher, da Família e dos
grupo mencionado anteriormente. Ela também Direitos Humanos31. Porém, não há um plano
disse que conhecia outras pessoas que faziam o concreto, nacional, que vise à prevenção do
mesmo. Este trabalho individual e pouco co- suicídio de forma evidente e objetiva32. Por
nhecido é talvez uma das únicas ações de pre- enquanto, este trabalho está delegado ao CVV
venção que ocorrem dentro de grupos fechados e outras organizações não governamentais.
das redes sociais. Dito isso, quero expor o que entendo por
As plataformas têm políticas um tanto obs- prevenção e como alguns planos podem ser de-
curas. O próprio Facebook tem uma central de senhados com auxílio e responsabilização das
ajuda com informações sobre o que fazer nes- plataformas digitais. Uma prevenção do suicí-
tes casos, mas exige um certo esforço para aces- dio não é somente o ato de evitar que alguém
sar. No Twitter, é até mesmo difícil denunciar se mate. Há diversos estudos e protocolos que
algumas postagens, por falta de categoria den- podem ser seguidos em momentos de crise ou
tro da ferramenta própria para isso29. As plata- em situações em que o tempo não joga con-
formas, em sua maioria, dizem que postagens tra. Do mesmo modo, a prevenção não deve
e mensagens são analisadas após um pedido de ser centralizada ou localizada, ela deve orien-
denúncia, embora não deixem claro quem ou tar protocolos específicos de manejo em saúde
quê faz este trabalho (algumas análises são au- mental, bem como se apoiar em uma Rede
tomatizadas por inteligências artificiais, outras de Atenção Psicossocial fortalecida e bem es-
realizadas de forma precária por empresas ter- tabelecida; mas também deve ser global e de
ceirizadas localizadas em países como a Índia longa duração. Dentro do rol de políticas pú-
ou Filipinas, por pessoas expostas continua- blicas para prevenção do suicídio de pessoas
mente à imagens de violência e de abuso, tema LGBTQIA+ também devem ser consideradas,
de alguns documentários). por exemplo, políticas de proteção a esta po-
pulação, de acesso à saúde, de empregabilidade,
pautados na inclusão e na diversidade etc. O
5. Internet e suicídio: o mesmo deve ser levado em consideração em
desafio da prevenção respeito aos outros grupos identificados den-
tro dos marcadores sociais da diferença, já que
as taxas de suicídio e de tentativa tendem a ser
A prevenção do suicídio, per se, já é um grande maiores para eles.
desafio. Quando ainda falamos de marcado- O Brasil tem como guias a Agenda de Ações
res sociais da diferença, podemos dizer que Estratégicas para a Vigilância e Prevenção
programas ou políticas públicas por parte dos do Suicídio e Promoção da Saúde e a Lei
271
V. 2 ⁄ N. 1 ⁄ JUNHO DE 2021 INTERNET E SUICÍDIO: CAMINHOS PARA COMPREENSÃO THIAGO NAGAFUCHI
PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS
13.819/2019, denominada Política Nacional de suicídio, ou mesmo no que diz respeito á expo-
Prevenção da Automutilação e do Suicídio, sição à violência de toda sorte. É necessário que
de 2019. Um dos objetivos das ações estraté- mais pesquisas sejam feitas e publicadas sobre o
gicas, por exemplo, era diminuir as taxas de tema, principalmente porque é preciso plurali-
suicídio em 10% até 2020, contudo ocorreu zar o diálogo, e.g., seria interessante entender o
o contrário. E, embora a lei apresente alguns que áreas como o Direito (inclusive agora que
avanços, ainda possui pontos problemáticos33 existe uma Lei Geral de Proteção de Dados) tem
(Kovács, 2019). A única menção à Internet no a dizer, bem como a Educação, a Comunicação,
projeto de lei é o artigo quinto: “o poder pú- as Ciências Sociais, porque uma vez que o suicí-
blico poderá celebrar parcerias com empresas dio é um fenômeno multifatorial e multideter-
provedoras de conteúdo digital, mecanismos minado, nada mais justo que os conhecimentos
de pesquisa de Internet, gerenciadores de mí- construídos sejam multidisciplinares.
