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Em suma, a visio de Hugh Jones conflui para uma conclusdo Caen abrangente e geral:a de que povos indigenas possuem miiltiplos meios para fazer matematica: com pedir, astronomia, tecelagem ET MRI feta parentesco. A implicagio é que hé estruturas mentais-opera- tivas cujos efeitos podem ser observados empiricamente nos produtos culturais de povos humanos, Eee ect reeserita como algoritme Conflitos ontolégicos e verdade pragmética Como afirmar, ao mesmo tempo, a realidade do aquecimento global e da pandemia planetéria e a autonomia ontolégica dos povos? A resposta é que é possivel admitir as duas posigées: 0 reconhecimento da verdade do consenso cientifico ea multipli- cidade de mundos irredutiveis entre si. O senso comum; que ha cabecas de ponte entre povos dotados de metafisicas radicalmente diferentes. Um exemplo disso é que os chamados ovos isolados da Amazénia extraem de seus vizinhos “civiliza- dos" facas e machados para usar como “cois: cordando, assim, pragmaticamente com eles? A antropologia das ciéncias enfrenta hoje um cabo de guerra que a puxa em duas diregdes opostas: de um lado, o relativismo 1 Publica n eA C 2021. ragmata is se dé oencontro.como ‘mundo. Ontologiasregionais (no plural) so dominios de entes de ciéneias ou de um modo de vida (Husserl 1952). Conforme sponta Quine, sio dominic de referéncia da linguagem ; mais precisamente, io dominios aos quais se apliam ju isténcla, Le, quant cultural e, de outro, o naturalismo cientifico? Esse cabo de guerra tem implicagées politicas cruciais, porque o relativismo cultural tem sido manipulado para justificar a auséncia de dife- renga entre fake news e verdade, sendo, assim, possivel afirmar: que podemos aceitar ou rejeitar a existéncia de aquecimento global, de pandemias e a erosio da biodiversidade como visoes igualmente sustentaveis, sem que haja critérios que permitam distinguir a verdade da falsidade dessas posigées, bem como a racionalidade ou a falicia dos argumentos envolvidos. Em contraposicao 20 relativismo cultural, o naturalismo cientifico, visto como ontologia de cientistas naturais, afirma a existéncia, do aquecimento global, de pandemias e da degradacao de orga- nizagées sociais. A pergunta é: como justificar a alianga entre antropélogos contra fendmenos globais, como o aquecimento global, pande- ‘mias planetarias e a erosdo da diversidade biolégica e social, pre- servando a defesa da autonomia ontol6gica de terranos? ‘A resposta a esse dilema preserva a missao da antropologia como'[..] ciéncia da autodeterminacao ontologica dos povos do ‘mundo [..]" (Viveiros de Castro 2003) e, a0 mesmo tempo, tifica a adesio ao consenso cientifico “[..] a respeito da origem_ antrépica da catastrofe climatica’ (Danowski & Viveiros de Cas- tro 2014). Trata-se de justificar 0 acordo entre ciéncias globaise cigncias locais sem englobar metaffsicas locais como variagdes de metafisicas globais. ‘A solugdo para esse problema consiste em separar metafisi: cas e encontros pragmaticos. Pois nao se trata de conciliar ou traduzir ciéncias em conhecimentos locais reduzindo os tilti- mos ao denominador comum do realismo cientifico. Em vez disso, trata-se de reconhecer que diferentes teorias ou cosmolo- gias, ainda que incomensurdveis e irredutiveis entre si, podem: jus: 3. “‘Ble tem dois adversérios:o primeiro acossa- por ts, da origem. Ose {gundo bloqueia: Ihe ocaminho frente. [J Seu sonho, porém,é,em alguma ‘casio, num momento imprevisto[.] altar fora da linha de combate set algado, por conta de sua experiéneia de lta, & posigio de juiz sobre os ad- vversérios que lutam entre si" Franz Kafka apud Arendt {1961} 201433). 312 dar conta das mesmas experiéncias ~ dos mesmos matters of fact, ~ em contextos /laboratérios particulares. ‘Sob esse ponto de vista, em vez de buscar conciliar ontolo- gias incomensurdveis por meio de reducées simplificadoras e condescendentes - “o que eles querem realmente dizer & ueremos apenas localizar os efeitos pragmaticos das ontologias em questio. O lance de dados da experiéncia jamais aboliré o acaso ontolégico. Ou seja: a experiéncia pragmatica jamais eliminaré a multiplicidade metafisica. 4 duas atitudes diferentes. De um lado, orelativismo natura lista admite “representagSes" reduzidas a fantasmas da realidade objetiva. De outro, a tese da incomensurabilidade ontolégica proibe qualquer sincronizacao entre regimes de conhecimento, rejeitando tradugdes como condescendéncia ontolégica (Pov' nelli 2001; Almeida 2003b e 2010). Mas ambas as atitudes parecem_ bloquear ontologicamente a alianca politica entre diferentes povos: indigenas, cientistas efilésofos. Isso ocorre porque a con- vvocaciio desses povos a ades3o a Gaia parece reconhecer a vitéria do monorrealismo ("um mundo composto de varios mundos”) como alternativa autonomia ontol6gica dos povos. Ha uma resposta a esse dilema, que se baseia na distingo entre verdades metafisicas ~ afirmagoes que se dirigem a domi- nios que estdo além de qualquer experiéncia possivel - everdade pragmaticas, que dizem respeitoa experiéncias possiveis. Resulta dessa resposta que um mesmo niicleo de verdades pragméticas é compativel com miiltiplas verdades metafisicas. Essa distina0 significa que miltiplos mundos metafisicos sav compativeis com as mesmas verdades pragmiticas ~ isto é, com a experiéncia.* Ha, porém, entdo uma relagdo paradoxal entre relativismo antropol6gico e empirismo cientifico. 0 argumento principal do empirismo € que todo resultado experimental é ontologica- mente indeterminado ~ isto é, ha miltiplas ontologias, ou mui- {4 Essa posigio se apoia na minha interpretacdo da flosofia da ciéncia de [Newton da Costae seguidores (Costa 1993 1967), sem qualquer autorizacio por partedo grande Ml6sofo. Anarquismo ontolégico e verdade no Antropoceno 313, tos mundos possiveis, compativeis com a experiéncia - e disso conclui que ontologias sao descartaveis. A atitude do anarquismo ontolégico concorda com a tese segundo a qual verdades pragméticas séo compativeis com milk tiplas verdades metafisicas, mas retira disso outra conclusdo: a saber, que miiltiplos mundos sio ontologicamente possiveis e admissfveis na medida em que dio conta das mesmas experiéncias, A diferenca entre a atitude empirista e a atitude antropol6- gica consiste, portanto, na conclusio retirada da constatagdo da, multiplicidade de ontologias compativeis com a experiéncia. A conclusio empirista é que ciéncia deve ater-se aos dados expe- rrimentais, jé que nao pode, a partir deles, determinar como o mundo realmente é - isto é, nao pode determinar a ontologia verdadeira de maneira absoluta. Para a atitude antropol6gica, a0 contrério, a conclusio é que ontologias sio indispensaveis para a vida e para a ciéncia, mas que ontologias conflitantes podem ser compativeis com os mesmos encontros pragmaticos. Resulta disso a nocio de verdades pragméticas que so comunsa diferentes ontologias, mas que podem também distinguir onto- logias conflitantes (Peirce 1932 € 1988; Costa 1993 €1997). © aquecimento global, a erosio da biodiversidade, a degra- dacio da diversidade linguistico-cultural e as pandemias plane ‘arias sio compativeis com a termodinamica, a climatologia, a biologia, a etnografia, a biomedicina ea estatistica. Ao mesmo. tempo, os efeitos pragmaticos esperados por essas ontologias sao experimentados por povos, como secas, enchentes, fra- casso de colheitas, fedur da égua, epidemias, e interpretados por meio de outras ontologias. Um exemplo é 0 diagnéstico de “fome, peste, moda e guerra” como causa do futuro degradado do mundo em cosmologias camponesas nordestinas (Almeida 1979). Eadesordem de ciclos naturais associada a desorientagao_ de animais-professores (Mesquita 2012 € 2013). Todas essas onto- logias so compativeis com as mesmas verdades pragmaticas,20 asso que ontologias terraplanistas e climatonegacionistas no so compativeis com encontros pragméticos, o que leva ao tema das guerras ontolégicas. 