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FILOSOFIA DA

EDUCAÇÃO

Bruna Koglin Camozzato


O mundo dos valores
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Identificar a diferença entre ética e moral.


„„ Relacionar os vínculos existentes entre a moral e a cultura.
„„ Reconhecer o mundo dos valores que se apresenta no cotidiano.

Introdução
Você já parou para pensar sobre o que significa o mundo dos valores?
Essa expressão literal pode ser compreendida sob diversas perspectivas.
Entretanto, no que tange ao campo filosófico, mais especificamente ao
campo da filosofia da educação, você pode considerar que ela retrata
as possíveis relações e diferenças entre alguns conceitos, como: ética,
moral, cultura e também valores. Por vezes, esses termos, conceitos e
definições causam certa confusão e equívocos, pois são utilizados no
cotidiano como sinônimos. Para compreender tais termos, é necessário
contextualizar e retomar alguns elementos que organizam a área da
filosofia. Essa área pode ser decomposta em subáreas. Uma delas é a
filosofia do ser, que contempla disciplinas como a metafísica, a ontologia
e a cosmologia. Outra é a filosofia do conhecimento, que abarca áreas
como a lógica e a epistemologia. E, por fim, há a filosofia do trabalho, que
está relacionada a questões da ética. Neste capítulo, você vai identificar a
diferença entre ética e moral, bem como as possíveis relações existentes
entre moral e cultura. Por fim, vai reconhecer o mundo de valores que
se apresenta no cotidiano.

Diferença entre ética e moral


É inegável que a sociedade contemporânea está passando por uma fase bastante
crítica, relacionada a uma crise existencial. Se você observar rapidamente as
matérias publicadas nos veículos de comunicação, vai perceber algo muito
2 O mundo dos valores

óbvio sobre as relações da sociedade com a ética e os valores. Você vai visu-
alizar muitos comportamentos em que se destacam a falta de ética e a perda
de valores. Alguns teóricos diriam que esse cenário reflete a escassez de um
entendimento universal sobre o que é a ética, por exemplo.
Você acredita que existem diferentes éticas, isto é, a ética para a política,
a ética para o âmbito empresarial, universitário, etc.? Se a resposta for sim,
você pode considerar que tal diversidade de definições seria responsável pela
redução do conceito de ética a uma esfera específica. Ou seja, apenas uma
gama de experts em determinada área saberia o significado de certas regras,
normas, valores e, por conseguinte, eles seriam os únicos a avaliar as ações dos
sujeitos. Entretanto, observar e delatar posturas inadequadas é algo complexo
e que demanda uma extensa reflexão sobre os próprios valores e os códigos
inerentes à vida social.
Muitas situações ocorridas na sociedade podem despertar um forte senti-
mento de indignação e ocasionalmente proporcionar ações solidárias, visando a
coibir injustiças. Para essas e outras situações, como o sentimento de admiração
ou mesmo o de culpa, aflora o senso moral. Para compreender melhor o senso
moral, imagine a seguinte situação: um parente muito próximo encontra-se com
uma doença terminal. Ele está sendo mantido vivo pois aparelhos conservam
o funcionamento de seus órgãos. Nesse cenário, a pessoa possivelmente sente
muitas dores e sofre muito.
Com base nessa situação, você consideraria que o mais sensato seria a
possibilidade de provocar a morte dessa pessoa, a fim de romper com todo o
sofrimento? Você acredita que teria o direito de desligar os aparelhos? Essas
dúvidas estariam relacionadas à moral e à ética? É justamente isso que você vai
ver neste capítulo. Em especial, você vai conhecer reflexões e conceitos acerca
das diferenças entre moral e ética e do seu papel na sociedade e no cotidiano.
Situações como essa exposta, e outras ainda mais ou menos limitantes,
colocam as pessoas em posições de decisão, expressando seu senso moral.
Além disso, permitem refletir sobre a existência de uma consciência moral,
pois demandam um aprofundamento diante e além de decisões. Isto é, é
preciso identificar e avaliar a responsabilidade pelas consequências geradas
a partir das decisões.
Esses e outros exemplos, para Chauí (1993, p. 335), indicam que:

O senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez,


espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados
pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera,
amor, dúvida, medo) e a decisões que conduzem ações com consequências
para nós e para os outros.
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Voltando à situação exemplificada anteriormente, você pode considerar


que a moral estaria relacionada às consequências do ato da morte. Ou seja, nos
códigos de conduta no Brasil até o ano de 2006, o desligamento dos aparelhos
era proibido, isto é, imoral. A partir de uma longa discussão ética em torno do
tema, o Conselho Federal de Medicina aprovou uma resolução que permite
que os médicos interrompam os tratamentos que prolongam a vida dos doentes
quando eles estão em estado terminal e não têm chance de cura. De acordo
com o texto, aprovado por unanimidade, isso só pode ocorrer se for a vontade
explícita do próprio doente ou de seus familiares. Embora o desejo de muitos
fosse o de não prolongar a vida nessas circunstâncias, apenas a partir dessa
convenção social foi possível realizar o desligamento dos aparelhos mediante
autorização do doente ou de seus familiares.
A sociedade determina a moral, ou seja, os valores relacionados ao bem
e ao mal, de forma a consentir ou proibir o comportamento e a conduta dos
sujeitos. Entretanto, não se pode dizer que uma sociedade com normas e
regras seja sinônimo de uma sociedade ética, pois na filosofia moral deve
haver uma reflexão que promova a discussão, o debate sobre o significado
de valores morais.
É possível afirmar que no Ocidente a ética ou a filosofia moral foi originada
a partir dos preceitos de Sócrates. Nesse sentido, destacavam-se questiona-
mentos feitos aos sujeitos e que resultavam em modos aprendidos por meio
de costumes. Ou seja, percebia-se que o entendimento sobre as coisas se
justificava com base em vivências sociais. Entretanto, como os entendimentos
eram diferentes, constatou-se que havia uma grande confusão acerca dos
conceitos questionados pelo filósofo. Sócrates fazia perguntas como se não
soubesse de nada e conseguia levar o interlocutor a ver os pontos fracos de
sua própria reflexão. Como filósofo, Sócrates tentou mostrar que algumas
normas são realmente absolutas e de validade universal. Ele foi condenado à
morte por sua atividade (FURROW, 2007).
Cabe ressaltar ainda outros importantes autores que contribuíram para
o desenvolvimento das concepções sobre a ética e moral. Um deles foi
Emmanuel Kant. Antes dele, a fundamentação sobre a ética e a moral
estava calcada numa visão teológica, sendo justificada por acontecimentos
divinos. Foi por meio de Kant que a ética se transformou e se consolidou
como fundamento legítimo e científico para a época. Criador dos impera-
tivos categóricos, isto é, condições necessárias para desenvolver a ética,
ele propõe dois princípios: o de dever (sólido) antes da felicidade (cunho
passageiro) (WOOD, 2008).
4 O mundo dos valores

A ética kantiana concebe a valorização do bem e do mal quando o su-


jeito determina os seus objetivos e as formas para alcançá-los. Kant também
­considerou a habilidade do sujeito de estabelecer regras, normas para as
ações. Para Kant (1995), o homem é livre no tocante às suas vontades, mas a
racionalização delimita se suas vontades podem ser ou não satisfeitas. Com
isso, pode-se afirmar que o valor moral das ações está relacionado às repre-
sentações do dever. O homem tem de dar a si mesmo a lei do seu agir e do
seu querer (WOOD, 2008).
Outro teórico que estudou e publicou importantes concepções sobre a
ética e a moral foi Aristóteles. A ética, para Aristóteles, pode ser conceituada
como a procura pela felicidade dentro da concepção do ser humano. Isto é,
se o sujeito agir com esforço para alcançar a sua excelência, se tornará um
indivíduo virtuoso. Em sua obra Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 2001),
ele constitui o equilíbrio como um de seus principais princípios sobre a ética.
Ou seja, para ele o fundamental consiste em o indivíduo seguir o caminho
do meio, não se perdendo nos opostos e, ainda, não praticando excessos em
todos os aspectos de sua vida. Para Aristóteles, a ética é considerada um saber
prático (KRAUT, 2009).
Com base nos preceitos apresentados sobre a ética, cabe também distingui-
-la diante dos elementos que compõem e caracterizam a definição de moral.
Você pode considerar que a moral remonta a um conjunto de valores da
sociedade, ela é imposta e transporta o sentido de uma consequência óbvia.
Já a ética promove a reflexão sobre os valores, ela questiona os valores
morais. A ética é baseada no equilíbrio do bem viver, fomenta a renovação
da moral e estabelece uma forma virtuosa de viver. Ela é o fundamento do
agir, da ação. Além disso, está relacionada à reflexão sobre as consequências
da ação perante os demais, tendo um caráter universal. A moral, contudo,
não é universal (FURROW, 2007).
Anos atrás, o fato de um médico ser ético estava relacionado à sua ação
de não divulgar informações sobre o seu paciente. Até hoje essa prerrogativa
é válida, ou seja, permanece inalterada, não foi substituída pela ação oposta
como um fator ético. Agora, quanto às características relacionadas à moral,
você deve considerar que ela um dia foi considerada normal, portanto pode
ser alterada (FURROW, 2007).
A moral pode sofrer modificações. Algumas ações antes consideradas
imorais hoje passam a ser aceitas. Mas por que tais interpretações e valores
podem ser transformados e a ética não? Para os grandes teóricos mencionados,
é preconizada a busca pela harmonia nos aspectos que envolvem a sociedade
e as suas relações baseadas nas decisões estabelecidas.
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Em resumo, a ética é questionadora, já a moral é seguida muitas vezes


de forma cega. O questionamento filosófico sobre os valores morais de cada
época oportunizados pela ética promovem a mudança e a evolução dos valores
de uma sociedade, tornando-a mais equilibrada. A ética está relacionada à
emoção e à razão. A moral está intimamente ligada aos momentos históricos
vivenciados pela sociedade e ao estabelecimento de novos valores a partir dos
questionamentos éticos (FURROW, 2007).

“Ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade


e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus
membros” (CHAUÍ, 1993, p. 340).

Por fim, você pode considerar ainda que a moral precisa ser imposta e é
caracterizada de forma externa ao sujeito. Já a ética é aprendida e se expressa
com base no interior do indivíduo. A ética não é estanque, tendo um caráter
evolutivo (CHAUÍ, 1993).

Vínculos entre moral e cultura


Para introduzir o tema da cultura, é necessário considerar uma perspectiva
ampla, de cunho antropológico, histórico, sociológico e filosófico. Você pode
considerar que tudo o que o homem faz é cultura. O modo de se vestir, se
comportar, a arte, a religião, a moral, a lei, entre outros.
Todos os povos, mesmo os mais primitivos, tiveram e têm uma cultura,
transmitida no tempo, de geração a geração. Mitos, lendas, costumes, crenças
religiosas, sistemas jurídicos e valores éticos refletem as formas de agir, sentir
e pensar de um povo e compõem seu patrimônio cultural. Em antropologia, a
palavra cultura tem muitas definições: “A história da utilização antropológica
do conceito de cultura tem origem nessa famosa definição de Tylor, que ensejou
a oposição clássica entre natureza e cultura, na medida em que ele procurou
definir as características diferenciadoras entre o homem e o animal a partir dos
costumes, crenças, instituições, encarados como técnicas que possibilitaram
a vida social” (NOVA..., 1999, p. 33).
6 O mundo dos valores

Os seres humanos são diferentes dos animais pois não apresentam apenas
ações instintivas, ou seja, ações mediadas por reflexos, não raciocinadas e
ligadas ainda a uma visão de estímulo-resposta, mas têm inteligência con-
creta e inteligência abstrata. Contemplando os aspectos sociológicos, você
deve conhecer alguns acontecimentos históricos que definiram mudanças
na sociedade.
Na época da Revolução Francesa, por exemplo, lutava-se por mudanças
sociais e atacava-se duramente a sociedade feudal e as restrições impostas
por ela. Havia o esforço de mostrar que a sociedade medieval era irracional e
injusta, surgindo discussões sobre o comércio, a família e a religião. Para os
iluministas, a sociedade feudal atentava contra a natureza dos indivíduos, que
são dotados de razão e destinados à liberdade (TESKE, 1999, p. 33).
A Revolução Francesa (Figura 1) foi um momento histórico que marcou
uma grande e significativa transformação social. Ela fomentou o desenvol-
vimento e a criação de leis a partir de uma nova visão, isto é, com base em
uma perspectiva racional e humana, ocasião em que o ensino passou a ser
laico e terreno.

Figura 1. A tomada da Bastilha (Paris, 14 de julho de 1789).


Fonte: Everett Historical/Shutterstock.com.
O mundo dos valores 7

Para saber mais sobre a Revolução Francesa e a


tomada da Bastilha, que se estendeu de 14 de julho
de 1789 a 9 de novembro de 1799, e compreender
por que ela influencia o mundo até hoje, acesse o
link a seguir:

https://goo.gl/afkDZb

Para Durkheim, a religião, os códigos simbólicos e as explicações místicas


são a base elementar da constituição da vida social. A função das instituições
sociais é dar identidade, trazendo os valores da consciência coletiva para a
sociedade. As instituições sociais têm a função de atualizar os valores sociais
de consciência coletiva, ou seja, uma sociedade é tal qual um corpo humano.
Essas instituições normatizam os valores. Por isso, a educação, para Durkheim,
é um ato fundamental, pois educar um indivíduo é a forma de prepará-lo ou
forçá-lo a ser membro de um ou vários grupos sociais (TESKE, 1999, p. 37).
Foi Durkheim quem determinou como objeto da sociologia o fato social,
afirmando que tudo o que ocorre na sociedade é fato social.

Para Durkheim:

[...] fato social é toda a maneira de agir, pensar e sentir, fixada ou não,
suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então,
que é geral no âmbito de uma sociedade, tendo ao mesmo tempo uma
existência própria, independente de suas manifestações individuais
(DURKHEIM, 1984, p. 39 apud TESKE, 1999, p. 39).

Nas concepções de Durkheim, você pode perceber claramente o papel e a


força das instituições públicas no sentido de regrar, normatizar a conduta e o
comportamento dos sujeitos, além de preservar a conduta e os valores morais.
Durkheim ainda estabelece o conceito de anomia. Assim:
8 O mundo dos valores

Os indivíduos se encontram em anomia quando carecem de um conceito


claro do que é conduta apropriada, aceitável, quando as regras, as normas, os
valores de comportamento não estão claramente definidos, ou seja, a anomia é
a ausência de regras claramente definidas que regulem o comportamento dos
indivíduos em sociedade (MARTIN, 1991, p. 48 apud TESKE, 1999, p. 45).

Retomando os aspectos relacionados à definição de cultura, a sociologia


preconiza compreender os elementos aprendidos pelo ser humano, principal-
mente no tocante à sua relação social, em que o sujeito se concebe no decorrer
de suas vivências. Esses argumentos, repartidos entre os sujeitos que integram
um grupo de convívio específico, espelham especialmente a realidade social
desses indivíduos (TESKE, 1999). Com isso, a linguagem, a forma de se
vestir em ocasiões determinadas, os modos e os costumes correspondem
às características que pertencem a determinada cultura. Além disso, esses
elementos têm ainda como função a cooperação e a comunicação entre os
integrantes de um grupo.
Para a filosofia, a cultura pode ser compreendida como um agregado de
demonstrações humanas que afrontam a natureza e o comportamento natural.
Pode-se dizer que é um comportamento de interpretação pessoal e conectado
à realidade, designado às posições suscetíveis de valor íntimo, alegação e
aperfeiçoamento. Além de considerar essa condição pessoal, a cultura pode
ser entendida sob o ponto de vista de que remonta sucessivamente a uma
cobrança global e a uma defesa satisfatória, sobretudo para o próprio sujeito.
Em resumo, afirma-se que há cultura no momento em que tal interpre-
tação pessoal e global se conecta a um esforço de informação, no sentido de
aprofundar a postura empregada de forma a poder interferir em debates. É
primordial o reconhecimento dessa dimensão pessoal da cultura como síntese
ou atitude interior (BARROSO, 2018).
Chauí (1993, p. 289) enfatiza os aspectos que envolvem a expressão da na-
tureza humana elencando algumas declarações populares, como “os pobres são
naturalmente violentos” e “os árabes são naturalmente comerciantes espertos”.
Ela destaca que tais expressões implicam duas perspectivas, uma relacionada
à existência da natureza humana e outra calcada ainda na diferença entre os
seres humanos (homens, mulheres, negros, etc.). A partir disso, a natureza
teria feito o gênero humano universal e as espécies humanas particulares, de
forma a estabelecer que certos sentimentos, comportamentos, ideias e valores
são os mesmos para todos (enquanto gênero), embora outros sejam específicos
para cada espécie.
O mundo dos valores 9