dias sociais, entre outros, para a divulgação
dos serviços de atendimento a pessoas em so-
frimento psíquico” (Brasil, 2019). 6. Considerações para um
Ainda há um longo caminho quando se remate
pensa em políticas públicas de prevenção do
suicídio. Contudo, há iniciativas interessan-
tes organizados pela sociedade civil, como as De modo resumido, em minhas pesquisas,
cartilhas organizadas pelo Instituto Vita Alere fundamentadas em uma antropologia crítica
em parceria com o Google, a Ong Safernet e a da saúde, entendo que o suicídio, enquanto
Unicef34. Além disso, algumas plataformas utili- evento marcado no espaço e no tempo, é um
zam Inteligência Artificial para tentar prevenir dos resultados possíveis dos sofrimentos so-
suicídio; o Facebook, por exemplo, utiliza uma ciais e das violências (Nagafuchi, 2019), dentro
ferramenta de machine learning35 para identificar de uma interpretação das biopolíticas contem-
postagens que denotem situações de risco – no porâneas das subjetividades e formas de vida
entanto, não está evidente se a ferramenta fun- (Biehl, 2008; Biehl & Locke, 2017; Das, 2007;
ciona em outras línguas que não o inglês, ou se Fassin, 2016, 2018; Kleinman, Das e Lock, 1997)
identifica somente postagens públicas. Em al- ou na ontologia do sujeito que é determinado
guns grupos que acompanho desde o doutorado, pelas forças que decidem quais vidas podem
é muito comum encontrar comentários com continuar e quais vidas devem ser extintas
ideações explícitas, que geram uma reação em (Agamben, 2012; Butler, 2015). Este resultado
cadeia incontrolável, com outras pessoas tam- é como uma transformação social, um devir-
bém publicando suas intenções suicidas, rea- -morte (um devir extremo) ou devir-nulo, im-
ções negativas – como ataques pessoais –, men- plicado pela ausência completa de horizonte,
sagens de apoio, conversas paralelas e situações sempre como último devir possível, ação der-
de paquera, tudo ao mesmo tempo na tela36. radeira do sujeito. É nesse sentido que o suicí-
Por isso, é imprescindível que a sociedade civil dio comunica algo, contrastando com a morte
esteja em constante diálogo com os responsáveis invisível como paradigma nas sociedades oci-
pelas plataformas digitais para pensar estratégias dentais contemporâneas (mais ainda com o ad-
de prevenção no digital. Inclusive, as platafor- vento do digital) com a transgressão das regras
mas, por serem corresponsáveis pelos conteúdos, da dicotomia público/privado (Marquetti, 2014).
devem ser mais transparentes em relação às me- Por fim, o suicídio é um desafio porque contra-
didas e aos protocolos adotados na prevenção do diz com o entendimento comum da natureza
272
V. 2 ⁄ N. 1 ⁄ JUNHO DE 2021 INTERNET E SUICÍDIO: CAMINHOS PARA COMPREENSÃO THIAGO NAGAFUCHI
PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS
humana (biologia) e da sua cultura (biografia), bloqueia discussões e implica em uma margi-
uma vez que é a negação das duas coisas ao nalização de abordagens centradas em funda-
mesmo tempo. Além disso, o ato é destrutivo mentações teóricas diversas. Acredito, portanto,
por ser uma interrupção abrupta, mas também que o debate sobre o suicídio não deve ser feito
constitutivo, porque exige que elaboremos uma somente a partir das experiências pessoais;
compreensão de mundo e da experiência hu- deve passar por uma crítica ao modus operandi
mana (Staples & Widger, 2012). da racionalização da construção do pensamento
As subjetividades marcam as experiências científico e da produção de conhecimento,
das pessoas no cotidiano. São nas modulações como uma abertura às epistemologias multi-
do cotidiano que as pessoas vão encontrando disciplinares (Nagafuchi, 2020), ainda mais se
formas de escape para continuarem vivas em tratando da cada vez mais massiva presença das
contextos dos sofrimentos diversos, como mi- pessoas nas plataformas digitais.
séria, guerra, doenças, violência, e assim por Uma das conclusões que cheguei na pesquisa
diante. Para Biehl e Locke (2018), estes movi- de doutorado foi que as pessoas têm necessi-
mentos são chamados de plasticidade, como dade de comunicar seus anseios, sofrimentos e
um modo de garantir uma fluidez para as for- as suas tentativas de suicídio sem incorrer no
mas de vida nos contextos sociais em que os risco de serem julgadas de forma precipitada,
sujeitos se encontram; e, além disso, a plastici- uma vez que o suicídio é cercado de sensos
dade se dá por meio de transformações sociais comuns que só fazem aumentar o sofrimento.
porque os sujeitos são/estão sempre na qua- Pensando nas plataformas como uma espécie
lidade de incompletos, assim, sempre é uma de meta-amigo, ao alcance das mãos, as pessoas
ação em direção aos devires. (Nagafuchi, 2019). podem ter mais liberdade para narrarem suas
É dentro deste contexto teórico que com- histórias de vida. O que isso diz sobre o silên-
preendo o suicídio na Internet como um con- cio e a solidão? É como se a Internet fosse um
junto de tipologias e arquétipos discursivos, meio de amplificar vozes, muitas vezes o único
fluidos e não fechados em categorias distintas, meio, e tantas vezes como um vácuo de ecos –
em constante diálogo uma com as outras, mar- um não-lugar que carregamos conosco.
