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ARTIGO

Internet e Suicídio:
caminhos para
compreensão e
construção de ações
preventivas

Thiago Nagafuchi
thiagonagafuchi@gmail.com

Doutor em Ciências pela Faculdade


de Saúde Pública da Universidade
de São Paulo.
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V. 2 ⁄ N. 1 ⁄ JUNHO DE 2021 INTERNET E SUICÍDIO: CAMINHOS PARA COMPREENSÃO THIAGO NAGAFUCHI
PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS

Internet e Suicídio:
caminhos para
compreensão e construção
de ações preventivas

Palavras-chave Resumo
Internet Este artigo tem por objetivo fomentar diálogos
Redes sociais sobre as possibilidades de prevenção do suicí-
Suicídio dio que deem conta dos fenômenos que acon-
Prevenção tecem em meios digitais, por meio da apresen-
tação e da discussão de alguns casos. Os dados
são baseados em uma pesquisa de doutorado
que buscou investigar o suicídio das pessoas
LGBTQIA+ por meio de uma etnografia em am-
bientes digitais. Os casos mostram que o as-
sunto ganha ainda mais complexidade com o
advento do digital, e que é urgente discutir,
seja a partir de políticas públicas, ou a partir
de projetos de organizações específicas, as pos-
sibilidades de construir uma efetiva prevenção
do suicídio nos ambientes digitais.
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Internet and Suicide: paths


for understanding and
building preventive actions

Keywords Abstract
Internet This paper aims to promote a dialogue about
Social media the possibilities of suicide prevention that con-
Suicide sider what happens on digital media – two
Prevention cases are presented and discussed. These data
are based on a PhD research with focus on
LGBTQIA+ suicide through an ethnography on
digital environments. The cases show that the
subject is painted in a more complexity frame
within the digital, and it is urgent to discuss
and implement public policies and specific
programs that can design potential and effec-
tive suicide prevention on digital environment.
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Introdução ela é um meio em que as possibilidades comu-


nicativas do suicídio, bem como a transgres-
são às barreiras da dicotomia público/privado,
Neste artigo, abordo alguns casos de suicídio (Marquetti, 2014) se fazem evidentes: é relati-
que envolveram mensagens ou despedidas na vamente fácil encontrar cartas de despedidas
Internet, em redes sociais e fóruns, para mos- em postagens em todas as redes sociais, gru-
trar o quão diverso e complexo o tema do sui- pos de compartilhamento de perfis de pessoas
cídio pode ser em relação à Internet e às pla- que já morreram (e que identificam até mesmo
taformas digitais. É importante, inicialmente, o método utilizado), fóruns em que as pessoas
atestar que o suicídio é um evento que inde- tentam discutir o tema livremente, outros em
pende do digital, per se, portanto, quando falo que a motivação é escrever cartas de despedida
de suicídio na Internet, estou levando em conta fictícias; e se pesquisar mais a fundo, encon-
polissemias e metáforas – bem como o termo tram-se vídeos de cenas de suicídio, inclusive
“mídias digitais” pode ser uma metáfora para as de transmissões “ao vivo” em plataformas de
implicações das relações humanas no digital1. conversas por câmera, informações sobre mé-
São muitas as formas como o suicídio se mos- todos, vendas de “kits suicídio” e a busca por
tra na Internet, contudo, para exemplificar os parceiros para se matarem juntos (Nagafuchi,
pontos levantados neste artigo, me atenho a al- 2017; Nagafuchi e Adorno, 2016; Ozawa-de Silva,
guns casos que fizeram parte de uma pesquisa 2008, 2010). Assim como a média entre os dígi-
de doutorado2. tos 0 e 1, a Internet é também um meio, um ca-
A metáfora de que a Internet é um mar na- minho, uma possibilidade. Metáfora e material.
vegável3 foi uma fonte de inquietação durante Do mesmo modo, é preciso expandir o en-
os anos de pesquisa. Eu teria um campo quase tendimento do suicídio dentro de uma etno-
infinito para ancorar meu barco, muitas vezes grafia em ambientes digitais, em metáfora, por-
dependendo da sorte para “pescar” algo em que o que vem em tela são diversas traduções
mar tão revolto e diverso – e navegar. Se foi no sobrepostas com diferentes significantes; e ob-
campo metafórico que eu vi surgir e desenhei jetivamente, porque se torna um meio de co-
a pesquisa, nem tudo se reduziu a metáforas: municação que têm consequências para quem
também foi necessário compreender a Internet lê e digita (ou concretiza mensagens por meio
como coisa (com elementos reais e tangíveis, de imagens e significações ocultas – como um
acessíveis e ao alcance), como produção hu- influenciador4 que postava uma sigla em suas
mana, que funciona por conta de milhares de redes sociais, que só ele sabia o significado,
quilômetros de cabos e parafernálias orbitáveis, toda vez que tinha uma ideação suicida). Tal
enquanto se materializa em pequenos dispo- discussão facilmente resvala em possibilidades
sitivos em nossas mãos: as telas são amigáveis e limitações éticas – que não pretendo abordar
mas na base estão linhas e mais linhas de có- neste artigo; ao invés, proponho uma conversa
digos que criptografam, transmitem, recodifi- fundamentada em preceitos da antropologia di-
cam e transformam todo tipo de informação gital, com descrições da pesquisa de doutorado,
por meio de zeros e uns, portanto binário, por- para, por fim, discutir um pouco sobre cami-
tanto digital. Ou seja, ao mesmo tempo que é nhos e possibilidades para a prevenção do sui-
metáfora, é material. cídio na Internet e nas mídias digitais.
Este modo de compreender a Internet guiou O objetivo do artigo, então, é apresentar uma
toda a pesquisa de doutorado. É preciso enten- perspectiva de como se deu uma pesquisa sobre
der que ninguém se suicida na Internet, mas suicídio na Internet, trazendo alguns casos e
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discussões, e fomentar diálogos sobre possi- aproximadamente, 3,9 bilhões de pessoas. No


bilidades de prevenção do suicídio que deem Brasil, aproximadamente 50,7 milhões de pes-
conta também dos fenômenos que acontecem soas têm acesso à Internet, e o uso é majori-
em meios digitais. Como tratar de prevenção tariamente feito através de aparelhos de celu-
do suicídio quando as pessoas estão fortemente lar (smartphones6) – 58% do total e ainda maior
presentes nas plataformas digitais? para as classes D e E7, 85%, o que reflete as
muitas formas de desigualdades sociais no país.
(TIC Domicílios 2019, 2020).
1. A Era Digital: vidas em De acordo com Miskolci (2017), as tecnolo-
zeros e uns gias digitais, como as conhecemos hoje, tive-
ram gênese no final da Segunda Guerra e seu
uso se intensificou na disputa de poder entre
A Internet, como é concebida, no senso comum, Estados Unidades e a União Soviética, na cor-
parece uma entidade do mundo das ideias, rida em direção ao domínio dos modos de co-
“virtual”, em oposição ao que é real e palpá- municação em rede. Entram nesta equação de
vel. Isso pode se dever ao fato de não vermos gênese, segundo o autor, a criação dos compu-
os sinais de wi-fi transmitidos, ou os mecanis- tadores pessoais pelo setor privado e por em-
mos por trás de uma tela sensível ao toque. O preendedores nos anos 70, e o movimento de
que se esconde nas máquinas e nos aparelhos é privatização da Internet, no meio da década de
uma sequência de números zero e um – todos 1990, principalmente por conta da criação de
os comandos, todas as informações, todas as sistemas de trocas de mensagens entre univer-
funcionalidades; das fotografias publicadas nas sidades norte americanas.
redes sociais às receitas de bolo, tudo é uma Um marco importante, identificado por Van
constante codificação, recodificação e decodi- Dijck (2013), foi a passagem do paradigma da
ficação de sequências dos dígitos zero e um: é web1.0 para a web2.0, mais focada no usuário
por isso que algumas tecnologias são chama- por meio da participação e do compartilha-
das de digitais. E, por mais que pareça sim- mento – e, mais adiante, na criação de con-
ples, todas as operações envolvem linhas com- teúdo. Outro signo essencial deste paradigma é
plexas de programação, inteligência artificial a manipulação das conexões sociais pelos sis-
construída a partir de cálculos avançados e o temas automatizados das redes sociais, com in-
desenvolvimento de tecnologias que permitem teligências artificiais – cujos códigos e algorit-
transmitir e acessar todas essas informações. mos são em parte desconhecidos, necessário
E, além disso, esta troca de sequências nu- dizer, e que decidem os conteúdos que serão
méricas se tornou possível graças a uma mi- visíveis aos seus usuários:
ríade de equipamentos como cabos ultramari-
nos, satélites em órbita, torres de transmissão, de modo a ser capaz de reconhecer o
supercomputadores e servidores gigantescos que as pessoas querem e gostam, o
– como se fossem uma estrutura corpórea e Facebook e outras plataformas monitoram
física da Internet. Tal estrutura é gigantesca, desejos por meio da codificação dos
posto que estamos cada vez mais conectados relacionamentos entre as pessoas, coisas
– segundo a Organização das Nações Unidas e ideias, em algoritmos. O significado de
(ONU), no ano de 2018, chegamos ao marco ‘social’, portanto, parece englobar tanto a
de mais da metade da população mundial5 conexão (humana) quanto a conectividade
com acesso à Internet, o que se traduz em, (automatizada). [...]. A sociabilidade
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codificada pela tecnologia torna as conectadas, mais as pessoas experimentariam


atividades das pessoas em algo formal, uma ausência de atenção, o que resulta em pes-
gerenciável e manipulável, permitindo que soas mais apáticas e menos engajas com o outro.
as plataformas construam a sociabilidade E, mais do que um vazio nas relações, na
nas rotinas cotidianas das pessoas (VAN Internet, para James (2014), há um “ponto cego”
DIJCK, 2013, p.12, tradução nossa). em que a moral (capacidade de empatia) e a
ética (as consequências das ações) ficam sus-
pensas, como no caso de Tyler Clementi, con-
Por trás de todo código escondido das redes tado pela pesquisadora, que se matou depois
sociais, esconde-se um objetivo de maximiza- que seu colega de quarto divulgou um vídeo,
ção dos lucros das empresas que são responsá- gravado sem seu conhecimento, em que ele
veis por elas. Em um sistema em que qualquer aparecia fazendo sexo com outro homem. No
pessoa ou empresa pode comprar espaço nas li- final de 20138, duas adolescentes brasileiras se
nhas dos tempos dos usuários, com marketing mataram após serem vítimas de “pornografia
direto ou indireto por meio dos influenciado- de vingança”9, depois que duas pessoas próxi-
res digitais, a medição do sucesso é feita por mas compartilharam fotos e vídeos em que elas
um mecanismo de reação do usuário (curtidas apareciam em situações sexuais – os dois casos
e “amei”) que, como lembra Van Dijck (idem), foram independentes e sem conexão, e gera-
são mais o resultado de uma computação de- ram muita discussão na época.
rivada de um clique do que uma “virtude atri- A Internet e o digital são ambivalentes e um
buída conscientemente por uma pessoa para espelho das relações humanas. Existe uma ca-
algo ou uma ideia” (p.13). Além disso, mada fina que separa as potencialidades e os
prejuízos individuais e sociais; e, ao mesmo
O que pode significar uma maior tempo que o suicídio não acontece na Internet,
margem de lucro para alguns, pode a Internet não é a causa de eventos suicidas.
não representar a realidade por trás da De modo geral, isso não exclui a responsabili-
tela – que configura um exemplo dessa dade de plataformas e empresas que acumulam
(con)fusão entre a conexão humana e a dados e desenham algoritmos; evidentemente,
conectividade automatizada, uma vez que devemos discutir as consequências reais a que
é impossível quantificar em que medida estamos submetidos quando aceitamos os ter-
essas curtidas e esses seguidores vêm mos de uso10 dos sites e redes sociais. O que
de grupos neutros apenas expostos aos enfatizo aqui é que o foco das discussões deve
algoritmos ou de devotos que realmente estar no fator humano (criação e usuário) des-
estão em busca do consumo de um estilo tas plataformas, para não incorrer no risco
de vida (NAGAFUCHI, 2017, p.27). de um essencialismo infrutífero (como se a
Internet ou digital fossem responsáveis pelas
misérias humanas).
Por trás de um clique, podem existir diver-
sos motivos pessoais, desde uma forma de cha-
mar a atenção de outra pessoa ao gosto mais
genuíno da ideia ou da imagem. Desse modo,
estariam nossas reações mais ligadas à relação
das pessoas com as máquinas do que com ou-
tras pessoas? Para Turkle (2011), quanto mais
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2. Caminhos e Neste campo de estudos, surge a antropo-


experimentações logia digital, que parte da premissa de que o
digital “pode e deve ser uma maneira efetiva
metodológicos de refletir sobre o que significa ser humano”
(Horst & Miller, 2012, p.2). Isso porque o digi-
tal é um espelho das relações humanas, cheio
Pesquisar suicídio na Internet é um tanto de- de contradições e também dialético – que ao
safiador e exige um grande esforço metodo- mesmo tempo potencializa práticas antidemo-
lógico. Em resumo, há muitas informações e cráticas e faz florescer movimentos pautados
muitos caminhos e desenhos de análise são em princípios de direitos humanos, separados
possíveis, há uma quantidade inumerável de por um clique de distância. É global e local ao
dados e informações. Por isso, as metodologias mesmo tempo, uma curtida em qualquer rede
são essenciais para coletar e organizar os dados, social, é um simplificado mecanismo acionado
por exemplo. É necessário, antes de tudo, com- por botões, na mesma medida em que ganha
preender o que é o campo de pesquisa, princi- significados locais, a depender de grupos so-
palmente em investigações que se fundamen- ciais – uma foto curtida no Instagram pode ser
tam inteira ou parcialmente na Internet. Mas, o início de uma paquera, ou apenas uma de-
antes, como organizar tantas informações? No monstração de afeto mecanizada. Os mundos
meu caso, me dividi entre o digital e o ana- digitais são ambíguos e materiais. A Internet
lógico11. Fazer pesquisa na Internet é correr o só é possível por conta de produtos físicos, que
risco de estar on-line o tempo todo, uma vez vão dos aparelhos pessoais, como computado-
que qualquer tipo de aparelho com wi-fi pode res e celulares, a cabos ultramarinos gigan-
se transformar em “campo”. Conto um pouco tes e satélites em órbita. Em suma, o digital
do meu percurso metodológico porque con- é, hoje, parte inerente da cultura humana, ao
sidero essencial construir estratégias próprias passo que “as transformações digitais repre-
para dar conta da quantidade de informações sentam uma mudança tanto em nossa capaci-
e de uma certa ansiedade de pesquisador (um dade cognitiva quanto em nossa essência hu-
pensamento constante era “se eu deixar para mana” (Idem, 2012, p.29).
salvar isso amanhã cedo, vou perder a informa- Em particular, Miller (2011), em uma etno-
ção?”). E o excesso é quase inevitável, uma vez grafia sobre relacionamentos digitais, com-
que estamos diante de um campo gigantesco. preende o Facebook como um meta-amigo,
A minha escolha foi pela antropologia digi- que pode ser o motivo pelo qual dialogamos
tal e por uma etnografia em ambientes digitais, com as ferramentas como se a própria rede
que tentam dar conta da produção de conhe- social fosse um ente ativamente participante
cimento sobre as questões derivadas de socie- das nossas vidas, de modo a nos autorizarmos
dades cada vez mais conectadas (em toda sua a dividir intimidades e transformar o coti-
polissemia) às tecnologias digitais. Para boyd diano em conteúdo; neste “meio”, o Outro é
(2015), dentro destas tecnologias e plataformas, uma figura abstrata consubstanciada em perfis,
estão as mídias sociais, pautadas em dinâmi- grupos, curtidas, reações, memes, emoticons,
cas sociotécnicas que “se abrem enquanto mi- selfies e trocas de mensagens, síncronas ou não.
lhões de pessoas abraçam a variedade de tec- A rede de amizades construída no Facebook
nologias disponíveis em um tempo particular é um trabalho que leva tempo e dedicação
e as usam para colaborar, compartilhar e socia- e, ainda, está submetida a um algoritmo fo-
lizar” (idem, p. 221-2). cado na interação e até mesmo na venda de
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produtos – e, por vezes, na venda de candida- Como o digital poderia influenciar na


tos de eleições –, e que ainda molda relações suicidabilidade das pessoas [...] mas, sim,
sociais fora da Internet. usar como categorias de análise as relações
Alia-se a isso a facilidade de conexão dada intersubjetivas e objetivas entre o digital e
pelo uso de smartphones e da popularização dos as tentativas de suicídio (ou construção de
planos de dados. Assim, além das relações cria- ideações ou acesso à métodos, por exemplo)
das com as redes sociais, também podemos dos interlocutores. Muitas pessoas usam as
pensar nas relações dadas com os aparelhos, mídias digitais das formas mais corriqueiras
como extensão do próprio corpo (Lins, 2020). no seu dia a dia, buscam receitas, fotos
Ubíquo, o celular permite o registro em tempo específicas, atualizam as redes sociais,
real de situações corriqueiras e cotidianas. Não trocam e-mails e emoticons[hoje em dia eu
seria diferente com relação ao suicídio e com diria memes], mandam piadas em grupos
a quebra da dicotomia público/privado12. Uma de aplicativos de mensagens, ouvem música,
mensagem de despedida, ou até mesmo a trans- assistem filmes e vídeos diversos [...]; e,
missão de uma tentativa de suicídio, própria ou também: postam mensagens de despedida
de outro, fica ao alcance das mãos. no Facebook, compram “kits suicídio” [...] na
Chamo, aqui, de caminhos metodológicos deep web, [...] criam fóruns para compartilhar
porque considero uma etnografia em ambien- cartas de despedida hipotéticas, e tantas
tes digitais ultrapassa os limites do que chama- outras coisas mais. (Nagafuchi, 2017, p.30-1).
mos de “método qualitativo/quantitativo”, isso
porque ela não é somente o meio ou a lente
que se usa para se analisar dados e informações. O foco da pesquisa era o termo “suicídio”,
Não é também somente um método analítico, por isso, tudo o que tinha a ver com o tema
porque o conhecimento é construído a partir poderia ser considerado fonte de informações.
da relação do pesquisador com os interlocuto- A pesquisa se baseou em redes sociais (prio-
res, mas também a partir de um complexo flu- ritariamente o Facebook, mas também encon-
xograma que liga o pesquisador, os interlocuto- trei informações no Twitter, no Instagram, no
res e o digital – nem sempre em linhas (setas) Reddit e no Tumblr), em aplicativos diversos de
retas. Há uma dimensão de afetação, de doa- trocas de mensagens, fóruns variados, notícias,
ção, de feitiço – em referência à Favret-Saada um formulário respondido por pouco mais de
(2005[1990]). É preciso abrir a própria intimi- 1.100 pessoas e entrevistas em profundidade13.
dade, negociar fronteiras móveis entre con-
fiança, segredos e intimidades (Pelúcio, 2016).
É desafiador, seja porque o digital tem mudan- 3. A pesquisa nas redes:
ças constantes, ou porque se torna necessário buscando e encontrando
aprender, construir subjetividades, configurar
olhares plurais e ambíguos (Nagafuchi, 2017). O informações
digital não é uma entidade externa que deter-
mina os movimentos da sociedade, pois as tec-
nologias são incorporações (como extensões do A ferramenta Google Trends permite pesquisar a
corpo) de relações sociais que abrem possibili- tendência de busca de termos específicos e pos-
dades de ação e expressão culturais (Ito et. al., sui muitas ferramentas interativas. Por exem-
2013). Assim, pesquisar o suicídio a partir desta plo, sobre o termo “suicídio”, os “picos” mais
abordagem não seria apenas compreender comuns estão relacionados à casos de pessoas
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famosas que tiraram a própria vida, como o No início dos anos 1990, um pequeno grupo
caso do ator brasileiro Flavio Migliaccio14. Mas, criou um fórum on-line chamado Alt-Holiday
se tentarmos especializar a pesquisa, com a Suicide (em inglês, a partir do questionamento
busca de termos, por exemplo, podemos en- sobre o motivo de haver muitos suicídios em
contrar algumas tendências: ao buscar “como datas comemorativas e feriados, como o Natal e
cometer suicídio”, os termos relacionados são, o ano novo. O “alt” porque seria um lugar alter-
em ordem de importância, “veneno”, “senti- nativo para discutir o suicídio. Daqui em diante,
mento”, “eutanásia”, “pessoa” e “filosofia”, e no me referirei ao fórum pela sigla ASH). Logo, o
mapa do Brasil da própria ferramenta, o estado grupo cresceu e se tornou um dos maiores fó-
onde mais se pesquisou o termo no Google é o runs on-line sobre suicídio. O fórum se man-
Rio Grande do Sul, que tem uma das maiores teve ativo por muitos anos, porém, agora só é
taxas de suicídio no país, e onde muitos dos possível acessar seu arquivo por meio de login e
casos se dão nas áreas rurais com plantação de senha18. À época, não me detive ao fórum por-
fumo. Um dos termos associados à busca de que é uma quantidade gigantesca de informa-
“como se matar”, é “vingança”. ções que merece uma pesquisa própria. Porém,
Se buscarmos o termo suicídio no Google, para entender melhor como o suicídio surge na
temos um retorno de aproximadamente 9 Internet, foi necessário estudar a sua história e
milhões e meio resultados, o primeiro deles algumas iniciativas que tiveram origem no ASH.
é uma caixa com o contato para o Centro de A Igreja da Eutanásia não foi uma igreja, no
Valorização da Vida (CVV), uma das principais sentido estrito, sequer um tipo de culto. Sua
organizações promotoras de prevenção do sui- existência se resumia a um pequeno grupo de
cídio no país, com o título “Encontre ajuda”, pessoas com ideologias muito próprias sobre
onde se divulgam o número de telefone e os o mundo e que fazia pequenos atos de protes-
horários de funcionamento. Por vezes, a busca tos, mas com grande atividade na Internet. Sua
vem associada com outros termos, como “nó” líder, uma mulher trans chamada Chris Korda,
ou “veneno”, mas informações precisas sobre fazia parte do ASH e tirou algumas ideias do
métodos e ferramentas não são tão facilmente seu grupo do antigo fórum on-line. O principal
encontradas, em parte por conta de esforço de lema do grupo era “Salve o planeta, se mate”19,
plataformas digitais para derrubar postagens na medida em que, acreditavam, um suicídio
que possam conter tais informações. coletivo de grande escala seria a única forma
Durante a pesquisa de doutorado, observei al- de salvar o planeta de um desastre ambiental
guns fóruns na deep web15 mas eles não tinham – uma vez que o ser humano seria o principal
muitas informações precisas ou mesmo intera- motor de um fim catastrófico. Os pilares mo-
ção entre os usuários. No entanto, se dava espe- rais do grupo se baseavam em suicídio, aborto,
cial atenção ao compartilhamento de um ma- canibalismo e sodomia20.
nual construído pela “Igreja da Eutanásia”16, com A igreja da eutanásia21 foi responsável por
diversas informações sobre aquele que seria formular, com base em muitas informações
considerado o melhor método de suicídio para trocadas nos fóruns do ASH, um documento
quem o criou; e em acordo com uma axiologia que continha, segundo seus autores, o que seria
muito particular17. Este fórum, especificamente, a melhor forma de suicídio, com base em uma
era um braço de outro localizado na rede Reddit, complexa análise das axiologias que envolviam
mas que nos últimos anos migrou para uma pá- os métodos mais conhecidos. Inicialmente,
gina própria, provavelmente por conta da sua o documento era facilmente encontrado no
natureza. Conto parte de sua história a seguir. site da “igreja”, porém, após uma pessoa que
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se matou ter sido encontrada com este docu- O fórum tinha uma atividade intensa e bas-
mento impresso, ao seu lado, ele foi retirado tante complexa. Era comum encontrar pes-
da página. Além de itens necessários e onde soas divulgando alguns detalhes de suas vidas
comprá-los, é possível encontrar fórmulas para que as faziam pensar em suicídio, e os moti-
calcular quantidades (não entrarei em detalhes vos eram os mais variados possíveis. Muitas
sobre o método) e o tempo que levará para que informações técnicas eram desconsideras de
a morte aconteça. acordo com as crenças pessoas – por exemplo,
Apesar de ser um lugar digital em que qual- uma pessoa se dedicou, em várias mensagens
quer pessoa com acesso à Internet consegue e respostas, a “desmentir” a física de corpos
chegar, a partir do TOR, os fóruns na Internet em queda, criando uma teoria própria sobre a
não indexada assumem um espectro de não-lu- morte por precipitação, uma vez que seria seu
gar22. São públicos, mas demandam alguns co- método de escolha. Estas discussões tomavam
nhecimentos e informações específicos e certas proporções gigantescas.
habilidades. Assim, o acesso é ínfimo, quando Elizabeth 24, mulher que estava na faixa dos
comparado à Internet da “superfície”. De todo 40 anos, casada há mais de 10, descobriu que
modo, por ser acessível, há uma necessidade de possui uma doença incurável e chegou a pen-
entender o que se encontra por lá, em se tra- sar em buscar o suicídio assistido25. Porém, ela
tando do suicídio. não queria mais esperar tanto tempo e elen-
Na “superfície”, acompanhei alguns fóruns cou dois motivos que a levaram a tomar a de-
hospedados no Reddit, inclusive um que foi cisão de cometer suicídio em breve: a doença
fundado por antigos membros do ASH, que incurável que, além do sofrimento causado, a
aqui vou chamar de S. S possuía aproximada- debilitou e transformou seu corpo; e o desin-
mente 7 mil membros23, seu principal obje- teresse do marido, que a traía com outra mu-
tivo era promover discussões “casuais” sobre a lher. Ela estava ressentida. Quando descobriu
perspectiva cognitiva de pessoas que considera- a doença, sugeriu que eles se separassem por-
vam o suicídio como possibilidade; ou seja, em que ele não mereceria passar por todo o so-
suma, a ideia era criar um ambiente para di- frimento junto dela, mas ele declinou e disse
versas discussões sobre o tema sem o que eles que estaria a seu lado não importa o que acon-
considerariam uma moral salvacionista. Para tecesse. Ela queria se vingar.
os membros, o fórum não era pró-suicídio, O plano já estava traçado: aos amigos, ela es-
e sim pró-escolha, no sentido de que a esco- creveu um e-mail de agradecimento e suporte,
lha pertencia à esfera íntima e pessoal de cada e ao esposo e sua família, outro e-mail contando
um, sendo proibidas intervenções de qualquer sobre o caso extraconjugal dele e que o ato fora
forma que pudessem “prejudicar” a escolha. motivado por um sentimento de vingança. O
Para isso, o fórum contava com diversos media- e-mail era programado. Caso sua tentativa desse
dores que podiam apagar comentários ou pos- errado, bastaria cancelar o envio. Elizabeth pos-
tagens completas. Além desta proibição, tam- tou sua história no fórum S porque tinha dú-
bém não se podia discutir métodos, divulgar vida se as 8 pílulas que ela tinha, de um medi-
informações pessoas, imagens e vídeos de atos camento específico, e que conseguiu de forma
suicidas e, por fim, qualquer tipo de dado que ilegal, seriam suficientes para morrer. Ela tinha
pudesse permitir a identificação, como fotos, uma pequena dose de outro medicamento, por
telefones, endereços de e-mail, redes sociais isso perguntou aos outros membros se seria
etc.; propaganda de qualquer tipo também en- prudente misturar tudo. A recomendação dos
trava no rol das proibições. usuários que responderam foi que o melhor
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era não misturar e tomar somente as 8 pílulas. 4. A rede social Facebook


Ela contra-argumentou que talvez não fossem e as repercussões de um
suficientes porque ela teria engordado muito
por conta da doença. Outros membros tenta- caso de suicídio
ram demovê-la de sua intenção suicida, que o
melhor seria esperar e tentar suicídio assistido.
Outros desejaram um fim tranquilo, como um Em fevereiro de 2016, um caso de suicídio foi
dos usuários disse: bon voyage. bastante divulgado no Facebook. Tratava-se de
Esta é uma das diversas postagens do fórum uma jovem mulher trans, aqui chamada de
S. São diversas histórias pessoais neste e em Alexa26, de pouco mais de 20 anos, que publi-
outros fóruns, há ainda diversas informações cou sua mensagem de despedida e comparti-
disponíveis, como os nomes dos medicamen- lhou sua mensagem em postagem aberta. Na
tos e debates sobre as quantidades consideradas mensagem, ela dizia:
letais de acordo com o peso corporal. É comum
que usuários discutam sobre determinados me- Às vezes, encarar nossas mentiras é mais
dicamentos, e como consegui-los, na totalidade pesado que encarar a realidade, eu não
dos casos de forma ilegal. Existe uma espécie consigo mais encarar essa realidade
de moral que circunda as discussões, principal- fantástica que eu criei. Covardia ou
mente no que diz respeito ao sofrimento que coragem? Demorei tempo para acumular
determinados métodos podem causar, por isso a coragem, mas ela veio quando não
a maior parte das discussões gira em torno da conseguia mais suportar o dia a dia (queria
farmacologia de determinadas drogas. Apesar continuar, mas já não consigo respirar
de as informações serem difusas, e por vezes direito). Como desistir de quem você
incorretas, estes blocos de discussão podem é? Isso não significa a própria morte? E
funcionar como uma enciclopédia para quem quantas vezes nós morremos esse mês?
pesquisa métodos e formas de se matar. Se eu tivesse mais vidas, daria todas elas
Estes exemplos mostram como o suicídio é um por vocês. Queria só ter metade da força
fenômeno complexo e multifatorial, decidida- de vocês, queria só ser metade do que
mente cultural e comunicacional, que demanda vocês são. A vida tem seu sarcasmo; ela
camadas de análise multidisciplinares, ainda é bonita, e isso é o mais cruel, não, nada
mais se tratando dos caminhos trilhados em nunca é o fim. Hasta siempre! Amo vocês.
sites e redes sociais. Por isso, é imprescindível
que o conceito do suicídio não esteja engessado
em definições de senso comum ou puramente Em um comentário, logo após a postagem
medicalizantes. Defendo, mais adiante, como o ela deixou registrado: “última coisa, não foram
aporte das ciências sociais permite que o suicí- as drogas, foi a transfobia. Dika”. O caso gerou
dio seja compreendido como atributo humano, grande comoção, e uma vez que a mensagem
portanto histórico e contextual, e que isso deve estava pública, na rede social, ela foi bastante
ser levado em consideração no desenho e na repostada por diversas pessoas, indignadas e
criação de formas de prevenção, na atualidade. emocionadas com o caso de suicídio que tinha
acabado de ocorrer. Uma ativista da causa trans,
que chamo de Anna, comentou sobre a amizade
que tinha com Alexa e demonstrou consterna-
ção. Em uma última consulta, a mensagem tinha
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tido 700 curtidas (ainda não havia as emoções na receber algumas mensagens que reclama-
rede social) e foi compartilhada por mais de 60 vam que as histórias geravam forte gatilho
pessoas e perfis. Muitas pessoas deixaram men- emocional e, com o passar dos dias, foi cada
sagens direcionadas à Alexa, como “Você nos vez mais raro encontrar posts com a hashtag
ensinou muitas coisas lindas, te amamos para #MinhaPrimeiraTentativa usadas com este ob-
sempre!”, que teve 41 curtidas, e tantas outras. jetivo27. Sobre isso escrevi:
No dia seguinte, outra ativista trans, aqui cha-
mada de Julieta, postou a seguinte mensagem: Com relação à comunidade e às
transformações que a rede social [Facebook]
Não foi apenas uma vez que tentei me nos traz, podemos observar o seguinte:
matar, foram muitas. A primeira delas ao mesmo tempo em que a hashtag
eu tinha apenas 16 anos, fui socorrida #MinhaPrimeiraTentativa tinha um viés
pela minha mãe, que chegava do trabalho. político – no que tange a importância
Naquele tempo, eu não sabia que podia ser de se discutir a questão do suicídio da
trans, eu era apenas um menino gay que população LGBTQIA+, ela teve reações
não me encontrava em lugar nenhum. A positivas (as pessoas que postaram [sob
solidão, a rejeição, a negação, me levaram a hashtag] e negativas (as pessoas que
à tentativa de suicídio. A última vez foi no ficaram incomodadas e pediram para ela
ano passado [em 2015], fui socorrida, na rua, ser extinta). Isso também vai ao encontro
às 3 da manhã por um amigo. O psiquiatra das normalidades e normatividades; a rede
já quis me internar. (...). O suicídio pode social enquanto comunidade funciona como
ser evitado. É preciso conscientizar a todos um filtro do que pode ou não ser postado –
sobre o risco do suicídio que pessoas trans e isso sem falar das normas de utilização do
e LGBTs enfrentam. Às vezes, parece ser próprio site [...]. (NAGAFUCHI, 2017, p.64).
melhor não estar no mundo. Hoje, Alexa
se foi, se fizermos nada, muitas mais
de nós continuaremos a ir embora. Esta é uma das formas como o suicídio se faz
presente no Facebook, são diversas mensagens
de despedida deixadas na rede social, muita
O texto de Julieta tinha aproximadamente delas públicas, e muitas são compartilhadas, in-
300 curtidas e, além dela, deixou uma hashtag clusive em grupos específicos, como o “Profiles
com o nome #MinhaPrimeiraTentativa, su- de gente morta”, que é um grupo fechado e
gerindo que as pessoas LGBTQIA+ contassem tem mais de 161 mil membros28. Os participan-
sobre as suas primeiras tentativas de suicídio tes, no grupo, compartilham perfis do Facebook
e marcassem com a hashtag. Uma hashtag, no de pessoas que já faleceram, como regra, pede-
fundo, é um agregador de informações, onde -se que na descrição se aponte a causa e algu-
um usuário pode identificar suas postagens e mas informações extras; nos casos de suicídio,
procurar postagens parecidas. O texto e a su- muitas vezes isso envolve colocar as mensa-
gestão geraram movimento no Facebook, na gens de despedida (às vezes não são públicas,
época, muitas pessoas contaram suas experiên- mas os usuários colocam “prints” de tela) e, até
cias e muitas mensagens ficaram públicas e mesmo, método utilizado. Alguns casos geram
eram facilmente encontradas pela ferramenta muita comoção, e é muito comum, em casos
de busca. Com grande alcance da postagem, de suicídio, outros membros do grupo respon-
no dia seguinte, Julieta decidiu apagá-lo após derem que também têm intenção de se matar.
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Em um evento acadêmico sobre suicídio, co- governos municipais, estaduais e federais são
nheci uma mulher que me contou que, na falta inexistentes. Há raros projetos de leis esta-
de ações efetivas das plataformas para tentar duais, mas eles pouco avançam nas casas le-
minimizar as exposições de ideação suicida nos gislativas. Embora as populações indígenas,
grupos, ela mesma fazia uma espécie de pre- as pessoas negras e as LGBTQIA+ já tenham
venção, enviando mensagens na ferramenta de estado no radar do Governo Federal e da
“chat” para as pessoas que tivessem comentário Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)
com ideação, indicando o número de telefone no passado recente30, o trabalho foi suspenso
do CVV, e se dizendo disponível para conversar. em 2018. No momento, a pauta do suicí-
Ela disse que, quando podia, dedicava uma ou dio e da automutilação faz parte das ações
mais horas do dia neste trabalho, inclusive no do Ministério da Mulher, da Família e dos
grupo mencionado anteriormente. Ela também Direitos Humanos31. Porém, não há um plano
disse que conhecia outras pessoas que faziam o concreto, nacional, que vise à prevenção do
mesmo. Este trabalho individual e pouco co- suicídio de forma evidente e objetiva32. Por
nhecido é talvez uma das únicas ações de pre- enquanto, este trabalho está delegado ao CVV
venção que ocorrem dentro de grupos fechados e outras organizações não governamentais.
das redes sociais. Dito isso, quero expor o que entendo por
As plataformas têm políticas um tanto obs- prevenção e como alguns planos podem ser de-
curas. O próprio Facebook tem uma central de senhados com auxílio e responsabilização das
ajuda com informações sobre o que fazer nes- plataformas digitais. Uma prevenção do suicí-
tes casos, mas exige um certo esforço para aces- dio não é somente o ato de evitar que alguém
sar. No Twitter, é até mesmo difícil denunciar se mate. Há diversos estudos e protocolos que
algumas postagens, por falta de categoria den- podem ser seguidos em momentos de crise ou
tro da ferramenta própria para isso29. As plata- em situações em que o tempo não joga con-
formas, em sua maioria, dizem que postagens tra. Do mesmo modo, a prevenção não deve
e mensagens são analisadas após um pedido de ser centralizada ou localizada, ela deve orien-
denúncia, embora não deixem claro quem ou tar protocolos específicos de manejo em saúde
quê faz este trabalho (algumas análises são au- mental, bem como se apoiar em uma Rede
tomatizadas por inteligências artificiais, outras de Atenção Psicossocial fortalecida e bem es-
realizadas de forma precária por empresas ter- tabelecida; mas também deve ser global e de
ceirizadas localizadas em países como a Índia longa duração. Dentro do rol de políticas pú-
ou Filipinas, por pessoas expostas continua- blicas para prevenção do suicídio de pessoas
mente à imagens de violência e de abuso, tema LGBTQIA+ também devem ser consideradas,
de alguns documentários). por exemplo, políticas de proteção a esta po-
pulação, de acesso à saúde, de empregabilidade,
pautados na inclusão e na diversidade etc. O
5. Internet e suicídio: o mesmo deve ser levado em consideração em
desafio da prevenção respeito aos outros grupos identificados den-
tro dos marcadores sociais da diferença, já que
as taxas de suicídio e de tentativa tendem a ser
A prevenção do suicídio, per se, já é um grande maiores para eles.
desafio. Quando ainda falamos de marcado- O Brasil tem como guias a Agenda de Ações
res sociais da diferença, podemos dizer que Estratégicas para a Vigilância e Prevenção
programas ou políticas públicas por parte dos do Suicídio e Promoção da Saúde e a Lei
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13.819/2019, denominada Política Nacional de suicídio, ou mesmo no que diz respeito á expo-
Prevenção da Automutilação e do Suicídio, sição à violência de toda sorte. É necessário que
de 2019. Um dos objetivos das ações estraté- mais pesquisas sejam feitas e publicadas sobre o
gicas, por exemplo, era diminuir as taxas de tema, principalmente porque é preciso plurali-
suicídio em 10% até 2020, contudo ocorreu zar o diálogo, e.g., seria interessante entender o
o contrário. E, embora a lei apresente alguns que áreas como o Direito (inclusive agora que
avanços, ainda possui pontos problemáticos33 existe uma Lei Geral de Proteção de Dados) tem
(Kovács, 2019). A única menção à Internet no a dizer, bem como a Educação, a Comunicação,
projeto de lei é o artigo quinto: “o poder pú- as Ciências Sociais, porque uma vez que o suicí-
blico poderá celebrar parcerias com empresas dio é um fenômeno multifatorial e multideter-
provedoras de conteúdo digital, mecanismos minado, nada mais justo que os conhecimentos
de pesquisa de Internet, gerenciadores de mí- construídos sejam multidisciplinares.
dias sociais, entre outros, para a divulgação
dos serviços de atendimento a pessoas em so-
frimento psíquico” (Brasil, 2019). 6. Considerações para um
Ainda há um longo caminho quando se remate
pensa em políticas públicas de prevenção do
suicídio. Contudo, há iniciativas interessan-
tes organizados pela sociedade civil, como as De modo resumido, em minhas pesquisas,
cartilhas organizadas pelo Instituto Vita Alere fundamentadas em uma antropologia crítica
em parceria com o Google, a Ong Safernet e a da saúde, entendo que o suicídio, enquanto
Unicef34. Além disso, algumas plataformas utili- evento marcado no espaço e no tempo, é um
zam Inteligência Artificial para tentar prevenir dos resultados possíveis dos sofrimentos so-
suicídio; o Facebook, por exemplo, utiliza uma ciais e das violências (Nagafuchi, 2019), dentro
ferramenta de machine learning35 para identificar de uma interpretação das biopolíticas contem-
postagens que denotem situações de risco – no porâneas das subjetividades e formas de vida
entanto, não está evidente se a ferramenta fun- (Biehl, 2008; Biehl & Locke, 2017; Das, 2007;
ciona em outras línguas que não o inglês, ou se Fassin, 2016, 2018; Kleinman, Das e Lock, 1997)
identifica somente postagens públicas. Em al- ou na ontologia do sujeito que é determinado
guns grupos que acompanho desde o doutorado, pelas forças que decidem quais vidas podem
é muito comum encontrar comentários com continuar e quais vidas devem ser extintas
ideações explícitas, que geram uma reação em (Agamben, 2012; Butler, 2015). Este resultado
cadeia incontrolável, com outras pessoas tam- é como uma transformação social, um devir-
bém publicando suas intenções suicidas, rea- -morte (um devir extremo) ou devir-nulo, im-
ções negativas – como ataques pessoais –, men- plicado pela ausência completa de horizonte,
sagens de apoio, conversas paralelas e situações sempre como último devir possível, ação der-
de paquera, tudo ao mesmo tempo na tela36. radeira do sujeito. É nesse sentido que o suicí-
Por isso, é imprescindível que a sociedade civil dio comunica algo, contrastando com a morte
esteja em constante diálogo com os responsáveis invisível como paradigma nas sociedades oci-
pelas plataformas digitais para pensar estratégias dentais contemporâneas (mais ainda com o ad-
de prevenção no digital. Inclusive, as platafor- vento do digital) com a transgressão das regras
mas, por serem corresponsáveis pelos conteúdos, da dicotomia público/privado (Marquetti, 2014).
devem ser mais transparentes em relação às me- Por fim, o suicídio é um desafio porque contra-
didas e aos protocolos adotados na prevenção do diz com o entendimento comum da natureza
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humana (biologia) e da sua cultura (biografia), bloqueia discussões e implica em uma margi-
uma vez que é a negação das duas coisas ao nalização de abordagens centradas em funda-
mesmo tempo. Além disso, o ato é destrutivo mentações teóricas diversas. Acredito, portanto,
por ser uma interrupção abrupta, mas também que o debate sobre o suicídio não deve ser feito
constitutivo, porque exige que elaboremos uma somente a partir das experiências pessoais;
compreensão de mundo e da experiência hu- deve passar por uma crítica ao modus operandi
mana (Staples & Widger, 2012). da racionalização da construção do pensamento
As subjetividades marcam as experiências científico e da produção de conhecimento,
das pessoas no cotidiano. São nas modulações como uma abertura às epistemologias multi-
do cotidiano que as pessoas vão encontrando disciplinares (Nagafuchi, 2020), ainda mais se
formas de escape para continuarem vivas em tratando da cada vez mais massiva presença das
contextos dos sofrimentos diversos, como mi- pessoas nas plataformas digitais.
séria, guerra, doenças, violência, e assim por Uma das conclusões que cheguei na pesquisa
diante. Para Biehl e Locke (2018), estes movi- de doutorado foi que as pessoas têm necessi-
mentos são chamados de plasticidade, como dade de comunicar seus anseios, sofrimentos e
um modo de garantir uma fluidez para as for- as suas tentativas de suicídio sem incorrer no
mas de vida nos contextos sociais em que os risco de serem julgadas de forma precipitada,
sujeitos se encontram; e, além disso, a plastici- uma vez que o suicídio é cercado de sensos
dade se dá por meio de transformações sociais comuns que só fazem aumentar o sofrimento.
porque os sujeitos são/estão sempre na qua- Pensando nas plataformas como uma espécie
lidade de incompletos, assim, sempre é uma de meta-amigo, ao alcance das mãos, as pessoas
ação em direção aos devires. (Nagafuchi, 2019). podem ter mais liberdade para narrarem suas
É dentro deste contexto teórico que com- histórias de vida. O que isso diz sobre o silên-
preendo o suicídio na Internet como um con- cio e a solidão? É como se a Internet fosse um
junto de tipologias e arquétipos discursivos, meio de amplificar vozes, muitas vezes o único
fluidos e não fechados em categorias distintas, meio, e tantas vezes como um vácuo de ecos –
em constante diálogo uma com as outras, mar- um não-lugar que carregamos conosco.
cados pelo espaço e pelo tempo37. Ou seja, ca- É por isso que a prevenção do suicídio, em
racterísticas atribuídas que são ambivalentes. sentido amplo, não pode ser resumida em
Por isso, no florescer do século XXI, com o sur- protocolos de atendimento nem em ações in-
gimento da Internet, o suicídio ganhou ainda dividuais nas redes sociais. É preciso que as
novas roupagens e possibilidades de interpreta- plataformas compreendam seus papéis e res-
ção, o que cria, de certa feita, dificuldades para ponsabilidades e abram um diálogo multidis-
se pensar a prevenção do suicídio na atualidade. ciplinar com especialistas no tema. Dentre os
A partir deste paradigma, é preciso questio- desafios impostos às plataformas, estão, por
nar alguns efeitos do suicídio, como a necessi- exemplo: divulgação de informações que ensi-
dade de reduzi-lo a um caráter biomédico do nam métodos de suicídio; proteção dos dados
salvacionismo e das politicas públicas, além dos e das informações das pessoas que têm os per-
protocolos de atendimento para pessoas que fis divulgados após a morte; produção massiva
tentaram tirar a própria vida, com o risco de de conteúdos sem qualquer tipo de mediação;
criação e manutenção de aparatos psiquiátricos conscientização dos usuários, oferecendo in-
medicalizantes, inscritos nas letras dos eventos formações de forma facilmente acessível sobre
suicidas e dos traumas como únicas possibi- ajuda em momentos de crise; construção de
lidades de explicação do suicídio, porque isso um diálogo com os poderes públicos para a
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implementação de políticas públicas de pre-


venção e de posvenção; entre tantos outros.
Os desafios são grandes e diversos e este é só o
começo de um desenho para começar a respon-
dê-los, uma vez que a discussão deve envolver
especialistas de diversas áreas e deve ter uma
ativa participação da sociedade civil (aqui en-
tendida como o conjunto de associações, orga-
nizações, pesquisadores, usuários, analistas das
plataformas, designers, educadores, políticos e
tantos mais). É necessário planejar o começo do
trabalho, articular informações e trabalhar em
modos efetivos de prevenção do suicídio que
levem em conta a realidade e a materialidade
humana do digital. Ou seja, compreender as
metáforas e planejar ações concretas.
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7 Estas categorias são baseadas no Critério


Notas finais Brasil, que leva em consideração a renda e os
bens disponíveis no domicílio do entrevistado,
como quantidade de aparelhos de televisão,
máquina de lavar roupa, veículos etc. Portanto,
1 Chamo de digital toda interface tecno- as classes D e E são as que menos pontuam
lógica que não é analógica, baseada na troca de neste critério.
informações e dados escritos por meio de se-
quências dos dígitos zero e um. 8 https://revistaforum.com.br/noticias/revenge-
-porn-divulgacao-de-fotos-intimas-culmina-com-suici-
2 “Um réquiem feito de silêncios: suicí- dio-de-duas-jovens/, acesso em 05/10/2019.
dio, gênero e sexualidade na era digital”, na
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de 9 Do inglês revenge porn, grosso modo, é
São Paulo (Nagafuchi, 2017). o ato de expor intimidade alheia por meio de
fotos ou vídeos na Internet. No Brasil, suas
3 Esta metáfora é geralmente usada em consequências e penalidades estão previstas
modelos explicativos para a deep web: bar- no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) e
cos pesqueiros são ferramentas de busca e a na Lei 12.737/2012, apelidada de “Lei Carolina
Internet não indexada seria a parte não alcan- Dickmann”, porque foi criada depois que a
çada pelos barcos, da superfície ao abismo. atriz teve o aparelho celular invadido e fotos
íntimas divulgadas.
4 Entendo como influenciadores digitais
todas as pessoas que têm muitos seguidores nas 10 Que, muitas vezes, não têm garantias mí-
redes sociais, independente se as informações nimas para os direitos dos usuários (Carneiro,
compartilhadas possuem raiz publicitária ou não. 2020).

5 https://news.un.org/en/story/2018/12/1027991 , 11 Por exemplo, a minha organização para


acesso em 05/10/2019. esta pesquisa: em um momento eu tinha uma
série de prints feitos pelo celular e sites sal-
6 Os smartphones são aparelhos bastante vos em PDF no computador, todos salvos em
difundidos, principal meio de acesso à Internet tempo real em uma “nuvem”. Além de uma
fora dos centros urbanos (TIC Domicílios 2019, classificação inicial organizada em diferentes
2020). São aparelhos telefônicos usados para páginas, havia também os comentários que eu
diversos fins, além das ligações usuais. Tal uso fazia nos arquivos, eles constituíam uma espé-
é baseado em uma complexa ecologia de apli- cie de “caderno de campo”, com impressões,
cativos com distintos fins, em câmeras dian- sugestões de escrita e de análise e o que mais
teira e traseira que filmam e fotografam e, evi- coubesse nas caixas de comentário. Decidi,
dentemente, no acesso à Internet. então, que havia uma quantidade imensa de
informações e que eu precisava fazer uma se-
leção do que acreditava ter mais aderência à
pesquisa. Imprimi tudo, separei em sacos plás-
ticos de A4 e organizei em pastas de papel. A
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interação “analógica”, no fim das contas, foi es- 18 Quando fazia a pesquisa de doutorado,
sencial e ajudou a construir as histórias de vida o site que mantinha o arquivo do fórum tinha
e os casos que incluí na tese. acesso aberto.

12 Há um interessante efeito disso ga- 19 Cabe lembrar que o ato de induzir, insti-
nhando força em plataformas de conteúdo de gar ou auxiliar materialmente alguém à tenta-
vídeo como o YouTube, diversas pessoas ao tivas de suicídio ou automutilação é crime pre-
redor do mundo monetizam vídeos em que visto no Código Penal brasileiro. E se o crime
mostram suas rotinas diárias de trabalho e es- for cometido pela Internet, as penas ainda são
tudo. Este tipo de vídeo ganhou ainda mais aumentadas, aumentando ainda mais se a pes-
força durante a pandemia, com milhões de pes- soa for líder ou coordenador de grupo (as termi-
soas isoladas em suas casas. nologias em itálico são utilizadas na legislação).

13 Os caminhos metodológicos são des- 20 De acordo com o site antigo, eles não in-
critos de forma pormenorizada em Nagafuchi centivavam o suicídio, mas martirizavam aque-
(2017). Acho interessante dizer que o smart- les que se tornavam membros e se matassem
phone também foi bastante utilizado, se tor- em seguida. Pregavam a favor do aborto, por-
nando uma espécie de “campo móvel”. que era proibido gerar vida humana, o caniba-
lismo como única forma de consumir proteína
14 O ator, que morreu em maio de 2020, animal, e a sodomia porque só era permitido
teve a carta de despedida amplamente divul- ato sexual não conceptivo.
gada na Internet. A utilização da ferramenta
Google Trends e as buscas citadas na sequência 21 Mais informações, cf. Nagafuchi (2017).
do texto se deram em fevereiro de 2021.
22 Termo cunhado por Augé (2012) como
15 Existem muitas definições. No meu caso, espaço de isolamento, solidão e sem identidade,
considero todas as páginas não indexadas aos mesmo que repleto de pessoas. Recentemente,
buscadores comuns como deep web. Em parti- em uma entrevista, ele afirmou que, por conta
cular, na pesquisa, observei alguns fóruns es- das tecnologias, estamos em um não-lugar
pecíficos sobre suicídio, com extensão “.onion”, permanente – já que estes dispositivos “estão
que são acessados através de um navegador permanentemente nos colocando em um não
chamado TOR. lugar. Nós carregamos os não lugares [...] co-
nosco”. https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/31/
16 Do inglês “Church of Euthanasia”, hoje tecnologia/1548961654_584973.html, acessado em
em dia, o site foca mais na divulgação da pro- 06/06/2021.
dução musical de sua fundadora.
23 Hoje, o fórum tem hospedagem própria,
17 O manual é construído em torno de uma possui quase 17 mil membros, 58 mil threads e
moralidade em que a tentativa de suicídio não mais de um milhão de comentários.
deve colocar a vida de outras pessoas em risco.
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PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS

24 Na pesquisa de doutorado, além de parte da Agenda de Ações Estratégicas para a


pseudônimos, adotei a estratégia de alterar in- Vigilância e Prevenção do Suicídio e Promoção
formações e trocar dados pessoais entre as his- da Saúde: 2017 a 2020 (Brasil, 2017).
tórias, para preservar o anonimato das pessoas.
31 É preciso dizer que o foco excessivo em
25 Diferente da eutanásia, em que o proce- “políticas familiares” talvez esconda motivações
dimento é realizado por uma equipe médica, o enviesadas sobre os entendimentos que os for-
suicídio assistido consiste na prescrição e in- mulares das políticas têm sobre o suicídio.
gestão de medicamentos que causam a morte
de forma rápida e indolor, neste caso, a equipe 32 Para uma análise crítica sobre políticas
médica acompanha e monitora. O ato é permi- públicas brasileiras atuais sobre a prevenção
tido em alguns países, como Espanha, Bélgica do suicídio, cf. Kóvacs (2019). A autora enfatiza,
e Holanda, e em alguns estados nos EUA. por exemplo, a ausência de elementos que tam-
bém dariam conta de uma posvenção, um cui-
26 Mantive os pseudônimos utilizados na dado direcionado para depois de uma tentativa,
pesquisa de doutorado. seja de quem tentou ou de quem foi atingido
por um suicídio.
27 Sobre o caso, cf. Nagafuchi e Adorno
(2016) e Nagafuchi (2017). 33 Um destes pontos é a falta de qualifi-
cação para a automutilação, que nem sempre
28 Para uma pesquisa sobre o grupo, inclu- tem uma intencionalidade suicida, o que leva à
sive sobre sua história, que começou no Orkut, interpretações mais subjetivas. Este ponto tam-
cf. Martins (2017). bém surge na alteração do crime de indução ao
suicídio no Código Penal, feita em 2019, que
29 Como foi o caso de um tweet de um po- pune igualmente indução ou auxílio ao suicí-
lítico brasileiro bastante conhecido, com mais dio ou à automutilação.
de 2 milhões de seguidores, que postou a carta
de despedida, uma manchete de notícia e até 34 Compartilho o link, com o intuito de
mesmo parte do cadáver de um feirante que divulgação: “Prevenção do suicídio na Internet,
teria cometido suicídio por conta das medidas voltada aos adolescentes”, https://vitaalere.com.
de isolamento para conter a pandemia causada br/prevsuicidiointernetadolescentes/AF_cartilha_ado-
pelo novo coronavírus. A postagem, feita em lescentes_18_09.pdf,
acessado em 05/06/2021, e
meados de março de 2021, em meio à grave “Prevenção do suicídio na Internet: Baralho
crise de saúde pública e social, ficou no ar por Terapêutico”, voltado a pais e educadores:
mais de 3 horas, mesmo com denúncias e men- https://vitaalere.com.br/wp-content/uploads/2020/09/
ções a um perfil dedicado a manter a segurança Baralho-terapeutico-Prevencao-do-Suicidio-na-Internet-
na plataforma. Vita-Alere.pdf, acessado em 05/06/2021.

30 Em 2018, houve uma oficina de preven-


ção do suicídio realizada na sede da OPAS, em
Brasília, com foco nos casos de suicídio de indí-
genas, população negra e LGBTQIA+, que fazia
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PÁGINAS 258 A 279 E CONSTRUÇÃO DE AÇÕES PREVENTIVAS

35 Explicação da ferramenta, em inglês:


https://about.fb.com/news/2018/09/inside-feed-suicide-
-prevention-and-ai/, acessado em 05/06/2021.

36 Estas informações, não mediadas, podem


gerar situações de contágio, por exemplo. Para
uma discussão bastante elaborada sobre o tema,
cf. Hwang e Kovács (2018). Sobre os possíveis
efeitos do contato com a violência nas mídias
digitais, cf. Silva (2020).

37 Barbagli (2019) constrói um cená-


rio amplo das diferenças e das particularida-
des do suicídio na história do Ocidente e do
Oriente, que demonstra o quanto o suicídio é
um evento marcado pela geografia, pela época
e pelas situações do entorno.

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