Para Durkheim:

Dizer que alguma coisa é natural ou por natureza significa dizer que
essa coisa existe na natureza. Significa dizer, portanto, que tal coisa
não depende de ação ou intenção dos seres humanos. Assim como é
da natureza dos corpos serem governados pela lei natural da gravi-
tação universal, como é da natureza da água ser composta por H 2O
(DURKHEIM, 1984, p. 39 apud TESKE, 1999, p. 39).

Entretanto, Chauí (1993) questiona, por meio de indagações reflexivas,


o fato de que as declarações mencionadas anteriormente demonstram ser
contraditórias, ou seja, conflitantes e incongruentes, mas que outras situações
remetem e convergem para os fatos da realidade. Para exemplificar essas rela-
ções, você deve refletir que em algumas sociedades é natural que nas relações
de parentesco, por exemplo, as crianças sejam rigorosamente entregues ao
irmão do pai; em outras, ainda é estabelecido que a criança seja levada para
a tia. Diante disso, o entendimento de que as mulheres amam naturalmente os
filhos poderia ser equivocado, já que levaria a pensar que nessas sociedades a
mãe é desnaturada no momento em que não demonstra esse amor, entregando
a criança aos seus parentes.
Com base nas discrepâncias de tal conceito sobre naturalização, cabe
ressaltar que, graças às ciências humanas e à filosofia, a ideia de natureza
humana como algo universal, intemporal e existente em si e por si mesma
não se sustenta cientificamente, filosoficamente e empiricamente. Por quê?
“Porque os seres humanos são culturais ou históricos” (CHAUÍ, 1993, p. 290).
Em resumo, você pode considerar que a própria ideia de natureza se tornou
objeto cultural.
10 O mundo dos valores

Cultura vem do verbo latino colere, que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar.
Assim, cultura significa o cuidado do homem com a natureza. Cultura também já foi
entendida como o cultivo ou a educação do espírito das crianças para tornarem-se
membros excelentes ou virtuosos da sociedade pelo aperfeiçoamento e refinamento
das qualidades naturais (caráter, índole, temperamento). “A partir do século XVIII, cultura
passa a significar os resultados daquela formação ou educação dos seres humanos,
resultados expressos em obras, feitos, ações e instituições” (CHAUÍ, 1993, p. 292).

Como você viu, uma das definições de cultura remete ao aprimoramento


da natureza humana, considerando o sentido ampliado da educação, calcada
em formar as crianças para além da necessidade de alfabetização, levando
em conta ainda a sua inserção na sociedade. Por isso, você pode considerar
que um indivíduo culto corresponde ao indivíduo consciente e que possui
conhecimento científico.
O outro conceito, por sua vez, abarca a oposição entre cultura e natureza,
pois Kant pressupõe que os mesmos são essencialmente diferentes, em especial
enfatiza a natureza como algo relacionado às leis de causa e efeito e o homem
como possuidor de liberdade e razão, predisposto a escolher e decidir com
base em seus valores (WOOD, 2008).
Cultura também passou a significar a relação que os humanos, socialmente
organizados, estabelecem com o tempo e com o espaço, com os outros huma-
nos e com a natureza, relações que se transformam e variam. Agora, cultura
torna-se sinônimo de história. A natureza é o reino da repetição; a cultura, o
da transformação racional; portanto, é a relação dos humanos com o tempo e
no tempo (CHAUÍ, 1993, p. 393).
Como você já viu, para a antropologia, a cultura surge principalmente no
instante em que se dividem homem e natureza, por meio do estabelecimento
de leis que, não sendo cumpridas, desmontam a comunidade e o indivíduo.
A lei passa a definir para a sociedade o que pode ser feito, o que não pode ser
feito e, acima de tudo, a capacidade do ser humano de ditar como quer que
as coisas aconteçam. Obviamente, rompendo totalmente com a naturalidade
dos fatos. A lei se torna uma norma simbólica representada para a orientação
dos sujeitos.
O mundo dos valores 11

Com base nos pressupostos teóricos sobre cultura, é possível vincular a


cultura e a moral considerando alguns aspectos. Moral, da palavra latina mores,
é o conjunto de regras e normas aceitas livre e conscientemente que regulam o
comportamento individual e social dos homens numa determinada sociedade
(KANT, 1995). Ela é a conduta, a prática, a ação. Nesse conjunto de regras,
há as condutas imorais e as condutas morais, ou seja, as não aprovadas e as
aprovadas. Assim, constata-se que a cultura também é composta por valores
morais que regem o comportamento e as ações dos indivíduos com o principal
objetivo de manter o equilíbrio de suas relações sociais.