cados pelo espaço e pelo tempo37. Ou seja, ca- É por isso que a prevenção do suicídio, em
racterísticas atribuídas que são ambivalentes. sentido amplo, não pode ser resumida em
Por isso, no florescer do século XXI, com o sur- protocolos de atendimento nem em ações in-
gimento da Internet, o suicídio ganhou ainda dividuais nas redes sociais. É preciso que as
novas roupagens e possibilidades de interpreta- plataformas compreendam seus papéis e res-
ção, o que cria, de certa feita, dificuldades para ponsabilidades e abram um diálogo multidis-
se pensar a prevenção do suicídio na atualidade. ciplinar com especialistas no tema. Dentre os
A partir deste paradigma, é preciso questio- desafios impostos às plataformas, estão, por
nar alguns efeitos do suicídio, como a necessi- exemplo: divulgação de informações que ensi-
dade de reduzi-lo a um caráter biomédico do nam métodos de suicídio; proteção dos dados
salvacionismo e das politicas públicas, além dos e das informações das pessoas que têm os per-
protocolos de atendimento para pessoas que fis divulgados após a morte; produção massiva
tentaram tirar a própria vida, com o risco de de conteúdos sem qualquer tipo de mediação;
criação e manutenção de aparatos psiquiátricos conscientização dos usuários, oferecendo in-
medicalizantes, inscritos nas letras dos eventos formações de forma facilmente acessível sobre
suicidas e dos traumas como únicas possibi- ajuda em momentos de crise; construção de
lidades de explicação do suicídio, porque isso um diálogo com os poderes públicos para a
273
V. 2 ⁄ N. 1 ⁄ JUNHO DE 2021 INTERNET E SUICÍDIO: CAMINHOS PARA COMPREENSÃO THIAGO NAGAFUCHI
PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS
interação “analógica”, no fim das contas, foi es- 18 Quando fazia a pesquisa de doutorado,
sencial e ajudou a construir as histórias de vida o site que mantinha o arquivo do fórum tinha
e os casos que incluí na tese. acesso aberto.
12 Há um interessante efeito disso ga- 19 Cabe lembrar que o ato de induzir, insti-
nhando força em plataformas de conteúdo de gar ou auxiliar materialmente alguém à tenta-
vídeo como o YouTube, diversas pessoas ao tivas de suicídio ou automutilação é crime pre-
redor do mundo monetizam vídeos em que visto no Código Penal brasileiro. E se o crime
mostram suas rotinas diárias de trabalho e es- for cometido pela Internet, as penas ainda são
tudo. Este tipo de vídeo ganhou ainda mais aumentadas, aumentando ainda mais se a pes-
força durante a pandemia, com milhões de pes- soa for líder ou coordenador de grupo (as termi-
soas isoladas em suas casas. nologias em itálico são utilizadas na legislação).
13 Os caminhos metodológicos são des- 20 De acordo com o site antigo, eles não in-
critos de forma pormenorizada em Nagafuchi centivavam o suicídio, mas martirizavam aque-
(2017). Acho interessante dizer que o smart- les que se tornavam membros e se matassem
phone também foi bastante utilizado, se tor- em seguida. Pregavam a favor do aborto, por-
nando uma espécie de “campo móvel”. que era proibido gerar vida humana, o caniba-
lismo como única forma de consumir proteína
14 O ator, que morreu em maio de 2020, animal, e a sodomia porque só era permitido
teve a carta de despedida amplamente divul- ato sexual não conceptivo.
gada na Internet. A utilização da ferramenta
Google Trends e as buscas citadas na sequência 21 Mais informações, cf. Nagafuchi (2017).
do texto se deram em fevereiro de 2021.
22 Termo cunhado por Augé (2012) como
15 Existem muitas definições. No meu caso, espaço de isolamento, solidão e sem identidade,
considero todas as páginas não indexadas aos mesmo que repleto de pessoas. Recentemente,
buscadores comuns como deep web. Em parti- em uma entrevista, ele afirmou que, por conta
cular, na pesquisa, observei alguns fóruns es- das tecnologias, estamos em um não-lugar
pecíficos sobre suicídio, com extensão “.onion”, permanente – já que estes dispositivos “estão
que são acessados através de um navegador permanentemente nos colocando em um não
chamado TOR. lugar. Nós carregamos os não lugares [...] co-
nosco”. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/31/
16 Do inglês “Church of Euthanasia”, hoje tecnologia/1548961654_584973.html, acessado em
em dia, o site foca mais na divulgação da pro- 06/06/2021.
dução musical de sua fundadora.
23 Hoje, o fórum tem hospedagem própria,
17 O manual é construído em torno de uma possui quase 17 mil membros, 58 mil threads e
moralidade em que a tentativa de suicídio não mais de um milhão de comentários.
deve colocar a vida de outras pessoas em risco.
278
V. 2 ⁄ N. 1 ⁄ JUNHO DE 2021 INTERNET E SUICÍDIO: CAMINHOS PARA COMPREENSÃO THIAGO NAGAFUCHI
PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS