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JOSÉ JOACI BARBOZA

ZAIRO PINHEIRO
HÁGNER MALON DA COSTA SILVA
(ORGANIZADORES)

SOCIEDADES TRADICIONAIS DO BRASIL


DO CABURAÍ AO CHUÍ:
SOCIEDADES TRADICIONAIS DO BRASIL
Conselho Editorial
Daniel Sedorko
Jefferson Henrique Cidreira
Lucilea Ferreira Lopes Gonçalves
Maisa França Teixeira
Marcos Alberto Torres
Nilson Cesar Fraga
Nicolas Floriani
DO CABURAÍ AO CHUÍ:
SOCIEDADES TRADICIONAIS DO BRASIL

José Joaci Barboza


Zairo Pinheiro
Hágner Malon da Costa Silva

(Organizadores)
Copyright © 2022

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou
reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos
autores, que assumem a responsabilidade intelectual sobre o conteúdo de seus
capítulos.

Editores: Renato Pereira e Tanize Tomasi


Projeto gráfico e diagramação: Editora Panaro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B239 Barboza, José Joaci


Do Caburaí ao Chuí: Sociedades tradiconais do Brasil/José Joaci
Barboza, Zairo Pinheiro, Hágner Malon da Costa Silva (organizadores).
– 1. ed. – Santo Augusto : Editora Panaro, 2022.
154p., 210mm
ISBN 978-65-994880-9-2 (impresso)
ISBN 978-65-84794-00-9 (digital)
DOI: 10.55328/edpan.978-65-84794-00-9

I. Geografia. II. Geografia Regional. III. Comunidades


Tradicionais. IV. Título. V. Org.

CDD : 305.8
CDU : 91

Índices para catálogos sistemáticos:


1. Geografia : Teoria e Metodologia

Editora Panaro
editorapanaro.com.br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................... 7

As sociedades tradicionais indígenas e a


conservação dos recursos naturais no Estado de
Rondônia............................................................. 11
Alex Mota dos SANTOS e Carlos Fabricio Assunção da SILVA

Notas sobre a monetarização e cotidiano entre os


Paiter Suruí (1970-1990)................................... 23
Bruno SURUI e Carlos Alexandre Barros TRUBILIANO

Povos indígenas e diversidade sexual: “achava que


eu era o único gay do mundo”............................ 41
Carma Maria MARTINI e Eliane Rose MAIO

O povo indígena Kaxarari: um olhar geográfico e


fenomenológico sobre espaço, cultura e
natureza ............................................................. 53
Gustavo Henrique de Abreu SILVA
O exército da borracha e a brigada esquecida na
Amazônia Pós-Segunda Guerra Mundial........... 67
Reginâmio Bonifácio de LIMA

Festa e devoção popular do Divino Espírito Santo


nas vozes dos devotos......................................... 99
Francisco de Assis Cruz da SILVA

Mulheres quilombolas: estratégias de


empoderamento feminino no interior do
Maranhão.......................................................... 117
Amanda Gomes PEREIRA, Angelica Lima MELO e Tatiana COLASANTE

A Romaria do Senhor Divino Espírito Santo do


Vale do Guaporé: a cosmologia da fé em uma
proposta de história temática para o ensino
fundamental...................................................... 135
Hágner Malon da Costa SILVA, Zairo Carlos da Silva PINHEIRO e José Joaci BARBOZA

OS ORGANIZADORES....................................... 149

OS AUTORES.................................................... 150
APRESENTAÇÃO

O livro DO CABURAÍ AO CHUÍ: SOCIEDADES TRADICIONAIS


DO BRASIL é uma iniciativa dos pesquisadores do Grupo
de Pesquisa em História Oral e Espacialidades Amazônicas
– GPHOEA, que juntou uma plêiade de pesquisadores das
áreas de Ciências Humanas e das mais diversas instituições
do Norte, Nordeste e do Sul do Brasil, especificamente da
Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Universidade Federal
do Acre (UFAC), Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB),
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade
Estadual do Maranhão (UEMA), Universidade Estadual de
Maringá (UEM), de professores das redes estaduais de Rondônia
e do Pará e de autores indígenas.
Do ponto de vista da formação temos historiadores(as),
geógrafos(as), educadoras(es), musicólogos, teólogos, o
que dá também um mosaico muito diverso de abordagens e
metodologias de pesquisas, algumas inéditas, outras fazendo
revisões de trabalhos produzidos, mas todas de caráter ainda
8 DO CABURAÍ AO CHUÍ

não conhecida do grande público ao qual é direcionada e que


possam conhecer os povos tradicionais abordados nesse livro.
Procuramos organizar os textos por eixos temáticos, os
primeiros dedicados a temática indígena. Aqui vamos encontrar
reflexões sobre o papel das comunidades tradicionais na
preservação do meio ambiente, um debate importante no mundo
dominado pela ganância do lucro que destrói a terra comum;
outro assunto pouco abordado é a questão da diversidade e a
orientação sexual entre os povos indígenas, que ao que tudo
indica, apesar de ser uma questão nova nos estudos dos povos,
enquanto prática social desde tempos imemoriais, as relações
entre pessoas do mesmo sexo existiam e, aparecem nos relatos
míticos de alguns povos em grande parte do território brasileiro.
Ainda dentro da temática indígena, vem à tona as questões das
modificações nas relações de produção decorrente do contato,
na visão dos autores que abordam essa temática, que antes do
contato com a frente de expansão da colonização contemporânea,
os grupos étnicos vivam no sistema pré-capitalista e a produção
era coletiva, a divisão que existia era a sexual com atividades
próprias aos homens e outras para as mulheres; mas devido
a monetarização da economia, essas relações foram sendo
esgarçadas ao ponto de se criar uma produção individualizada.
Uma outa temática indígena que se tem a partir de uma
abordagem fenomenológica sobre o espaço, a cultura e a natureza,
é com relação à percepção do tempo e da natureza que para os
povos indígenas são distintas das produzidas pelas sociedades
ocidentais, em que estas ao tocar transformam as coisas em
mercadoria. O autor dessa temática vai demonstrando a partir
da experiência numa aldeia Kaxarari, como essas populações se
relacionam com a natureza que têm outros significados que vão
muito além da fonte de recursos.
Entre a temática indígena e a temática afrodescendente
temos um capítulo que versará sobre um tema ainda pouco
estudado na região Norte, como um todo, que é a denominada
Guerra da Borracha, que ficou conhecido o período em que os
seringais da Amazônia são reativados, durante a Segunda Guerra
Mundial, para atender a demanda por borracha pela indústria
9

bélica, já que o fornecimento da Ásia havia sido cortado quando


o Japão invade os centros produtores.
Várias pessoas são mobilizadas para virem para a Amazônia,
ao invés de irem para o fronte de batalha, muitas delas não mais
retornaram aos seus locais de origem; outros até hoje lutam
pela aposentadoria prometida, em que comunidades indígenas
inteiras levadas para a extração do látex, tendo como ponto de
partida o Estado do Acre, mas em boa medida alguns elementos
são comuns para quase toda a região.
Agrupamos no terceiro bloco duas manifestações religiosas
à Festa do Divino Espírito Santo. Uma ocorre em Araguaína no
Tocantins e outra em Rondônia, no Vale do Guaporé. Na primeira
o autor busca, a partir das narrativas orais, demonstrar que
os processos de urbanização diminuem e invisibilizam a festa,
diminui a devoção, e tenta apontar como esses processos vão
fazendo com que a religiosidade vá perdendo importância, assim
como o próprio sentido de comunidade que antes forneciam a
harmonia para a devoção.
No caso da Festa do Divino, no Vale do Guaporé, é uma
manifestação religiosa marcadamente mantida e dirigida pelos
remanescentes de quilombos. Destaca-se também pelo seu
caráter aquático, ou seja, a procissão ocorre de forma fluvial
durante os dias de festejos, uma “igreja” flutuante percorre os
vários municípios e vilarejos. Os autores contextualizam a festa
e apresentam uma proposta de como transformar o tema em
conteúdo a ser trabalhado no ensino fundamental e médio de
forma interdisciplinar envolvendo Música e História.
Temos ainda um artigo, que além de abordar a temática
afrodescendente que são os quilombos no Maranhão vai
trabalhar a questão do empoderamento das mulheres dentro
dessa realidade. As autoras, no trabalho de campo, perceberam
a necessidade de capacitação para as mulheres dos quilombos
das várias cidades do Baixo Parnaíba Maranhense.
Mesmo falando de lugares diferentes como Maranhão,
Pará, Acre, Rondônia, Pernambuco, Bahia ou Paraná, os textos
acabam tendo muito em comum, a preocupação e o interesse em
conhecer e tornar conhecidos os povos indígenas, seu passado
10 DO CABURAÍ AO CHUÍ

e sua atualidade, a relação entre eles e deles com a natureza.


Ou quando falando de seringueiros que mantêm, em relação a
natureza, uma postura muito semelhante ao dos povos indígenas,
com quem fizeram muitas trocas, como bem demonstra Carlos
Corrêa Teixeira (1999).
Temos duas festas religiosas populares, uma delas
ligada intimamente com as resistências e a resiliências das
comunidades quilombolas do Vale do Guaporé, em ambas o
comum é a devoção dos mais idosos e um certo distanciamento
das gerações mais novas, ainda assim são processos litúrgicos
que movimentam e preservam uma tradição vinda do Brasil
colonial. Os quilombos são tratados de forma direta num
capítulo, sua contextualização histórica, política e econômica
além do processo de empoderamento das mulheres na geração
de renda, bem como na condução da organização para as lutas
políticas.
Desejamos que a leitora e o leitor apreciem cada capítulo
desse livro e, através dele, possa ampliar a compreensão da
história, da geografia, de mecanismos sociológicos de alguns
grupos indígenas, de negros e negras que habitam a periferia
dos grandes centros urbanos. Como também algumas festas
religiosas, bem como a vida e a luta dos seringueiros e ex-
soldados da borracha, em comum, todos invisibilizados pelo
discurso oficial e carentes da ação do Estado, como também, por
resistência ao poder do Estado.

Os Organizadores.
DOI: 10.55328/edpan.978-65-84794-00-9_001

As sociedades tradicionais indígenas


e a conservação dos recursos naturais
no Estado de Rondônia

Alex Mota dos SANTOS e Carlos Fabricio Assunção da SILVA

Os estudos atualizados que comparam a conservação


dentro e fora das áreas demarcadas para os povos indígenas
são incipientes no Brasil. Apesar disso, destaca-se o trabalho da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI, 2015), que aborda o papel
das terras indígenas e serviços ambientais. Assim, segundo
o relatório “a maior parte das áreas significativas de alto
valor natural remanescentes no planeta é habitada por povos
indígenas, comprovando a eficácia dos sistemas indígenas de
manejo de recursos” (FUNAI, 2015, p. 91). Além disso, destaca-
se o estudo apresentado por Crisostomo et al. (2015). Segundo
os autores, a perda de floresta dentro de terras indígenas foi
inferior a 2% durante o período de 2000-2014, enquanto a taxa
de desmatamento na Amazônia, referente ao mesmo período, era
de 19% (CRISOSTOMO et al., 2015). Ademais, foram identificadas
pesquisas internacionais mais recentes que abordam o tema em
tela, dentre os quais, Garnett et al. (2018), Fa et al. (2020).
Nesse sentido, vale destacar que o desmatamento que ocorre
nessas áreas geralmente está associado a ações por não indígenas,
como grileiros, garimpeiros, contrabandistas, dentre outros
(SANTOS, 2014; CRISOSTOMO et al., 2015; SANTOS, GOMIDE,
2015; SANTOS et al., 2021). Assim, as paisagens florestais intactas
são fortalezas críticas para os serviços ambientais que fornecem,
não menos importante para o seu papel na proteção do clima (FA
12 DO CABURAÍ AO CHUÍ

et al., 2020). Igualmente importante é referir que há evidências


de que as taxas de perda de florestas têm sido consideravelmente
mais baixas dentro das terras indígenas do que em outras áreas,
embora essas florestas ainda são vulneráveis ao desmatamento
e outras ameaças (GARNETT et al., 2018; FA et al., 2020).
Assim, as análises sobre a importância das sociedades, seus
modos de vida e o reflexo disso sobre os recursos naturais são
relevantes. As metodologias para tais análises são variadas,
contudo, nesse trabalho destaca-se abordagem por métodos
indiretos, nomeadamente por meio de análise geoespacial,
sustentada por imagens orbitais de sensoriamento remoto. As
imagens orbitais de sensoriamento remoto possibilitam análise
sinóptica e favorecem as análises dos ‘aspectos visíveis’ das
paisagens terrestres. Por outro lado, a limitação desses produtos
tecnológicos está relacionada à impossibilidade de análise
de atividades antropogênicas que ocorrem nas paisagens, a
exemplo, retirada seletiva de madeira, a pesca e a violência física.
Apesar da reconhecida a limitação, diversos autores
utilizaram produtos de sensoriamento remoto para análise da
conservação dos recursos naturais em ambientes especiais do
tipo terras indígenas (SANTOS, 2018a; SANTOS, 2018b; FA et al.,
2021; GARNETT, 2018; SANTOS et al., 2021).
Diante de tal possibilidade, investigou-se dados e informações
provenientes de produtos de sensoriamento remoto para revelar
o estado de conservação dos recursos naturais dentro e fora das
terras indígenas no estado de Rondônia.
O estado de Rondônia cobre uma área de aproximadamente
240 mil km² e tem uma população estimada, em 2020, de
1.796.460 habitantes (IBGE, 2020). Em geral, o estado é
recoberto por um mosaico de diferentes tipos de vegetação,
florestas, enclaves de cerrado , referidos pelo Ministério do Meio
Ambiente, como savanas e áreas úmidas, onde são identificadas
áreas úmidas (SANTOS, 2014).
13

ANÁLISE DA CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS NO


ESTADO DE RONDÔNIA

As análises do meio físico são fundamentais para perceber


o grau de conservação dos recursos naturais. Segundo Santos
et al. (2015, p. 249), “as análises ambientais e territoriais no
Brasil recebem valiosas contribuições de dados e informações
geoespaciais que são distribuídas por vários órgãos municipais,
estaduais e federais, além de empresas privadas, organizações
não governamentais e universidades”.
Desse modo, foram utilizados dados e informações mais
recentes, disponibilizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE). Parte dos dados revela o uso e cobertura
da terra e outra parte, os focos de queimadas. Nas últimas
décadas, o uso de sistemas de imagens de satélite tem oferecido
observações sistemáticas de desmatamentos e incêndios nas
florestas da região amazônica do Brasil (SANTOS et al., 2021).
Finalmente, a densidade do Kernel (CHEN et al., 2015) foi usada
para mapear a densidade dos dados de fogo ativo no Estado de
Rondônia.
Os dados de focos de queimadas são relevantes no contexto
da análise, pois o aumento do número de incêndios na vegetação,
juntamente com o aumento do desmatamento, resulta na
conversão e modificação de extensas áreas de florestas tropicais
perenes, florestas de contato e vegetação de savana nos trópicos
nos últimos anos (KÖNÖNEN et al., 2018; GUEDES et al., 2020).
Os recursos naturais estão associados, indubitavelmente, à
presença da vegetação na Amazônia. A vegetação, seja floresta
ou savanas, representa a cobertura da terra, e potencializa a
preservação de outros recursos naturais. Obviamente, que sob a
camada vegetal identifica-se impactos diversos, como já referido,
pesca, retirada ilegal, contrabandos, garimpo e outros. Contudo,
é a partir da retirada da vegetação que se maximiza impactos de
toda ordem na Amazônia.
Nesse sentido, os dados do INPE permitem constatar a
preservação da vegetação, seja floresta, savana, pântanos, mais
preservados no interior das terras indígenas. Fora das áreas
14 DO CABURAÍ AO CHUÍ

das terras indígenas observa-se a consolidação da retirada da


vegetação e impactos ambientais diversos.
O mapa da Figura 1 revela a retirada da vegetação até o ano de
2007. Nesse sentido, apenas alguns pontos foram identificados
dentro das terras indígenas, com destaque para a porção sul
da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau. Essa área, segundo Santos
(2014) sempre foi foco de tensão com fazendeiros que invadem
a terra indígena para criação de gado bovino. Na porção norte da
Uru Eu Wau Wau, com base nos dados do INCRA, Bastos (2009)
revelou que assentamentos foram demarcados no interior da
terra indígena.

Figura 1 – Desmatamento no estado de Rondônia até o ano de


2007 (dentro e fora das terras indígenas)

Após o ano de 2007, o ritmo da retirada da vegetação


diminuiu no estado de Rondônia, observado a consolidação
do desmatamento. Após esse período, o desmatamento se
concentrou no município de Porto Velho, porção noroeste do
15

estado. Segundo Santos e Nunes (2021) foi possível constatar


que o município de Porto Velho, apesar de apresentar a maior
área desmatada acumulada, é um dos municípios do estado de
Rondônia em que as florestas ainda ocupam grandes áreas de
forma contínua. Portanto, o desmatamento nessa área se vale
da condição de extensas áreas ainda florestadas, ou seja, uma
franca fronteira agropecuária em expansão.

Figura 2 – Desmatamento no estado de Rondônia até o ano de


2019 (dentro e fora das terras indígenas)

A Tabela 1 revela a área da retirada da vegetação nos períodos


considerados nessa análise. Assim, foi possível observar o
aumento no ritmo do desmatamento dentro das áreas das terras
indígenas, especialmente na área da Karipuna. A retirada da
vegetação dentro da Terra Indígena Karipuna representa 27,54%
(10,93 km²) do total da área desmatada em todas as terras
indígenas que possuem área no estado de Rondônia. Portanto,
é preciso ponderar que o aumento verificado foi fortemente
16 DO CABURAÍ AO CHUÍ

puxado para cima por eventos que ocorrem numa única terra
indígena.

Período Fora (km²) Dentro (km²) % do total


2008 a 2019 12.273,37 227,57 1,85%
2020 1.271,97 39,69 3,12%
Tabela 1 – Desmatamento no estado de Rondônia

Para o ano de 2020, a retirada da vegetação nas demais


terras indígenas não apresentou grandes variações, conforme se
observa na Figura 3.

Figura 3 – Desmatamento no estado de Rondônia no ano de 2020


(dentro e fora das terras indígenas)

Associado ao desmatamento, observou-se os focos de


calor que revelam queimadas na Amazônia. Assim, foi possível
observar a forte relação entre áreas de retirada de vegetação e
focos de calor (comparar Figura 2 com a Figura 4). Foi possível
17

observar ainda que os focos ocorrem com maior frequência fora


das terras indígenas.
Apesar disso, focos foram identificados no interior das terras
indígenas Uru Eu Wau Wau, Rio Branco e Massaco (Figura 4).
Nesse sentido, Santos et al. (2021) esclarecem que é importante
ressaltar que nas terras indígenas Massaco e Uru Eu Wau Wau,
os dados de incêndios ativos estão associados a ocorrências de
incêndios espontâneos em áreas de Cerrado em todos os anos.
Em outras áreas (ver porção noroeste), quando afetam as
terras indígenas, os focos são oriundos de atividades econômicas
do seu entorno. Assim, o número de focos dentro das terras
indígenas pode ser explicado pelo número de focos fora delas
(SANTOS et al., 2021). Isso é identificado nas terras indígenas
Karitiana, Igarapé Lourdes, Sagarana, Karitiana e Rio Guaporé.

Figura 4 – Densidade do número de focos de queimada (dentro e


fora das terras indígenas)
18 DO CABURAÍ AO CHUÍ

A discussão do fogo sobre áreas das terras indígenas já foi


alvo de análise em outras pesquisas. Santos (2018a) afirma que
a terra indígena Karipuna está sendo envolvida por um
“círculo de fogo” (SANTOS, 2017), vive o olho do furacão quando
se trata de focos de queimadas em Rondônia (SANTOS, 2018a).
Segundo Santos et al. (2021), foi possível concluir que
existem quatro cenários básicos para a análise da dinâmica dos
dados do fogo ativo e sua relação com o fogo nas áreas de Terras
Indígenas no estado de Rondônia. 1) Os incêndios na borda
da área de expansão, no município de Porto Velho, ocorrem
em áreas agrícolas e pecuárias, mas também em vegetação
florestal, inclusive nas bordas da TI Karitiana; 2) Ao contrário,
na porção sudeste, o fogo poupa a floresta, ocorrendo em áreas
mapeadas como agrícolas e pecuárias, pois sua ocorrência está
essencialmente associada a práticas de limpeza de pastagens e
áreas de cultivo do solo; 3) as maiores áreas queimadas, em terras
indígenas e associadas à atividade de fogo, foram observadas na
vegetação do Cerrado (Uru Eu Wau Wau e Massaco) e 4) as Terras
Indígenas associadas às Unidades de Conservação possuem
melhores condições ambientais e são protegidas do fogo que
vem das fazendas.
Através da espacialização do mapa da Figura 5 é possível
observar que a vegetação não florestal é mais abundante e se
encontra mais preservada dentro das terras indígenas. Destaque
é dado para as áreas da Uru Eu Wau Wau, Pacaás Novos, Massaco
e Tubarão Latundê.
19

Figura 5 – Mapeamento da vegetação não florestal em Rondônia


(dentro e fora das terras indígenas)

Apesar do cenário, é possível afirmar que a existência dessas


áreas especiais contribui para a preservação dos recursos
naturais que são afetados pelo fogo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os achados dessa análise corroboram para as pesquisas


anteriormente realizadas e que dão conta de que as sociedades
tradicionais, especialmente os povos indígenas, no estado de
Rondônia contribuem sobremaneira para a conservação dos
recursos naturais. Apesar disso, atividades no entorno próximo
das terras indígenas têm contribuído para degradação ambiental
em suas áreas.
20 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Portanto, é necessário pensar além da área das terras


indígenas, mas também no seu entorno. Nesse sentido, refere-
se que as terras indígenas no Brasil não possuem zonas de
amortecimento, como ocorre nas Unidades de Conservação
(UC). Apesar disso, a Política Nacional de Gestão Ambiental e
Territorial de Terras Indígenas (PNGATI) já alerta a necessidade
de promover ações preventivas e de controle de desastres
ambientais, danos, catástrofes e emergências nas terras
indígenas e seus arredores.

REFERÊNCIAS

BASTOS, A. S. A dinâmica da ocupação e seus reflexos para


estabilidade do meio físico na terra indígena uru eu Wau Wau/
RO e seu entorno. Dissertação (Mestrado em Geografia). Programa
de pós-graduação em Geografia. Fundação Universidade Federal de
Rondônia – UNIR, 2009.
CRISOSTOMO, A. C. et al. Terras indígenas na Amazônia brasileira:
reservas de carbono e barreiras ao desmatamento. Brasília:
IPAM, 2015. Disponível em: https://ipam.org.br/wp-content/
uploads/2015/12/terras_ind%C3%ADgenas_na_amaz%C3%B4nia_
brasileira_.pdf. Acesso em: 2 de out. de 2021.
CHEN, K. et al. Spatial analysis of the effect of the 2010 heat wave
on stroke mortality in Nanjing, China. Sci Rep 5, 10816 (2015).
IBGE. Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
População. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/ (2020). Acesso
em: 2 out. 2021.
FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO; DIRETORIA DE PROTEÇÃO
TERRITORIAL; COORDENAÇÃO GERAL DE MONITORAMENTO
TERRITORIAL; GIZ (orgs.). Serviços ambientais: o papel das terras
indígenas - Programa de Capacitação em Proteção Territorial.
Brasília: FUNAI/GIZ, 2015. 179p.
KÖNÖNEN, M. et al. Deforested and drained tropical peatland sites
show poorer peat substrate quality and lower microbial biomass
and activity than unmanaged swamp forest. Soil Biology and
Biochemistry, v. 123, p. 229-241, 2018.
21

GARNETT, S. T. et al. A spatial overview of the global importance


of Indigenous lands for conservation. Nature Sustainability, v. 1,
n. 7, p. 369-374, 2018. Disponível em: <https://www.sprep.org/
attachments/VirLib/Regional/indigenous-protected-areas-spatial.
pdf>. Acesso em: 15 set. 2021.
GUEDES, B. J. et al. Vulnerability of small forest patches to fire
in the Paraiba do Sul River Valley, southeast Brazil: Implications
for restoration of the Atlantic Forest biome. Forest Ecology and
Management, v. 465, p. 118095, 2020.
FA, J. E. et al. Importance of Indigenous Peoples’ lands for the
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and the Environment, v. 18, n. 3, p. 135-140, 2020. Disponível em:
<https://esajournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/
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SANTOS, A.M. Cartografias dos povos e das terras indígenas em
Rondônia. 314 f. (Tese de doutorado) – Programa de Pós-graduação
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SANTOS, A. M.; BUENO, L. F.; MOREIRA, T. V .S. Dados e informações
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no Brasil. Revista Geográfica Venezolana, v. 56, n. 2, p. 249-267,
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SANTOS, A. M. Conflitos sobre as terras indígenas de Rondônia. In:
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SANTOS, A. M. Socioenvironmental impacts on indigenous lands in the
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SANTOS, A. M. Análise dos usos e da cobertura do solo nas áreas das
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SANTOS, A. M. et al. Dynamics of active fire data and their relationship
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SANTOS, A. M.; NUNES, F. G. Mapeamento de cobertura e do uso
da terra: críticas e autocríticas a partir de um estudo de caso na
Amazônia brasileira. Geosul, v. 36, n. 78, p. 476-495, 2021.
DOI: 10.55328/edpan.978-65-84794-00-9_002

Notas sobre a monetarização e


cotidiano entre os Paiter Suruí
(1970-1990)

Bruno SURUI e Carlos Alexandre Barros TRUBILIANO

Suruí foi a denominação dada pelos primeiros sertanistas,


responsáveis pelo contato oficial, ao povo indígena que se
autodenomina Paiter – que, numa tradução livre para o
português, significa “nós mesmos” ou “gente de verdade”. A
população Paiter Suruí é organizada em quatro divisões clânicas
patrilineares, cujas linhagens são Gabgir, Gamir, Makór e Kaban;
esta última descende de uma fusão com o povo Cinta Larga.
O maior contingente populacional Paiter Suruí – 215
famílias – reside na Terra Indígena Sete de Setembro, cuja
extensão territorial é de aproximadamente 250 mil hectares,
localizada entre os estados de Rondônia e Mato Grosso. De
acordo com os dados da Casa de Apoio à Saúde do Índio (CASAI,
2018), existem 26 aldeias distribuídas ao longo de toda a Terra
Indígena. Embora 60% desta área esteja no território mato-
grossense (aproximadamente 147 mil ha), apenas quatro
aldeias estão no MT; em termos populacionais, isso representa
menos de 10%. A maior parte da população Paiter Suruí está em
Rondônia, o que nos permite afirmar que a maioria das relações,
sejam comerciais, políticas ou econômicas, dá-se no estado de
Rondônia, especialmente no município de Cacoal.
O contato Paiter Suruí com os não índios foi iniciado na
década de 1960; esse período foi marcado por altas taxas de
mortalidade em decorrência de doenças até então desconhecidas
24 DO CABURAÍ AO CHUÍ

pelos indígenas, principalmente o sarampo (ISA, 2003). A história


do povo Paiter Suruí pós-contato relaciona-se diretamente com
as políticas de ocupação espacial de Rondônia. O território
rondoniense, ao contrário do discurso oficial de que era uma
“terra sem homens” destinada a “homens sem terras”, não era
um “imenso espaço vazio”.
Partindo dos estudos de Becker (1991), o avanço
colonizatório de Rondônia (considerado, nessa pesquisa, como
uma etapa do desenvolvimento do capitalismo) alicerçou-se em
duas políticas, a saber: 1) a construção da rodovia BR-364, na
década de 1970; 2) os programas de assentamento populacional,
como os Projetos de Assentamento Dirigido (PADs), os Projetos
Integrados de Colonização (PICs) e os Projetos de Assentamento
Rápido (PARs). Ambos os instrumentos permitiram canalizar o
fluxo de trabalhadores sem terra e/ou desempregados da região
Centro-Sul do país para a fronteira rondoniense. Ainda segundo
Becker, os fluxos migratórios foram além dos assentados:
com a assistência do Estado, registrou-se também um grande
contingente que migrou espontaneamente e se fixou por conta
própria, orientando-se pelo modelo oficial – assentando-se,
porém, de maneira litigiosa. Deste modo, o fluxo populacional
que migrou para Rondônia excedeu a capacidade de controle dos
órgãos oficiais (BECKER, 1991).
Diante do exposto, em pouco mais de 30 anos, a população
de Rondônia passou de aproximadamente 40 mil habitantes,
em 1950, a quase 900 mil habitantes em 1984. O notório
crescimento populacional, aliado à incapacidade dos órgãos
oficiais de organizar as frentes migratórias, culminou em
processos de ocupações e invasões, acirrando os conflitos entre
os colonizadores e os povos tradicionais (BECKER, 1991).
A expansão das fronteiras econômicas, marcada por
conflitos, provocou mudanças nas comunidades indígenas. No
caso dos Paiter Suruí, a abertura do PIC Gy-Paraná (1972) e os
seus desdobramentos, como o avanço da economia madeireira,
fizeram com que os Paiter Suruí estabelecessem uma nova lógica
econômica.
25

Esse projeto de pesquisa partiu da hipótese de que o


avanço da economia madeireira provocou a monetarização
da vida dos Paiter Suruí, cuja principal alteração se deu na
produção e reprodução da vida material: se antes havia um forte
sentido comunal e de coletividade, esse processo passou a ser
intermediado pela lógica monetária, acumulatória e individual.

TRABALHO E COSMOLOGIA

Para pensarmos sobre a produção e reprodução material


dos Paiter Suruí antes do contato, é preciso manter no horizonte
que, para as sociedades indígenas, de modo geral, uma única
atividade coletiva e produtiva pode desempenhar diversos papéis
e funções ao mesmo tempo, sejam eles religiosos, econômicos,
políticos, sociais ou culturais. Essa observação é fundamental
para introduzir a temática das relações econômicas indígenas
pré-capitalistas dos Paiter Suruí.
O filósofo Friedrich Engels, ao pensar sobre a função social
do trabalho, ressaltou que, para além da produção material – ou
seja, a “fonte de toda riqueza” –, o trabalho se tornou a “condição
básica e fundamental de toda a vida humana”. Em outros termos,
as relações estabelecidas pelo e com o trabalho nos permitem
compreender as formas como a sociedade se organiza “tal grau
que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o
próprio homem” (ENGELS, 1977, p. 63).
Na perspectiva marxista, o trabalho, em qualquer modelo
social, não é mero fruto de ação individual: ele repercute e é
resultado de ações sociais, sejam elas decorrentes do acúmulo
de práticas e conhecimentos, da produção e reprodução da
cultura material e do capital cultural. O trabalho é, portanto, a
expressão do grupo, da manutenção ou – em caso de rupturas –
das transformações das formas de organização política, social e
econômica (MARX, 1991).
Na sociedade contemporânea ocidental, atividades
aparentemente desconexas como construir uma rodovia,
postar uma selfie no Facebook, ir a um culto neopentecostal no
domingo, erguer um parque industrial ou tomar um sorvete no
26 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Bob’s carregam em si a produção e reprodução das sociedades


que as geraram. De modo semelhante, quando pensamos
nas sociedades indígenas, especialmente as pré-capitalistas,
atividades como fazer uma flecha, pintar o corpo, preparar o
roçado e conversar com os espíritos da floresta são resultantes
de uma produção social e que, ao mesmo tempo, garantem as
sociabilidades, estabelecem relações de pertencimento e de
sobrevivência material.
Quando tratamos das atividades produtivas dos Paiter Suruí,
especialmente no período pré-capitalista, é possível identificar
elementos convergentes entre religião, trabalho e diversão;
exemplo disso são as festas tradicionais. De maneira convergente,
celebrações – como a festa Gamanré, que serve como preparo
da roça; o Lawaãwewa, dedicado à celebração e à construção de
moradias; o Ytxaga, ritual para pesca com timbó; ou o Mapimaí,
que celebra a criação do mundo dentro da cosmologia Paiter –
organizam as atividades produtivas, são mecanismos de interação
social e de intersecção espiritual. Tomemos esse último (ritual
Mapimaí) como exemplo para compreendermos o cruzamento
entre divisão social do trabalho, religião e organização social na
cultura tradicional Paiter pré-capitalista.
O ritual Mapimaí – ou da criação do mundo – parte de uma
cosmovisão em que se busca o equilíbrio e a reconciliação
entre os seres humanos e as forças da natureza. Politicamente,
o evento reforça os laços de aliança entre os clãs, buscando a
unidade e o fortalecimento étnico. Ritualisticamente, o Mapimaí
busca explicar a origem do mundo e como a sociedade Paiter
se organiza. Todo o rito do Mapimaí é composto por uma
complexidade de ações.
Para compreender o Mapimaí e a própria organização
social dos Paiter, é preciso lembrar que existe a divisão clânica
da etnia, composta pelos clãs Gameb (marimbondos pretos),
Gamir (marimbondos amarelos), Makór (uma espécie de bambu
amazônico) e Kaban (fruta regional). Tradicionalmente, ao longo
de um ciclo anual, metade dos clãs fica ligada ao metare (floresta
ou mato), responsável pela caça, e a outra metade é ligada ao iwai
(roça), responsável pela plantação. Essas atividades se alternam
27

anualmente; assim, os que estão ligados ao metare passam


para o iwai no ano seguinte, e vice-versa. Todos os indivíduos
possuem compromissos com a sua metade, quer seja caçar, roçar
ou confeccionar ferramentas e adornos. A divisão temporal e
de funções determina toda a vida social, desde a produção de
alimentos às festas e rituais, permitindo que todos estejam
preparados para o iwai ou o metare.
No período de metare, o clã, simbolicamente, reforça a
identidade de se fazer longas caminhadas, o prazer das excursões
de caça e pesca, bem como o respeito aos alimentos ofertados
pela natureza. Durante o metare, ocorre a prática de jogos e
excursões exploratórias; nos trajetos, que podem demorar dias,
muitas redes são armadas entre as árvores – elas servem, além
de descanso, para os momentos de concentração e reflexão,
pausas nas quais os mais velhos transmitem aos mais jovens a
sabedoria cosmológica Paiter. No metare, as mulheres (waled)
confeccionam peças de cerâmica, colares e cestarias, e fiam e
tecem tipoias utilizadas para transportar as crianças de colo;
também tecem os gossypium, espécies de cintos e colares de
algodão. Toda a produção artesanal feita durante o metare tem
como destino presentear os Paiter que estiveram no iwai no final
do Mapimaí.
Por sua vez o iwai é o momento de abnegação e introspecção;
nesse período, se dedica mais tempo à produção de roças
maiores, com vistas à “oferta” a toda comunidade. Cabe aos iwai
a sagrada função de plantar, colher e cozinhar.
O Mapimaí é o momento de intersecção. Durante a
festividade, ocorre a troca entre as metades, ou seja, os iwai, a
partir do festejo, tornam-se metare, e os metare tornam-se iwai.
Os iwai, como são responsáveis pela roça, ocupam a posição de
anfitriões do Mapimaí. O auge da celebração ocorre quando os
iwai ofertam a chicha aos convidados. A chicha, criada pelo herói
mítico fundador “Palob”, é uma bebida fermentada de mandioca
e possui teor alcoólico; durante o festejo, tem a função de ser um
purificador espiritual.
Toda ritualística que envolve o Mapimaí é simbólica,
carregada de significados para os Paiter. O líder cerimonial e sua
28 DO CABURAÍ AO CHUÍ

esposa conduzem os membros dos clãs convidados em direção


ao clã anfitrião. Cabe à mulher do líder conduzir uma tocha; o
fogo, que foi um presente de Palob, representa o livre-arbítrio
dos seres terrenos nos tempos da criação. Palob criou os seres
humanos, dando-lhes liberdade para traçar seu próprio destino,
para decidir entre o bem ou o mal. A tocha não pode ser apagada
em momento algum do trajeto. Caso a chama se apague, é um
prenúncio de tempos difíceis, de que Palob se recusará a visitar e
proteger a aldeia. A tocha é deixada, cuidadosamente, dentro da
maloca do líder cerimonial, para que seu fogo sagrado se extinga.
O líder anfitrião é eleito pelos chefes dos clãs convidados
com base no seu prestígio e no conhecimento das tradições.
Como na cosmologia Paiter tudo na vida se renova, durante o
próprio evento se elege o próximo líder anfitrião, seguindo os
critérios de credibilidade entre os membros da comunidade e
sua sabedoria ancestral.
No Mapimaí, todos os membros da comunidade são
convidados a participar. Desde os preparativos até a celebração
da festa, cada indivíduo tem função e trabalho tradicionalmente
estabelecidos, divididos socialmente por gênero e idade. Cabe
aos homens adultos fazer arcos, flechas, enfeites de plumas,
cocares e caçar os alimentos que serão servidos. Também é
função masculina escolher o lugar da roça e, posteriormente,
derrubar a mata, preparar o solo e fazer o plantio. Por sua vez,
cabe às mulheres a confecção dos artesanatos, como colares,
cerâmicas, anéis e a tecelagem de tipoias; elas também preparam
os alimentos e são responsáveis, junto aos homens, por fazer a
colheita.
O Mapimaí apresenta-se, portanto, como um exemplo
para compreender a divisão social do trabalho na sociedade
Paiter Suruí pré-capitalista. Ainda dentro dessa compreensão,
etnologicamente, é importante destacar o trabalho da
pesquisadora Betty Mindlin, especialmente sua obra pioneira
Nós, Paiter – Os Suruí de Rondônia (1985). Dentre outras questões,
a autora trata das similitudes entre os Suruí, os Gavião, os Cinta
Larga e os Zoró, que não apenas falam línguas do mesmo tronco
(Tupi) e da mesma família (Mondé), como também compartilham
29

de “traços culturais e mitologia parecida”. Ao indagar-se “De


onde teriam vindo?”, Mindlin considera que “a história está
menos nos fatos do que num relato mítico do universo” (1985, p.
25). A constatação teórica tem servido de orientação acadêmica
para compreender o imbricamento entre o discurso mítico e a
história do povo Paiter; a cosmologia é, portanto, intermediária
da temporalidade e da dimensão constitutiva da realidade social.
Ao estabelecer a relação dicotômica entre fato e relato mítico
sob o prisma da historicidade, conecta o pensamento mítico à
metáfora, sepultando a ilusão preconceituosa do “primitivo sem
história”. Assim, o discurso mítico explica ao não índio (ou ao
de fora da aldeia) a relação dos Paiter com o mundo e entre si,
dentro de uma referência à história do povo Paiter.

O TRABALHO FAMILIAR

José dos Santos, ao estudar um núcleo colonial camponês


produtor de vinho no interior do Rio Grande do Sul, demonstrou,
sociologicamente, que o trabalho familiar rural, pré-capitalista,
se caracterizou por estabelecer relações produtivas baseadas
na reciprocidade das obrigações interpessoais, e não nas
relações salariais, uma vez que o trabalho era compreendido
como elemento da reprodução social familiar/comunitária e
não visava à acumulação de capital. Ainda segundo o autor, o
trabalho comunitário tinha um caráter não capitalista, mesmo
que os colonos estivessem subordinados ao modo de produção
capitalista como “produtores simples de mercadorias” (SANTOS,
1984).
Para Georg Simmel (2006), nas sociedades pré-monetárias,
a estruturação familiar e clânica é fundamental na determinação
da forma que assumirá a divisão social do trabalho, estabelecendo
culturalmente a divisão sexual das tarefas. Simmel (2006)
e Weber (1991) in-formam que em todas as sociedades
conhecidas, independentemente se matriarcais ou patriar-cais,
os seres humanos se categorizavam entre si através da distinção
biológica do sexo, ou seja, entre masculino e feminino; com base
nesta distinção, as crenças culturais, cosmovisões, nor-mativas e
30 DO CABURAÍ AO CHUÍ

tradições indicam quais status os homens e as mulheres deveriam


ocupar e quais papéis deveriam desempenhar. Com base nas
leituras de Weber (1991) e Bourdieu (1983), compreendemos
status como simbólico determinado e inerente ao grupamento
social, permitindo que o(s) indivíduo(s) desfrute(m) de certo
nível de prestígio, consideração e honra (BOURDIEU, 1983).
Fonte imprescindível para compreender a sociedade pré-
monetária Paiter é o uso das memórias dos anciãos. Para este
trabalho, contamos com a entrevista do cacique Joaquim Suruí,
da aldeia Gabgir, linha 14 da Terra Indígena Sete de Setembro.
Roger Chartier (2007) nos orienta que a história se fundamenta
sobre um saber universal socialmente pactuado; contudo, para
a memória, a presença do passado no presente articula as
narrativas das experiências vividas como forma de orientar o
presente pretendido. Isso não significa que a história e a memória
não possam se relacionar ou que a memória narrada e a história
não possuam aproximações. Logo, a memória torna-se ponto de
inflexão entre tempo, espaço e sujeito histórico, portanto, lugar
privilegiado para examinar as múltiplas dimensões e relações
entre o passado vivido e a história.
Perguntamos ao cacique Joaquim Suruí como era a divisão do
trabalho na aldeia, especialmente antes do contato, e se homens
e mulheres faziam as mesmas tarefas. Sobre o trabalho feminino,
o cacique rememora:

Mulheres não se envolviam no trabalho de homens, mulheres


tinham seu próprio trabalho. Homem fazia roça e depois queimava
a roça e couvava, plantava na roça. Trabalho das mulheres era ir com
homem carregar cará, mandioca, milho; mulheres tinham como
seu trabalho fazer comida, chicha, mulheres não faziam trabalho
de homem, ele só pegava lenha para ela fazer chicha. Trabalho de
mulheres era socar milho no pilão para fazer chicha, mulheres têm
seu trabalho diferente, fazer artesanato (Entrevista realizada em
18/11/2019).

Já sobre o trabalho masculino, o cacique relata:

Homem tem seu trabalho, como caçar, pescar, construir casa,


barracão. Trabalho de mulheres é varrer casa, limpar tudo para
ficar limpo. Ela faz também panela de argila. Homem não faz panela,
31

só busca lenha para mulher queimar a panela pra ficar pronta pra
ser usada. Mulheres vão com homens na roça e vêm carregadas
de cará. Mulheres cozinham a caça que homem foi buscar, homem
busca lenha pra mulheres cozinhar. Mulheres dão a bebida para
convidados do marido. Esses são trabalhos do homem, buscar caça
e construir casa, as mulheres preparam comida e servem, limpam
a casa, cuidam da família (Entrevista realizada em 18/11/2019).

As memórias do cacique Joaquim Suruí nos orientam que as


relações sociais de produção, social e culturalmente definidas,
se valiam da distinção sexual do trabalho, atribuindo papéis
sociais que eram incorporados por homens e mulheres Paiter. O
trabalho feminino era compreendido como trabalho doméstico,
auxiliar ao trabalho masculino.
Além da divisão social do trabalho, as memórias do cacique
nos apontam para uma vivência mais coletiva, colaborativa e
solidária entre os Suruí antes do contato. Se no mundo ocidental
as premissas socioculturais têm como pilares a exaltação do
indivíduo, o ideal do liberalismo e a racionalidade científica, o
modo de vida Suruí baseava-se numa sociedade coletiva. Para
Simmel (1967), nas sociedades pré-monetárias, o indivíduo
dependia diretamente da coletividade para sua existência; após
a monetarização, os indivíduos passaram a exercer cada vez mais
o individualismo, marcado por uma lógica relacional de compra e
venda do tempo, das relações sociais e do trabalho. Perguntamos
ao cacique sobre as atividades produtivas desenvolvidas pelos
Suruí antes do contato, suas estratégias de produção e a partilha
dos recursos.
Quando homem ia caçar, ao matar o porcão, a mulher
cozinhava, o homem chamava os convidados, colocava a caça em
cima da esteira e o homem dividia para os convidados, ninguém
podia ficar sem receber. Se o caçador não oferecia, a pessoa
ficava magoada, até ficava triste. Para isso não acontecer, os
Paiter dividiam os alimentos igualmente. Antigamente, ninguém
podia desfazer do outro, todos eram unidos, solidários uns com
os outros, tudo era fácil de viver harmoniosamente. Quando uma
pessoa não ia com sua cara, a pessoa falava “você não está certo,
você está desconfiado, se tornando mal, ruim”. Antigamente,
32 DO CABURAÍ AO CHUÍ

as pessoas viviam em harmonia, a comida dividida igualmente


entre as pessoas do grupo.

Ainda mais o chefe, chamava as pessoas que viviam por perto de-le,
chamava gritando os vizinhos deles para tomar chicha cedo, porque
as pessoas tomavam a chicha cedo, como se fosse tomar café da
manhã; isso também acontecia à noite, quando comiam carne de
porcão. Mesmo a pessoa dormindo, acordava ela pra dar carne pra
ela, senão ela ficava magoada se não acordassem ela pa-ra comer
carne. Todos se juntavam no mesmo lugar, não sei hoje por que
ninguém divide mais a caça, ninguém divide mais os ali-mentos
para os parentes (Entrevista realizada em 18/11/2019).

A caça talvez seja a principal atividade de exploração de


recursos naturais feita pelo homem. A atividade de caça remonta
a tempos imemoriais: existem registros de caçadores, suas
táticas e tipos de caçadas desde a pré-história; nas florestas
tropicais da América de Sul, estima-se que a caça seja praticada
há mais de dez mil anos (FERRARI, 2001). Ainda hoje, é possível
afirmar que, para algumas comunidades, a caça continua sendo
uma importante fonte de alimentos, tal qual era para os nossos
antepassados (ALLEGRETTI, 1994).
Mesmo no século XXI, na Amazônia, caçar é fundamental
para os povos da floresta devido ao isolamento, aos custos
e à dificuldade de acesso a produtos e bens de consumo. Para
muitas comunidades, a carne de caça é uma das poucas fontes
de proteína e gordura animal disponíveis (AYRES, J. M.; AYRES,
Cristina, 1979). Estudos no campo da nutrição informam que o
teor de proteína contido nas carnes de caça é maior que o de
todos os outros alimentos costumeiramente consumidos pelos
povos da floresta (IORI; SANTOS, 2015).
Além do fator nutricional, a carne de caça representa, ainda
hoje, uma importante atividade econômica para as comunidades
rurais amazônicas. Já o consumo da caça também está conectado
a atividades socioculturais. Dentre os povos indígenas, a prática
da caça, bem como a feitura da carne, são conhecimentos
transmitidos por gerações. A divisão da caça com os membros
da comunidade é carregada de identitarismo; ademais, a figura
do caçador goza de prestígio dentro da aldeia.
33

Com o avanço da frente pioneira e o aprofundamento das


relações capitalistas, os Paiter Suruí se depararam com um
processo de precificação da vida: tudo passou a ter um valor
monetário. Até mesmo a natureza passou a ter, no universo de
significados dos Suruí, valor econômico, afrouxando os laços de
solidariedade. A partilha da caça e da coleta foi substituída pela
venda. O cacique Joaquim Suruí lamenta esse novo contexto:

Hoje as pessoas cobram por um produto ao parente, uma caça ou


semente de alguma coisa. Hoje queremos ser como homem branco,
por isso que estamos acabando. Quando pede alguma coisa e outro
não tem dinheiro, ele não compra, então. A regra antigamente era,
quando uma pessoa pedia, dava. Mas hoje imitamos homem branco.
A gente não vive como era antes, quando cobra e, quando não tem
dinheiro, não compra. Não é da nossa cultura comprar as coisas do
nosso próprio parente (Entrevista realizada em 18/11/2019).

Segundo Simmel (1967), o processo de monetarização


enfraquece os laços de solidariedade que uniam os indivíduos
aos seus grupos de pertencimento nas sociedades tradicionais.
Com a economia monetária, os Paiter passaram a viver em uma
espécie de fronteira simbólico-social, dividindo seu mundo
entre o mundo tradicional (pré-monetário e solidário) e o novo,
capitalista (monetário e individualista); nessa fronteira, os laços
de solidariedades, as noções de integrações, a identificação
com suas raízes e até mesmo as diretrizes de direitos e vínculos
comunitários têm sido substituídos, alterados e redefinidos.
É possível identificar um ponto de intersecção entre Simmel
(1967) e Marx (1991): para ambos, a modernidade intensificou
a experiência da alienação na relação dos indivíduos, tanto
entre si como com os objetos. Essa experiência é marcada
pela coisificação e pela precificação; logo, na fronteira entre o
tradicional e o moderno em que os Paiter passaram a viver na
era pós-contato, a carne de caça não foi mais compreendida
como alimento, mas como mercadoria. Nessa lógica, tudo passou
a ter preço na dimensão econômica e social, instalando conflitos
geracionais e mal-estar no mundo Paiter.
34 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Não sei hoje. Antigamente as pessoas não trocavam, elas davam


quando uma pessoa não tinha semente de alguma coisa; outro,
quando tinha, dava pro outro. As pessoas só agradeciam a semente
de milho dada pelo parente. Quando uma pessoa não tinha semente
de milho, quando tinha outra, dava e não trocava somente, dava.
Todos eram unidos e não faziam mal ao outro, mas se alguém
fizesse mal ao outro, ele ficava magoado, doía nele. Por isso as
pessoas davam quando pediam semente de alguma coisa, as
pessoas não negavam nada uns aos outros (Entrevista realizada em
18/11/2019).

A incidência da monetarização sobre a cultura é uma


característica inerente à modernidade. Deste modo, segundo
Simmel (1967), ela se presta à alienação das relações, pois
transforma a economia monetária em orientação nas relações
do mundo e faz com que o humano seja objetificado e
impersonalizado; o indivíduo sente-se abandonado, na medida
em que o dinheiro substitui os laços de solidariedade. Assim,
a modernidade, alimentada pela monetarização da vida, cria
as condições para o enraizamento de suas características:
individualidade, racionalidade e calculabilidade, que se
sobrepõem às dimensões de afeto, coletividade e solidariedade,
essenciais para a sobrevivência do indivíduo nas sociedades
tradicionais.
Outro aspecto da vida dos Paiter abalado pela incidência
da monetarização foi a sedentarização. Os Paiter Suruí se
constituíam com um povo seminômade, isto é, de migração
sazonal. Afeitos às longas caminhadas, as mudanças periódicas
de residência ocorriam nos limites do território tradicional; os
Paiter não permaneciam mais que cinco anos na mesma área.

Nós vivia assim, não tinha aldeia permanente. Era quase nômades,
abria uma aldeia e ficava no máximo cinco ou três anos naquele
lugar, depois mudava de novo e ficava três ou quatro meses naquele
local que escolheu, depois mudava novamente, ficava um ano. Vivia
andando de lugar em lugar na floresta, mais que guerreava entre
outra etnia como Cinta Larga e outros, depois voltava novamente
no lugar, líder escolhia o lugar onde iam ficar, cacique escolhia,
outras pessoas só esperavam a ordem do líder pra fazer alguma
coisa, esperavam o tempo certo de agir. No tempo da chuva, eles
escolhiam um pra ficar ali. Eles caçavam e dividiam entre eles, outro
35

matava a caça para o líder. Aí no tempo da seca, o líder escolhia


outro lugar que já tinha [sido] ocupado pelos outros na outra época,
esfregava o chão com o pé pra ver se a terra já tinha usado, ia na
frente esfregando o chão com o pé procurando a terra boa pra
roçado, para plantio. Terra boa era terra preta e avermelhada, já
usada pelos antepassados deles. Aí eles ficavam naquele lugar, pra
ficar e abrir roçado ali. O líder pedia outro fazer dele em volta da
casa dele, chefe que organizava a aldeia (Entrevista realizada em
18/11/2019).

Além da roça tradicional, marcada por uma produção de


subsistência, os Paiter dependiam da caça e da coleta para sua
sobrevivência. Em sua estratégia de caçadores-coletores, se
dividiam em pequenos agrupamentos, separados por grandes
distâncias; toda caça e coleta não consumida era armazenada e,
solidariamente, dividida nos tempos de escassez.

Os Paiter dividiam sim os alimentos. Exemplo, patuá. Um Paiter


buscava e fazia suco, depois oferecia pro outro; mulher fazia suco e
depois dividia o suco. Isso acontecia cedo, homem ia no mato buscar
fruta e dividia entre os vizinhos e com quem estava por perto da
casa. As pessoas dividiam mesmo a comida, não deixavam ninguém
sem a fruta ou a caça. Quando homem buscava o mel, ao chegar
na aldeia, dividia entre os parentes, fazia suco cedo e dividia. Isso
acontecia mais entre cunhando, sogro, primo e filhos, as pessoas
dividiam qualquer alimento que buscava no mato, exemplo: patuá,
ingá, mirandiba, mel, castanha, ninguém podia ficar sem o alimento
(Entrevista realizada por Bruno Surui em 18/11/2019).

No mundo Paiter pós-contato, com a incidência da


monetarização, o modelo de agricultura e moradia sazonal foi
gradativamente substituído pela sedentarização das aldeias e de
sua produção agrícola. Em poucos anos, o índio foi incorporando
novas relações de trabalho, transformando-se em produtor,
vaqueiro e criador. Como exemplo dessa transformação, os
Paiter produziram 1,6 mil sacas de café na safra de 2019; o
cultivo envolveu 110 famílias distribuídas por 15 aldeias da
Terra Indígena Sete de Setembro. Destaca-se que o cultivo do
café Paiter é baseado na agricultura familiar, e não se utilizam
agrotóxicos em seus cafezais. A produção do tipo café robusto
(Coffea canephora) atingiu os padrões de excelência exigidos no
36 DO CABURAÍ AO CHUÍ

mercado internacional: as sacas foram exportadas a preço médio


de R$ 700,00, valor três vezes maior que o preço médio da saca
dos outros produtores em Rondônia (FUNAI, 2019).
O avanço das frentes pioneiras e capitalistas – nas décadas de
1970-1990 – marcou as comunidades indígenas de Rondônia. Os
encontros e desencontros entre colonos e indígenas envolveram
diversos atores, tais como os agentes do Estado, a exemplo de
funcionários públicos do INCRA, da FUNAI e policiais – como
também posseiros, fazendeiros, garimpeiros e madeireiros. Betty
Mindlin (1985) relatou que, em meados dos anos 1980, existiam
apenas duas aldeias Paiter Suruí, distantes aproximadamente 50
quilômetros do município de Cacoal. Essa proximidade permitiu
um intenso relacionamento entre os atores da colonização e
os indígenas; segundo Mindlin, o avanço da fronteira agrícola
tratava-se de “um dos casos mais flagrantes do choque da vida
tribal com a fronteira econômica em expansão, com a ocupação
empresarial e a devastação da Amazônia, com a explosão
demográfica do novo estado de Rondônia” (MINDLIN, 1985, p.
15). Neste contexto, o cacique Joaquim relembra a criação de sua
aldeia:

Quando abriu a aldeia resolvi construir umas casas para cada


família com o dinheiro da extrair a madeira, porque um funcionário
da Funai pediu que os Paiter tirassem as madeiras, mas os indígenas
não sabiam como que era isso, tirar madeira, mas o funcionário dizia
para os Paiter, prometendo melhorar a vida deles, eles não sabiam
o que era isso, só perceberam quando os não indígenas entraram
com máquinas como trator caminhão, até então nunca vistos.
Quem estava fazendo isso era funcionário da Funai, eles roubaram
muito o dinheiro. Eu não sabia de metro ou cúbico de madeira. Foi
tirada muita madeira, aí percebi, vi coisa e decidi construir mais
casa, eu pegava dinheiro e distribuía para comunidade. O Paiter era
organizado, comprava mercadoria e distribuía para todos, eram 15
famílias. Quando a construção das casas terminou trouxe energia
movida a motor, aldeia ficava iluminada. Quando terminou a
construção da aldeia, fizeram inauguração, compraram mercadoria,
refrigerantes, carnes, todas as aldeias foram convidadas. Os
madeireiros fizeram poços para comunidade beber água, aí a aldeia
estava completa, com energia, tudo iluminado (Entrevista realizada
em 18/11/2019).
37

A história de Rondônia e dos Paiter Suruí se confundem;


a vida de seus atores foi marcada por relações de disputa,
conflitos e negociações. À medida que se intensificava o contato
com os não índios, a economia tradicional dos Paiter Suruí
passou a ser influenciada pelos modos de vida da cultura que se
apresentava. Com a vinda dos colonos e as sucessivas invasões
ao território indígena, os Paiter passaram a sofrer o aliciamento
de madeireiros. A exploração madeireira, aliada à ameaça de
invasão da TI Sete de Setembro, promoveu a desagregação das
famílias Paiter.
Antes do contato, os Paiter Suruí baseavam-se em duas
grandes aldeias. O aliciamento dos madeireiros e a constante
ameaça ao território, por meio das invasões, estabeleceu uma
nova lógica econômica e de ocupação do território, marcada
pela mobilidade populacional. Nathália Silva e José Neto (2014)
defendem a tese que os Paiter Suruí passaram a se dispersar pelo
território e a criar novas aldeias, pois perceberam que a ocupação
dos espaços não explorados possibilitava acordos comerciais
entre os indígenas e os madeireiros. No universo cosmológico
dos Suruí, a natureza passou a ter valor monetário, especialmente
pela venda de madeira. Nesse período, a habitação provisória
das malocas foi sendo substituída por moradias permanentes
com as casas de madeira, ressignificando as relações tradicionais
Paiter com o espaço.

CONCLUSÃO

O processo de monetarização da vida social dos Paiter


Suruí não significou a descaracterização deste povo como
genuinamente indígena; este estudo tampouco teve como
premissa ser uma espécie de advocacia do “bom selvagem”
rousseauniano. O avanço das relações capitalistas significou
novas formas de racionalidade e sociabilidade entre os Paiter
Suruí. Entre as diversas lógicas e práticas (res)significadas
pela chegada do dinheiro na vida dos indígenas, observou-
se a reprodução da lógica de mercado no interior das aldeias.
Entretanto, enquanto a modernidade fomenta o individualismo,
38 DO CABURAÍ AO CHUÍ

a sociabilidade tradicional dos Paiter remete à coesão social.


Nos encontros e desencontros entre o moderno e a tradição,
existe espaço dentro da aldeia para a roça de subsistência, como
também para apropriação de tecnologias no cultivo do café. É na
aldeia que se integram, interagem e coexistem sociabilidades: ao
mesmo tempo que os Suruí fazem perfis nas redes sociais, eles
pintam o corpo para se proteger das doenças. O uso da internet
não deslegitima as práticas da tradição, “da vida no mato”,
expressas na língua, materializadas no artesanato e vivenciadas
nas festas tradicionais. A monetarização da vida social dos Paiter
Suruí foi – e ainda é – um fenômeno marcado pela contradição e
que evidencia o quanto a história é dialética.

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DOI: 10.55328/edpan.978-65-84794-00-9_003

Povos indígenas e diversidade sexual:


“achava que eu era o único gay do
mundo”

Carma Maria MARTINI e Eliane Rose MAIO

O objetivo do texto é refletir sobre a diversidade sexual no


contexto dos povos indígenas brasileiros em tempos passados
e as demandas do movimento indígena LGBTQIA+(Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Transexuais/Travestis/Transgêneros, Queer,
Intersexo, Assexual e mais). A diversidade sexual diz respeito
às diferentes orientações sexuais e identidades de gênero e a
desinformação e o preconceito em relação a esse assunto causa a
exclusão social e, em muitos casos, a morte daqueles(as) que não
se enquadram nos padrões vigentes. Por isso, realizar pesquisas
sobre essa temática é necessário, especialmente em um país que
possui um dos maiores índices mundiais de violência contra a
população LGBTQIA+.
No âmbito acadêmico a diversidade sexual entre os povos
indígenas é um assunto relativamente pouco explorado. Eriki
Paiva (2020)1 explica que, em um contexto no qual o/a indígena
não era considerado/a um/a sujeito/a histórico/a e protagonista
em suas relações, muitos(as) pesquisadores(as) deram ênfase aos
aspectos culturais e negligenciaram questões como a sexualidade.

1 No texto, para dar visibilidade ao gênero dos(as) autores(as)


referenciados(as), optamos por transcrever seus nomes completos na
primeira vez em que são citados(as). Estratégias semelhantes têm sido
adotadas por pesquisadores(as) na área dos estudos de gênero, tais como bell
hooks, Eliane Maio, Fernando Guimarães Oliveira da Silva, João Paulo Baliscei,
Marcio de Oliveira, Megg Rayara Gomes de Oliveira e Reginaldo Peixoto.
42 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Nos últimos anos alguns/algumas indígenas LGBTQIA+ estão se


organizando, de forma presencial e/ou virtual, para discutir os
problemas enfrentados por eles(as), pensar ações de combate
ao preconceito, promover a representatividade e cobrar das
lideranças a inclusão de suas pautas no movimento indígena
nacional.
No texto iniciamos apresentando alguns registros históricos
que evidenciam que a diversidade sexual sempre esteve
presente na vivência ancestral indígena, sendo invisibilizada e
estigmatizada no processo de colonização, especialmente por
meio da disseminação da fé cristã entre os povos originários.
Por fim, refletimos sobre as denúncias de violências cotidianas
sofridas pelos(as) indígenas LGBTQIA+ dentro e fora de suas
comunidades, bem como as suas demandas na luta pelo direito
de seguir caminhando sem medo de perder suas terras e suas
vidas.

DIVERSIDADE SEXUAL ENTRE POVOS INDÍGENAS EM


TEMPOS PASSADOS

É comum a diversidade sexual ser considerada, inclusive


pelos(as) próprios(as) indígenas, como uma consequência do
contato com os(as) não-indígenas ou uma perda cultural. Para
autores como Luís Mott (1998, 2006), Amilcar Torrão Filho
(2000) e Estevão Rafael Fernandes (2015, 2019) essa é uma
visão equivocada, pois existem diversos registros realizados por
cronistas, padres, missionários(as), antropólogos(as), viajantes
e historiadores(as) que fazem referência à diversidade sexual
entre diferentes grupos indígenas desde o início da colonização
do território brasileiro.

A homossexualidade indígena aparece de múltiplas formas em


diversas fontes desde o início da colonização do Brasil. Autores
como Gaspar de Carvejal (1540), Padre Manuel da Nóbrega (1549),
Padre Pero Correia (1551), Jean de Léry (1557), Pedro Magalhães
Gândavo (1576) e Gabriel Soares de Souza (1587), fazem referência
à homossexualidade indígena (FERNANDES, 2019, p. 28).
43

Torrão Filho (2000, p. 220) informa que “antes mesmo da


chegada dos europeus à América, em 1492, a homossexualidade
já era largamente praticada no continente, tanto entre sociedades
mais avançadas como os incas e astecas, como entre as tribos
nômades do Brasil”. O autor, com base nos escritos do sociólogo
Gilberto Freyre (1987), relata que era comum entre muitos
povos indígenas brasileiros o isolamento dos meninos que
entravam na puberdade em casas onde era proibida a presença
das mulheres. Entre os Bororo, nessas casas chamadas baito –
casa dos homens –, eles ficavam aos cuidados dos homens mais
velhos, sendo frequentes as relações sexuais entre os mesmos,
como uma espécie de iniciação à vida adulta.
Mott (1998, 2006), em suas pesquisas sobre a história da
homossexualidade na América Latina, também constata várias
referências a práticas homossexuais entre os(as) indígenas
desde o início da colonização do território brasileiro. Um
exemplo disso é a utilização, entre os(as) Tupinambá, de termos
como “tibira” e “çacoaimbeguira” para se referir aos indígenas
gays e às indígenas lésbicas, respectivamente.

1549: O Padre Manuel da Nóbrega relata que “os índios do Brasil


cometem pecados que clamam aos céus e andam os filhos dos
cristãos pelo sertão perdidos entre os gentios, e sendo cristão
vivem em seus bestiais costumes”.
1551: O jesuíta Pero Correia escreve de São Vicente (SP): “O pecado
contra a natureza, que dizem ser lá em África muito comum, o mesmo
é nesta terra do Brasil, de maneira que há cá muitas mulheres que
assim nas armas como em todas as outras coisas, seguem ofício
de homens e têm outras mulheres com que são casadas. A maior
injúria que lhes podem fazer é chamá-las mulheres”.
1557: O calvinista Jean de Lery refere-se à presença de índios
“tibira” entre os Tupinambá, “praticantes do pecado nefando de
sodomia”.
1621: no Vocabulário da Língua Brasílica, dos Jesuítas, aparece pela
primeira vez referência a “çacoaimbeguira: “entre os Tupinambá,
mulher macho que se casa com outras mulheres” (MOTT, 2006,
s./p., destaques do autor).

Em seus estudos, Mott (1998) apurou que entre os(as)


nativos(as) Guaicuru, pertencentes à nação Guarani, que vivia às
44 DO CABURAÍ AO CHUÍ

margens do Rio Paraguai nos anos finais do século XVIII, existia


o que hoje podemos chamar de mulheres transgênero, ou seja,
pessoas que nasceram com o sexo masculino, mas que se vestiam
e exerciam papel social idêntico às pessoas do sexo oposto.

Entre os Guaicurus (sic) [...], há alguns homens a que estimam e


são estimados, a que se chamam cudinhos, os quais lhes servem
como mulheres, principalmente em suas longas digressões. Estes
cudinhos ou nefandos demônios, vestem-se e se enfeitam como
mulheres, falam como elas, fazem só os mesmos trabalhos que
elas fazem, trazem jalatas, urinam agachados, tem marido que
zelam muito e tem constantemente nos braços, prezam muito que
os homens os namorem e uma vez cada mês, afetam o ridículo
fingimento de se suporem menstruados, não comendo como as
mulheres naquela crise, nem peixe nem carne, mas sim de algum
fruto e palmito, indo todos os dias, como elas praticam, ao rio, com
uma cuia para se lavarem (SOUSA, 1971 apud MOTT, 1998, p. 5).

Não é possível afirmar que a diversidade sexual estava


presente em todas as sociedades indígenas em tempos passados,
mas tanto para Mott (1998, 2006) quanto para Torrão Filho
(2000) e Fernandes, E. R. (2015, 2019), os registros apresentados
acima, entre outros, desmitificam a crença de que foram povos
externos, de outras culturas, que introduziram a diversidade
sexual entre os(as) nativos(as). Segundo Cristina Donza Cancela,
Flávio Leonel Abreu da Silveira e Almires Machado (2010, p.
217), essa visão é preconceituosa e colonialista, pois parte do
pressuposto de que os corpos e os desejos dos(as) indígenas
são controláveis pelos(as) dominadores(as), no caso os(as) não-
indígenas.
Os estudos de Mott (1998, 2006), Torrão Filho (2000) e
Fernandes (2015, 2019) concluem que as fontes históricas dão
indícios de que não havia discriminação e preconceito entre
os(as) nativos(as) em relação à diversidade sexual, pois ela
fazia parte da vivência ancestral indígena. Para os autores, foi
o/a colonizador/a, com base na moral cristã, quem trouxe o
preconceito e a intolerância, tendo em vista que a diversidade
sexual era considerada pela “cristandade como o mais torpe, sujo
45

e desonesto pecado, punido como crime hediondo [...]” (MOTT,


1998, p. 6, destaque do autor).
Como exemplo da repressão empreendida contra os(as)
indígenas que não se enquadravam nos padrões heteronormativos
e/ou de gênero, capitaneada pela Igreja Católica, Mott (1998)
cita a execução de um indígena Tupinambá publicamente
reconhecido como tibira (homossexual), em 1613, em São Luís
do Maranhão, por ordem dos(as) franceses(as), insuflados(as)
pelos missionários capuchinhos. Na época (1612-1615), os(as)
franceses(as) haviam invadido a região maranhense na tentativa
de se fixarem no Brasil. O indígena “foi amarrado na boca de
um canhão sendo seu corpo estraçalhado com o estourar do
morteiro, para purificar a terra de suas maldades” (MOTT, 1998,
p. 7-8, destaque do autor).
Os registros históricos apresentados pelos autores (MOTT,
1998, 2006; TORRÃO FILHO, 2000; FERNANDES, 2015, 2019),
também nos mostram que a diversidade sexual indígena não
pode ser compreendida como uma “perda cultural, mas antes,
sua invisibilidade e subalternização são resultado de dinâmicas
coloniais ainda em curso” (FERNANDES, 2015, p. 289, destaque
do autor). Logo, a cultura indígena não pode ser utilizada como
álibi para justificar a discriminação, a intolerância e os atos de
agressão contra aqueles(as) que não se enquadram nos padrões
heteronormativos e/ou de gênero.

ALGUMAS DEMANDAS DO MOVIMENTO INDÍGENA


LGBTQUIA+

Embora a legislação brasileira tenha avançado nos últimos


anos em favor da garantia dos direitos pró-LGBTQIA+ e da
criminalização da LGBTQIA+fobia, ainda existe um longo
caminho a percorrer para fazer valer o que consta na letra da lei.
Uma prova disso é que o Brasil lidera por treze anos consecutivos
o ranking dos países que mais mata pessoas trans e travestis no
mundo, conforme pode ser constatado no dossiê “Assassinatos
e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021”,
46 DO CABURAÍ AO CHUÍ

organizado por Bruna G. Benevides (2022) e divulgado pela


Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA). De
acordo com tal documento, “a cada 10 assassinatos de pessoas
trans no mundo, quatro ocorreram no Brasil” (BENEVIDES,
2020, p. 71).
Mesmo não existindo dados específicos sobre a violência
contra os(as) indígenas LGBTQIA+ no Brasil, sabe-se que a
situação de vulnerabilidade dessas pessoas se agrava por
sofrerem duplo preconceito – por serem indígenas e por serem
LGBTQIA+ – e por não terem acesso a muitas oportunidades
de denúncia e amparo. Fizemos uma busca na internet e
encontramos diversos depoimentos de indígenas denunciando
discriminação, preconceito e violência – tanto em suas
comunidades quanto fora delas – por conta da etnia, orientação
sexual2 e/ou identidade de gênero3, como pode ser observado
em alguns relatos apresentados a seguir.
Rogério Macena (2019), da etnia Guarani, residente na
aldeia Paranapuã, em São Vicente (SP), apresenta que hoje as
comunidades indígenas têm mais informações sobre o assunto,
mas que ainda existe muita intolerância. Muitos(as) LGBTQIA+
optam por sair das aldeias ou não se assumir por sentir medo,
insegurança ou vergonha. Segundo ele, essa situação se agravou
com a chegada das religiões evangélicas nas aldeias, porque elas
“têm ensinado aos indígenas como ter preconceito” (MACENA,
2019, s./p.).
Danilo Ferreira (2019), da etnia Tupinikim, estudante da
Universidade de Brasília (UnB), fala da solidão gerada pela falta
de representatividade nas aldeias e considera que a hostilidade
contra os(as) indígenas LGBTQIA+ é uma consequência do
processo de colonização.

[...] Achava que eu era o único gay do mundo. [...] Na aldeia eu


não tinha referências, a única coisa que eu tinha era contato com
o preconceito diário. [...] Aí, descobri que eu posso ser do jeito que
eu quero, que não estou errado. Que o preconceito era uma questão
2 A orientação sexual está relacionada com as diferentes formas de atração
sexual ou ligação afetiva de cada pessoa.
3 A identidade de gênero está relacionada ao gênero com o qual cada pessoa
se identifica.
47

de colonização machista e homofóbica que meu povo sofreu


(FERREIRA, 2019, s./p., grifo nosso).

Braulina Aurora (2019), pesquisadora da etnia Baniwa,


também considera que o pecado associado às relações
homoafetivas é uma consequência da atuação das igrejas junto
aos/às indígenas, tendo em vista que a diversidade sexual
sempre existiu. Cada povo, cada cultura, tinha uma maneira para
lidar com essas questões e as pessoas não eram discriminadas
ou excluídas. Ela explica que

[...] em algumas etnias, eles [LGBTQUIA+] são considerados como


pessoas estéreis, que não podem gerar filhos. Na época da minha
avó, nas aldeias, quando a mulher se recusava a casar, a família
passava a responsabilidade dela para outro parente e, assim, ela se
tornava a tia que não podia ter filhos (AURORA, 2019, s./p.).

Katú Mirim (2020), rapper indígena da etnia Bororo, do


Mato Grosso (MT), salienta que os(as) indígenas LGBTQIA+ que
optam por sair das aldeias não estão livres do preconceito e da
intolerância. Ao contrário, sofrem uma dupla exclusão – tanto por
ser indígenas quanto por sua orientação sexual e/ou identidade
de gênero. Ela relata que é comum ouvir falas preconceituosas:
“já escutei que não bastava ser índia, ainda tinha que ser sapatão”
(MIRIM, 2020. s./p.).
Sandra Kanoé (2021), mulher indígena trans, de Alta
Flores (RO), em live da Associação das Guerreiras Indígenas de
Rondônia (AGIR), realizada durante o Acampamento Terra Livre
(ATL)4 de 2021, também frisou a dupla exclusão sofrida pelos(as)
indígenas LGBTQIA+ no contexto da sociedade não-indígena.

Os[as] indígenas sofrem preconceito, querendo ou não, só pelo


fato de serem índios(as), [...] sendo uma mulher trans como eu, aí
os problemas já redobram. [...] eu tive várias dificuldades para me
tornar a mulher que eu sou agora, não foi fácil, porque eu estou
buscando o meu lugar na sociedade. Às vezes conseguir trabalho
é complicado porque as mulheres trans como eu não têm muita
4 O ATL é um evento de mobilização dos povos indígenas do Brasil para
reivindicar seus direitos constitucionais que acontece, anualmente, desde
2004.
48 DO CABURAÍ AO CHUÍ

oportunidade, a não ser que você trabalhe para você mesma. [...]
Temos que ser fortes porque a sociedade é muito cruel (KANOÉ,
2021, s./p.).

Diante dessa realidade, nos últimos anos, os(as) indígenas


LGBTQIA+ têm se mobilizado por meio de coletivos para debater
os problemas enfrentados, desenvolver ações que gerem inclusão
e representatividade, bem como para que suas reivindicações
sejam reconhecidas pelo movimento indígena. Segundo Marcos
Candido (2020), em 2017, de forma inédita, foi promovida uma
mesa de discussões sobre o assunto no ATL e, no mesmo ano, foi
incluído um grupo de discussão sobre gênero e homossexualidade
no Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI), realizado
em Salvador-BA.
Motivados(as) por essas primeiras ações, os(as) jovens
indígenas LGBTQIA+ também passaram a usar as redes sociais
para dar visibilidade às suas reivindicações, como é o caso do
jornalista Erisvan Bone Guajajara (2018), criador da Mídia Índia,
uma rede de comunicação descentralizada que produz e divulga
conteúdos e pautas relacionados à questão indígena no Brasil.

A partir daí teve a ideia de a gente criar um grupo de LGBTs no


Facebook pra discutir e pra levantar essa bandeira dentro das terras
indígenas, pra que eles possam conhecer e respeitar os LGBTs.
Porque alguns sofrem discriminação dentro de suas terras. Então é
uma coisa que ainda tá criando asas, mas que a gente está querendo
fortalecer. A gente está querendo conversar com as organizações de
base que nós temos, que são a Coiab5 e a Apib6, pra que elas possam
levantar essa bandeira e possam discutir essa temática dentro dos
nossos encontros, pra abrir um pouco a mente dos parentes (BONE
GUAJAJARA, 2018, s./p.).

Nesse panorama, destacamos também o Coletivo Tibira


que, de acordo com Nathan Fernandes (2020), foi criado em
2019, com sede na cidade de São Luís, no Maranhão. Tibira foi
a primeira mídia brasileira dedicada exclusivamente à questão
indígena LGBTQIA+ e reúne integrantes de diversas etnias –

5 Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).


6 Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
49

como Tuxá, Boe Bororo, Guajajara, Tupinikim e Terena. Neimar


Kiga (KIGA, 2020), um dos idealizadores do coletivo, explica que:

[...] existem muitas pessoas dentro das comunidades [indígenas]


que não podem falar sobre esse assunto. Eu mesmo cresci sem me
ver representado nem como indígena, hoje gosto de acompanhar
pessoas como a [ativista guarani e mestre em psicologia social]
Geni Núñes, o Erisvan Guajajara [criador da Mídia Índia] e a
Katrina Malbem [primeira candidata trans em um concurso de
beleza indígena]. Fazer parte do coletivo me fez perceber o quanto
somos importantes para quem não se sente representado em lugar
nenhum (KIGA, 2020, s./p.).

O movimento dos(as) indígenas LGBTQIA+ não desvincula


sua luta do movimento indígena tradicional, especialmente ao
que se refere aos territórios, compreendendo que garantir os
direitos dos povos originários é fundamental para a sobrevivência
material e imaterial. No entanto, reivindica que as lideranças
tradicionais reconheçam suas pautas com o propósito de garantir
uma vida digna para todos(as), com respeito à identidade e à
sexualidade de cada um(a).
Assim, fica evidente que há uma demanda dos povos
indígenas por discussões a respeito das questões relacionadas à
diversidade sexual. Segundo os relatos apresentados, em muitos
casos, aqueles(as) que não se enquadram nos padrões de gênero
e orientação sexual vigentes sofrem diversas formas de violência
e de exclusão. Isso se converte em um problema social que, de
acordo com o movimento dos(as) indígenas LGBTQIA+, convém
ser debatido nas diversas instâncias que compõem as sociedades
indígenas com o propósito de buscar maneiras para resolvê-lo
ou minimizá-lo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vida dos povos originários está ameaçada desde a chegada


das caravelas portuguesas, seus territórios e corpos foram
sistematicamente invadidos, usurpados e violados. O movimento
indígena LGBTQIA+ surge da força daqueles(as) que tiveram suas
50 DO CABURAÍ AO CHUÍ

existências invisibilizada dentro de suas próprias comunidades


pela associação das sexualidades desviantes às culturas externas
e/ou ao pecado. Tem como objetivo estabelecer um canal de
diálogo com as comunidades para a construção de sociedades
indígenas que acolham a diversidade e que suas pautas sejam
abarcadas pelo movimento indígena nacional.
Uma aliada nessa luta é a educação escolar, mas infelizmente
nos últimos anos a educação para a sexualidade vem sofrendo
ataques dos setores conservadores da sociedade, os quais
defendem a exclusão das temáticas gênero e sexualidade do
currículo escolar, com o argumento de que essas questões devem
ser tratadas no âmbito familiar.
A escola, indígena ou não, é um reflexo da sociedade em que
está inserida, questões relacionadas à diversidade sexual estão
presentes em seu cotidiano, independentemente de estarem
previstas em seu currículo. Por isso, entendemos que a educação
para a sexualidade na educação básica e nos cursos de formação
docente podem desestabilizar padrões pré-concebidos de gênero
e sexualidade, contribuindo assim para a construção de espaços
sociais menos violentos.

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Sexualidade e Violência, 2, 2006, São Leopoldo, Anais [...], 2006.
Disponível em: https://luizmottblog.wordpress. com/igreja-e-
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Acesso em: 5 nov. 2020.
PAIVA, Eriki. A diversidade sexual entre povos indígenas do Brasil.
Tellus, Campo Grande, MS, ano 20, n. 42, p. 363-367, maio/ago. 2020.
TORRÃO FILHO, Amilcar. Tribades galantes, fanchonos militares:
Homossexuais que fizeram história. São Paulo: Edições GLS, 2000.
DOI: 10.55328/edpan.978-65-84794-00-9_004

O povo indígena Kaxarari:


um olhar geográfico e fenomenológico
sobre espaço, cultura e natureza1

Gustavo Henrique de Abreu SILVA

Falar sobre um povo indígena, ou mesmo sobre qualquer


cultura, requer cuidado e sensibilidade. As abordagens
antropológicas nos ensinam isso, desde Malinowski a Franz
Boas aprendemos que as culturas não devem ser vistas de forma
unilinear, mas que cada cultura para ser compreendida deve ser
vista “de dentro”, sob sua própria ótica e percepção.
O povo indígena Kaxarari não foge a essa realidade. Nesse
capítulo pretendemos refletir sobre esse povo considerando
aspectos fundamentais da sua cultura, tais como: natureza,
territorialidade, educação e espiritualidade. Para tratarmos
desses temas, dispomos como suporte metodológico da
abordagem fenomenológica, e como fundamentação teórica dos
aspectos das geografias cultural e humanista.
Essas correntes geográficas se caracterizam por trazer para o
pensamento geográfico em geral, um maior interesse em relação
aos aspectos subjetivos presentes nas dinâmicas espaciais. Ou
seja, as crenças, as linguagens, os modos de vida, os valores, o
imaginário, a arte (festas, danças, poesia...) tudo isso faz parte

1 Texto originalmente aceito para publicação na Revista Presença Geográfica,


edição especial Abril Indígena 2021 “Povos originários: resistências e
protagonismos geográficos”.
54 DO CABURAÍ AO CHUÍ

do constructo psicológico e social que molda a relação entre


sociedade e natureza.
Dito isso, sinalizamos que a fenomenologia, enquanto
abordagem metodológica dentro da geografia, nos possibilita
estudar (e aprender com) esses povos sob um viés mais
humano, empático, respeitoso e aberto. A fenomenologia traz
como pressuposto básico vivenciar antes de julgar ou analisar;
experienciar o fenômeno da maneira mais simples e direta
possível. Como fazer isso se não se despindo de preconceitos e
agindo semelhante a uma “criança”? A criança, para brincar com
outra, geralmente não pergunta nem o nome, apenas brinca!
A fenomenologia nos ensina, portanto, a agir de certa forma
como as crianças, ou seja, vivenciando mais e julgando menos.
Nesse sentido, tivemos uma experiência de contato direto com
o povo Kaxarari no segundo semestre de 2021, na aldeia Buriti.
É através dessa experiência que esboçamos os comentários e
reflexões presentes nesse texto.

LOCALIZAÇÃO

A Terra Indígena (TI) Kaxarari está localizada nas


proximidades do distrito de Extrema, na divisa entre Rondônia e
Amazonas (Figura 1). É um povo pertencente à família linguística
Pano, possui um território de aproximadamente 145.000 hectares
e uma população estimada por volta de seiscentos indivíduos. É
formada por seis aldeias, alguns de seus representantes são a
cacica Ivaneide Kaxarari, da Aldeia Central, o cacique Américo
Kaxarari, da Aldeia Barrinha, o cacique Manuel Kaxarari, da
Aldeia Buriti e o presidente da Associação do Povo da Família,
Kaibu Kaxarari.
55

Figura 1 – Localização da Terra Indígena Kaxarari entre os


Estados do Amazonas e Rondônia
Fonte: Instituto Socioambiental – ISA (2019).

A Terra Indígena, infelizmente, está cercada por processos


de desmatamento, principalmente oriundos de fazendas. O povo
Kaxarari tenta se organizar para formar lideranças que possam
dialogar com o poder público no sentido de fazer frente a esses
processos predatórios aos seus territórios.
É importante entender que a lógica da natureza não é a
mesma lógica do mapa, uma linha traçada no mapa não consegue
proteger plenamente o bioma da floresta. Um exemplo claro
são as bacias hidrográficas, as quais necessitam de quilómetros
de matas ciliares preservadas para que possam, assim, manter
adequadamente a dinâmica hidrológica da região como um
todo. A caça, a pesca e a colheita, ou seja, o modo de vida do
povo Kaxarari é prejudicado com a proximidade excessiva das
fazendas.
56 DO CABURAÍ AO CHUÍ

NATUREZA, EXISTÊNCIA E RESISTÊNCIA

A concepção e percepção da natureza do homem moderno,


capitalista e industrial é muito diferente da concepção e percepção
da natureza dos povos indígenas. É claro que existem diversos
debates sobre essa temática e as concepções se transformam de
lugar para lugar e de época para época. Mas os povos indígenas,
e nesse caso específico o povo Kaxarari, não vê a natureza
exclusivamente como fonte de recursos naturais; não se trata
apenas de aspectos materiais, a natureza é também espiritual.
Suas histórias, seus conhecimentos ancestrais e seus modos de
vida provam isso. O escritor e liderança indígena nacional, Ailton
Krenak, explica o significado dessa relação da seguinte maneira:

Quando os índios falam: “A Terra é nossa mãe”, os outros dizem:


“Eles são tão poéticos, que imagem mais bonita!” Isso não é poesia,
é a nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra, quando alguém
a fura, machuca ou arranha, desorganiza nosso mundo (2020, p. 62-
63).

No entanto, verifica-se que o amor e a ligação com a natureza


– que é algo cultural – se fragmenta, especialmente entre os mais
jovens, devido aos novos processos interculturais de contato
com os não-índios. É comum índios mais jovens desejarem
sair da aldeia em direção aos centros urbanos. Nesse sentido,
é importante um contexto educacional que proporcione ao
indígena a possibilidade de se aprofundar em sua própria
cultura e, ao mesmo tempo, ter as ferramentas necessárias para
interpretar o tempo presente lutando pelos direitos do seu povo,
do seu território e da sua cultura.
As águas, o sol, os animais, as árvores [...] para os povos
indígenas tudo tem valores e significados ocultos aos nossos
olhos (não-indígenas). Temos muito a aprender com esses
homens e mulheres, crianças e velhos, sobre o valor terapêutico,
filosófico e etnobotânico do contato com a natureza. O contato
com a terra, um banho de rio, o calor do sol e o frescor do vento,
o canto dos pássaros [...] são sensações que, sinestesicamente,
ativam memórias e ideias, estados de ser e estar, de se sentir e se
57

perceber frente a um Outro (natureza) que dialogicamente nos


conduz a um nível de percepção diferente do proporcionado pela
agitação da vida moderna, capitalista e industrial. Revelando
uma experiência profundamente fenomenológica Ailton Krenak
escreve que:

[...] a consciência de estar vivo deveria nos atravessar de modo que


fôssemos capazes de sentir que o rio, a floresta, o vento, as nuvens
são nosso espelho na vida. Eu tenho uma alegria muito grande de
experimentar essa sensação e fico procurando comunicá-la, mas
também respeito o fato de que cada um tem a sua passagem por
este mundo (2020, p. 56).

O filósofo e humanista Martin Buber (2001) em seu livro


“Eu e Tu”, fala que o ser humano possui duas maneiras de se
relacionar na terra, o que ele chama de “palavras-principais”:
a maneira “Eu-isso” e a maneira “Eu-Tu”. A maneira “Eu-isso”
se caracteriza por todo tipo de relação burocrática que temos
que realizar: pagar contas, consertar um carro, resolver esse ou
aquele problema, por exemplo. Já a relação “Eu-Tu” caracteriza-se
pela plena percepção do tempo presente. Nessa relação a pessoa
não se perde em nostalgias do passado e nem em expectativas
do futuro, ela vivencia realmente o agora. Essa vivência é sempre
dialógica, em forma de troca, de contato, de encontro.
Ainda segundo Buber, a relação Eu-Tu pode acontecer em
três níveis: o Eu com um outro ser humano, o Eu com o Tu-Divino
e o Eu com a Natureza. Ou seja, um pôr do sol, um rio, as matas,
uma árvore, um animal doméstico [...] todos esses elementos
da natureza podem se apresentar para o Eu como uma parte
dialógica da sua própria ontologia.
No mundo indígena do povo Kaxarari sua ontologia não
é marcada apenas pelo Eu individual, mas pelo Eu que se
constitui a partir da dimensão dialógica com a natureza e com
os membros de sua aldeia. Ser indígena para eles não é ser um
“indivíduo”, mas ser um membro da tribo, um indivíduo dentro
de um contexto específico de tempo e lugar: o lugar é a aldeia e
o território, o tempo é sua história dentro da família e dentro da
história de enfrentamento do seu povo.
58 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Utilizamos Buber aqui apenas de forma ilustrativa para


buscar demonstrar os diferentes tipos de profundidade possíveis
nas relações entre ser humano/natureza. Para o povo Kaxarari a
natureza lhes fala. Por exemplo, algumas plantas são sagradas,
não podendo serem colhidas em qualquer momento e nem por
qualquer pessoa.
Entender uma outra cultura e suas concepções sobre a
natureza é uma tarefa mais complexa do que parece. Devemos,
enquanto cientistas e acadêmicos, ter uma visão realista da
sociedade em que vivemos e, na medida do possível, perceber
como essa mesma sociedade influencia em nossos pensamentos
e maneiras de ser e agir.
Uma das principais características de nossa sociedade
contemporânea é a velocidade de informações e efemeridade.
Muitos já têm falado e estudado sobre isso, alguns falando em
pós-modernidade e outros até mesmo em modernidade líquida
(BAUMAN, 2000, 2004, 2009). A sensação que se tem é de que
dispomos de pouco tempo para fazer tudo o que precisamos.
As exigências são muitas nessa sociedade pós-moderna, o
que, segundo alguns, tem nos deixado cansados2, amargos e
individualistas.
Sobre essa questão das diferentes percepções de tempo,
uma experiência interessante aconteceu conosco (o grupo de
pesquisadores que fazia um campo na aldeia Buriti, TI Kaxarari).
Chegamos na aldeia por volta das 11:00 horas da manhã,
um pouco antes do almoço e fomos conhecer o lugar: andar
pela aldeia, conversar com as pessoas. Almoçamos, fizemos
uma reunião de trabalho, andamos mais e conversamos mais
procurando aproveitar a oportunidade para vivenciarmos o
espaço e o momento e, por fim, tomamos um maravilhoso banho
de igarapé. Unanimemente, todos da equipe pensávamos já
ser umas 16:30 ou 17:00 horas, mas para nosso espanto ainda
eram 14:30. Ou seja, empiricamente a nossa experiência de
tempo naquele lugar nos pareceu bem diferente da qual estamos
acostumados.

2 Nesse sentido, é interessante a análise do filósofo sul coreano Byung-Chul


Han (2019) em seu livro “A sociedade do cansaço”.
59

Vivenciar a natureza é também vivenciar as suas diferentes


temporalidades, não podemos descobrir a natureza apenas
através de livros e teorias, precisamos do contato direto com ela;
por isso o aporte metodológico da fenomenologia, a qual nos dá
a possibilidade de vivenciar um espaço e um tempo de forma
mais aberta e tranquila.

A SOBREVIVÊNCIA DE UM POVO: EDUCAÇÃO, LINGUAGEM E


CONHECIMENTO

Os Kaxarari geralmente vivem de seus roçados, coletam


castanhas e criam animais domésticos3 ou, em alguns casos,
trabalham em serviços em fazendas próximas às suas terras. As
fazendas são um problema para o povo Kaxarari, várias delas
estão muito próximas às suas aldeias. Quando fizemos o campo
na aldeia Buriti ficamos impressionados com a proximidade,
pouquíssimos minutos após sair da aldeia já é possível avistar
diversas áreas desmatadas para pasto. Outro problema bastante
complexo advindo dessa proximidade é o caso de filhos gerados
do envolvimento de jovens índias com fazendeiros. Alguns
desses fazendeiros utilizam desse artifício para reivindicar sua
permanência na região alegando seu pretenso parentesco com o
povo indígena.
O povo Kaxarari, na verdade, está se esforçando para se
organizar e formar lideranças. Diante de tempos e debates
tão desafiadores, considerando o atual cenário sociopolítico
nacional, eles precisam de voz política que possa articular a luta
por seus direitos. As ajudas que esse povo recebe do atual governo
são ínfimas, e visando sua sustentabilidade e sobrevivência eles
têm dialogado sobre o surgimento e consolidação de lideranças
indígenas nacionais, tais como: Daniel Munduruku, Sônia
Guajajara, Almir Suruí, sua filha Txai Suruí, Ailton Krenak e
outros.
Na aldeia Buriti a comunidade demonstra entender que
a organização social, cultural e política é fundamental para

3 Na aldeia Buriti observamos principalmente a criação de galinhas.


60 DO CABURAÍ AO CHUÍ

articular os enfrentamentos necessários para a sobrevivência de


seu povo. É nesse sentido, que muitos indivíduos demonstram
interesse pela formação educacional de seus filhos. Ouvimos
diversos relatos refletindo a preocupação em relação à formação
educacional dos jovens.
O único professor na aldeia Buriti é Edinei Kaxarari, ele
nos explicou um pouco sobre suas dificuldades enquanto
único docente na aldeia. Apesar de terem um bom espaço
físico, construído com vistas ao desenvolvimento das aulas,
falta material: não há quadro para escrever, faltam cadeiras e
equipamentos básicos. Edinei tem que ministrar, simplesmente,
todas as disciplinas: história, geografia, matemática, português
[...]. Além disso, ele sozinho não consegue atender a demanda
dos diversos anos letivos. Edinei ensina tanto o português quanto
a língua nativa, ele nos explica a importância do aprendizado
da língua nativa: “A nossa língua está muito ligada com a nossa
cultura, muitas crianças gostam de falar o português, mas tem
coisas [do nosso povo] que não dá pra entender o significado
correto em português, tem que ser na nossa língua, senão muda
o sentido4”.
Edinei reconhece que o caminho para a melhoria na aldeia
passa pela educação, mas se preocupa com um tipo de educação
que não esteja voltada aos interesses do seu povo, e sim a
interesses dos não-índios. Krenak (2020, p. 56), por exemplo,
alerta que “O modo de vida ocidental formatou o mundo como
uma mercadoria e replica isso de maneira tão naturalizada que
uma criança que cresce dentro dessa lógica vive isso como se
fosse uma experiência total”. Ou seja, as lógicas que motivam a
formação curricular não-indígena podem provavelmente não
atender, ou até mesmo corromper, o sentido profundo do que
deve ser uma formação educacional indígena. Como um Estado
não-indígena pode oferecer uma formação educacional eficiente
para o povo indígena? Essa é uma pergunta de difícil resposta.
Mas sabemos, a princípio, que a resposta correta a essa pergunta
relaciona-se principalmente com respeito a alteridade e saberes
dos povos indígenas.
4 Entrevista cedida ao pesquisador na aldeia Buriti (TI) Kaxarari, segundo
semestre de 2021.
61

Edinei é concursado e habilitado oficialmente para ministrar


aula, mas quer continuar sua formação. Ele nos explicou que
o curso universitário é o sonho de muitos indígenas, mas as
condições para uma formação que lhes possibilite esse acesso
são escassas. Vimos empiricamente o valor e a necessidade da
política de cotas para as populações indígenas. A distância e o
difícil acesso às aldeias é outro fator complicador nesse processo
educacional.
Outro ponto ressaltado por Edinei Kaxarari é a precariedade
dos materiais didáticos, não há materiais que contemplem a
cultura e realidade dos povos indígenas. Os materiais – livros,
apostilas, mapas, etc. – são produzidos, em sua maioria, no eixo
Rio-São Paulo. Falam, portanto, de realidades totalmente alheias
às necessidades, vivência e espacialidades dos povos indígenas.
O que pode ser feito? Edinei nos explicou que tem procurado se
adaptar, mas infelizmente, nesse impasse curricular o docente é
abandonado praticamente à própria sorte e, por isso, improvisa
da melhor maneira que pode. Busca articular a importância
dos conhecimentos não-indígenas, mas, ao mesmo tempo, toca
sempre em questões pertinentes à sua própria cultura, tais
como: as matas e os animais, as lendas e os modos de produção,
as histórias de luta e sobrevivência.

CULTURA E IDENTIDADE

O sabedor, na aldeia, é a pessoa geralmente mais velha, ou um


dos mais velhos, que detêm um conhecimento mais aprofundado
da cultura de seu povo. Ele conhece mais sobre plantio, clima,
história, medicina e espiritualidade. É a ele que os mais jovens
recorrem para tirar dúvidas ou pedir conselhos, aprender sobre
questões práticas ou questões morais.
Na aldeia Buriti, o sabedor é o seu Raimundo, nem ele mesmo
sabe com exatidão sua idade. Quando lhe perguntamos sobre
isso ele sorriu e, na sua língua5, respondeu não ter certeza, mas
acreditava que era entre 80 a 83 anos.
5 Seu Raimundo não fala o português, somente a língua Kaxarari, mas entende
bem e conhece também diversas palavras.
62 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Seu Raimundo conhece os ciclos da natureza, e nos disseram


que ele previa chuvas e outros fenômenos com exatidão, mas, de
um tempo para cá, com as mudanças climáticas e o avanço das
fazendas, Seu Raimundo já sente dificuldades para sinalizar esses
movimentos com da natureza. Essa realidade não é exclusiva do
povo indígena Kaxarari, pelo contrário, é um problema global.
Ailton Krenak fala a respeito:

Nós estamos, devagarinho, desparecendo com o mundo que nossos


ancestrais cultivaram sem todo esse aparato que hoje consideramos
indispensável. Os povos que vivem dentro da floresta sentem isso
na pele: veem sumir a mata, a abelha, o colibri, as formigas, a flora;
veem o ciclo das árvores mudar. [...] O mundo ao redor deles está
sumindo. Quem vive na cidade não experimenta isso com a mesma
intensidade porque tudo parece ter uma existência automática: você
estende a mão e tem uma padaria, uma farmácia, um supermercado,
um hospital. Na floresta não há essa substituição da vida, ela flui, e
você, no fluxo, sente a sua pressão (2020, p. 55-56).

É difícil para nós, da cidade, entendermos a dinâmica


e singeleza desses fluxos. O nosso tempo é outro, a nossa
mentalidade é outra e, portanto, a nossa percepção também é
outra. A flora e fauna interagem com o mundo da cultura e dos
valores. Nesse sentido, verificamos também algo preocupante,
provavelmente por mudanças culturais ocasionadas por contatos
interétnicos, observou-se um desinteresse por parte de alguns
dos mais jovens em aprender mais profundamente sobre sua
própria cultura. Talvez por isso, Seu Raimundo demonstre um
certo isolamento frente ao seu importante papel na aldeia.
O que queremos dizer é que constatou-se, (através de
entrevistas e vivências), que enquanto os jovens com o passar dos
anos têm demonstrado menos interesse por sua própria cultura,
Seu Raimundo tem se tornado mais introspectivo e menos
comunicativo. É claro que seriam necessários estudos mais
aprofundados – tanto a nível antropológico quanto psicológico –
para se ter conclusões definitivas sobre esse fenômeno, mas seja
como for há indícios que apontam para um problema de bases
interétnicas relacionando processos interculturais e saberes
ancestrais.
63

A identidade de um povo está diretamente ligada aos seus


saberes ancestrais e à consciência de sua história. Na medida
em que um povo perde essa memória, perde também parte de
sua essência. É por isso que lideranças indígenas do Brasil e do
mundo se articulam para reafirmar sua luta e a importância de
seus povos na manutenção da biodiversidade e da vida, não só
das florestas, mas do planeta como um todo.

Aqui, do outro lado do rio, há uma montanha que guarda a nossa


aldeia. Hoje ela amanheceu coberta de nuvens, caiu uma chuva e
agora as nuvens estão sobrevoando seu cume. Olhar para ela é um
alívio imediato para todas as dores. A vida atravessa tudo, atravessa
uma pedra, a camada de ozônio, geleiras. A vida vai dos oceanos
para a terra firme, atravessa de norte a sul, como uma brisa, em
todas as direções. A vida é esse atravessamento do organismo vivo
do planeta numa dimensão imaterial (KRENAK, 2020, p. 15-16).

A questão principal não se trata apenas de florestas, culturas


“exóticas”, ou economias de mercado [...] trata-se da vida! Como
nos ensina Krenak e outras lideranças indígenas, a vida é fruição;
querer resumir a vida a algo utilitário é uma espécie de ilusão e
reducionismo do homem moderno, uma construção ocidental
pautada em ideias capitalistas e colonialistas. A vida é arte e
dança, encontros e desencontros, decepções e conquistas. Essa
visão espiritual da vida que se adquire no silêncio e no contato
com a terra é compartilhada, de diferentes maneiras, pelos povos
indígenas. Seu Raimundo nos mostra essa alegria e vitalidade
do contato com a terra. Fez questão de nos convidar para nos
mostrar o seu roçado, todo organizado e trabalhado por ele, um
homem com mais de 80 anos. Não falávamos a sua língua, seus
netos traduziam suas palavras para nós. Mas em seus olhos e no
seu sorriso percebíamos uma pureza e inteligência que escapava
aos nossos constructos acadêmicos.
Entender que a linguagem científico-acadêmica é, em diversos
aspectos, limitada para falar da pluralidade e riqueza dos povos
indígenas é premissa fundamental numa análise acadêmica
séria e honesta. Não é difícil perceber que as dinâmicas de vida
e subjetividades indígenas não são contempladas pela rigidez
64 DO CABURAÍ AO CHUÍ

dessa linguagem. Krenak (2020, p. 57) desabafa a esse respeito


“Hoje, quem fala em ancestralidade é um místico, um pajé, uma
mãe de santo, porque as “pessoas de bem” saíram de um MBA em
algum lugar e não vão ficar falando esse tipo de coisa.” O autor
tece uma crítica simples e bem-humorada para nos fazer refletir
em até que ponto os nossos modelos e estatísticas, esquemas
e racionalidades, conseguem traduzir as nossas realidades e
responder aos nossos dramas atuais.

É ilustrativo falar na perca da inteligência nativa com Terra. Os povos


autóctones – a exemplo dos ribeirinhos na região amazônica e dos
povos indígenas – nos mostram essa inteligência. Segundo Dardel, e
também Bachelard, somos inevitavelmente ligados a Terra; a Terra
nos alimenta de variadas formas, tanto físicas quanto espirituais.
Os meios tecnológicos não nos dão as sinestésicas vivências face-a-
face que as paisagens nos proporcionam. O cheiro e o tato, os sons e
as sensações, a poética e o devaneio, não devem ser negligenciados
nas análises das experiências humanas do espaço (SILVA, 2021, p.
11-12)6.

Na sociedade moderno-capitalista estuda-se tanto, trabalha-


se tanto e parece que quanto mais trabalhamos, estudamos e
nos esforçamos mais as pessoas estão estressadas, cansadas e
doentes. Nossa sociedade é como uma máquina que não tem
descanso, é como um estômago que não para de receber comida
e, justamente por falta de descanso sente gastrite, refluxo e
uma série de incômodos. Os povos indígenas, com seus saberes
ancestrais, têm a capacidade de nos ensinar sobre esse tempo e
esse silêncio perdidos, esquecidos. Cabe a nós refletirmos sobre
nossa ancestralidade, até mesmo enquanto brasileiros, buscar
uma resposta de quem realmente somos e do que realmente
queremos ser; refletir sobre o tipo de vida que estamos levando
e para onde estamos indo. As sociedades e países buscam e
querem o melhor para si mesmos, mas a mensagem dos povos
indígenas é cristalina: todos somos habitantes de um mesmo

6 Eric Dardel é um geógrafo francês nascido em 1899, que com o seu livro “O
homem e a Terra: a natureza da realidade geográfica”, publicado originalmente
em 1952, foi, provavelmente, o primeiro a propor as bases de uma geografia
genuinamente fenomenológica.
65

planeta, a água e a terra, as plantas e os animais, todos fazem


parte de um mesmo ecossistema em constante movimento, e
todos precisam viver.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Terri Valle. Os Kaxarari. Relatório de avaliação. CPI-Acre,


1985.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar,
2000.
BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços
humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BAUMAN, Zigmunt. A arte da vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
BUBER, Martin. Eu e Tu. Tradução do alemão, introdução e notas por
Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Centauro, 2001.
CLAVAL, Paul. História da Geografia. Lisboa/ Portugal: EDIÇÕES 70
LDA, 2006.
DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica.
São Paulo: Perspectiva, 2011.
FUNAI. Relatório de viagem à Área Indígena Kaxarari. 1997.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2ª edição ampliada.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita
Carelli. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
SILVA, Gustavo Henrique de Abreu. Fenomenologia e Geografia: a
imaginação dinâmica de Bachelard em tempos de redes sociais.
Revista Presença Geográfica. v. 8, n.1, p. 1-12, 2021.
DOI: 10.55328/edpan.978-65-84794-00-9_005

O exército da borracha e a brigada


esquecida na Amazônia Pós-Segunda
Guerra Mundial

Reginâmio Bonifácio de LIMA

DAS AMAZÔNIAS E DOS POVOS QUE NELA HABITAM

Há séculos a Amazônia tem sido cobiçada por diversos


povos. As populações que nela viviam e vivem há várias gerações
também precisaram lidar, conviver, guerrear, negociar, interagir,
expulsar, sincretizar, assimilar, se modificar dentre outras
tantas formas de vivências e convivências em campos sociais,
identidades construídas e habitus constituídos com o passar do
tempo.
Quando se fala em “Amazônia” a imagem evocada pela
memória é de nativos pintados e emplumados, fauna exótica,
densas florestas tropicais, desmatamento desenfreado, extinção
da biodiversidade e mudanças climáticas. Essas imagens
fragmentárias são visões da Amazônia, mas não são a Amazônia
nem representam sua completude (CLEMENT et al., 2015).
A Amazônia já era fartamente ocupada por povos de
diferentes culturas há milhares de anos. A ideia propalada de que
havia um vazio geográfico ou de que existiam apenas pequenas
aldeias com agrupamentos irrisórios não apenas demonstra
inépcia por parte dos governantes, mas também não encontra
sustentação ante os indeléveis achados sobre esses povos.
Há civilizações humanas vivendo na Amazônia há pelo
menos dez mil anos. Dezenas de povoados pré-cristãos, com
68 DO CABURAÍ AO CHUÍ

aldeias interflúvias que abrigavam grandes populações. Denevan


e Clement afirmam que a população da “Grande Amazônia”
Pré-Colombiana tem contagem conservadora de seis milhões
de habitantes, podendo este quantitativo ser bem maior. Entre
os séculos XVI e XX havia na Amazônia não apenas uma rica
diversidade de povos, como também a coexistência de populações
em povoados de cinco mil a dez mil pessoas, podendo chegar
a cinquenta mil pessoas em regiões próximas (CLEMENT et al.,
2015, p. 4-5).
São várias as Amazônias: Amazônia continental, Amazônia
sul-americana, Pan-Amazônia, Grande Amazônia, Amazônia
Legal e outros termos são necessários para se referir à Amazônia
toda e diferenciá-la da Amazônia nacional que está contida
em cada país que compartilha a região. A Amazônia integra
territórios de oito países e um departamento francês, com uma
superfície de mais de 7 milhões de km². Com um ecossistema
riquíssimo e “um potencial exuberante e inigualável de
recursos naturais” (MELLO, 2015, p. 91) a Amazônia, por seus
significativos superlativos, emerge no cenário mundial como “o
centro das atenções” (MELLO, 2013, p. 19).
A Amazônia sempre foi vista como “uma coisa”, “algo
exótico”, “um lugar de onde se retira riquezas”. Nesse âmbito de
extração, a borracha, o caucho, o látex, a seringa ou quaisquer
outros nomes dados à seiva das árvores gomíferas das matas
nativas amazônicas estiveram entre os produtos mais cobiçados
há séculos por estrangeiros de várias terras em distintos
continentes.
A borracha é conhecida há séculos pelos aborígenes
americanos. Os indígenas que marginavam o golfo do México
fizeram uso dela para pagamento de tributos aos Astecas e como
moeda de escambo (MARTINELLO, 2017, p. 17). A existência da
borracha foi relatada à Europa ainda no século XVI. Nelson Pinto
(1984, p. 10) afirma que Pietro Martyre d’Anghiera, diplomata,
escritor, historiador e capelão da corte de Fernando e Isabel, foi
o primeiro a escrever sobre a utilização da borracha vegetal, em
69

eu “De Orbi Novo1” que foi publicado em segmentos a partir de


1514 a 1925.
Durante todo o século XVI e seguintes vários foram os
escritos sobre a goma elástica e suas propriedades: Bernardino
de Sahagum (1529) e os brinquedos feitos de uma goma chamada
ulequahuitl2; Gonzalo Fernandez de Oviedo (1536) e o gogo de
mão com uma bola denominada gumana; Tomás de Torquemada
(1615), relata em sua “Monarquia Indiana” a produção de
utensílios domésticos a partir de uma seiva de árvore.
Os portugueses paraenses (1799) enviaram roupas
impermeabilizadas e sapatos de borracha ao Marques de Pombal
e a ao rei Dom José; o cirurgião português Francisco Xavier de
Oliveira (1800), depois de pesquisas com a goma elástica no
Amazonas, publicou resultados de uso na área médica (BARATA,
1921, p. 224).
No período que engloba os séculos XVI e XVII ainda não
haviam sido criadas as condições para a Europa mercantil
incorporar a borracha ao seu desenvolvimento econômico.
Somente no século XVIII, depois a redescoberta de atividades
com o látex produzidas por François Fresnau e Charles Marie de
La Condamine, é que se repensou o uso comercial da borracha
(LA CONDAMINE, 1944, p. 54).
Depois da descoberta do processo de vulcanização da
borracha, no ano de 1839, percebeu-se que as propriedades
elásticas da borracha poderiam se tornar mais duradouras por
meio do tratamento com enxofre e calor. Várias árvores silvestres
produtoras de borracha foram descobertas por toda a América
e, também na Ásia e na África, contudo a borracha com maior
grau de pureza e elasticidade foi encontrada abundantemente na
Bacia Amazônica (DEAN, 1989, p. 24).

1 Disponível em: https://archive.org/details/deorbenouopetrim00angh/


page/n7/mode/2up. Acesso em: 11 fev. 2022.
2 Bernardino de Sahagún (1499-1590), frade franciscano espanhol. Autor
de várias obras bilíngues em náuatle e espanhol, consideradas hoje entre os
documentos mais valiosos para a reconstrução da história do México antigo,
antes da chegada dos conquistadores espanhóis.
70 DO CABURAÍ AO CHUÍ

O Grande Capital3 financiou a expansão da fronteira


amazônica. No início do século XIX a Região teve um inicial
desenvolvimento econômico do comércio exportador de
borracha, a partir da cidade de Belém, no Estado do Pará
(OLIVEIRA FILHO, 1979, p. 126). Somente a partir da segunda
metade do século XIX foi que essa atividade de extração gomífera
adquiriu importância para a Região, a partir da vulcanização
produzida por Charles Goodyear.
Ao mesmo tempo em que se buscava a consolidação para
a utilização da borracha e se descobriam novos processos de
estabilização, o Império do Brasil também passava por um penoso
processo de consolidação política depois de sua declaração de
independência em relação a Portugal e de revoltas populares
como a Cabanagem, de 1835 a 1840, na região Amazônica.
Menos de duas décadas mais tarde, precisamente em maio de
1851, ocorreu a Primeira Exposição Internacional, em Londres,
também conhecida como “A Grande Exposição dos Trabalhos da
Indústria de Todas as Nações”. No ano seguinte, foram aprovados
os Estatutos da Companhia de Navegação do Amazonas, dirigida
pelo Visconde de Mauá.

3 De acordo com Rudolf Hilferding, o capital financeiro é a forma assumida


pelo grande capital a partir do fim do século XIX. O autor analisou o caso
alemão onde os bancos detinham a hegemonia no processo de acumulação
de capitais. Esse era diferente do caso americano, em que o capital industrial
comandava a dinâmica de acumulação capitalista. Hilferding, ao estudar o
crescente processo de interdependência de capitais e sua expansão para as
sociedades anônimas, desenvolveu suas categorias analíticas afirmando que
o “Grande Capital” foi estruturado como reflexo da crescente centralização
e interdependência das distintas frações do capital (industrial, comercial,
bancário). Após desenvolver sua teoria, o autor passou a demonstrar a ligação
existente entre o desenvolvimento do capital financeiro e a exacerbação do
colonialismo. Afirmou que a proteção e repartição dos mercados, mediante
práticas monopolistas, contavam com a ajuda das políticas governamentais
e a anexação territorial das colônias pelas potências imperialistas. Essas
estavam intimamente relacionadas com a política de reserva de mercado,
impactando na expansão do capitalismo em sua forma imperialista. Ver:
HILFERDING, Rudolf. O Capital Financeiro. São Paulo: Nova Cultural, (1909)
1985. Coleção Os Economistas. LENIN, V. I. O Imperialismo: etapa superior do
capitalismo. Campinas: FE/Unicamp, 2011.
71

Em 1848, a borracha representava apenas 10,7% dos produtos


exportados pelo Império Brasileiro; em 1872, já representava
71,9% das exportações imperiais brasileiras (SANTOS, 1980, p.
75). Em termos de Brasil, a borracha atingiu o terceiro lugar (atrás
do açúcar e do café) no quadro das exportações nacionais (REIS,
1953, p. 46-47 e 70). Esse extrativismo gomífero predatório
esgotou as áreas de exploração próximas de Belém e de Manaus.
Dentre todo o território amazônico, foi no território em que
atualmente se nomina como Estado do Acre que se encontrou
maior volume de látex com qualidade e pureza abundantes.
Com o adentramento ao território amazônico em busca do
látex houve um fluxo migratório espontâneo que foi intensificado
pela longa estiagem nordestina dos anos de 1877 a 1880.
O comércio da borracha se tornou um dos sustentáculos da
economia brasileira, quase se igualando ao café em importância.
Em seu auge, significou quase 40% das receitas de exportação
brasileiras.
A realidade do seringal era bem diferente do sonho do
migrante. Era necessário aprender todo o processo produtivo
que envolvia a atividade de extração.
De acordo com Costa e Capela (1970) a economia da borracha
pode ser dividida em quatro fases: 1) o monopólio natural (até
1912); 2) retrocesso e estagnação (até o estabelecimento dos
Acordos de Washington, 1942); 3) transição (1942 a 1948-
1951); 4) borracha como insumo de importação (COSTA, 1970).
As ações econômicas desencadeadas no processo de
extração do látex, de acordo com Martinello (2017, p. 111), se
caracterizam, primeiramente, por uma tripartição de períodos
distintos: a) de 1890 a 1912, o primeiro período caracterizado
pelo monopólio natural, que é representado pela constante
tendência de crescimento de preços e da produção; de 1912 a
1942, o segundo período, que é representado pela queda dos
preços e da produção, embora cite uma retomada de produção
e preços no segundo quartel da década de 1930; e, de 1942 a
1951, o terceiro período que é caracterizado pela constância de
uma retomada lenta da produção e dos preços, fruto dos esforços
72 DO CABURAÍ AO CHUÍ

de guerra para a aquisição de borracha amazônica e devido à


instalação de indústrias de artefatos de borracha no Brasil.
Com os esforços de guerra para a extração do látex e o
aumento desenfreado de migrantes para a produção na região
amazônica houve o conflito com as populações tradicionais que
viviam nessas terras há milênios (SCOLES, 2011, p. 266-267).
Conflitos e confrontos ocorreram com o intuito de requerer
a posse da terra, contudo uma prática sangrenta marca esse
período, as correrias, nome dado ao genocídio praticado contra
os aborígenes locais (PORRO, 2004; FAULHABER, MONSERRAT,
2008).
Em meio a um relacionamento ora amistoso, ora marcado
por guerras e confrontos, os retirantes e migrantes que se
deslocaram para a extração de látex na Amazônia e os indígenas
que habitavam essas terras miscigenaram seus de modos de
viver, culturas e valores. Aqueles aprenderam com os indígenas
as artimanhas da selva, os remédios que poderiam ser retirados
da mata, assimilaram muitas de suas crenças, lendas e mitos; e
os indígenas aprenderam novas técnicas de cultivo, de coleta,
novas formas de utilização de bebidas alcóolicas e cerimoniais,
além de outros modos de sociabilidades e comércio.

REVISITANDO A LITERATURA SOBRE A ATIVIDADE GOMÍFERA


E SEUS EXTRATORES

Ao discorrer sobre as migrações forçadas para a Amazônia e


as migrações incentivadas pelo governo federal para a extração
gomífera em meados do século XX, nos deparamos com o dilema
de fazer uma exposição sistemática sobre a temática gomífera e
os esforços militares desde os primeiros encontros dos europeus
com a borracha, passando pelos chamados primeiro e segundo
“ciclos da borracha”, até a política dos governos militares de
“Integrar para não entregar” ou focar na formação de um exército
para atuar na Amazônia e as políticas desenvolvidas correlatas
a este.
73

Optamos pela segunda linha de pesquisa fazendo citações


curtas referenciadas a respeito da primeira4. Não é, pois, objeto
deste artigo analisar o viés econômico stricto da produção
gomífera ou as políticas implementadas desencadeantes dos
chamados “ciclos da borracha”, tampouco tipificar suas nuances;
antes, o foco se dará nos agentes sociais e nas ações relacionadas
a eles.
Atualmente existem centenas de trabalhos sobre a borracha
na Amazônia tanto no Brasil quanto no exterior. Em sua grande
maioria esses trabalhos versam sobre as temáticas que se
correlacionam: a) os Acordos de Washington e outros relatórios
constantes no Arquivo Histórico do Itamarati; b) a legislação
precípua que regeu e regulamentou a ação do Exército da
Borracha; c) a visão de outras nações, especialmente os Estados
Unidos, sobre a Batalha da Borracha; d) boletins e documentos
oficiais do Governo quanto às ações desenvolvidas pelos e a partir
do SEMTA, CAETA e de outros organismos; e) livros, pesquisas,
relatórios e outros documentos publicados ou republicados sob
a égide governamental; f) a Entrada e participação do Brasil nos
conflitos, bem como o Serviço de Guerra; g) a Força Expedicionária
Brasileira; h) o Exército da Borracha na Amazônia brasileira; i)
a Segunda Guerra Mundial e as ações do Governo voltadas ao
incentivo à migração para o vale amazônico; j) as vivências
sociais estabelecidas na região amazônica; k) as ações de saúde
durante o esforço de guerra; l) a participação das mulheres como
4 BUENO, M. A. Pimenta. A borracha: considerações. Rio de Janeiro,
Typographia Imperial e Constitucional de Villeneuve, 1982. GOMES, Anápio
e outros. A batalha da borracha e a coordenação da mobilização
econômica. Rio de Janeiro, Coordenação da Mobilização Econômica de
Guerra no Brasil. O que fez, v. V e VI, 1943. MARTINELLO, Pedro. A Batalha
da Borracha na Segunda Guerra Mundial. 2 ed. Rio Branco: Edufac, 2017.
PAULA, José Antônio de. Notas sobre a economia da borracha no Brasil.
Estudos Econômicos, São Paulo, v. 12, nº 11, 1982. PINTO, Nelson Prado Alves.
Política da borracha no Brasil. A falência da borracha vegetal. São Paulo:
HUCITEC/Conselho Regional de Economia, 1984. SANTOS, Roberto. História
econômica da Amazônia. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980. TEIXEIRA, Carlos
Corrêa. O aviamento e o barracão na sociedade do seringal (Estudo sobre
a produção extrativa da borracha na Amazônia). Dissertação de Mestrado. São
Paulo, FFLCH/USP. 1980. WEINSTEIN, Bárbara. A borracha na Amazônia:
expansão e decadência (1850-1920). São Paulo: Hucitec/Edusp, 1993.
74 DO CABURAÍ AO CHUÍ

protagonistas na guerra; m) as vivências seringueiras laborais


e trabalhistas; n) o perfil econômico do esforço realizado para
a produção do látex; o) uma comparação entre os pracinhas da
FEB e os soldados da borracha; e, p) o pós-guerra e o que restou
na Amazônia.

MOBILIZANDO TRABALHADORES PARA A AMAZÔNIA

Depois da invasão japonesa aos seringais asiáticos, do


alinhamento do Estado brasileiro ao pan-americanismo e dos
Acordos de Washington, o Brasil procurou atender à necessidade
político-econômica de garantir a produção de borracha aos
países Aliados na Segunda Guerra Mundial. A propaganda e as
estratégias visuais5 utilizadas para a aquisição de trabalhadores
ficaram ao encargo do artista suíço Jean-Pierre Chabloz6 que
recebeu o convite para atuar como desenhista publicitário
no Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a
Amazônia (SEMTA). O objetivo imediato parecia ser arregimentar
nordestinos para trabalhar na reativação dos seringais
amazônicos, os chamados “soldados da borracha” (MORAES,
2012).
Dezenas de milhares de nordestinos foram recrutados
às pressas para a extração do látex. No Brasil foi formado um
Exército de seringueiros que tinham como missão extrair o látex
para enviar ao esforço de guerra junto às Nações Aliadas.
Esse Exército da Borracha era formado por três contingentes:
1) de recrutados pela SEMTA e CAETA, e outros órgãos oficiais,
eram sertanejos nordestinos, em sua maioria cearenses, que
5 As imagens podem ser visualizadas no Museu de Arte da Universidade
Federal do Ceará. Disponível em: https://mauc.ufc.br/pt/arquivo-chabloz/
batalha-da-borracha/campanha/. Acesso em 02 abr. 2021.
6 De acordo com Ana Carolina Moraes (2012), o artista suíço Jean-Pierre
Chabloz estudou na Escola de Belas-Artes de Genebra (1929-33), na
Academia de Belas-Artes de Florença (1933-36) e na Academia Real de Belas-
Artes de Milão (1936-38). Em 1940, por causa da Segunda Guerra Mundial,
veio para o Brasil, aportando primeiramente no Rio de Janeiro. No Ceará, a
partir de 1943, realizou atividades como artista plástico, músico, professor,
conferencista, crítico de arte e fomentador cultural.
75

buscavam fugir da seca e melhorar de vida; 2) de cangaceiros


presos nas cadeias do Nordeste e detentos recrutados em
Presídios do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro, de São Paulo,
além de desempregados e aventureiros do Centro-Sul; 3) de
seringueiros e indígenas, aculturados com o modo de vida
caboclo, que já viviam na Amazônia quando eclodiu a guerra e
foram arregimentados para o trabalho de extração de látex.
O problema do transporte de produção e víveres foi tratado
pelo remodelamento, investimento e potencialização da frota
do Serviço de Navegação e Administração dos Portos do Pará
(SNAPP), que já atuava no ramo (REIS, 1953, p. 167). Também foi
dada ênfase ao transporte aéreo, que se demonstrou de grande
utilidade dadas as imensas distâncias da região amazônica.
O suprimento de víveres para a região amazônica foi
promovido e regulado pelo programa de abastecimento
criado pelos governos brasileiro e estadunidense através da
Superintendência do Abastecimento para o Vale Amazônico
(SAVA) e da Rubber Development Corporation (RDC), que se
transformaram em agências aviadoras durante os esforços do
Exército da Borracha na região amazônica7.
7 ABREU, Marcelo de Paiva, The Brazilian Economy, 1930-1980. In: BETHELL,
Leslie (org.). Cambridge History of Latin America. Vol. 9, Brazil since 1930.
Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 283-393. CONN, Stetson;
FAIRCHILD, Byron. The Framewhork of Hemisphere Defense. Washington:
Departamento f Army, 1960. DEAN, W. Brazil and the struggle for rubber:
a study in environmental history. Cambridge: Cambridge University Press,
1987. DEANE, M. P.. Tropical diseases in the Amazon region of Brazil: and
what is being done to control. Journal of American Med Women’s Association.
1947. 1947. 36: Pp 7-14. DULLES, Jonh W. Foster. Vargas of Brazil: a political
biography. Austin: University of Texas Press, 1967. GARFIELD, Seth. Tapping
Masculinity: Labor Recruitment the Brazilian Amazon during World
War II. In: Hispanic American Historical Review. v. 86, nº 2, p. 278-
308, May, 2006. GARFIELD, Seth. “Soldiers” and Citizen in the rainforest:
Brazilian rubber tappers during World War II. In Somanlu: Revista de
Estudos Amazônicos. Ano 1, nº 1. Manaus: EDUA, 2009. KNORR, K. E. World
rubber and it’s regulation. Stanford, Stanford University Press, 1944. MC
CANN JR., F. D. The brazilian-american aliance, 1937-1945. New Jersey,
Princeton University Press, 1973. MC FADYEAN, A. The history of rubber
regulation, 1934-1944. New York, W. W. Norton & Company, 1944. PANDO,
Óscar Paredes. Explotación del caucho-shiringa Brasil-Bolivia-Peru:
economias, extrativo-mercantiles em el Alto Acre. Madre de Dios. Cusco: JL
76 DO CABURAÍ AO CHUÍ

DE CAMPOS DE POUSO A CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO DOS


SOLDADOS DA BORRACHA

O Brasil tradicionalmente se manteve afastado dos grandes


conflitos que eclodiram pelo mundo ao longo do século XX. Foram
poucas as participações brasileiras em ações de guerra nesse
século, sendo a participação mais proeminente ocorrida durante
a Segunda Guerra Mundial (OLIVEIRA; LOPES, 2012). O Brasil
participou de pelo menos duas grandes forças no esforço de
guerra: a Força Expedicionária Brasileira8, com atuação no front