De acordo com Manara (2002, p. 21):

A cultura, a religião, a economia e os costumes modificam esse conjunto


de regras e normas. Uma mudança radical da estrutura social provoca
uma mudança fundamental de moral, pois a moral possui uma qualidade
social: manifesta-se somente na sociedade, respondendo às suas neces-
sidades. A moral está em prol de uma finalidade que é o bem comum
e é pelo bem que causa ao cidadão que se regula se a moral é válida; a
função social da moral consiste na regulamentação das relações entre
os homens para contribuir assim no sentido de manter e garantir uma
determinada ordem social.

O mundo dos valores que se apresenta no


cotidiano
De acordo com Aranha e Martins (1993), os valores são tidos como acordos
sociais históricos que objetivam determinar o que é certo e errado. Contudo,
essa afirmativa demanda uma profunda reflexão sobre os valores que consti-
tuem determinado momento histórico. Os valores são inseridos numa ordem
simbólica, cultural e histórica, não possuindo um caráter absoluto.
Mas o que são valores? Embora a preocupação com os valores seja tão antiga
como a humanidade, só no século XIX surge uma disciplina específica para
eles, a teoria dos valores ou axiologia (do grego axios, “valor”). A axiologia
12 O mundo dos valores

não se ocupa dos seres, mas das relações que se estabelecem entre os seres e
os sujeitos que os apreciam (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 273).
Como você viu anteriormente, a sociedade necessita de acordos. Configu-
rado com base nesses acordos, o mundo permite a existência do homem. Além
disso, esses valores demonstram o que o homem, a partir de suas escolhas,
quis para a organização social. Essa situação é diferente, evidentemente, da
dos animais, que nascem prontos, ou seja, a sua natureza os força a fazer as
coisas e não há questionamentos ou justificativas. O homem, por sua vez,
não nasce pronto, ele aprende e escolhe como será a sua vida, ele determina,
opta, raciocina, reflete.
Você ainda deve considerar importantes aspectos relacionados ao interesse
próprio. Tais aspectos auxiliam no processo de elucidação dos fatores e das
justificativas que levam os indivíduos a escolher ou não determinados com-
portamentos em situações vivenciadas em suas mais diversas relações. Veja
o que afirma Wood (2008, p. 19):

Comumente, agimos porque desejamos atingir algum propósito, ou satisfazer


um interesse ou desejo. Vamos ao trabalho para ganhar dinheiro, fazemos o
jantar para saciar a fome, etc. Então, talvez possamos responder nossas per-
guntas a respeito da motivação para a moralidade identificando o propósito
ou desejo a que ela atende. Há algum propósito ou interesse compartilhado
pela maioria dos seres humanos que explicaria nossa conduta moral? A que
propósito ou interesse estavam as ações de Schindler atendendo?

O autor ainda expõe outros argumentos acerca do interesse próprio, res-


saltando que

Alguns pensadores têm dito que a motivação do interesse próprio explica


todas as nossas ações. Em consequência, qualquer abordagem plausível
da moralidade deveria mostrar como a moralidade nos ajuda a conseguir
alguma coisa que desejamos. Chamamos de egoísmo psicológico esta
abordagem da motivação humana. O egoísmo psicológico argumenta que
os seres humanos sempre procuram maximizar seus interesses próprios
(WOOD, 2008, p. 19).

Ele ainda complementa que

além de serem voltados para seus próprios interesses, os seres humanos são
também racionais. Somos capazes de encontrar meios efetivos de satisfazer
nossos próprios interesses. Se sou um egoísta racional, sei que é da natureza
humana que eu sempre cuide de mim. Também me dou conta de que as outras
O mundo dos valores 13

pessoas também estão cuidando de si próprias, e não só evitam que eu tenha
o que quero, mas tentarão tomar o que possuo. Assim, para que eu possa
ter parte daquilo que desejo, assumo compromissos (WOOD, 2008, p. 19).

