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Como Os Cuidados Paliativos Salvaram A Vida Da Medicina
Como Os Cuidados Paliativos Salvaram A Vida Da Medicina
DOI: 10.29327/823500-98
Mesmo correndo o risco de ser pretensioso e ousado, decidi compartilhar umas ideias nesse
artigo. Sou fã dos cuidados paliativos (CP), o que é algo tolo se pensarmos bem. Alguém é fã de
antibiótico ou de cardiologia? Mas continuo sendo fã. Os cuidados paliativos são uma
necessidade de primeira ordem mas também uma inspiração e fonte de humanização. Em 1982
o filósofo Stephen Toulmin publicou um artigo intitulado How Medicine Saved the Life of Ethics.
Muito resumidamente, na época a ética vinha se recuperando de um período de relativismo e
dogmatismo, prolífico em discussões descontextualizadas da vida prática. A medicina tornou
necessária uma visão mais ampla e prática da ética ao lidar com questões palpáveis, únicas e
individuais. Seria um disparate dizer que a medicina está morta, está muito viva; porém há partes
que necessitam de alguma revitalização. Na verdade, são elementos centrais à sua prática nos
quais os CP existem diretamente, como o cuidado, a atenção ao indivíduo, o respeito a crenças
individuais e uma visão saudável sobre a morte e o morrer. Por favor, comente essas ideias,
precisamos das percepções de todos se queremos uma medicina mais viva!
“Embora todo homem, por seus próprios meios, tente adiar o encontro com esses problemas e
estas perguntas enquanto não for forçado a enfrentá-las, só será capaz de mudar as coisas
quando começar a refletir sobre a própria morte, o que não pode ser feito no nível de massa, o
que não pode ser feito por computadores, o que deve ser feito por todo ser humano
individualmente. Todos nós sentimos necessidade de fugir a esta situação; contudo, cada um de
nós, mais cedo ou mais tarde, deverá encará-la. Se todos pudéssemos começas admitindo a
possibilidade de nossa própria morte, poderíamos concretizar muitas coisas, situando-se entre
as mais importantes o bem-estar de nossos pacientes, de nossas famílias e até de nosso país”
(Elisabeth Kübler-Ross – Sobre a Morte e o Morrer)
Tocando o essencial
É difícil dizer o que é o essencial, mas como já dito em outro artigo, buscamos o sentido da vida
a cada dia. Esse sentido se torna claro nos últimos dias da vida. Desde a pessoa que num
acidente vê um filme da sua vida passando na sua cabeça até aqueles que têm tempo suficiente
para se preparar, agradecer, se arrepender e se desculpar. Para os que somos espectadores
desse processo, sentimos a necessidade de rever nossa vida, tamanho o impacto que nos causa.
Precisamos crescer enquanto seres humanos e profissionais para poder tocar esses momentos,
essas pessoas. É como se nosso coração não fosse grande o suficiente e sempre há mais que
queríamos fazer.
Trabalhar em Equipe
Esse é um aspecto formidável das equipes de CP, todos envolvidos, cientes e em conjunto
trabalhando para uma mesma meta, com sinergia. Médicos, enfermeiras, nutricionista, psicóloga,
terapeutas ocupacionais; às vezes até pessoas da limpeza, secretárias e recepcionistas.
Observação e Experiência
É preciso ser muito observador e ter desejos de aprender com a vida e a morte dos pacientes.
Tem que ter olhos, ouvidos, mentes e corações atentos para conseguir ajudar alguém, muitas
vezes num tempo curto, mas que deixará marcas nas vidas dos entes que ficaram. Isso traz de
volta também esse aspecto de arte da medicina. Cada caso, cada paciente tem uma história e
aspectos que nos ensinam. Por outro lado, integra e requer mais dados, experiências e
experimentos. Precisa saber mais sobre os sintomas, qualidade de vida, perspectivas. Necessita
o desenvolvimento de novos modelos de abordagem e comunicação. Precisa saber mais até
sobre a personalidade e psicologia dos médicos e demais profissionais.