Editores, 2013. Reconstruction Finance Co. (RG. 234); Rubber Development


Co. Entry 271; General Country File (Brazil); Report on the brazilian rubber
program, part I; Jan, 1941 - Abril 1942. STANFORD UNIVERSITY (ed.). The
world’s rubber and it’s regulation. Stanford, Stanford University Press,
1945. STARR, Chester G. From Salerno to the Alps: a history of the fifth army
(1943-45). Washington, Infantry Journal Press. 1948. WILKINSON, Xênia.
Tapping the Amazon Victory: Brazil’s “Battle for Rubber” of World War
II. Georgetown University, 2009. ZAID, Charles (org). Preliminary Inventory
of the Records of the Reconstruction Finance Corporation — 1932-1964.
In: National Archives & Recorda Servíce. Washington. 1973, p. 2,098.
8 A Força Expedicionária Brasileira foi criada pelo Decreto-lei nº 6.018-
A de 23 novembro de 1943. Em seu planejamento inicial ela deveria ser
formada por três divisões de infantaria (DI), mas acabou sendo composta
apenas pela 1ª. Divisão de Infantaria Expedicionária, composta por três
Regimentos de Infantaria. Grande parte dos convocados para a FEB eram
civis recém incorporados às fileiras das Forças Armadas do Brasil. A eles
foi ofertado soldo triplicado para fazerem parte dessa força expedicionária.
Mesmo o vantajoso soldo não foi atrativo suficiente para muitos soldados que
não mediam esforços para serem afastados desse grupamento. Ao chegar a
Europa, a FEB atuou em operações de guerra como parte do V Exército dos
Estados Unidos da América, lutando contra as tropas do Eixo no norte da Itália
durante os anos de 1944 e 1945. Ver: OLIVEIRA, D. de; LOPES, F. L. B. (2012).
Veteranos Brasileiros do Mediterrâneo: a Força Expedicionária Brasileira
(1944-45) e o Batalhão Suez (1956-1967). Revista Diálogos Mediterrânicos,
(3), 55–76. https://doi.org/10.24858/54. BRAYNER, F. L. A verdade sobre a
FEB: memórias de um chefe de estado-maior na campanha da Itália. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 88. CASTELO BRANCO, M. T. O Brasil
na Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro, Bibliex, 1960, p. 335.
77

europeu; e o Exército da Borracha9 , com atuação na extração do


látex da borracha vegetal na região da Amazônia brasileira10 .
9 PEC nº 556/2002 (Dá nova redação ao artigo 54 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal). Decreto-Lei nº 4.451,
de 09/06/42 (Autoriza a constituição do Banco de Crédito da Borracha, e
dá outras providências). Decreto-Lei nº 5.185, de 12/01/42 (Modifica o
decreto-lei n. 4451, de 09 de julho de 1942, que autoriza a constituição do
Banco de Crédito da Borracha, e dá outras providências). Decreto-Lei nº
5.044, de 04/1/42 (Cria a Superintendência de Abastecimento do Vale
Amazônico (S.A.V.A.), e dá outras providências). Decreto-Lei nº 5.813, de
14/09/43 (Aprova o acordo relativo ao recrutamento, encaminhamento
e colocação de trabalhadores para a Amazônia, e dá outras providências).
Decreto-Lei nº 8.416, de 21/12/45 (Extingue a Comissão Administrativa
do Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia (C.A.E.T.A.) e a
Superintendência de Abastecimento do Vale Amazônico (S.A.V.A.) e dá
outras providências). Decreto-Lei nº 5.225, de 01/02/43 (Dispõe sobre a
situação militar dos trabalhadores nacionais encaminhados para a extração
e exploração de borracha no vale amazônico, e dá outras providências).
Indicação nº 82, de 22/05/46 (Sugere ao Poder Executivo que se faça
retornar ao Ceará os soldados da borracha, decretando, destarte, a imigração
dos cearenses). Requerimento nº 268, de 03/07/46 (Requer a nomeação de
uma Comissão de Parlamentares, incumbida de proceder à abertura de um
inquérito para apurar a situação dos que tomaram parte no chamado exército
da Borracha). Decreto-Lei nº 9.882, de 16/09/46 (Autoriza a elaboração de
um plano para a assistência aos trabalhadores da borracha). Projeto de Lei nº
509, de 25/07/47 (Determina concessão de auxílio financeiro aos soldados
da borracha incapacitados, e às famílias dos ausentes ou falecidos em virtude
da mobilização para o esforço de guerra na Amazônia, e outras providências).
Lei nº 7.986, de 28/12/89 (Regulamenta a concessão do benefício previsto
no artigo 54 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e dá outras
providências).
10 COSTA, Mariete Pinheiro da. O Exército da Borracha: Uma análise da
participação dos Soldados da Borracha na Segunda Guerra Mundial (1942 –
2003). (Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Ciências
da Educação no Curso História, para obtenção do título de História). Brasília,
2003. LIMA, F. A. O. Soldados da borracha, das vivências do passado às
lutas contemporâneas. 158f. 2013. Dissertação (Mestrado em História)
– Programa de Pós-Graduação em História – UFAM. Manaus: [s.n.], 2013.
MORAES, Ana Carolina Albuquerque de. Rumo à Amazônia, terra da
fartura: Jean-Pierre Chabloz e os cartazes concebidos para o Serviço Especial
de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia. 2012. 373 p. Dissertação
(Mestrado em Artes Visuais) – Instituto de Artes, Universidade Estadual
de Campinas. MOREL, Edmar. Está morrendo o exército da borracha.
Escravidão monstruosa e um apelo ao Presidente da República. O drama
78 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Nesse conflito, os esforços de guerra levaram à criação de um


Exército da Borracha com quase 60 mil homens para a extração
do látex na Amazônia e uma Força Expedicionária Brasileira com
aproximadamente 25 mil para os campos de batalha na Europa.
A batalha travada para a aquisição de borracha teve
consequências para o Vale Amazônico. Com a emergência da
Segunda Guerra Mundial e os seringais de plantio da Península
da Malásia nas mãos dos japoneses, os Aliados foram privados
da borracha dos seringais de cultivo da Malásia se viram
desabastecidos do produto que era essencial para a indústria
bélica.
Era de conhecimento de autoridades brasileiras e norte-
americanas que o sistema de produção de borracha na Amazônia
no fim do século XIX, até meados do século XX havia produzido a
escravização de muitos seringueiros em localidades em onde os
seringalistas eram menos escrupulosos.
Quando o Coronel Silvestre Coelho, novo interventor do
Acre, se dirigia para o território acreano, em 1942, declarou
ao Jornal Folha do Norte, de Belém: “o tempo do cativeiro nos
seringais não voltará mais” (O TEMPO, 1942, p. 5). Um contrato
padrão de trabalho foi criado para vigorar nos seringais. Nesse
documento foi estabelecida a relação de trabalho entre o
produtor-seringalista e o extrator-seringueiro, bem como um
lucro mínimo de 60% da produção para o seringueiro.
A primeira leva migratória para os seringais da Amazônia foi
patrocinada pelo Departamento Nacional de Imigração – DNI,
tendo como principal motivo o flagelo da seca. Esse movimento
migratório foi organizado com os sertanejos do Ceará, Paraíba
e Rio Grande do Norte que ansiavam ter na Amazônia melhores
condições de vida.
De acordo com Benchimol (1977), a segunda leva migratória,
formada a partir de 1943, foi recrutada pelo SEMTA dos mais
diversos pontos do país, formada principalmente por homens
dos cearenses que ficaram na Amazônia. Correio do Ceará, Fortaleza, ano
[s.n.] nº 9.806, 9 julho, 1946. NEELEMAN, Gary; NEELEMAN, Rose. Soldados
da borracha: o exército esquecido que salvou a II Guerra Mundial. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2015. PASSOS, O. A batalha da borracha e o futuro da
Amazônia. Rodovia, Rio de Janeiro, v. 7, nº 52, p. 10-22, 1944.
79

solteiros ou que se separaram de seus parentes, sem profissão


definida, muitos deles eram desempregados: cariocas, capixabas,
baianos, pernambucanos das cidades e do interior, de todas as
classes, cores, profissões e idades.
Em meio à leva de recrutados para o esforço de guerra
na Amazônia também chegaram vários migrantes que foram
alistados compulsoriamente pelas organizações policiais de suas
localidades de origem. Mello afirma que várias organizações
policiais querendo se livrar de seus “vagabundos, desordeiros,
batedores de carteira, assaltantes, quadrilhas de ladrões”
(MELLO, 1956, p. 65) e outros tidos como perniciosos às suas
respectivas sociedades, alistavam-nos compulsoriamente no
exército da hévea.
Frederico Lima (2013) afirma que muitos interventores,
principalmente do Rio de Janeiro e de estados do Nordeste,
“limparam” suas cadeias se aproveitando desse movimento
de migração para a Amazônia para se livrar dos socialmente
indesejáveis e transferir “o problema” para o Governo Federal,
já que o Acre ainda era Território Federal à época. Essa
transferência de “indesejáveis” causou problemas aos governos
do Pará e do Amazonas, locais onde se encontrava a maioria dos
acampamentos dos soldados da borracha.
Atos como os acima descritos findaram por estigmatizar
os soldados da borracha como desordeiros. As outras levas
de migrantes que se seguiram às duas primeiras, demoraram
anos para afastar o estigma que houvera sido criado quanto aos
combatentes do Exército da Borracha. O tratamento recebido
pelos selecionados nos campos de seringueiros não ajudava a
afastar o mal-estar estabelecido.
Existem centenas de relatos de soldados da borracha
e de autoridades dando conta das péssimas condições de
alimentação, de transporte e de estadia a que eram submetidos
os combatentes do Exército da Borracha enquanto eram
transportados do Nordeste para as terras da Amazônia. Quanto
mais distantes ficavam dos pontos de alistamento, pior ficavam
as condições de vivência. Dois atos se fazem latentes para que
não se tenha a desculpa de que é normal a distância escassear
80 DO CABURAÍ AO CHUÍ

a qualidade das condições de trabalho e vivência: 1) o fluxo de


aviamento era existente de uma ponta a outra, dos seringais aos
grandes portos de exportação; 2) as viagens de transporte fluvial
e os locais de pouso (hospedarias, hotéis, pousadas) para não
combatentes eram consideradas satisfatórias para o contexto
amazônico da época.
Os soldados da borracha ficavam semanas nos campos de
pouso, chamados de hospedarias. Muitos deles chegavam a ficar
quase um ano nas hospedarias. Em algumas delas havia falta de
médico e as comidas estragadas eram frequentes. Esses locais
de pouso e hospedagem mais pareciam campos de concentração
que locais de pousada (PINTO, 1984). Martinello afirma que
“estes acampamentos mais pareciam campos de concentração
que hospedarias de imigrantes” (MARTINELLO, 2017, p. 239).
A situação a que milhares de soldados da borracha eram
submetidos nos vários campos de concentração foi reportada
pelo jornal americano Daily News que na época cobria as ações
referentes à batalha da borracha.

Em Belém nós vimos cerca de 4.000 homens em um campo de


concentração da SAVA. Em Manaus, em outro campo, vimos
perto de 2.000. Alguns deles, durante o longo período de sete
meses tornaram-se preguiçosos entre estas cercas de arame
farpado e costumavam brigar entre si ou a lutar contra os seus
guardas. Tratavam-se de meninotes e mesmo homens fortes com
um pouco mais de trinta anos de idade. [...] Muitos desses homens
são prisioneiros involuntários, preguiçosos e inúteis que
custam aos contribuintes de impostos nos EUA dinheiro real para
sua manutenção” (ANAIS, 1949, p. 360 – grifo nosso).

Anos depois, ao depor à Comissão de Inquérito da


Assembleia Constituinte sobre a batalha da borracha, O Dr.
Ezequiel Burgos, reitera as graves denúncias sobre como esses
arigós eram tratados nos acampamentos. Quando perguntado se
considerava que a relação que vigorava nos pousos dos migrantes
encaminhados para a extração do látex se assemelhava a dos
campos de concentração, respondeu de forma categórica:
81

Considero muito pior. O soldado da borracha só tinha direito à


comida ruim e ao carapanã. O preso não tinha direito de sair.
Certa vez tive sério desentendimento com o Cel. Barbato, chefe do
Paredão, quando usava de medidas drásticas, querendo prender a
torto e a direito. Julgava até certo ponto a medida justa. Entretanto,
lembrei-lhe ser de todo conveniente fossem construídos campos de
footbal. e instalados rádios. Disse ao Cel. Barbato que prendendo
essa gente, os distúrbios se repetiriam como sucedia no Pará. Não
os tínhamos na Amazônia porque o pessoal quando queria, saía”
(DIÁRIO DA ASSEMBLÉIA, 1946, p. 4285).

O regime de opressão e arbitrariedades contra os soldados


da borracha nos campos de pouso aliado à falta de perspectiva
desses homens que permaneciam confinados por meses seguidos
fez com que eclodissem levantes, brigas, motins e deserções.
Depois de saírem desses campos, os soldados extratores foram
encaminhados aos seringais para a coleta da borracha. Em
vários desses seringais havia muito trabalho e possibilidade de
melhoria de condições de vida, contudo, em vários seringais o
tratamento recebido não era melhor que aquele dispensado a
eles nos campos de arregimentação.
Muitos tiveram que pagar pelo próprio transporte, pela
comida servida nas embarcações, pelo uniforme de trabalho e
até pelas ferramentas. Já chegavam devendo nos seringais e a
quixotesca jornada dos heróis ao sonhado paraíso perdido, para
a maioria dos seringueiros se tornou um purgatório no inferno
verde.
As famílias desses soldados-seringueiros também sofriam
como eles. Várias mulheres trabalharam e lutaram tanto quanto
seus maridos. Alguns soldados da borracha optaram, em contrato
com o SEMTA e com o CAETA, por levar esposa e filhos consigo
para os seringais e lá seringueiro e esposa coletaram borracha
e sofreram juntos. Em vários casos, com a morte do marido, as
viúvas assumiam a dívida e a colocação de seringa para continuar
a extração do látex.
Em outros casos, os soldados da borracha pensando que
suas famílias ficariam melhor nas pousadas, preferiam trabalhar
nos seringais e parte de sua renda seria destinada à família.
Os que optaram por deixar suas famílias nas pousadas oficiais
82 DO CABURAÍ AO CHUÍ

administradas a mando do Governo Federal nem imaginavam as


dificuldades que elas sofreriam.

OS SOLDADOS DA BORRACHA ESQUECIDOS NA AMAZÔNIA

O sertanista Euclides da Cunha escreveu: “O seringueiro


migrante realiza ali (nos seringais) uma anomalia sobre a qual
nunca é demasiado insistir: É o homem que trabalha para
escravizar-se” (CUNHA, 1967, p. 61).
Muitos foram os migrantes deslocados para a Amazônia
para a coleta do látex no esforço de guerra brasileiro. Muitos
dos documentos de arregimentação, oficiais e paralelos, se
perderam, ficando poucos deles acessíveis para consulta11.
Assim sendo, não existe consenso entre os autores quanto ao
número de extratores que compunham esses dois contingentes
– o oficial e o deslocado pelos seringalistas. É díspar a leitura que
se faz do quantitativo do efetivo empregado. Pedro Martinello
afirma que o efetivo deslocado para a Amazônia e Mato Grosso,
de 1941 a 1945, foi de 55.339 pessoas, dentre os quais 36.280
eram homens aptos para o corte da seringa e 19.059 eram
dependentes, entre os quais se contavam as crianças, mulheres
e anciãos (MARTINELLO, 2017, p. 304). Benchimol, ao estudar o
mesmo período, escreve que deram entrada em Manaus 77.311
migrantes, entre 1941 e 1945, a quase totalidade encaminhados
pelo SEMTA e CAETA (BENCHIMOL, 1977, p. 115). Em ambas
as contagens de “Soldados da Borracha” estão excluídas as
mulheres.
Milhares de mulheres foram para os seringais de extração de
látex, outras ficaram em acampamentos, nas cidades, aguardando
seus maridos. As que estavam nas matas muito trabalharam e

11 O Arquivo Nacional produziu um repertório temático de fontes sobre os


soldados da borracha elencando as instituições nas quais essas fontes se
encontram disponíveis, bem como as notações físicas, lógicas, de conteúdo
e os períodos observados. No ano de 2020 esse repertório foi publicado com
acervos que remetem de 1901 a 1954 publicados na obra ARQUIVO NACIONAL
(BRASIL). Repertório Temático de Fontes: Soldados da Borracha - 2. ed. rev.
- Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2020.
83

viram uma mescla de paraíso perdido e inferno verde em sua


vivência cotidiana. Quanto as mulheres que aguardavam seus
maridos nos acampamentos, foram deslocadas de volta ao
Nordeste sem ter notícia dos mesmos. Muitas, viúvas de esposos
vivos, após sua expulsão dos acampamentos, perambularam pela
Amazônia, tentando reencontrar seus esposos. Outras, ainda,
foram esquecidas com seus filhos e não mais viram aqueles que
saíram de casa em busca de dias melhores.
Muitas mulheres se arriscaram em meio aos perigos da
floresta para extrair o látex na Amazônia brasileira. Simonian
(2001) e Montysuma (2008) ao estudá-las afirmam que há uma
invisibilidade histórica em seu “trabalho silenciado”. Pouco ou
quase nada se tem escrito a esse respeito. Muitos dos escritos
historiográficos ao tratar sobre o processo de ocupação do Acre,
a partir de 1870, ressaltam a inexistência de mulheres nesse
processo, legando a participação feminina a casos de exceção
como se fossem mercadoria, privilégio ou objeto de disputa
entre homens.
O trabalho feminino na atividade produtiva não foi apenas
uma “ajuda” aos homens. As mulheres trabalharam muito nos
seringais, participando de todo o processo produtivo da borracha,
colhendo leite, defumando e participando de todas as etapas do
processo de produção e beneficiamento do látex (WOORTMANN,
1998).
Durante o esforço de guerra, as mulheres não entraram na
contagem oficial estabelecida pelo governo brasileiro ou pelos
seringalistas – novamente foram “esquecidas”. Foram contados
apenas os homens “soldados da borracha”.
Além dos quase 60.000 (sessenta mil) soldados da
borracha arregimentados oficialmente pelo governo brasileiro,
as investigações produzidas pela Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) da Assembleia Constituinte, que foi criada para
apurar responsabilidades quanto ao não cumprimento dos
acordos e o abandono dos seringueiros no esforço de guerra do
Brasil, deram conta de uma arregimentação paralela executada
por vários seringalistas. Esse recrutamento ocorreu no mesmo
período da arregimentação oficial, com o mesmo destino, vinda
84 DO CABURAÍ AO CHUÍ

de mesma origem nordestina e amazônica, aproveitando-se da


mesma propaganda oficial, mas sem o contrato oficial.
O governo tinha consciência de que nos seringais os
contratos não eram cumpridos. Conforme consta no depoimento
do Dr. Burgos à Assembleia Constituinte, publicado no Diário da
Assembleia (1946) quando ainda estava em vigor o Tratado de
Washington que tratava da borracha, pode-se ler: “As dificuldades
aqui na capital são grandes; imagine-se nos seringais, onde a
lei é a do mais forte” e acrescenta sobre o que acontecia com
os contratos “Eram unânimes os [seringueiros] que diziam
que os contratos eram tomados ou desapareciam quando os
trabalhadores chegavam aos seringais” (Diário da Assembléia,
1946, p. 4282).
Dezenas de milhares de seringueiros foram levados à selva
amazônica para o esforço de guerra sem se dar conta de que
muitos estavam sendo levados para o cativeiro – e o governo
sabia da existência dessa prática sem nada fazer para detê-la.
O próprio Diretor do Departamento Nacional de Imigração à
época demonstrou ter conhecimento sobre essa prática (Diário
da Assembléia, 1946, p. 4216). Esses números de dezenas de
milhares de seringueiros arregimentados por seringalistas não
entraram na conta oficial do Exército da Borracha do Governo
Federal.
Muito se discute se esses contratos para extração de borracha
intermediados pelo Governo Federal eram ou não cumpridos.
Discute-se ainda se, de fato, vários desses seringueiros foram
ou não levados a trabalhos análogos à escravidão e, até mesmo,
escravizados nas terras da Amazônia, durante o esforço de
guerra, em pleno século XX.
Uma prova contundente da não observação dos contratos
por parte de muitos seringalistas se dá com o simples fato de
que a grande maioria dos seringueiros não obteve lucro depois
de vários anos de trabalho. Nas mais diferentes regiões da
Amazônia, quando a borracha teve seus preços majorados por
conta do período da guerra e o aviamento era pleno em toda a
região, mesmo com todas as circunstâncias que, pelo menos em
85

tese, favoreciam aos seringueiros, ainda assim, os saldos lhes


eram sempre desfavoráveis (MARTINELLO, 2017, p. 252).
Frederick H. Vogel, técnico de campo da Rubber Development
Corporation (RDC) cita, em seu relatório sobre o Alto Purus,
uma tensão surda envolvendo seringalistas e seringueiros:
estes falavam abertamente em revolta armada contra os seus
patrões, enquanto aqueles não queriam cumprir integralmente
as cláusulas do contrato-padrão (RFC, 1943-44, p. 89).
Assim, sem apoio dos governantes brasileiros e tendo
descumprido os contratos firmados, os seringueiros, mais uma
vez, se fizeram escravos do sistema de exploração. Não tendo
a quem recorrer, somente lhes restava se revoltarem contra os
desmandos ou seguir subsistindo enquanto tivessem forças para
trabalhar.
Os seringueiros buscaram formas de lutar e resistir a
essa condição de exploração à qual estavam sujeitos. Vários
seringueiros se utilizaram de práticas sub-reptícias para burlar
o sistema no qual eram forçosamente inseridos. Assim, alguns
passaram a inserir pedras nas pelas para aumentar o peso do
produto, grudar sernambi12 junto às pelas ou vender o produto
vegetal ao regatão13.
Os seringueiros agiam com essas e outras práticas não apenas
como forma de satisfazer suas necessidades, mas também para,
de alguma forma, vingar-se do próprio patrão. Reis, em sua obra
O seringal e o seringueiro escreve que “Enganado por enganado,
o seringueiro desviava o produto para o regatão como forma de
se vingar, a seu modo, do patrão” (REIS, 1953, p. 128).
12 CERNAMBI. S. Borracha de má qualidade. Restos de leite coalhado nas
“madeiras”, no pé das seringueiras. Houaiss aconselha grafar “sernambi”.
Cernambi. In: RANZI, Pedro. Vamos falar o acreanês. Rio Branco: Edufac,
2017.
13 REGATÃO. S. Pequeno comércio em que se vende de tudo numa barca,
batelão, que é ao mesmo tempo casa, armazém e escritório, subindo e
descendo os rios amazônicos. O regatão adquire os produtos bem mais baratos
nas cidades e vende aos seringueiros e ribeirinhos a preços exorbitantes e
adquire os produtos regionais. Vendedor que percorre os rios de barco,
batelão, parando de lugar em lugar. Que regata, ou que regateia; regateador.
Aquele que compra em grosso para vender a retalho. Regatão. In: RANZI,
Pedro. Vamos falar o acreanês. Rio Branco: Edufac, 2017.
86 DO CABURAÍ AO CHUÍ

No dia 19 de janeiro de 1943, duas centenas de seringueiros


arigós estavam fazendo um abaixo-assinado com reclamações
sobre as péssimas condições de vida e de trabalho a que estavam
sendo submetidos nos seringais próximos a Rio Branco, para ser
apresentado ao interventor territorial do Acre, Coronel Silvestre
Coelho. Pediram que o jovem Padre cearense José Carneiro de
Lima lhes redigisse os termos das reivindicações. Consta no Livro
do Tombo da Prelazia do Acre e Purus que o Padre José Carneiro
e seu irmão Padre Peregrino foram convocados a comparecer no
Palácio do Governo, onde foram ameaçados de serem entregues
às autoridades da República e levados a uma corte marcial por
sabotarem os esforços de guerra do Brasil (PRELAZIA DO ACRE
E PURUS, 1920-1970, p. 45). A Prelazia achou por bem transferir
os jovens padres para Santa Catarina até o final do mandato do
interventor. Quanto às reclamações dos seringueiros, não consta
em qualquer documento acessado que tenham sido atendidas.
Vários foram os relatos sobre o desaparecimento dos
soldados que foram tragados pela Batalha da borracha. Bouças,
ao citar a denúncia de uma caravana de estudantes cearenses,
apresenta a constatação do desaparecimento de 23 mil
nordestinos (BOUÇAS, 1953. p. 360). Ana Ajuricaba Távora de
Oliveira, presidente da Casa do Pobre, em Rio Branco – Acre, ao
conceder entrevista ao Correio do Ceará, em 05 de dezembro de
1946, falou da frágil saúde dos seringueiros que se deslocaram
para Rio Branco e da pobreza em que se encontravam, muitos
deles mendigando pelas ruas das cidades, após a desativação
dos seringais. Ela declarou:

Em Rio Branco, capital do território, existem nada menos que dois


mil migrantes cearenses, a maioria doentes e formada de mendigos.
Muitos deles naturalmente gostariam de regressar ao Ceará. Outra
parte, poderia ficar distribuída nos empregos que o governo se
esforça por criar. É grande a exploração dessa pobre gente nos
seringais (Jornal O Acre, 1946, p. 3).

A Segunda Guerra Mundial acabou. Os esforços de guerra


contribuíram para o êxito e vitória dos países Aliados. Sobre
as expectativas dos Soldados da Borracha, em 1945, Frederico
87

Lima afirma que houve um misto de esperança e sentimento


de heroísmo, de dever cumprido, a certeza de que a pátria
os reconheceria, chegando a acreditar que receberiam a tão
sonhada indenização (LIMA, 2013, p. 116).
Segundo o DNI, 2.160 retornaram em 1945, 3.269 retornaram
em 1946 e 601 retornaram em 1947. Os números oficiais dão
conta de que apenas 6.030 ex-seringueiros foram recambiados
com passagem e assistência por parte do DNI e da Comissão
Especial de Assistência aos Trabalhadores da Borracha (MAIA,
1947, p. 29). Outros seringueiros retornaram para suas casas
por conta própria, contudo, a maior parte deles ficou residindo
na Amazônia ou faleceu sem que se tivesse notícia oficial sobre
seu paradeiro.
Cruz e Almeida afirmam que com a falência dos seringais,
muitos dos que nele habitavam precisaram modificar seus
hábitos para sobreviver. Homens, mulheres e crianças precisaram
deixar a atividade quase que exclusiva de aquisição de recursos
fundamentalmente pela extração do látex para buscar outras
formas de ganho e sobrevivência na floresta, como a agricultura
familiar, a caça, a pesca, a intensificação da produção nos roçados
e a coleta de outros víveres (CRUZ; ALMEIDA, 2017, p. 58).
O fato de o Governo Federal não ter cumprido sua parte nos
contratos de trabalho, quando da arregimentação que previa
indenização, não retirou dos seringueiros o desejo de lutar
por uma vida melhor14. Muitos dos seringueiros não tiveram
14 BECKER, Bertha K. As Amazônias. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2015.
BENCHIMOL, S. A Amazônia: um pouco ante e além-depois. Manaus: Umberto
Calderaro, 1977. CAVALCANTI, Francisco C. Silveira. O processo de ocupação
recente das terras do Acre. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal
do Pará, 1983. (Mimeo.). FERREIRA FILHO, Cosme. Porque perdemos a
batalha da borracha. Manaus: Ed. do Governo do Estado do Amazonas, 1966.
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Posseiro: a periferia de Rio Branco e os cem anos de andança da população
acreana. Belo Horizonte: UFMG, 1982. PAULA, Elder Andrade de. (Des)
Envolvimento insustentável na Amazônia Ocidental: dos missionários
88 DO CABURAÍ AO CHUÍ

condições financeiras de retornar a seus locais de origem.


Vários continuaram nos seringais “para pagar suas dívidas”.
Outros ficaram às margens dos rios sobrevivendo da coleta
da castanha, da pesca e da produção agrícola de subsistência.
Outros se deslocaram para as cidades, onde perambulavam
aceitando qualquer tipo de serviço que oferecesse o mínimo de
remuneração para sobrevivência (LIMA, 2020).

CONSIDERAÇÕES NÃO-FINALIZANTES

A igualdade de condições entre o extrativismo gomífero e


o serviço militar, propagada com base no Decreto-Lei nº 5.225,
editado em primeiro de fevereiro de 1943, não ocorreu. As leis
que se seguiram sempre que citavam os ex-combatentes não
contemplavam os seringueiros. O “Exército da Borracha”, ou o
que restou dele, foi esquecido em plena selva amazônica, homens
entregues à própria sorte. O esforço brasileiro de refluxo para
o Nordeste e para o Centro-Sul mobilizou pouco mais de 10%
dos ex-seringueiros de volta para suas terras, de acordo com
documentos oficiais do Departamento Nacional de Imigração.
Vários soldados da Borracha refluíram para suas terras por
meios próprios. Muitos foram vítimas de malária, avitaminose,
anemia palúdica, polineurite, tuberculose, ergastenia, úlceras,
sífilis, reumatismos, hérnias e outras doenças. Outros tiveram a
sorte de receberem ajuda governamental para regressarem ao
Nordeste, como em 1945 que 2.160 ex-soldados da borracha,
julgados inaptos para o serviço foram recambiados. Além dos
motivos de doença anteriormente citados, vários ex-seringueiros
sofriam de debilidade mental, cegueira, insuficiência física por
acidentes e outras causas, e, quase um terço deles, por, depois de

do progresso aos mercadores da natureza. Rio Branco: Edufac, 2013. PAULA,


Elder Andrade de. Seringueiros e sindicatos: um povo da floresta em busca
de liberdade. Rio de Janeiro: UFRRJ/CPDA, 1991. (Dissertação de Mestrado).
POTIGUARA, José. Terra Caída. 3 ed. Rio Branco: Fundação Cultural do Acre,
1998. SILVA, Miguel Cruz e. Guerra de conquista da Amazônia. Brasília
(DF): Editora Asasul,1989.
89

vários anos de trabalho, serem desajustados economicamente


(MELLO, 1956, p. 103-104).
Na conjuntura brasileira vigente ao final da Segunda Guerra
Mundial, o tratamento dispensado aos ex-seringueiros remonta
a ideia de um caráter incompleto de cidadania15. Sendo esta
construída historicamente, completando o englobamento de
direitos civis e sociais por uma variedade de direitos socialmente
adquiridos, percebe-se que os ex-combatentes que atuaram no
esforço de guerra como seringueiros e seringueiras tiveram sua
cidadania inconclusa (SAES, 2001, p. 379) por se apresentar de
forma instável, com determinados direitos negados e ter seu
caráter limitado.
Quanto aos integrantes do “Exército da Borracha”, foram
esquecidos, largados à própria sorte. As esposas de seringueiros
e as mulheres extratoras de látex permaneceram por décadas
esquecidas, invisibilizadas apesar do esforço de guerra, apenas
algumas poucas conseguiram o benefício da aposentadoria.
Posseiros em sua terra do trabalho de outrora ou migrantes
para as periferias das cidades, viveram momentos de conflitos e
intensas lutas por moradia, educação, saúde e trabalho – mesmo
a Constituição garantindo esses direitos.
Nem mesmo a historiografia brasileira dá o devido valor a
esses soldados da borracha. Nos livros didáticos quase sempre
se veem várias páginas sobre os feitos da FEB na Segunda Guerra
e uma pequena nota de canto de página sobre os Seringueiros,
mesmo que o contingente empregado na Amazônia tenha sido
mais que o dobro do disposto para lutar na Europa (SECRETO,
2007; LIMA, 2013). Há um “silêncio ensurdecedor” por parte
do Governo Federal em relação aos soldados da borracha na
Amazônia que, depois da Guerra, foram abandonados à própria
sorte.

15 Para Carvalho, o conceito de cidadania inclui direito à liberdade, à


propriedade e à igualdade perante à lei; direitos políticos, incluindo direito do
cidadão no governo estabelecido e; direitos sociais, que são entendidos como
direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde e à aposentadoria.
Segundo o autor, os “Cidadãos incompletos” seriam aqueles que possuíssem
apenas alguns dos direitos. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil:
o longo caminho. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2002, p. 9.
90 DO CABURAÍ AO CHUÍ

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de Abastecimento do Vale Amazônico (S.A.V.A.), e dá outras
92 DO CABURAÍ AO CHUÍ

providências). Decreto-Lei nº 5.813, de 14/09/43 (Aprova o


acordo relativo ao recrutamento, encaminhamento e colocação de
trabalhadores para a Amazônia, e dá outras providências).
Decreto-Lei nº 5.185, de 12/01/42 (Modifica o decreto-lei n. 4451,
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Festa e devoção popular do Divino


Espírito Santo nas vozes dos devotos

Francisco de Assis Cruz da SILVA

A INVISIBILIDADE DA FESTA DO DIVINO ESPÍRITO

Na expectava de entender a invisibilidade da festa do


Divino Espírito Santo hoje, capturada por meio dos relatos das
experiências vividas pelos participantes, e apresentar alguns
fatos que parecem ter colaborado para o seu esvaziamento
popular na cidade de Araguaína-TO nos dias atuais. Analisaremos
sem subtópicos, mas com chamadas de atenção em negrito, dado
o envolvimento de um tema com o outro.
Comecemos pelo surto de migração e desenvolvimento
urbano de Araguaína anos 1970-1980.
Segundo os entrevistados, o desenvolvimento urbano,
econômico, tecnológico, social e cultural do contexto do
município de Araguaína, uma história marcada por dificuldades
e conflitos, seria um dos elementos enfrentados pelos devotos
para continuar suas manifestações em torno do Espírito Santo
nos dias atuais.
A construção da rodovia Belém-Brasília, na década de 1960,
provocou o desenvolvimento de inúmeras regiões onde hoje
se localiza o Estado de Tocantins. Claro está que o surto que
impulsionou, entre outros, a economia do local foi responsável
pelo desinteresse nas festividades dessa mesma região. A rodovia
trouxe à localidade uma nova forma de conceber o comando
administrativo: o que antes era pactuado segundo relações de
amizade, religiosidade, caracterizado como lentidão nas trocas
100 DO CABURAÍ AO CHUÍ

comerciais e culturais passou a ser mediado pelo capital e suas


exigências.
A melhoria no aspecto da mobilidade favoreceu que
acontecesse em Araguaína um fluxo grande de imigrantes,
oriundos de diferentes partes do país, com diferentes objetivos.
O rápido surto desenvolvimentista da localidade nos aspectos
social, cultural, econômico e tecnológico refletiu na forma como
os devotos passaram a interagir com as festividades religiosas. Se
a Festa do Divino, nos anos 1970 e 1980, contava com um grande
fluxo de pessoas interessadas em participar dos rituais, ao longo
dos anos houve uma diminuição significativa dessa participação.
O crescimento e desenvolvimento de Araguaína a partir dos
anos 1960 é importante porque faz parte do argumento deste
trabalho. Se nossa pergunta inicial foi pela razão de a Festa do
Divino da cidade se encontrar tão diferente na atualidade, com
menos rituais, participação de componentes e de público, em
parte já podemos argumentar que tais processos de imigração
e desenvolvimento podem estar entre os responsáveis, assim
como a substituição normal entre as gerações: se até os anos
1970/80, a festa se mantinha por uma geração que tinha certa
afinidade cultural rural – nordeste do país e norte do estado
– embora certa diversidade cultural, no decorrer dos anos, o
desenvolvimento da cidade definiu outra geração, mais urbana,
que perdeu o interesse pela cultura e a tradição da festa. Some-se
a isso o fato de que, como cidade nova, Araguaína não manteve
laços muito arraigados com a Igreja.
Percebe-se que, na festa, ainda que seja um evento que
permite que a população construa laços e estabeleça momentos
de sociabilidade e respeito à fé, vem diminuindo cada vez mais a
participação popular, fato este que não se podem negar. Porém,
os devotos que permanecem ativos na festa garantem que essas
festividades ainda persistem porque ainda há a intenção de
valorizar as tradições pelo festejo ao sagrado.
Carlos Alberto R. Gama, um dos entrevistados, comenta
sobre a dita diminuição da adesão popular à festa do Divino na
região. Destaca que para muitos a tradição ainda permanece
101

viva e ativa, sem possibilidade de dissolução, mas não há uma


participação dos diversos segmentos da sociedade em geral:

Na questão dessa participação da população na festa do Divino


Espírito Santo, nós tínhamos uma participação de quase 100%
da comunidade; hoje nós temos apenas cerca de 40% da
comunidade participando da religiosidade. “Eu acredito que seria
a própria procissão: antes a procissão era puxada por membros
da comunidade, hoje é mais puxada por membros que tiram essa
tradição de casa em casa” (Entrevistada, Araguaína, maio de 2014).

Outro entrevistado atribui a redução de público ao


desenvolvimento da cidade, que “influenciou bastante a
comunidade a deixar a festa do Divino. Tá muito difícil” (Maria
do Carmo Sousa Silva, Entrevistada, Araguaína, maio de 2014).
Nesse sentido, a dominação do estilo de vida capitalista da
sociedade a partir da construção da BR 153, o modo de vida,
de pensamento da sociedade, criando interesses desiguais,
divergências sociais, rivalidade entre as pessoas, extinção de
valores como fraternidade, igualdade, etc., gerou uma sociedade
que tem como valor básico o consumismo, a competição, etc.,
como afirma o depoente:

Eu acredito que foi a questão da família: pessoas se envolveram


tanto com o capital, o dinheiro, que acabaram perdendo a atenção às
questões sobre seus princípios, sua hierarquia e sua descendência.
Então eu acredito que esse mundo que se diz globalizado, não
sei se é no sentido das mazelas que os benefícios são partilhados
entre poucos, eu acredito que essa globalização tirou muito esse
foco da religiosidade entre as pessoas, entre as famílias e entre as
comunidades (Carlos Alberto R. Gama. Entrevista, Araguaína, maio
de 2014).

A entrevistada Cremilda acredita que a diminuição de


público se dá por conta da ligação que as pessoas possuem cada
vez mais com itens mundanos em detrimento de sua crença no
Divino: “As pessoas não vivem mais a espiritualidade, eu acho
que as pessoas vivem mais as coisas do mundo, há mais atrativos
no mundo do que na parte espiritual. As pessoas dão valor às
coisas mundanas e não às do Altíssimo”. E ainda diz que: “hoje
102 DO CABURAÍ AO CHUÍ

os meios de comunicação como a televisão é um dos fatores que


impede as pessoas de irem para a igreja”. (Cremilda Alves de
Sousa. Entrevistada, Araguaína, maio de 2014).
No mundo globalizado, a religião não promove mais a
coesão social, mas diferencia grupos e indivíduos, segmenta a
sociedade, divide (PRANDI, 1996) o sentido de coesão apontado
por Durkheim (1989). Sugere abordagens para além do simples
processo de integração que, conforme Sanchis (1997, p. 25):

Primeiro não se trata simplesmente de manter coesa uma sociedade


concreta, mas, mais radicalmente, de proporcionar a um grupo de
homens a condição fundamental para que, ultrapassando a simples
soma do seu número, possam conhecer o laço social. Segundo, existe
sempre neste processo indefinidamente repetido um horizonte de
surgimento do novo e de possível ruptura. Os sagrados nascem,
desenvolvem-se, morrem – e com eles as sociedades que eles
sustentavam no ser.

Mas, há outros fatores que contribuem para a invisibilidade


dos cultos populares desprestigiados hoje:

Existe um artigo do José Ramos Tinhorão, publicado há alguns anos


no Estadão, que examina as razões pelas quais a festa popular foi
banida da cidade de São Paulo. Ao que me lembro, essa expulsão
é associada a um processo de saneamento que houve na cidade
para coibir tumultos e aglomerações nas ruas. Muita gente estava
vindo para cá, a população aumentava, e ficava difícil mantê-la sob
controle, como queriam as autoridades administrativas ligadas às
forças econômicas industrialistas. Ademais, São Paulo tinha de ser
uma cidade “séria”, pautada pela urbanização, fundamental para
uma metrópole que se industrializava; segundo o pensamento
desenvolvimentista das elites da época, a cidade devia, portanto,
se despojar daqueles elementos que pudessem ser considerados
arcaicos, atrasados. Dentro dessa visão positivista do progresso,
em que só o pensamento racional é que consegue enxergar e
interpretar a realidade, tudo o que é da religião, das tradições orais
populares é excluído – e foi o caso das celebrações populares que
ocorriam na cidade1.

1 Disponível em: http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.


php?option=com_content&view=article&id=270&Itemid=120. Acesso em:
12 fev. 2022.
103

As camadas populares de certos setores sociais dos países da


Europa altamente “civilizados” teimavam em apelar para rezas
e ervas ao invés de se curar com um médico. Isso não era visto,
como é hoje, como manifestação de resistência cultural daqueles
que estavam alijados das benesses do progresso (embora o
sustentassem com seu trabalho) em torno de seus valores
próprios, identitários. Com o fortalecimento do positivismo,
criou-se então um nicho epistemológico para essas práticas do
povo, que passaram a ser conhecidas como o saber do povo.
A “cultura dos incultos”, como tão bem define Florestan
Fernandes. Então, já foi uma tentativa de excluir esse saber do
conjunto da sociedade.
Mas, voltando a falar de Araguaína, o comportamento da
cidade é exatamente esse: tudo o que não diz respeito a uma
ideia positiva de progresso, tem de ser excluído, “empurrando”
seus praticantes para outro lugar, para o subúrbio. Isso se
dá, igualmente, por razões socioeconômicas das populações
pertencentes às classes mais baixas, que, face à especulação
imobiliária, procuram espaços mais baratos para morar. Muitas
coisas que aconteciam no município, como o próprio samba de
bumbo, hoje estão em setores periféricos da cidade.

Esse processo de dupla exclusão, portanto, das populações que


portam tradições que vêm de pai para filho, através de muitas
gerações, leva esse povo pra fora do centro urbano, para as periferias
ou cidades periféricas, como Mauá, Ribeirão Pires, o próprio ABC.
No ABC, por exemplo, há uma forte tradição de folias de reis,
mantida pelos mineiros que se instalaram naquelas cidades, e que
nunca poderiam morar nas áreas centrais de São Paulo, embora
muitos trabalhem lá. É um processo baseado na exclusão dos mais
pobres das áreas consideradas “nobres” – aqui (na capital) só ficam
os com maior poder aquisitivo. Quando me mudei para o bairro
onde moro, na Vila Madalena, há 20 anos, havia muitas famílias
negras em minha rua; com o tempo elas foram se mudando e
agora não tem mais nenhuma, foram todas para as periferias e para
outras cidades. Aqui também é uma região onde moravam muitos
negros – Perdizes, Barra Funda, Largo da Banana, onde hoje está o
Memorial da América Latina – que após a valorização imobiliária
do bairro foram sendo empurrados, primeiro para a Barra Funda
e depois para lá do rio (Tietê), Casa Verde, Limão, Freguesia do Ó.
104 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Nesses bairros aconteciam até os anos 70, festas populares onde


se dançava o batuque de umbigada, o samba de bumbo, a congada,
e hoje já não acontecem mais. São as pessoas de menor poder
aquisitivo, proletários ou sub-proletários, que são os herdeiros
dessas tradições, que portam essas tradições, e com o afastamento
geográfico deles há também o afastamento das festas populares,
além do sentido de não se tolerar nada que perturbe a ordem.
Assim, as festas com participação popular tendem a assumir um
caráter oficial, e têm obrigatoriamente de ser controladas pela
municipalidade, pelos organismos administrativos, como é o caso
da Virada Cultural2.

Nas cidades, as festas realizadas para homenagear


certos santos de devoção local deixaram de seguir as normas
costumeiras: o grupo de músicos devotos do santo (folia) não
mais percorre a região recolhendo dádivas para o repasto
coletivo e a distribuição gratuita de comida, sendo substituídos
por barraquinhas vendendo comes e bebes e pelo leilão de
prendas (ZALUAR, 1983).
A esse conjunto de fatores de urbanização e poder, somem-
se também, algumas outras perdas, especialmente a perda do
sentido de comunidade que regia o mundo rural, de onde essas
festas provêm na maioria dos casos e o próprio desprestígio
que essas comemorações sofreram junto à Igreja Católica.
No espaço onde o desenvolvimento tecnológico e científico
chegou, desapareceu a prática tradicional de devoção aos santos,
desapareceram as relações dos fazendeiros com os lavradores
que trabalhavam nas suas terras, relações paternalistas de
proteção e de lealdades pessoais (e de muita exploração também,
diga-se). “Desapareceu igualmente o costume de cooperação
vicinal para certas tarefas – o mutirão” (ZALUAR, 1983, p. 17).
Ou seja, as mudanças sociais desenvolveram a passagem
de um mundo rural para um mundo urbano, colocados num
contínuo, que se teria desenvolvido através de um processo de
quebra de padrões coletivistas e de transformação das relações
face a face, pessoais e íntimas, em relações impessoais e distantes.
Os interiores ou zonas periféricas passaram a ser classificadas
2 Disponível em: http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.
php?option=com_content&view=article&id=270&Itemid=120. Acesso em:
12 fev. 2022.
105

pela ausência de alternativas culturais, embora neles ainda


ocupassem lugar privilegiado a devoção aos santos e as crenças
no sobrenatural (PIERSON, 1966; ARAUJO, 1961 apud ZALUAR,
1983). O mundo rural coletivista, com uma estrutura sacratizada
por contraste com um mundo urbano, individualista e conflitivo
se criava.

[...] À manutenção, de aspectos tradicionais da sociedade rural ou


da cultura rústica, por sua vez causada pelo fato de o isolamento
dessas áreas não se ter quebrado totalmente e, em consequência
disso, seus habitantes continuarem privados dos recursos culturais
e materiais dos grandes centros urbanos [...] as relações pessoais
de dependência que ligavam os pequenos sitiantes, roceiros,
agregados, arrendatários, trabalhadores rurais, aos fazendeiros ou
comerciantes, geralmente denominados patrões, é que constituem
o ponto nevrálgico da questão. Essas relações assimétricas que
ligavam pessoas pertencendo a classes sociais diferentes por laços
de dependência pessoal caracterizaram a vida rural no Brasil até
um passado bem recente. A não participação dos fazendeiros como
festeiros da festa do Divino e de outros membros da elite como
contribuintes para a folia dos santos populares. [...] igualmente,
os patrões participavam ativamente das festas populares, o que
indica que, nas áreas tradicionais, a festa do Divino seria tanto
dos membros da classe dominante quanto dos membros da
classe dominada, embora sua participação nos rituais se desse
na maneira condizente com a posição de classe. O abandono das
práticas religiosas populares pelos fazendeiros e comerciantes
locais poderia ser, nesse caso, um indicativo a mais do abandono
das relações tradicionais de ligação pessoal com seus dependentes
(ZALUAR, 1983, p. 21-22).

A religião passou, então, a ser encarada como mais uma


medida para avaliar o grau de urbanização do município.
Certos traços culturais, especialmente as festas dos santos,
que derivam de uma herança cultural portuguesa associada
implicitamente à sociedade feudal atrasada, reproduzia dessa
maneira o argumento dos folcloristas nacionais (ARAUJO, 1964;
WILLEMS, 1961; PIERSON, 1966 apud ZALUAR, 1983) de que
eram tradições a serem preservadas como patrimônio estático,
mas não seguidas.
106 DO CABURAÍ AO CHUÍ

A religião existente no meio rural brasileiro era


eminentemente utilitária e prática. Assim sendo, não havia a
preocupação moral com o pecado, mas com a manutenção das
boas relações com os santos a fim de conseguir sua proteção.
Nas palavras de Zaluar, “a religião dos caboclos brasileiros
serviria mais para resolver os seus problemas e sanar os seus
males do que para apontar o caminho de salvação de suas almas.
Opõe-se, portanto, essa preocupação utilitária e prática a uma
preocupação moral” (ZALUAR, 1983, p. 23).
Existe igualmente uma tendência a contrastar a racionalidade
das religiões que predominam em áreas urbanas com a
irracionalidade das religiões populares encontradas nas áreas
rurais mais atrasadas do avanço tecnológico e científico. Os
autores mencionados tendem, por exemplo, a aceitar a definição
do sagrado fornecida pela teologia oficial da Igreja e a classificar
certos atos do culto aos santos como profanos – o baile, o repasto
coletivo, a folia – e a considerar as atividades da liturgia da Igreja
– a procissão, as novenas, a missa – como propriamente sagradas
(GALVÃO, 1955 apud ZALUAR, 1983).
A comunidade é considerada urbana pelo índice de
especialização profissional e diversificação de seus habitantes,
bem como pela existência de espaço urbano distinto do ambiente
rural desprezado por continuar a atividade agrícola (HARRIS
1956; apud ZALUAR, 1983).
Todos os participantes da pesquisa oral foram enfáticos em
dizer que as pessoas do sertão são mais participativas do que as
da cidade, uma vez que, que, no interior, o Divino é valorizado,
dadas as características da própria sociedade campesina,
menos escolarizada (e, portanto, mais afeita rituais e crenças)
e mais agônica (suplicante, devota e crente) pelos seus conflitos
internos e externos.

Com certeza no interior, a devoção não somente do Divino Espírito


Santo, mas todas as outras devoções populares têm maior destaque
no interior, nas comunidades rurais, por uma particularidade da
devoção popular deixada por agricultores, pelas famílias mais
carentes que tem essa devoção ao Espírito Santo (Lucas Pereira dos
Santos, Entrevistado, Araguaína, maio de 2014).
107

O ritual do Divino está vinculado às populações sertanejas


do interior, da zona rural. Esta população se concentra na sua
grande maioria nas regiões carentes das grandes cidades,
realizadas a partir da iniciativa dos migrantes internos oriundos
das zonas rurais. “Se eles perdem parte dos seus símbolos
e da solenidade cerimonial é porque saem, como vimos, de
um mundo de trocas sociais e simbólicas que fazem a própria
armação da sociedade camponesa, e que a periferia das cidades
tem dificuldades em reproduzir” (BRANDÃO, 1981, p. 108).
O festejo do Divino Espírito Santo era realizado pelos antigos
moradores da zona rural antes do processo de urbanização. Por
isso, talvez, o seu apogeu na década de 1970. A Festa do Divino
é uma festa rural, uma vez que reúne os antigos moradores da
região que, atualmente, estão dispersos pelo município, e que,
por estarem em contato com diversos fragmentos de outras
culturas, alteram rituais e modificam-nos em função da sua
transferência para a cidade grande.
A cultura resulta da capacidade dos seres humanos de se
comunicarem entre si por meio de símbolos. Quando as pessoas
parecem pensar e agir de maneira uniforme, elas o fazem
porque vivem, trabalham e conversam juntas, aprendem com
os mesmos companheiros e mestres, falam sobre os mesmos
acontecimentos, questões e personalidades, observam ao seu
redor, atribuem o mesmo significado aos objetos, feitos pelo
homem, participam dos mesmos rituais e recordam o mesmo
passado. Segundo Frade:

[...] A cultura aparece como um conjunto de gestos, práticas,


comportamentos, técnicas, regras, normas e valores herdados dos
pais e da vizinhança, e adaptações através da experiência. Ela é
também projeção em direção ao futuro (FRADE, 1997, p. 103).

Cada cidade, sociedade ou família possuem suas próprias


tradições, e, como são repassadas por pessoas diferentes
para épocas também diferentes, são modificadas, adaptadas
e recriadas. Uma vez que nossa cultura muda, assim também
muda a sociedade em que vivemos. Se continuarmos a repetir
gestos e costumes do passado, eles vêm sempre com uma cara
108 DO CABURAÍ AO CHUÍ

nova, com novas palavras, novas cores e novos sentidos (ENES,


1979, p. 23).
O saber popular surge das tradições e costumes e é
transmitida de geração para geração, principalmente, de forma
oral. As manifestações populares possuem como uma de suas
características marcantes, na maioria dos fatos, a transmissão
dos conhecimentos de maneira informal e não acadêmica. Os
costumes e tradições não são repassados através de métodos e
teorias tradicionalistas acadêmicas, as manifestações possuem
seus próprios ritmos de transmissão e funcionalidade.
Entende-se também que o saber popular é adquirido com
o tempo e repassado através dele. As diversas manifestações
do saber popular estão presentes no cotidiano dos moradores
desde sua infância e os acompanham no seu crescimento,
permitindo assim que sejam prolongadas e repassadas para
gerações posteriores (NASCIMENTO, 2009).
Tendo como ponto de partida nossa história de vida podemos
acompanhar as transformações e evolução da sociedade. Na
tradição oral, as palavras transformam-se em ação, atividade
comunicativa, relação de cumplicidade entre o contador e o
ouvinte. Neste ato de contar, circulam, além da cumplicidade,
palavras que não foram herdadas aleatoriamente, mas herdadas
dos velhos anciãos, o testemunho vivo dessas comunidades.
Através da cultura familiar, nos adaptamos às condições
de existência transformando nossa realidade. As gerações mais
antigas passavam seus saberes, suas crenças, seus costumes,
seus hábitos para as próximas gerações, ou seja, não deixavam
morrer a cultura do povo e do grupo em que estavam inseridas.
A partir da expansão dos centros urbanos e a deslocação
de pessoas do campo para as cidades grandes, a tradição oral
ficou ameaçada. É sabido que a oralidade é uma antiga forma
de comunicação humana que se estende aos dias de hoje. Isso
porque ouvir e contar histórias é algo inerente ao ser humano,
já que, desde a infância, esse hábito começa a fazer parte da vida
das pessoas.
Em se tratando das comunidades rurais, é possível
percebermos que a história oral é uma tradição viva, passada de
109

geração em geração por meio da palavra falada, configurando-se


como um aspecto identitário do campo. Nota-se que a tradição
de contar histórias vem se perdendo ano após ano. Ofuscada
pelo deslumbre dos recursos midiáticos, todo o saber e a cultura
popular estão adormecidos na memória dos poucos ancestrais
que ainda as conhecem e as preservam (ZALUAR, 1983).
Fatos verdadeiros ou frutos da imaginação humana, os
causos populares costumam gerar grandes polêmicas entres os
habitantes da região interiorana. A verdade é que estas estórias
ficam nos pensamentos e passam de pai para filho, preservando
as especificidades locais. Essa cultura, parte constitutiva do
social, dinâmica e plural, deixa rastros, traços de memória por
indícios e sinais, não nos deixando órfãos de história.
Mesmo diante do quadro de transformações que a
modernidade impõe é impossível não perceber que o povo do
interior aprendeu a cultivar a sua memória em pequenos sinais
da vida cotidiana, que podem estar traduzidos nos objetos
materiais e santos de devoção guardados e cultuados, nos
ditos, provérbios e “causos” populares, com os quais procura
expressar a sabedoria e as experiências devidas, nas suas
relações de compadrio ainda assumidas, nas comemorações
dos festejos religiosos e populares nos quais se renovam a fé e
o reencontro, nos sabores, quitutes e comidas típicas da região,
na preferência pelas cantigas ainda entoadas, nas crenças, nas
benzeções, nos curadores, nos chás e remédios caseiros aos
quais, frequentemente, recorrem (OLIVEIRA, 2013).
A Festa do Divino Espírito Santo é um dos eventos populares
que transcendem o âmbito religioso de sua origem e incorporam
aspectos profanos e regionais. Trata-se, como já vimos, de
expressões agrárias que tem características próprias, expressas
em ritmos de canções.

Aquelas pessoas que faziam votos pra cantar durante tantos


anos, durante a vida deles, essas pessoas foram morrendo, outras
passaram para outras igrejas protestantes, e aí foram diminuindo,
os mais novos não foram seguindo o mesmo padrão dos mais
velhos, a tradição (Dinalva Gomes Barbosa. Entrevista, Araguaína,
maio, 2014).
110 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Apesar das peculiaridades, os festeiros têm como


característica de preservação os versos das músicas que são
transmitidos de geração a geração de forma oral e que trazem em
seu bojo reminiscências da história de um grupo que tem como
essência o companheirismo, a coletividade, enfim a comunidade.
Se observarmos a história da civilização ocidental,
perceberemos que ela foi marcada drasticamente pelo
desenvolvimento dos meios de transporte. As revoluções que
transformaram a estrutura econômica, a moral, a ciência e todas
as esferas da ação humana precisaram chegar aos territórios
que ainda não sabiam de sua existência. Só assim ela podia
se estabelecer. Portanto, mais do que os meios de transportes
de materiais, a informação era também transportada e foi
esse o ponto crucial para o desmoronamento das explicações
“universais” mantidas em territórios locais por sua cultura
singular.
O Estado-nação teve sucesso justamente pela supressão
das comunidades, buscando criar cultura, língua e história
unificadas, em detrimento de tradições comunitárias, o que foi
possível pela imposição de língua oficial, currículos escolares e
sistema legal unificado (BAUMAN, 2003).
Os elementos que unem os membros de uma coletividade
estão cada vez menos fortes. Muitas pessoas buscam, portanto,
resgatar um sentimento já perdido de “comunidade”, que costuma
ser negada pelos liberais. A comunidade perde sua característica
exatamente neste ponto: as relações íntimas, as normas sempre
atualizadas pela voz, num domínio ligado direto às autoridades/
líderes que as prescrevem/informam, e que são as suas bases
(BAUMAN, 2003).
De outro lado, e em conjunto com esse desenvolvimento
da cidade de Araguaína nas últimas décadas do século XX,
os holofotes sobre o catolicismo romano na América do Sul
tornaram-se ainda mais brilhantes com a eleição do Papa
Francisco. Embora ele seja da Argentina, é o primeiro Papa das
Américas. Jorge Mario Bergoglio fez o mundo olhar para cima
e tomar conhecimento da popularidade da Igreja nessa região
111

fortemente cristã. Isso nos permite entrar no argumento deste


trabalho: as relações da Igreja Católica com o Protestantismo.
Mas, antes de falarmos dessa perda, é preciso retomar
a própria atuação da Igreja Católica em relação às festas da
religiosidade popular e suas ligações com o poder do Estado.
Sobre o desprestígio das festas populares junto à Igreja
Católica, em períodos anteriores, na colônia e no império, toda
a vida social era praticamente orientada pelas festas religiosas,
festas que mobilizavam a sociedade como um todo, embora
também houvesse as festas públicas oficiais - por exemplo, o
casamento da princesa, a entrada do governador da província
etc. Hoje em dia, a grande festa popular é profana, ligada
aos processos de urbanização e de laicização. A cultura vai
se tornando independente de concepções religiosas, como o
carnaval, que começa a ser encampado pela indústria do turismo,
pela indústria do entretenimento, dos meios de comunicação de
massa, etc.
A igreja de hoje participa ou não das festas do catolicismo
popular, porque alguns padres não querem misturar o popular
com o catolicismo oficial, segundo uma de nossas entrevistadas.
“Alguns dirigentes de igreja católica, segundo os devotos do
Divino, se neutralizam em relação a essas comemorações;
outros chegam a proibir que a pombinha e a bandeira do
Divino Espírito Santo sejam usadas nas folias” (Cremilda Alves
de Sousa. Entrevista, Araguaína, maio, 2014). Há padres mais
conservadores e outros mais abertos para essas celebrações,
donde tudo passa a depender realmente do vigário.
De outro lado, no decorrer do tempo, nas cidades (núcleos
urbanos dos municípios), os grupos religiosos antes formados
por leigos em confrarias e irmandades, e que eram uma ponte
fundamental entre o oficial e o popular, também tornaram-se
mais e mais controlados pela hierarquia da Igreja Católica e
foram perdendo a importância que tinham como congregadores
das populações locais (ZALUAR, 1983).

Não havia mais bailes nem folguedos, que eram violentamente


criticados pelos padres e pelos que compartilhavam sua doutrina,
os quais viam nesses eventos uma profanação da solenidade
112 DO CABURAÍ AO CHUÍ

sagrada. As procissões e as novenas dominavam as festas da Igreja.


Por fim, as promessas, que eram sempre feitas em função das
festas tradicionais, pareciam estar também mudando de caráter no
contexto urbano (ZALUAR, 1983, p. 22).

Uma das explicações para isso, bastante enfatizadas por


diversos autores, seria a de que a atuação da Igreja, visando
caracterizar a prática religiosa popular como profana e
assim proibi-la, teria finalmente desagregado esses padrões
tradicionais, substituindo as atividades profanas pelas sagradas,
isto é, aprovadas pela liturgia católica: “[...] a mudança na prática
religiosa [...] foi agenciada pela Igreja e sua ação foi crucial no
processo” (ZALUAR, 1983, p. 17).

A igreja impõe, não quer saber se o povo quer ou não, mas o povo
modifica o dogma cristão e o transforma à sua maneira. Os santos
são reconhecidos pelo Vaticano, mas as maneiras de se louvar
esses santos no catolicismo popular são bem diferentes. É com
dança, com tambor, sapateado e por aí vai. Tem a festa do Divino
no Maranhão que é também com tambor, que as mulheres tocam.
Na maioria das festas do catolicismo popular, uma parte acontece
dentro da igreja e uma parte fora. E coisas que muitos consideram
profanas não são profanas para quem as pratica: tocar e dançar, em
alguns grupos, são consideradas atitudes religiosas; por exemplo,
nas religiões afro-brasileiras se dança para as divindades, toca-se
tambores. Nas congadas acontece a mesma coisa, você toca e dança
para Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, é religioso. Não tem
a ver com o catolicismo oficial, mas com o catolicismo popular, que
é outro catolicismo, que é vivo e que está fora da igreja católica. É o
catolicismo do povo3.

A festa do Divino é um bom exemplo disso. O Divino Espírito


Santo é pouco cultuado na igreja oficial, embora ele seja uma das
três pessoas da Santíssima Trindade, representada pelo pombo.
Mas o culto específico dessa terceira pessoa da Trindade vem
sendo mantido fora da igreja. Como já vimos, é um culto que faz
referência ao Pentecostes, às línguas de fogo do Espírito Santo
de Deus que se manifestou aos apóstolos. É uma passagem da
3 Disponível em: http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.
php?option=com_content&view=article&id=270&Itemid=120. Acesso em:
12 fev. 2022.
113

Bíblia, uma data comemorativa do catolicismo, mas não é objeto


de culto na igreja como são, por exemplo, os santos e a Virgem
Maria. O culto ao Divino é popular, vem já da Idade Média e
nessa época foi considerado uma heresia; transplantado para o
Brasil, ele se mantém como culto popular. Acho que não há um
estado brasileiro que não tenha a tradição do Divino. Então, ele é
católico, mas não é da Igreja. É festa popular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diversas são as tentativas de explicação para essas


mudanças que continuam ocorrendo, com fortes influências nos
contextos regionais, fortalecendo a concepção de uma sociedade
midiatizada.
Nesse sentido, pode-se procurar compreender determinados
padrões sociais que abarcam a vivência do povo tocantinense no
contexto social e histórico enfocado por essa tese, da década de
1970 até 2014. Os anos de 1960 e 1970 representaram para essa
região uma época de vertiginoso desenvolvimento econômico,
em virtude da construção da rodovia Belém-Brasília (1960-
1965) que, entre outras, provocou a melhoria na mobilidade da
região, a qual se fazia por meio da via fluvial e lacustre até então.
Dessa forma, modificou-se o contexto social da região e,
obviamente tal aspecto tendenciou, ainda, o modo de como
a população dessa localidade passou a se organizar para as
suas festividades e demais manifestações. Segundo os escritos
de Silva (1996), nesse período as festas religiosas da região
tocantinense conheceram um período de fausto e crescimento,
principalmente quanto ao número de devotos que participavam
dos festejos, motivados pela facilitação do acesso à região e pela
alocação de recursos oriundos dos diversos setores produtivos
da localidade.
Contudo, no transcorrer das décadas, a Festa do Divino
Espírito Santo na cidade de Araguaína foi reduzindo a sua
proporção, em parte devido ao próprio contexto sócio-histórico
vivido, perdendo espaço perante as novas gerações responsáveis
114 DO CABURAÍ AO CHUÍ

por um cabedal de produtos globalizados e mercantilizados,


portadores de valores estéticos e conteudísticos questionáveis,
segundo publica Silva (2010). Nesse diapasão, os discursos dos
depoimentos colhidos de participantes já tradicionais da Festa do
Divino de Araguaína demonstram um saudosismo de uma época
em que a festividade nessa localidade possuía a sua riqueza e
reconhecimento, senão local, em nível regional e nacional.

Muitas dessas mudanças registradas nas festas e folguedos


populares estão ocorrendo em várias partes do mundo a partir
da intervenção de variáveis econômicas, sociais, culturais,
educacionais entre outras redimensionadas e agudizadas no âmbito
de uma sociedade cada vez mais pautada pelo avanço e proliferação
das chamadas conexões tecnológicas (SILVA, 2010, p. 2).

Diversas são as tentativas de explicação para essas


mudanças que continuam ocorrendo mundialmente, com fortes
influências nos contextos regionais, fortalecendo a concepção
de uma sociedade midiatizada. As correntes críticas atestam
que esse novo cenário está contribuindo para o esvaziamento
das manifestações da cultura popular, das festas e dos folguedos
tradicionais dos povos. Para os observadores e defensores dessa
corrente teórica ou dessa linha de pensamento, as indústrias
culturais estariam transformando tais manifestações em
espetáculos através dos novos espaços gerados pela sociedade
midiatizada (SILVA, 2010).
Nas regiões onde ocorre a Festa do Divino Espírito Santo,
é possível notar uma tradição que remonta à época do Brasil
colônia, cujos símbolos e rituais fazem parte de uma realidade
completamente distante se comparada à do mundo globalizado
e da era de dominância tecnológica que vivemos nos dias de hoje.
Era que tem enfraquecido crenças religiosas e especialmente
manifestações intensas para com o divino.
Os resultados do estudo permitem vislumbrar que a
importância da Festa do Divino Espírito Santo em Araguaína-TO
está na renovação da identidade do povo tocantinense, na interação
social da população, na reafirmação dos seus pressupostos
culturais. Nesse sentido, os discursos dos entrevistados deixam
115

entrever, além de uma nostalgia de décadas passadas, de quando


a Festa do Divino nesse território era um acontecimento de
grandes proporções, também uma retomada da autoestima e
da valorização, quando a comemoração religiosa possuía eco
nas demais regiões brasileiras, elevando a importância social do
povo tocantinense.

REFERÊNCIAS

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In: Dicionário Crítico de Sociologia. Trad. Maria Letícia Guedes
Alcoforado e Durval Ártico. São Paulo: Ática, 1993.
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Senhora. Rio de Janeiro: Funarte, 1978
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Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt.. Comunidade: a busca por segurança no mundo
atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
DURKHEIM, E. As formas elementares de vida religiosa. São Paulo,
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HINNELLS, John R. Dicionário das Religiões. Sao Paulo: Editora
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OLIVEIRA, Frederico Salomé. O catolicismo rústico ganha uma
cidade nova: A Festado Divino da Comunidade Canela, Antes e
depois de Palmas/TO, 2010. Disponível em:htt:/WWW.cult.ufba.br/
wordpress/24418.pdf. Acesso em: 04 out. 2021.
PRANDI, Reginaldo. As religiões, a cidade e o mundo. In.: PIERUCCI,
Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo (orgs.). A realidade social das
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1996.
PERECIN, Marly T. G. A devoção festiva quanto às origens. Jornal de
116 DO CABURAÍ AO CHUÍ

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SANCHIS, Pierre. Ainda Durkheim, ainda a religião. In: ROLIM,
Francisco Cartaxo (org.). A Religião numa sociedade em
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SILVA, Otávio Barros da. Breve História do Tocantins e de sua
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THOMPSON, P. A voz do passado - história oral. Rio de Janeiro:Paz e
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ZALUAR, Alba. Os Homens de Deus: um estudo dos santos e das
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DEPOIMENTOS ORAIS/HISTÓRIAS DE VIDAS

Depoimento do Carlos Alberto R. Gama. Entrevistada, Araguaína,


maio, 2014.
Depoimento da Cremilda Alves de Sousa. Entrevistada, Araguaína,
maio, 2014.
Depoimento da Dinalva Gomes Barbosa. Entrevistada, Araguaína,
maio de 2014.
Depoimento do Lucas Pereira dos Santos. Entrevistado, Araguaína,
maio, 2014.
Depoimento da Maria do Carmo Sousa Silva. Entrevistada,
Araguaína, maio, 2014.
DOI: 10.55328/edpan.978-65-84794-00-9_007

Mulheres quilombolas: estratégias de


empoderamento feminino no interior
do Maranhão

Amanda Gomes PEREIRA, Angelica Lima MELO e Tatiana COLASANTE

É tempo de caminhar em fingido silêncio,


e buscar o momento certo do grito,
aparentar fechar um olho evitando o cisco
e abrir escancaradamente o outro.
É tempo de fazer os ouvidos moucos
para os vazios lero-leros,
e cuidar dos passos assuntando as vias
ir se vigiando atento, que o buraco é fundo.
(Conceição Evaristo. Tempo de nos aquilombar, 2020).

SOBRE TRAJETÓRIAS DE VIDA NO INTERIOR DO MARANHÃO

Inicialmente, queremos destacar que parte dos dados


aqui apresentados resulta do projeto de extensão “Mulheres
quilombolas: construindo um futuro sem violência”, apoiado
pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema) – aprovado em
2016 e desenvolvido durante os meses de janeiro e fevereiro
de 2017. Se aqui é destacado esse fato, é para enfatizar que há
muitos percursos que nos levam a percorrer diferentes contextos
acadêmicos e profissionais por determinados caminhos, levando
ao entrecruzamento de trajetórias1.
1 Baseando-nos no conceito de Pierre Bourdieu (1996), compreendendo que
as trajetórias de vida enquanto narrativas não lineares têm sentido quando
concatenadas às alteridades e corporeidade, atribuindo sentidos às ações
sociais.
118 DO CABURAÍ AO CHUÍ

As autoras deste texto, de algum modo, sempre se situaram


perto e longe dos territórios quilombolas, sendo estabelecidas
interfaces com suas trajetórias pessoais. Angélica, supostamente
mais próxima por ser natural do município de Santa Quitéria do
Maranhão, tem sua trajetória de vida marcada pela contiguidade
e proximidade de quilombos, tendo escutado inúmeras histórias
de conflitos de terra na região, principalmente no período
recente. A poucos quilômetros de sua residência localiza-se
o Quilombo Cana Brava, com importantes lideranças que se
vinculam a esse processo.
Amanda Gomes, ao ser contemplada com o fomento de um
projeto de extensão pela Fapema, passou a realizar atividades
junto com um grupo de mulheres de um determinado território
‒ projeto esse que será melhor detalhado futuramente ‒,
um esforço inicial de reprodução de práticas de governança
e liderança feminina em territórios periféricos que, em um
primeiro momento, não se mostrou muito exitoso. Após alguns
anos de realização do projeto e de andanças e vivências entre
fronteiras, foi possível perceber que o respeito à história de luta
dos povos tradicionais do estado exigia uma descolonização do
saber que conhecíamos na teoria, não na prática.
Tatiana Colasante, pesquisadora da área de Geografia
e Turismo, começou a ter contato com as comunidades
remanescentes de quilombos há menos tempo do que as demais
autoras. No norte paranaense de onde veio, pouco se falava em
quilombo, inclusive na academia, o que de certa forma invisibiliza
esses sujeitos, assim como faziam com os indígenas, fato que já
chamava sua atenção na pesquisa de mestrado ao abordar as
“memórias invisíveis”. A possibilidade de morar no Maranhão
trouxe a emergência de focar em estudos que contribuíssem
para a leitura da realidade local, especialmente nas questões
que envolvem a produção do espaço a partir das ruralidades e
das comunidades tradicionais. Em 2019, iniciou seus estudos
no Quilombo Saco das Almas a partir do projeto de pesquisa de
iniciação científica “Territórios, resistências e (re)existências: o
turismo no Quilombo Saco das Almas”.
119

TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS NO MARANHÃO

De acordo com Souza (2008), o sistema colonialista das


Américas teve como uma das consequências o tráfico de
aproximadamente 15 milhões de pessoas expatriadas dos países
de origem africana, que implicava em coerção do trabalho e
violência física e simbólica2. Desse contingente, 40% veio para o
Brasil. Qualquer fuga ou tentativa de rebelião era rigorosamente
punida. Os que fugiam constituíam agrupamentos – quilombos
‒, que passaram a ser mencionados nos regimentos da Coroa
portuguesa como uma ameaça a partir de 1722. A formação
dessas comunidades demandava estratégias de organização
intensas e exprimiam múltiplas faces da resistência do povo
negro.
Antes de adentrar nos dados mais específicos relacionados
aos territórios quilombolas do Baixo Parnaíba Maranhense, é
preciso recuperar elementos da história do Maranhão. Segundo
a pesquisadora Marivânia Furtado (2020, p. 104):

[...] O Maranhão, enquanto um espaço político, formalmente


constituído, apresenta uma intensa diversidade quanto ao uso
e ocupação territorial. Em seus aspectos populacionais, tem sido
território de disputa de nações indígenas, regionais e quilombolas.
Tais disputas podem ser analisadas à luz da ecologia política ao
entender que essas relações conflituosas que se estabelecem
entre esses segmentos étnico-raciais específicos e os interesses
hegemônicos da logica do sistema-mundo colonial/moderno são
fruto da tentativa de assimilação de lógicas simbólicas e territoriais
próprias à dinâmica do mercado.

Nesse processo de lutas inseridas em dinâmicas de um


capitalismo global, os desequilíbrios de poder levam populações
quilombolas a acessarem o debate a partir de suas linguagens
e interpretações próprias que, muitas vezes, não são gestadas
a partir de conhecimentos acadêmicos, legitimamente
reconhecidos. Um exemplo disso é trazido por Furtado (2020),

2 Conceito de Pierre Bourdieu (2001) que reflete sobre as formas de poder


que agem sobre os sujeitos, mas que por vezes são invisíveis, engendradas
por sistemas simbólicos.
120 DO CABURAÍ AO CHUÍ

ao pontuar que em territórios da Baixada Maranhense, onde


realiza campo, o “teu direito” é compreendido como dever. Se
existe hiato na comunicação, muitas vezes ele serve a processos
de reprodução da desigualdade.
A disseminada presença de territórios quilombolas
no Maranhão está entrelaçada com aspectos históricos de
ocupação do estado, principalmente durante o período da “[...]
fundação da Companhia do Comércio do Grão Pará e Maranhão”,
como destaca Furtado (2020, p. 105), período pombalino
da colonização portuguesa no estado que promoveu um
crescimento significativo da chegada de pessoas escravizadas,
negras, oriundas do continente africano e que nesse período
saltou de 3 mil para 12 mil pessoas.
Os quilombos, enquanto agrupamentos sociais constituídos
a partir do e no território, refletem uma reação de resistência
decorrente da constituição da sociedade escravista que teve
intensa disseminação no Maranhão, fato observado quando a
pesquisadora Marivânia Furtado (2020) destacou que mais da
metade da população escravizada no Brasil encontrava-se no
estado. Por conseguinte, isso levou a uma maior concentração
espacial dos quilombos no Maranhão.
Os dados mais recentes da Comissão Pró-Índio do Estado
de São Paulo (CPISP, 2020) ‒ que desde 2004 monitora a
regularização fundiária das terras quilombolas no Brasil ‒
apontam, no estado, a existência de 57 terras quilombolas e
outras 399 em processo de titulação junto ao Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Do ponto de vista
constitucional, o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003,
em seu Art. 2º, indica:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos


[...], os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição,
com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida (BRASIL, 2003, p. 4).

A pesquisadora Bárbara Oliveira Souza (2008) ainda dá


destaque ao surgimento de movimentos de reivindicação de
121

direito às terras que trouxeram grandes mudanças a partir da


Constituição Federal de 1988, com destaque para o Artigo 68, que
concede o direito à propriedade definitiva aos remanescentes
das comunidades quilombolas que estejam ocupando territórios.
Com isso, a posse da terra, outrora compreendida como
transgressão e crime nas legislações coloniais, passou a ter um
escopo legal.

O TERRITÓRIO BAIXO PARNAÍBA MARANHENSE: LUTAS E


CONFLITOS

O Território do Baixo Parnaíba Maranhense localiza-se


no leste do Maranhão e abrange os seguintes municípios: São
Benedito do Rio Preto, Urbano Santos, Belágua, Chapadinha,
Mata Roma, Anapurus, Brejo, Buriti, Santa Quitéria do Maranhão,
São Bernardo, Milagres do Maranhão, Magalhães de Almeida,
Santana do Maranhão, Água Doce do Maranhão, Tutóia e
Araioses (Figura 1). No caso, compreendemos essa região como
interior do estado, para além de se configurar em um espaço fora
da capital, pois se localiza à margem dos processos decisórios,
emancipatórios e de inclusão social.
Além disso, em virtude da precariedade da infraestrutura
básica, as distâncias se processam de forma relativa. Como
exemplo, citamos as estradas do Maranhão que, devido à mínima
condição de asfaltamento, tornam quilômetros que poderiam ser
percorridos em poucos minutos em horas de viagens cansativas.
Como alternativa a essa precariedade de condições, moradores
que se localizam às margens das rodovias se dedicam a remendar
trechos e veem isso como uma forma de obter algum ganho
financeiro extra. Além disso, cabe ressaltar que é graças a esses
serviços prestados pelos moradores que viagens cotidianas se
tornam menos perigosas, evitando acidentes.
O Baixo Parnaíba Maranhense, enquanto configuração
territorial, é resultado de uma política do Governo Federal
instituída em 2003 com o objetivo de propor ações de
desenvolvimento social e sustentável das populações que vivem
122 DO CABURAÍ AO CHUÍ

em áreas rurais. Nesse quadro, os municípios que fazem parte


desse território têm predominância de mais da metade de seus
residentes em área rural e baixo Índice de Desenvolvimento
Humano Municipal (IDH-M), segundo Azevedo, Dantas e Farias
(2016). Nas últimas décadas, esse território vem sofrendo
profundas alterações em função da expansão da soja, o que
colabora para o quadro de marginalização da população rural,
gerando conflitos territoriais, especialmente em comunidades
tradicionais, como indicado em Sodré et al. (2019) e Viana
(2018). Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de 2020
colocam o Maranhão em primeiro lugar no número de conflitos
socioterritoriais, principalmente em comunidades quilombolas
(CPT, 2021).

Figura 1 – Localização do Território Baixo Parnaíba Maranhense


Fonte: Azevedo, Dantas e Farias (2016)

Nessa dinâmica, o território sofre processos de rupturas,


fragmentações e segregações em prol do discurso do capital
que tecnifica, expropria e marginaliza. Por outro lado, ainda
123

reflete as resistências e lutas de famílias que vivem no campo.


Percebemos assim que o território tem uma dimensão que
perpassa o econômico, embora seja utilizado enquanto base
material para o sustento de famílias que vivem nas áreas rurais,
mas ascende para uma dimensão simbólica que representa
história, movimento, identidade, tradições e memória. Com isso,
a compreensão sujeito-território é marcado por um continuum
de processos contraditórios, mas que se complementam em um
mesmo espaço-tempo.
A estratégia de instalação do campus da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA) no município de São Bernardo tem
contribuído para o acesso das populações distantes das regiões
centrais – aqui vistas como a capital do estado, São Luís, e Sul e
Sudeste do país, e situadas em espaços de pouco acesso a serviços
públicos (tais como saúde, educação e saneamento básico) –
ao ensino superior, podendo também refletir na melhoria da
qualidade de vida dos habitantes e elevando a autoestima.
Todavia, para que isso se dinamize é necessário que as
instituições de ensino quebrem o paradigma da reprodução do
discurso dominante, que privilegia uma parcela da população que
já chega aos mais altos níveis de escolaridade provida de amplo
capital cultural, reproduzindo a lógica de segregação social,
como sugerem Bourdieu e Champagne (1998). É justamente
nesse ponto que defendemos a urgência em se criar mecanismos
de reajuste dessa realidade, sobretudo reconhecendo a
identidade territorial dos povos do Baixo Paranaíba Maranhense
estabelecendo diálogos e experiências a partir das vivências dos
sujeitos que fazem parte desse território e que já vem de uma
história de marginalização. Frente às forças hegemônicas do
capital que criam mecanismos de coerção, devemos direcionar
o olhar para uma consciência de classe e de lugar. Com isso,
o território se mostra um componente fundamental para o
desenvolvimento de base local, cultural e natural, sob a égide da
cooperação, solidariedade, lutas e resistências políticas, como
propugna Saquet (2018).
Como apontado em Pereira e Colasante (2020), o Maranhão
apresenta o menor rendimento mensal médio (R$ 710,00) do
124 DO CABURAÍ AO CHUÍ

país e também o maior percentual de pessoas abaixo da linha


da pobreza. Além disso, há sérias restrições de acesso a serviços
básicos de saúde, educação, serviço de coleta de lixo e saneamento
básico. É nesse recorte espacial no interior do estado, marcado
por vulnerabilidades sociais e formas de resistência, que
empreendemos nossas ações enquanto pesquisadoras, buscando
o diálogo com a população local, alicerçando estratégias de
empoderamento em meio a espaços de silenciamentos.

MULHERES QUILOMBOLAS: INTERSECCIONALIDADE,


EMPODERAMENTO E AQUILOMBAMENTO

O Baixo Parnaíba Maranhense ainda guarda profundos traços


de ruralidade, com a presença do trabalho familiar, comunidades
tradicionais, laços de solidariedade, pluralidade cultural, vasto
patrimônio (i)material com tradições, lendas, mitos, culinária e
outros elementos que configuram especificidades e permanências
no território. Ou seja, há na ruralidade elementos identitários,
territorialidades, práticas territoriais, convivialidade; uma
dinâmica de vida que pulsa no cotidiano e perpassa essa
homogeneização imposta pela chegada da fronteira agrícola.
Neste estudo, privilegiamos a análise do Quilombo Saco das
Almas, localizado no município de Brejo e que, de acordo com
Viana (2018), é composto por sete vilas: Vila das Almas, Vila
Criolis-Boca da Mata, Vila São José, Vila Pitombeira, Faveira,
São Raimundo-Boa Esperança e Santa Cruz, onde vivem
aproximadamente mil famílias, segundo estimativas da Comissão
Pró-Índio de São Paulo (CPISP, 2017).
No Brasil ainda há muita burocracia e morosidade para que as
comunidades quilombolas possam ser, de fato, proprietárias de
suas terras, o que acentua o processo de exclusão e invisibilidade,
uma vez que ao não se ter o direito àquilo que é seu legalmente,
relega-se a sua própria existência no território e a sua própria
identidade. Tal situação acontece no Quilombo Saco das Almas,
que é uma comunidade que se autorreconhece como quilombola,
mas ainda não possui a titularidade de suas terras; processo que
125

foi aberto em 2004. Nesse ínterim, muitas vidas se foram, como


a do senhor Claro Ferreira da Costa, conhecido como Seu Claro,
uma das lideranças da comunidade Saco das Almas, falecido
em 2021. Ele foi uma das grandes vozes que se manifestaram
e se tornaram representativas em prol de denúncias contra
fazendeiros gaúchos que se instalaram na região em função do
plantio de soja.
Do ponto de vista histórico, esse território era conhecido
como “Data Saco das Almas3” e “terra de preto4”. Embora
façam parte do quilombo, as vilas que o compõem possuem
singularidades no que se refere aos conflitos fundiários e às
atividades extrativistas. No entanto, há que se destacar pontos
em comum da organização socioterritorial, como a extração do
babaçu e do bacuri (VIANA, 2018).
Uma das lideranças atuais é a dona Dudu, da Vila das
Almas. Em 2011, ela e alguns representantes de comunidades
tradicionais do Baixo Parnaíba Maranhense fizeram uma
denúncia ao Ministério Público Federal onde relataram os
impactos causados pela agricultura em seu território que afetam
diretamente no seu modo de vida: “Antes você podia fazer um
suco de murici e buriti, que são ricos em vitaminas, ou fazer um chá
de alecrim para curar tosse. Hoje, até a água está se acabando”.
Na ocasião, ela atribuiu ao desmatamento a causa da destruição
de árvores frutíferas e medicinais, essenciais para a vida da
comunidade (PORTAL CN1, 2011).
Durante as nossas andanças pelas terras do Quilombo, nas
visitas e oficinas, dona Dudu também narrou a importância
do bacuri5 (Figura 2) na economia e história do quilombo e o
quanto tal fruta se relaciona com os processos de resistência no
território. Os gaúchos, como menciona a pesquisadora Keliane

3 “Data” ou “Datas” se refere a porções do território decorrentes de ações


judiciais que englobavam grandes e pequenas propriedades na região (VIANA,
2018).
4 Referência dada aos domínios doados, entregues ou adquiridos, com ou
sem formalização jurídica, por famílias de ex-escravos (VIANA, 2018).
5 Fruta típica da região utilizada para fazer iguarias e produtos cosméticos
cuja polpa chega a custar em torno de 20 reais por quilo.
126 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Viana (2018), pressionam a entrada e a expansão pelo território,


ocupando justamente setores em que se localizam os bacurizais.

Figura 2 – Bacuri colhido no Quilombo Saco das Almas


Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora Tatiana Colasante
(2019).

Diante dos infortúnios cotidianos impostos pela expansão


da fronteira agrícola e pela falta de titulação das suas terras, a
comunidade Saco das Almas se mobiliza para resistir, uma vez que
é necessário aquilombolar-se para existir. Como explica Souza
(2008, p. 106): “A idéia central do movimento de aquilombar-
se reside nas várias estratégias e mobilizações impetradas pelos
quilombos, mocambos, terras de preto, terras de santo [...] para
manterem-se íntegras física, social e culturalmente”.
Nesse processo, o estudo sobre mulheres quilombolas traz
à tona interpretações que vão além do seu papel na sociedade
e da luta árdua das mulheres negras, mas incide sobre suas
ancestralidades, seu viés identitário e sobre o vínculo com o
território. A partir de ações de empoderamento dessas mulheres,
vislumbramos uma perspectiva de inclusão social que se
contrapõe aos espaços cotidianos que refletem silenciamentos
e invisiblidades. Com isso, temos múltiplas identidades e
narrativas que se entrecruzam e, por isso, devem ser lidas a
partir da interseccionalidade.
127

Durante as interlocuções na comunidade em tela, foram


realizadas oficinas sobre violência doméstica e empoderamento
feminino com o intuito de reforçar a representatividade das
figuras femininas existentes no Quilombo Saco das Almas,
fomentando seu protagonismo e munindo-as de saberes que
as tornassem agentes multiplicadores de ações voltadas para
o enfrentamento da violência doméstica e de gênero, além da
promoção da equidade de gênero.

METODOLOGIA

Como metodologia empregada na pesquisa, destacamos


a realização de oficinas baseadas na etnografia de interstícios,
utilizando-se de diálogo e produção coletiva de saberes. Assim,
não há hierarquia de saberes, mas uma produção coletiva, em
que o saber acadêmico não deve ser colocado acima dos saberes
tradicionais. Por isso, acreditamos na importância de uma
antropologia simétrica (LATOUR, 1994), com a construção e
revisão dos objetivos a partir de diálogos coletivos.
Sem essa perspectiva metodológica, o projeto se tornaria
apenas mais um dentre os vários que já foram realizados na
comunidade, em nada contribuindo para a construção de uma
agenda coletiva, capaz de fortalecer os elos e formas de resistência
às tentativas de invasão. Inclusive, na fala das lideranças locais, já
é notada uma cobrança de que os projetos realizados no Saco das
Almas tenham algum retorno para a comunidade, uma vez que
disponibilizam seu tempo e às vezes até recursos para auxiliar a
universidade nas suas pesquisas.
Nesse sentido, excluímos o pressuposto positivista de que
o saber acadêmico é neutro e não pode intervir na realidade. A
antropologia surge trazendo questionamentos e apontando como
qualquer objeto externo, sendo o pesquisador ou pesquisadora,
interfere diretamente na rotina de uma comunidade, definida
como tradicional ou não.
As oficinas organizadas para a comunidade contemplaram
as seguintes temáticas: Direito das Mulheres, Direitos Humanos,
128 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Racismo Institucional e Empoderamento Feminino. A escolha por


esses conteúdos se deveu ao fato de que historicamente, como
indica o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2011),
as desigualdades que se manifestam entre negros e brancos e
homens e mulheres nos diferentes espaços da sociedade ‒ como
educação, mercado de trabalho e acesso a bens e serviço ‒
acentuam a vulnerabilidade das mulheres negras, que acabam
sendo vítimas do racismo e do sexismo, refletindo nos piores
indicadores sociais em quase todas as áreas.
O grupo que participou das quatro oficinas foi formado por
aproximadamente 30 mulheres, em sua maioria jovens, além
de dona Dudu e dona Rosa – liderança e herdeira de tradições
do quilombo, representante geracional –, de cerca de 50 anos.
Como na equipe do projeto contamos com uma mulher jovem
quilombola, moradora da comunidade, a aproximação com as
demais mulheres do quilombo se deu a partir desse contato.
Nesse aspecto, cabe ressaltar que todos os projetos que são
realizados nesse território, acabam envolvendo as lideranças
locais, uma vez que são elas que representam os direitos coletivos
e avaliam se o projeto será bom ou não para a comunidade.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

As ações empreendidas no Quilombo buscaram capacitar as


mulheres da comunidade, tendo por norte seu fortalecimento
enquanto agentes políticas capazes de interferir nas
dinâmicas sociais, situando-as de maneira diferenciada nos
conflitos agrários que assolam a região onde está localizado o
quilombo. Compreendemos o território a partir de um caráter
multiprocessual, no qual existem diferentes formas de poder e
intencionalidades. Por isso, tecer estratégias de empoderamento
e ações inclusivas em prol dos direitos sociais para essas
mulheres, por vezes, esbarrou em conflitos de interesse.
O contexto socioespacial em que vivem essas mulheres é
marcado por constantes processos de exclusão e segregação. No
município de Brejo, com pouco mais de 35 mil habitantes, onde
129

se situa o Quilombo Saco das Almas, o salário médio mensal era


de 1,9 salários mínimos em 2019. No entanto, considerando
domicílios com rendimentos mensais de até meio salário
mínimo por pessoa, os indicadores sociais apontaram 55,3% da
população nessas condições. Cerca de 60% da população vive
na área rural e apenas 18,5% de domicílios tem esgotamento
sanitário adequado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE, 2021).
É nesse território fragilizado por constantes momentos de
incertezas que a mulher quilombola resiste. Muitas delas são
chefes de família e, por isso, não se permitem abater diante das
fragilidades por terem que lutar, abrindo mão, assim, da própria
existência. Diante das contingências, os homens migram para
cidades maiores e deixam as mulheres com os cuidados da
casa e dos filhos. Assim precisam se reinventar como mulheres,
mães, trabalhadoras e líderes comunitárias. Com isso, também
nas comunidades quilombolas as mulheres se tornam mais
expostas às diferentes formas de coerção, violação de direitos,
preconceito, intolerância e violência.
Somam-se a isso os conflitos por terra no Quilombo Saco das
Almas, que ameaçam diretamente as mulheres que se mantêm à
frente dos direitos comunitários a partir de tentativas de violência
física e moléstias causadas pelos poluentes utilizados no plantio
de soja, causando náuseas, vômitos e falta de ar. Nas incursões
realizadas pela comunidade, foi possível notar o protagonismo
feminino nas ações cotidianas, sobretudo a partir de líderes
como dona Dudu, que tem voz ativa em reuniões políticas da
região, denunciando os desmandos dos latifundiários.
Em umas das dinâmicas realizadas nas oficinas, uma das
questões levantadas pelas mulheres foi a questão da falta de
oportunidade e acesso à renda (Figura 3). Essa preocupação
latente em um contexto de vulnerabilidade pode desviar a
atenção de problemas vinculados à violência doméstica e outras
questões de gênero, o que nos serve ainda mais de alerta porque
cria mecanismos de ocultação de situações de subalternidade e
violências distintas. No entanto, compreendemos que, diante da
realidade apresentada, haja a preocupação da comunidade em
130 DO CABURAÍ AO CHUÍ

melhorar a sua renda per capita, uma vez que vive basicamente
do extrativismo, artesanato e venda de produtos feitos a partir
do babaçu e bacuri.

Figura 3 – Oficina sobre empoderamento feminino


Fonte: Fabiana Souza, pesquisadora voluntária do projeto
(2016).

Destacamos que a partir dessas percepções, foi possível


conduzir a pesquisa buscando um olhar sociológico6,
compreendendo a realidade em contextos históricos mais amplos,
mas que não se desvinculam da realidade social do Quilombo
Saco das Almas. Com isso, foi possível ofertar oficinas e ações de
participação social colaborando para o empoderamento político
e social das mulheres negras e quilombolas. Durante as ações do
projeto, houve debates sobre direito das mulheres, Lei Maria da
Penha e liderança.
Essas oficinas contribuíram para o diálogo e para a formação
conjunta da comunidade acadêmica e das mulheres do Quilombo
Saco das Almas, promovendo uma interação de perspectivas
geracionais sobre relações de gênero, com o compartilhamento
de olhares distintos. A partir da formação coletiva de uma agenda
e de propostas para a promoção de relações de gênero igualitárias

6 Conceito elaborado por Charles Wright Mills. Referência: MILLS, C. W.


[1959] A imaginação sociológica. 1. ed. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de
Janeiro, Zahar, 1965.
131

na região do Baixo Parnaíba Maranhense, esse intercâmbio entre


saberes acadêmicos e tradicionais se estabeleceu (Figura 4).

Figura 4 – Apresentação do projeto na UFMA, com a presença


das mulheres quilombolas
Fonte: Arquivo Pessoal da Pesquisadora Amanda Pereira7.