Com isso, pode-se afirmar que o mal e o bem também são uma escolha
para o homem. O homem, imerso em sua razão, atribui justificativas às causas
que não dependem apenas dele, sendo envolvido num complexo processo de
decisão. Nesse sentido, portanto, há uma reflexão sobre liberdade e também
sobre fontes de angústias diante dela.
Liberdade e fontes de angústia são debatidas porque para escolher é preciso
atribuir valor, e para atribuir valor é necessário seguir alguma referência. En-
tretanto, muitas das escolhas realizadas não possuem referências para permitir
a atribuição de valores de forma única e correta. Em virtude disso, e diante das
situações vivenciadas pelo sujeito, é necessário estabelecer uma hierarquia de
valores, cujo objetivo consiste em sustentar as escolhas, considerando ainda
os cenários instituídos e que também são passíveis de serem alterados.
Portanto, os valores morais são inerentes à condição humana. Eles servem
para nortear as escolhas humanas, além de permitirem a reflexão para a dis-
tinção sobre os bons ou os maus comportamentos (ARANHA; MARTINS,
1993). Para ilustrar esse pensamento, considere o exemplo da transparência.
Esse conceito está muito em voga atualmente. Sem aprofundar muito a questão,
você sabe que a transparência pressupõe que entidades governamentais sejam
obrigadas a explicitarem suas atividades, investimentos e resultados. A ideia
é que tornem público o que está sendo feito. Assim, o valor empregado está
calcado na transparência da gestão pública.
Por outro lado, se você pensar num jogo de cartas, o fundamental reside
no fato de que se deve valorar justamente o contrário, isto é, a confidenciali-
dade em detrimento da transparência. Portanto, a complexidade dos valores
acaba sendo a garantia de sua liberdade. Afinal, se os valores indicassem
uma verdade absoluta, sua consequência seria o próprio fim da liberdade,
isto é, o fim da possibilidade de escolha, considerando as circunstâncias
envolvidas.
Nesse ponto da reflexão, você deve notar que a moral tem um forte caráter
social, estando amparada nos conceitos de cultura, história e natureza humana.
Você já sabe que ela é adquirida como herança e preservada pela comunidade.
Se a comunidade não preservar a moral, ela será inevitavelmente alterada. Isso,
por sua vez, vai gerar uma mudança no código de conduta moral da sociedade
(ARANHA; MARTINS, 1993).
14 O mundo dos valores

O mundo dos valores denota muitas vezes que os indivíduos sabem que
não estão fazendo a coisa certa. Isto é, o sujeito tem plena ciência de que está
transgredindo normas, mas julga que o seu comportamento é normal, já que
é realizado por todos, sendo comum. Esse raciocínio envolve a justificativa
de que tal comportamento também é feito pelos outros, logo há necessidade
de repetir o ato a fim de não ficar para trás, ou ainda ser considerado um tolo
(ARANHA; MARTINS, 1993).
Como você viu, o mundo dos valores contempla indiscutivelmente os
preceitos da ética e da moral. Assim, é preciso romper com a visão distorcida
que justifica certos comportamentos a partir do dito “jeitinho brasileiro”,
uma vez que cada um é responsável por seus atos e compreende as dimensões
relacionadas à ética, à moral e aos valores.

A ética é o princípio, é permanente, universal, trata-se da teoria. Já a moral diz respeito


à conduta, é temporal, é tida como cultura, conduta de regra e, acima de tudo, está
relacionada à prática.

Por fim, resta que as regras e condutas morais sejam postas em prá-
tica por cada sujeito, mas que também sejam debatidas constantemente
sob a ótica da ética. Isso contribui para o objetivo principal de evoluir e
melhorar a convivência dos seres humanos, de forma a tornar a sociedade
mais harmônica.
O mundo dos valores 15

ARANHA, M. L. A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. 2. ed. São


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ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco: texto integral. São Paulo: Martin Claret, 2001.
BARROSO, P. F. Antropologia e cultura. Porto Alegre: SAGAH, 2018.
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Leituras recomendadas
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