Nos CP, não importa mais a mortalidade, mas o modo como isso se dará. Os profissionais
compreendem facilmente que, ainda que a sobrevida seja importante, trocas podem ser feitas
por melhor qualidade de vida. Outras prioridades são levadas em consideração, bem como
sintomas desconfortáveis (dor, alimentação, obstipação, náuseas…). A família é incluída no
tratamento e na atenção dispensada e também faz parte integral do apoio ao paciente.
Razão e Ética
Com tantas tecnologias e recursos terapêuticos, muitas vezes temos razão, mas não somos
razoáveis. Tratamos os pacientes com medicações que podem sobrecarregá-los ou ter pouco
impacto frente às suas prioridades. Também podemos sofrer da obstinação terapêutica, ou seja,
tentativas obstinadas e desproporcionais frente uma certa ou muitíssimo alta probabilidade de
intratabilidade ou progressão para a morte. Vale lembrar que os cuidados paliativos não são
exclusivos para a hora da morte (na verdade aí já pode nem haver mais tempo) nem para
pacientes oncológicos. São destinados a todo paciente cuja perspectiva de vida já esteja
reduzida. Mas nos momentos já avançados é frequente essa obstinação causando até a
distanásia, isto é, um sofrimento desnecessário pois não resultará num resultado posterior
benéfico. Uma das dificuldades do médico está justamente no campo da ética, por não conhecer
os princípios que regem a ação correta e, em última análise, garantem uma consciência limpa.
Desse modo, vê-se impedido e amedrontado por temores irreais como matar alguém ou ser
processado. Há várias causas para isso, uma delas é que talvez a medicina não tenha salvado
tanto assim a ética, já que nas aulas durante o curso há com frequência ensinamentos
descontextualizados e não adaptados à prática. O que leva os estudantes não gostarem ou não
se aprofundarem na matéria por não ver sua aplicabilidade e necessidade no cotidiano. Outra
causa seria ainda a falta de equipes de cuidados paliativos e de comissões de ética clínica,
servindo de suporte direto e mudando a cultura através da ação e da educação continuada.
Espero que em breve haja obrigatoriedade de tais serviços, assim como há obrigatoriedade de
outros como CCIH e equipes de nutrição.
Sabedoria
Temos bastante ciência, precisamos de sabedoria. Ao lidar com especialistas da área, observo
que muitos possuem um olhar mais sóbrio e sábio da vida. Muitas vezes são pessoas calmas e
compassivas. Talvez sejam fruto do perfil pessoal e da experiência profissional. É a sabedoria
de compreender a finalidade e a finitude da vida. De estar atento buscando o que importa. De
aceitar o destino na Terra e dar o melhor até o último momento, pois sempre há o que fazer. E
talvez de abraçar a transcendência, sabendo que a morte não apaga o que fizemos de bom; a
vida não termina, continua nos que nos seguem e por toda eternidade.
“Se pudéssemos ensinar aos nossos estudantes o valor da ciência e da tecnologia, ensinando
a um tempo a arte e a ciência do inter-relacionamento humano, do cuidado humano e total ao
paciente, sentiríamos um progresso real. Se não fosse feito mau uso da ciência e da tecnologia
no incremento da destruição, prolongando a vida em vez de torná-la mais humana; se ciência e
tecnologia pudessem caminha paralelamente com maior liberdade para contatos de pessoa a
pessoa, então poderíamos falar realmente de uma grande sociedade. Encarando ou aceitando
a realidade da nossa própria morte, poderemos alcançar a paz, tanto a paz interior como a paz
entre as nações.” (Elisabeth Kübler-Ross – Sobre a Morte e o Morrer)
Conclusões
Os cuidados paliativos, embora sejam uma especialidade, devem ser de conhecimento de
qualquer profissional, a começar pelos seus princípios éticos. Em especial os médicos que lidam
com doenças graves, devem procurar ativamente informação e capacitação nessa área, sob o
risco de privar seus pacientes dos melhores cuidados e de uma morte digna. Stephen Toulmin
apontou 4 caminhos em que a medicina poderia salvar a ética. Nesta reflexão, encontrei 3
caminhos em comum com os dele:
É isso.
Porter, R. (1999). The greatest benefit to mankind – A medical history of humanity. New
York: W.W. Norton.
Quintana Arantes, A. (2019). A Morte É Um Dia que Vale a Pena Viver. São Paulo: Sextante.