A formação de lideranças femininas engajadas em atividades


políticas é sempre um ponto levantado pelos movimentos sociais.
O cuidado da casa e dos filhos aparece como um dos principais
entraves para a participação nas arenas de decisão. A relação
entre as mulheres e o espaço doméstico em detrimento das
relações estabelecidas pelos homens nos espaços públicos, em
épocas anteriores, já́ foi considerada uma das causas principais
da submissão feminina. A maternidade, nessa perspectiva, seria
um dos fatores que mais contribuiria para a exclusão, ou sub-
representação, nas arenas coletivas de tomadas de decisão.
No que se refere à disparidade de gênero, a baixa
representatividade nos pleitos eleitorais, no Brasil, é ainda
mais evidente do que em outros países. Como destaca Araújo
(1999; 2001), por motivos históricos, as mulheres no Brasil
estão alijadas dos processos políticos, sub-representadas no
Legislativo e em outras instâncias de poder. Por isso, torna-se
7 O evento ocorreu em agosto de 2016, tendo a participação da coordenadora do
projeto de extensão, Amanda Gomes Pereira, junto com outros pesquisadores
do Grupo de Estudos e Pesquisa em Meio Ambiente, Desenvolvimento e
Cultura e com a liderança de dona Dudu.
132 DO CABURAÍ AO CHUÍ

primordial, em todo o país, o estímulo à participação política das


mulheres e a inserção delas na elaboração e no acompanhamento
de políticas públicas – principalmente aquelas voltadas para o
enfrentamento da violência doméstica e de gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas oficinas, várias mulheres externalizaram, na época, o


desejo de participar mais ativamente da vida da comunidade,
contribuindo com outras formas de geração de renda – como a
produção e a venda das polpas de frutas –, assim como com a
participação nas atividades políticas. No entanto, os cuidados
com a casa e com os filhos e filhas ainda são apontados como
impedimentos para o exercício dessas atividades. A falta de
creches escolares e de redes públicas de assistência e cuidado
das crianças em várias cidades do Baixo Parnaíba Maranhense
demonstra o quão pouco se evolui nessa questão.
Os desafios para o estabelecimento de ações e projetos que
desenvolvam a temática da igualdade de gênero a partir da
formação de lideranças políticas se tornaram presentes durante a
execução do projeto. Na experiência que tivemos na Comunidade
Saco das Almas, foram inúmeros os empecilhos, principalmente
porque a forma como pensamos o projeto foi um e o interesse
das mulheres, com as quais dialogamos, se mostrou outro.
Para elas, o mais urgente não era falar sobre direitos, mas
pensar em formas de aquisição de renda. Segundo elas, as
constantes invasões às terras têm trazido vários transtornos,
dentre eles, a dificuldade de acesso aos bacurizeiros. Esse
problema é extremamente grave, na medida em que a
comunidade e o município de Brejo são reconhecidos pela
presença dos bacuris, comercializados na estrada por alguns
moradores próximos à entrada da cidade. Diante da privação do
direito à terra, é necessário aquilombolar-se.
133

AGRADECIMENTOS

À Fapema e às bolsistas do projeto, Gizele Pereira, filha da líder


dona Dudu ‒ atuante e representante feminina do Sindicato dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Brejo ‒ e às discentes Keline,
Rosalba, Maiana e Fabiana.

REFERÊNCIAS

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sobre a representação política das mulheres brasileiras. 1999.
Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Sociologia).
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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In: BOURDIEU, Pierre (org.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes,
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Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
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de Janeiro: FGV, 1996, p. 183-191.
BRASIL. Decreto nº 4.887 de 20 de novembro de 2003.
Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68
do ato das disposições constitucionais transitórias. Diário Oficial da
União: Brasília, DF, 2003, p. 4.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo. Centro
de Documentação Dom Tomás Balduíno. Goiânia: CPT, 2021.
Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/
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134 DO CABURAÍ AO CHUÍ

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tituladas e em processo no Incra. 2020. Disponível em: http://cpisp.
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COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Quilombo Saco das Almas.
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SAQUET, Marcos Aurelio. A descoberta do território e outras
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SOUZA, Barbara Oliveira. Aquilombar-se: panorama histórico,
identitário e político do Movimento Quilombola Brasileiro. 2008.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília,
Brasília, 2008, 189p.
VIANA, Keliane da Silva. O processo de titulação de Saco das
Almas: conflitos ambientais e territoriais no território. Revista
Piauiense de História Social e do Trabalho. Parnaíba-PI, ano IV, n.
7. Jul/Dez 2018. Disponível em: http://www.rphst.com.br/p/o-
processo-de-titulacao-de-saco-das.html. Acesso em: 20 nov. 2021.
DOI: 10.55328/edpan.978-65-84794-00-9_008

A Romaria do Senhor Divino Espírito Santo


do Vale do Guaporé: a cosmologia da fé em
uma proposta de história temática para o
ensino fundamental

Hágner Malon da Costa SILVA, Zairo Carlos da Silva PINHEIRO e


José Joaci BARBOZA

Música e sonoridade são constantes na orientação dos


festejos do Divino. Neste caso os atos litúrgicos da Romaria do
Senhor Divino Espírito Santo do Vale do Guaporé1, contam com
vigorosa assiduidade musical desde sua origem.
De acordo com os devotos2 a latria ao Senhor Divino Espírito
Santo acessou o Vale do Guaporé no ano de 1894. O cuiabano
Manoel Fernandes Coelho trouxe, de Vila Bela da Santíssima
Trindade, antiga capital de Mato Grosso, a Coroa de prata que
simbolizava o Sr. Divino Espírito Santo, ao Vale do Guaporé3.

1 A Romaria do Senhor Divino Espírito Santo é definida pelos devotos com os


seguintes termos: Romaria, caminhada, missão e festejos.
2 Dados obtidos, através de uma pesquisa etnográfica de mestrado no
colegiado de Música da UFMG. O trabalho se desenvolveu no ano de 2012,
durante os meses de março a Junho.
3 A região do Vale do Guaporé, está localizada em uma região de fronteira
natural entre Brasil e Bolívia. O Rio Guaporé é o marco desta separação ver
Figura 1).
136 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Figura 1 – Mapa do Vale do Guaporé -RO (Guajará Mirim-


Pimenteiras do Oeste)
Mapa da Romaria: percurso organizado no espaço entre Guajará
Mirim e Pimenteiras do Oeste
Fonte: https://www.guiageo.com/.

A princípio, os festejos estiveram concentrados em uma


pequena comunidade às margens do Guaporé que se chamava
Vila Ilha das Flores. Uma vez por ano logo após a Páscoa, os
devotos então, reuniam-se com a Coroa para veneração à
promessa enviada dos céus por Jesus. O rumor de milagres
e curas foi se proliferando nas mais diversas comunidades e
muitos começaram a solicitar a visita da procissão com a Coroa4.
Tal solicitação foi se ampliando a partir dos anos de 1930. No
intuito de tornar viável o acesso ao Divino, os devotos criaram um
sistema de irmandade em cada comunidade ribeirinha5. Sendo o
rio a única fonte de acesso e comunicação, foi estabelecido uma
romaria fluvial e uma equipe de beatos para conduzir a missão.

4 Durante a pesquisa os devotos costumam servir-se do termo Coroa, para se


referir aos três símbolos que representam o Divino: Cetro, Coroa e Bandeira
(ver Figura 2).
5 Na região do Vale do Guaporé o termo “ribeirinho” é usado para se referir
aos pequenos povoados alojados às margens do Rio.
137

O crescimento da santimônia chamou a atenção da Igreja


representada na figura do:

Bispo Dom Rey, [sic] que o mesmo orientou a criação dos Estatutos
do Festejo do Sr. Divino Espírito Santo do Vale do Guaporé, no dia
20 de maio de 1934. Em Pedras Negras no dia 23 de maio de 1937
foi realizado o primeiro Festejo do Sr. Divino Espírito Santo do
Vale do Guaporé (CONSELHO GERAL DA IRMANDADE DO DIVINO
ESPÍRITO SANTO DO VALE DO GUAPORÉ. COSTA MARQUES,
RONDÔNIA, 2006).

Igreja e Comunidade formaram uma parceria que se inclinou


para um crescimento e formalização da Romaria com estatutos,
atas de reunião, registro de movimentação financeira e eleições
para os cargos de liderança.

SIMBOLOGIA

O complexo dos festejos conta com um aparato simbólico


fundamental para a performance das ações de fé. Comecemos
pelos ícones da divindade.

Figura 2 – Imperador e Imperatriz no porto de Nova Brema


Fonte: Arquivo pessoal.

Seguindo da direita para a esquerda (Figura 2), a Coroa está


coberta de fitas, que representam as promessas feitas pelos
fiéis. Logo em seguida temos o cetro e a bandeira. Os beatos
138 DO CABURAÍ AO CHUÍ

costumam beijar a bandeira e o cetro de joelhos e em seguida a


Coroa é colocada na cabeça do devotos, conforme figura 2. Todas
as ofertas em dinheiro são colocadas dentro da Coroa para ser
recolhida depois pela equipe. De acordo com os devotos os três
emblemas simbolizam a presença do Espírito Santo.
Os símbolos do Divino são conduzidos por 45 dias, para
atender à demanda de aproximadamente 12 comunidades6, em
que 7 estão no Brasil e 5 na Bolívia. No Vale do Guaporé existem
doze irmandades distribuídas na região. A sede principal está
localizada na cidade de Costa Marques e tem a responsabilidade
de responder pelos festejos com qualquer agente externo, seja a
imprensa ou até mesmo a Igreja. Nesta cidade existe a Basílica7
Menor do Senhor Divíno Espírito Santo. A arquidiocese do
município de Guajará Mirim é a responsável pela anuência dos
festejos diante da Intituição Católica Apostólica Romana.

TRIPULAÇÃO

A Romaria é dirigida por uma equipe de 33 pessoas que


viajam numa frota de três barcos (Figura 3).

Figura 3 – Embarcações da Romaria: ao lado direito temos o


Mestre Tiago ao lado esquerdo a balsa Dalila
Fonte: Arquivo Pessoal.
6 Este número pode variar de acordo com a necessidade. Quando as
irmandades são solicitadas em mais lugares, o calendário é ajustado.
7 O título de Basílica foi conferido a esta Igreja pelo Papa Bento XVI e
proclamado por Dom Geraldo Verdier em 17 de maio de 2009.
139

O “Mestre Tiago” é o barco motorizado que conduz a chata


(pequena balsa) chamada Dalila. Nesta balsa temos o alojamento
da equipe, a cozinha e um depósito localizado na parte inferior
do piso.

Figura 4 – Batelão8 do Divino


Fonte: Arquivo Pessoal.

O Batelão é a terceira embarcação onde ocorre as cerimônias


da chegada do Santo nas comunidades. Todos os símbolos do
Divino bem como as ofertas depositadas são transportadas neste
barco, sendo que a retirada de algum item sempre é vigiada pelo
encarregado do batelão.
Os membros da equipe dos festejos podem ser divididos na
seguinte ordem: Remeiros: devotos escolhidos pelas irmandades
para remar o batelão, cantar, vigiar a Coroa nas comunidades e
cantar nas novenas; Encarregado da Coroa: guardião da Coroa
do Divíno. Durante as missões este se torna o único autorizado
a fazer a limpeza da Coroa e a conferir toda a quantia financeira
depositada pelos fiéis; Encarregado do Batelão: depositário do
Batelão. Tal função consiste em conferir o estado físico do barco
e, se necessário, pintar ou consertar algum defeito (Figura 5)9;
Mestre dos foliões: tutor dos cantores mirins durante a
Romaria (Figura 6); Foliões: crianças (09-16 anos) responsáveis
8 O termo batelão conta com um outro sinônimo que é: Carité. Nesta
embarcação estão alojados todos os símbolos do Divino, além de todas as
contribuições financeiras.
9 Ao observar a foto, o encarregado do Batelão está na parte de trás da
embarcação, logo abaixo das bandeiras do Brasil e Bolívia.
140 DO CABURAÍ AO CHUÍ

exclusivamente pelos cantos (durante a missão são necessário


oito a dez crianças) (Figura 6); Salveiro: responsável por
anunciar a chegada do Divino, através dos tiros de ronqueira10
(Figura 5); Capitão: comandante responsável pela frota;
Motorista: mecânico especialista no concerto do motor do
Mestre Tiago; Mensageiro: devotos responsável pela limpeza
da frota e vigilância dos pertences dos devotos; Baterista ou
Caixeiro: instrumentista intendente de tocar a caixa da Missão
e assim fazer a condução rítmica dos remeiros no batelão e da
procissão nas comunidades; Alferes da Bandeira; condutor da
Bandeira do Divíno (Figura 2).

Figura 5 – Equipe de Chegada11


Fonte: Arquivo pessoal.

10 Ronqueira é um pequeno canhão carregado com pólvora que deve ser


disparado na chegada do Divino nas comunidades. Salveiro localizado na proa
do Batelão (ver figura 5).
11 Carité, logo após a saída de uma comunidade. Os remeiros estão sentados
na beira da embarcação. O salveiro permanece na proa do batelão e o
encarregado do Batelão está em pé com colete verde na parte traseira da
embarcação.
141

Figura 6 – Mestre e Foliões


Fonte: Arquivo pessoal.

A Coroa do Divino é entregue na comunidade após a


realização de uma cerimônia no Batelão (Figura 4) que consiste
na realização de um percurso de duas e meias luas e meia na
frente do porto Durante esta manobra os remeiros e foliões se
revezam na cantoria de saudação aos devotos Toda a cadência é
determinada pelo ritmo do Caixeiro (Baterista).
Estando na comunidade, a tripulação e a Coroa do Divino
estarão à serviço da irmandade local, representada pelos
seguintes membros: Diretoria local: presidente e demais irmãos
integrantes da irmandade local; Imperador e Imperatriz:
autoridades responsáveis pela recepção da Coroa e condução da
mesma nas visitas domiciliares; Mordomos: encarregado (a) de
organizar a agenda de visitas domiciliares e demais atividades
do Divino nas comunidades. Quando está em terra, as atividades
do Santo pode ser dividida em três: Visitas domiciliares, novenas,
vigílias e missas. As novenas noturnas são conduzidas pelo coral
(a capela) dos Remeiros.
A missão é finalizada com um festejo de cinco dias na
localidade final. Além de visitas domésticas, há o levantamento
do mastro, da missa campal, definições do cronograma para os
próximos festejos e reunião com os representantes de todas as
irmandades para prestação de contas de toda a movimentação
financeira e religiosa. Todos estes trabalhos são conduzidos
pelos devotos, sendo que a igreja participa como guia espiritual
com um representante oficial (um padre designado).
142 DO CABURAÍ AO CHUÍ

Todos ao ritos e celebrações são movidos por música, ou


seja, existe um forte componente sonoro cadenciando os passos,
as entradas e saídas e novenas. Estamos diante de um composto
de diferentes paisagens sonoras. Nas cerimônias de chegada, é
possível ouvir o som dos remos do batelão, junto com as canções
dos remeiros e foliões, além da ronqueira (ver Nota 10). Tal
sonoridade por si já toca profundamente nos sentimentos dos
devotos.
Quando em terra podemos localizar a procissão pelas vozes
infantis e os fogos de artifício anunciando a divindade. Nas
vigílias, os remeiros e a comunidade cantam nas vigílias da coroa.
As possibilidades sonoras abrem caminho para um trabalho de
educação musical e antropológica.

HISTÓRIA TEMÁTICA E O DIVINO

O elemento aquático se faz presente em boa parte da


realidade de vida da população em Rondônia. Seja por morar na
beira do rio ou mesmo por andar pelo centro de algumas cidades
do estado (Pimenteiras do Oeste, Guajará Mirim, Porto Velho
dentre outras) e perceber os rios como fonte de comunicação,
transporte e abastecimento de energia e água. Diante desta
intensa conexão é que proporemos pensar na temática fluvial
para o ensino de História de Rondônia aos alunos do sexto ao
nono ano, como elemento de valorização e consciência local e
regional.
As atividades a seguir são sugeridas com o embasamento da
História temática (ROCHA, 2019), em que valoriza um tópico
em detrimento de uma disposição temporal linear. É evidente
que o sequenciamento histórico mantém a institucionalização
da distância social e epistemológica entre as demandas da
realidade social rondoniense e o fazer histórico memorialista.
Tal realidade demanda discussões centradas na suspensão do
memorialismo como algo “natural”, determinado e irredutível. Os
dispositivos da memória são construídos a partir da consciência.
143

Consequentemente a cultura é fruto da relação consciente ou


inconsciente com o meio.
É importante conduzir o aluno a pensar história como
um conjunto de acontecimentos e temporalidades distintas
convivendo a partir de certas condições determinadas. Sendo
assim, o professor está diante da oportunidade de trabalhar “uma
orientação cognitiva que recusa todo dado não devidamente
clarificado pelos seus pressupostos” (SACRINI, 2018, p. 75). A
originalidade musical de Rondônia ainda não é um elemento
consolidado na academia. A realidade social atesta a presença,
mas na pesquisa ainda persiste um grande silêncio de ausência.
Partindo desta falta, devemos nos interrogar: Que projeto de
identidade se esta falando? É importante passar pelo trajeto de
um nacionalismo? Onde reside a originalidade em Rondônia ?
Certamente a criatividade corresponde ao convívio com
os fluxos sociais e temporais vividos no cotidiano. No Vale do
Guaporé existe um fluxo aquático-musical de comunidades
interpretando a fé a partir de paisagens sonoras e devoções.
Muito além de uma simples apreciação musical, devemos
provocar o discente por meio de algumas perguntas: Por que
as pessoas cantam ao Divino? Quais as condições sociais que
proporcionaram o surgimento destes festejos? Qual a perspectiva
dos devotos acerca do culto? Qual o efeito da sonoridade na vida
dos devotos? Qual a visão dos alunos acerca dos festejos?
Através destas perguntas e da investigação, o discente é
levado a se aproximar da reflexão do cotidiano (ROCHA, 2019),
ampliando o olhar sobre elementos antes negligenciados devido
à influência de um pressuposto linear.
Evidente é fugirmos de matérias distantes da realidade
contextual discente. Estar próximo dos alunos consiste em
um diálogo constante e profundo com elementos da realidade
econômica, mas acima de tudo contato com a realidade cultural,
musical e sonora.
144 DO CABURAÍ AO CHUÍ

a) O fenômeno do silêncio: dilemas e saídas

Existe distância, violência e exclusão histórica com os


elementos sonoros. Tal processo já é evidente pela escassez de
música na educação básica, apesar da Lei nº 11.769 de 2008
determinando a presença sonora na educação básica. Longe
de cogitar a culpa rasa e unilateral nos professores e escolas,
vemos que a problemática é perpassada por séria negligência
no investimento da estrutura escolar, falta de contratação de
profissionais em quantidade suficiente e a valorização destes
profissionais Infelizmente, a educação musical na escola básica
(pública e privada) ainda sofre por existir de forma atômica. É
importante listar aqui os principais problemas causados pela
falta de um ensino de música:
a). dificuldade na percepção da música como fonte histórica
(deficiência presente no ensino superior);
b).tendência em pensar a música como produto autonômo e
sem significado social;
c) falta de sensibilidade musical e cultural com a diversidade.
Os problemas elencados anteriormente refletem na grande
falta de estudos musicológicos das manifestações sonoras em
Rondônia. Boa parte da memória musical em Porto Velho e no
interior passam por processos difíceis de sobrevivência. Seja na
música indígena, quilombola, ribeirinha ou urbana. Ainda existe
muito a contar e cantar. Possível é pensarmos que a música pode
porporcionar grandes descobertas históricas se considerada
uma fonte legítima para os estudos de compreensão da realidade
sócio-histórica.
Em nosso caso, o Divino está em um processo de sobrevivência
e luta diante da exiguidade de reconhecimento em Rondônia e no
Brasil. Parte do enfrentamento contra o silêncio vem justamente
de filosofias educacionais que possam desnudar as relações
“inatas” de opressão, justamente como Paulo Freire diz:

“Mas o estar imersos na realidade opressiva impede-lhes uma


percepção clara de si mesmos enquanto oprimidos. A este nível, sua
percepção de si mesmos como contrários ao opressor não significa
ainda que se comprometam numa luta para superar a contradição:
145

um pólo não aspira à sua libertação, mas à sua identificação com o


pólo oposto” (Freire, 1979, p. 31).

O combate se desenvolve pelo ato de desnudar o engano de


vivermos uma realidade onde as relações de opressão e silêncio
estão firmemente normatizadas por vários silêncios, dentre eles
o musical.

MÉTODO DALCROZE: UMA ESTRATÉGIA PARA O ENSINO DE


MÚSICA E HISTÓRIA DE RONDÔNIA

Émile-Jaques Dalcroze foi um notável educador musical


suíço que se interessou pela relação entre música e corpo. Em
seu cotidiano de ensino, Dalcroze percebeu uma dificuldade dos
alunos “que não conseguiam imaginar os sons dos acordes que
escreviam nas aulas de harmonia” (FONTERRADA, 2008, p. 122).
Em outras palavras, os alunos tinham a dificuldade em associar,
representação sonora (partitura) e o ouvido interno (memória
sonora). O ensino tradicional priorizava um contato teórico
que não permitia aos alunos experienciar os sons musicais e
consequentemente desenvolver uma memória e imaginação
musical (FONTERRADA, 2008).
No intuito de sanar esta dificuldade, Dalcroze propôs a
estratégia de começar “incentivando a escuta e o toque no piano
antes de o aluno realizar a atividade” (FONTERRADA, 2008, p.
122). O discente então passou a ter contato com a sonoridade e
a partir daí foi sendo trabalhado a ideia de sensação e expressão
corporal da música. A partir desta mudança, podemos pensar
em algumas descomplicadas indagações: podemos associar
gesticulação e sonoridade? É possível ao corpo ser uma partícula
sonora integral?
Os questionamentos nos levam a pensar sobre a viabilidade
de usar a expressão e movimento corporal para expressar e
internalizar as sonoridades musicais. Eis o exemplo: o chacoalhar
do braço direito como uma associação ao som grave; o chacoalhar
do braço esquerdo para sons agudos; caminhar na ponta dos
146 DO CABURAÍ AO CHUÍ

dedos como expressão de um som de intensidade baixa; marcha


como expressão dos ritmos binários.
A partir desta dimensão, o docente pode então criar um
repertório de gestos ou trabalhar com a criação corporal
espontânea dos alunos.
Para fins didáticos se faz necessário trabalhar com os
conceitos elementares da música como, timbre dos instrumentos,
volume, extensão melódica e tempo rítmico.

MÚSICA E HISTÓRIA DE RONDÔNIA: PROPOSTA 1

O professor12 irá necessitar de um espaço para os alunos


sentarem em círculo, logo em seguida, o docente deve explicar
aos ouvintes que será tocada um música e cada aluno deverá
criar uma expressão corporal. O professor irá determinar quem
deve começar, ou seja, um aluno inicia uma expressão corporal
em seguida irá tocar na mão do colega ao lado e este por sua vez
cria sua expressão musical, seguindo assim até o final.
A faixa musical utilizada, será uma faixa da cerimônia
de chegada da Romaria do Senhor Divino Espírito Santo13.
O objetivo principal será justamente o aluno entrar realizar
um contato sonoro com as manifestações culturais. Além da
primeira experiência cultural com sua história, o aluno poderá
desenvolver habilidade de expressão corporal, percepção
timbrística dos diferentes sons e comunicação social. Logo
após a finalização do exercício (ainda em círculo) o professor
irá conversar com os alunos e ouvir a impressão que tiveram
do material apreciado. Sempre é importante levar em conta
as opiniões sobre percepções do material musical (percepção
dos graves, agudos, melodias e etc.) a partir do fornecido pelo
professor que pode fazer a síntese dos conceitos musicais de

12 As atividades em questão foram adaptadas dao seguinte material: obra


de Madalozzo (2017), Vivian Dell’Agnolo Barbosa. Metodologia do ensino da
música. Batatais, SP : Claretiano, 2017.
13 O áudio para ser usado, está no seguinte link: https://www.youtube.com/
watch?v=Y4PzxPnUTpU. Trabalhar com a minutagem: 31: 45-38:33.
147

ritmo, timbre e sonoridade. Sempre partindo da resposta do


público.
Logo após esta etapa, o docente mostra o vídeo com o registro
audiovisual do material sonoro utilizado (cerimônia de chegada
no batelão) e falar sobre a história do Divino no Vale do Guaporé.
A explanação deve contar se possível com um pequeno mapa de
localização e uma síntese adaptada ao público infantojuvenil.
O professor tem duas opções: criar a sua própria síntese do
festejo, utilizando o material disponível na primeira parte deste
texto ou declamar a síntese do festejo que está em anexo a este
texto. Material necessário ao docente: Caixa de som; PenDrive;
PowerPoint; DataShow; computador.
Em caso da falta do equipamento necessário, o professor
pode usar apenas uma pequena caixa de som com pendrive e um
mapa. O importante é criar uma experiência sonora e explicar
aos alunos a origem dos Sons do Divíno.

OUTRAS ADAPTAÇÕES

Caso seja necessário a mudança de temática, o professor


deve apenas substituir o repertório dos exercícios rítmicos e
providenciar uma síntese do tema em questão. Segue exemplo:
Usar um ritual indígena como repertório, e criar uma síntese do
contexto social do ritual e da comunidade, além de providenciar
um material áudio visual de toda a manifestação.

REFERÊNCIAS

Diretoria do Conselho Geral da Irmandade do Divino Espírito Santo


do Vale do Guaporé. Histórico. Costa Marques/RO: 2006.
FREIRE, P. Conscientização. Teoria e Prática da Libertação. São
Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. De tramas e fios: um
ensaio sobre música e educação. 2 ed. São Paulo: Editora UNESP;
Rio de Janeiro: Funarte, 2008.
148 DO CABURAÍ AO CHUÍ

MADALOZZO, Vivian Dell’Agnolo Barbosa. Metodologia do ensino da


música. Batatais, SP: Claretiano, 2017.
ROCHA, H. História temática. In: FERREIRA, M. de M. & OLIVEIRA, M.
M. D. de. (orgs.). Dicionário de Ensino de História. Rio de Janeiro:
FGV, 2019, p. 137-142.
SACRINI, Marcus. A cientificidade na fenomenologia de Husserl.
São Paulo: Edições Loyola, 2018. (Coleção filosofia).
OS ORGANIZADORES

José Joaci Barboza


Professor Adjunto do Departamento de História da
Universidade Federal de Rondônia e Doutorando no Programa
de Pós-graduação em História na PUC-RS, área de concentração:
Cultura e Etnicidade. Vice coordenador do Grupo de Pesquisa
em História Oral e Espacialidades Amazônicas – GPHOEA.

Zairo Carlos da Silva Pinheiro


Professor Adjunto do Departamento de História da
Universidade Federal de Rondônia. Doutor em Geografia pela
Universidade Federal do Paraná – UFPR, Coordenador do Grupo
de Pesquisa em História Oral e Espacialidades Amazônicas –
GPHOEA, zairo.carlos@unir.br.

Hágner Malon da Costa Silva


Professor da Secretaria de Estado de Educação – SEDUC-RO,
graduado em História e Mestre em Música pela Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG, pesquisador do Grupo de
Pesquisa em História Oral e Espacialidades Amazônicas –
GPHOEA.
OS AUTORES

Alex Mota dos Santos


Professor do Centro de Formação em Ciências Agroflorestais
– CFCAf, campus Jorge Amado, Universidade Federal do Sul da
Bahia (UFSB).

Amanda Gomes Pereira


Doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro-UERJ. Professora Adjunta de Sociologia no Curso
de Ciências Humanas, Centro de Ciências São Bernardo,
da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Professora
Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Sociologia
UFMA (Mestrado Acadêmico) – Imperatriz.

Angelica Lima Melo


Mestranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia UFMA
(Mestrado Acadêmico) – Imperatriz. Especialista em Educação
Inclusiva (UEMA-NET).

Bruno Surui
Agricultor Familiar e Educador.
Carlos Alexandre Barros Trubiliano
Docente do Curso de Licenciatura Intercultural da Universidade
Federal de Rondônia (UNIR).

Carlos Fabricio Assunção da Silva


Professor Substituto do Departamento de Engenharia
Cartográfica – Decart, Centro de Tecnologia e Geociências,
campus Recife, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Carma Maria Martini


Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM). Mestra em Educação pela Universidade Federal de
Rondônia (UNIR). Docente do Departamento de Educação
Intercultural da UNIR, Campus de Ji-Paraná. Integrante do
Núcleo de Pesquisa e Estudos em Diversidade Sexual (NUDISEX
– UEM). Vice-líder do Grupo de Pesquisa em Etnoconhecimento
e Pesquisa em Educação (GPEPE – UNIR).

Eliane Rose Maio


Pós-Doutora e Doutora em Educação Escolar pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP –
Araraquara). Mestra em Psicologia pela Universidade
Estadual Paulista (UNESP – Assis). Docente do Programa de
Pós-Graduação em Educação (Mestrado/Doutorado) junto
à Universidade Estadual de Maringá (UEM). Coordenadora
do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual
(NUDISEX – UEM).

Francisco de Assis Cruz da Silva


Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PPGH
– PUCRS, linha de pesquisa: Cultura e Etnicidade. Mestre em
História (Cultura e Poder) pela Pontifícia Universidade Católica
de Goiás, PUCGO (2015). É especialista em História na área
de Conhecimento em Educação pela Faculdade de Tecnologia
Equipe Darwin de Brasília-DF (2007). Graduado em História
152 DO CABURAÍ AO CHUÍ

pela Universidade Federal do Tocantins (2005). Professor da


Rede Estadual de Educação (ensino médio) em Marabá-PA.
Email: fccoassis@yahoo.com.br. Currículo Lattes: http://lattes.
cnpq.br/1875675784479156.

Gustavo Henrique de Abreu Silva


Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Paraná,
tendo feito doutorado sanduiche na França, Paris-Sorbonne
IV. É membro do Grupo de Pesquisas em Modos de Vida e
Populações Amazônicas – GEPCULTURA, da Universidade
Federal de Rondônia. É Especialista em Filosofia (FCR), e
Especialista em Psicologia Social (Unyleya). É autor dos livros:
“Geograficidades Amazônicas: Estudos em Geografia Humanista
e Cultural”, “Geografia e Arte: O Espaço Vivido da Cantoria
Nordestina em Rondônia” e “Na Beira das Matas: Poemas
Diversos”.

Reginâmio Bonifácio de Lima


Professor de História na Universidade Federal do Acre. E-mail:
reginamiobonifacio@yahoo.com.br.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4751000021023434.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9733-6237. Google
Scholar: https://scholar.google.com.br/citations?user=YUn97d
oroIgC&hl=pt-BR&oi=ao.

Tatiana Colasante
Doutora em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação
em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Presidente
Prudente. Professora Adjunta no Curso de Turismo, Centro
de Ciências de São Bernardo, da Universidade Federal do
Maranhão – UFMA.
N
Os textos estão organizados por eixos temáticos,
os primeiros dedicados a temática indígena.
Aqui vamos encontrar reflexões sobre o
papel das comunidades tradicionais na
preservação do ambiente, um debate
importante no mundo dominado
pela ganância do lucro que destrói a
terra comum; outro assunto
abordado é a questão da diversidade e
a orientação sexual entre os povos
indígenas, que ao que tudo indica, apesar
de ser uma questão nova nos estudos dos
povos, enquanto prática social desde tempos
imemoriais, as relações entre pessoas do
mesmo sexo existiam e, aparecem nos relatos
míticos de alguns povos em grande parte do
território brasileiro.

ISBN 978-65-994880-9-2

9 786599 488092

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