314 Guerras ontolégicas séo continuagio de guerras materiais. Para justificar a guerra contra sindicatos e a destrui¢ao das comuni dades de mineiros na Inglaterra, Margaret Thatcher afirmou celebremente que “sociedade néo existe"; como nas guerras de religido que visavam a eliminar crentes para eliminar seus entes. ‘Thatcher visou a eliminagao ontolégica da classe de trabalhado- res de minas para justificar sua destruicio de fato. No Brasil, grileiros e agronegocistas travam uma guerra para expulsar indigenas, quilombolas e comunidades tradicionais de terras historicamente ocupadas ~ guerra na qual a violéncia ea grilagem sao acompanhadas pela guerra ontolégica, queconsiste na negacio da existéncia de tais entes. A truculéncia fisica tem continuidade na truculéncia ontolégica, como quando Bolsonaro reduz comunidades quilombolas a individuos mensurados por arrobas, como caberas de gado. Atruculéncia ontol6gica é também exemplificada na ontolo- gia econémica neoliberal, segundo a qual o universo socioeco- némico é constituido por empresas e por individuos proprieté- rios e nada mais (Debreu 1959). Thatcher estava assim ancorada, em Debreu, prémio Nobel da suposta ciéncia econémica que, a0 contrario das outras ciéncias, se autovalida com modelos mate- ‘maticos sem correspondéncia com fendmenos experimentais, 0 que equivale a defini¢ao da ma metafisica de Kant. Antropélogas e antropélogos so convocados hojea responder perante juizes sobre a existencia de entes coletivos, respostas que tém efeitos sobre seus destinos reais. Para responder a essas demandas, nem o relativismo cultural nas duas formas menciona- das acima nem o realismo cientifico sio idéneos: tampouco 6 id6- neaaconvocagao por Gaia, porque Gaia nio é consenso cientifico aceitivel por todos os juizes de boa-fé. Tomemos a situago em. que esta em julgamento a existéncia de comunidades tradicionais. Ha coletividades que afirmam serem indigenas (Huni Kuin, por exemplo), quilombolas, ribeirinhos e caigaras, Essas afirmagSes se apoiam em narrativas dos mais velhos, em memérias, em obje- Anarquisma ontolagico e verdade no Antropoceno 315, tos conservados, em sonhos, em rituais remanescentes. Por outro. lado, seus vizinhos os discriminam negando que sejam “indios", movidos pelo interesse de desqualificé-los como sujeitos de diret tos constitucionais. Mas ha documentos em arquivos paroquiais, |hé objetos em museus associados, hd evidéncias arqueolégicas € imagens de satélite, e ha histérias orais que atestam a existéncia ea continuidade da existéncia desses povos autoidentificados, Essas evidéncias pragmaticas da existéncia historica refutam ontologias que negam a existéncia desses entes, ‘Tem lugar entao uma luta pelo reconhecimento na esfera publica, ao longo da qual reconstituem-se coletivos locais € formam-se aliancas com agentes externos - defensores publi- cos e procuradores da Repiiblica, antropélogos e historiadores, arquedlogos e geocientistas e também federagdes e partidos ~ contra a coalizao de grileiros e do agronegécio que contestam_ aexisténcia de comunidades indigenas e tradicionais, visando, assim, a expulsé-las de territorios a elas assegurados pela cons- tituigdo federal. A luta pelo reconhecimento é a luta pela existéncia. £ luta ontol6gica. A antropologia, como disciplina digna do nome de ciéncia, deve reconhecer autoconstituicdo de povos e, a0 mesmo tempo, incorporar a evidéncia cientifica - histérica, arqueolé- gica e paleontol6gica - que confirme pragmaticamente essa existéncia no tempo e no territ6rio, A luta pela existéncia de povos é a luta ontolégica como luta pelo reconhecimento da existéncia de povos indigenas, apoiada pelo reconhecimento. pragmatico dessa existéncia pelas comunidades cientificas & juridicas, bem como no espaco piiblico. Para isso, porém, é pre- ciso que a antropologia cultural e da ciéncia enfrente o desafio de conciliar o relativismo como apoio a ciéncia, fim das guerras da ciéncia? Em 2017, Bruno Latour ofereceu em Paris uma entrevista revista Science, publicada com um texto introdut6rio editorial que sugeria que 0 renomado historiador e etnégrafo da ciéncia 316 teria recuado de sua critica a ciéncia como produtora de imagens da realidade? A descrigao dessa suposta reviravolta da visio de Latour diante da ciéncia, na publicagao oficial da Sociedade Americana para o Progresso da Ciéncia, deu a impressdo de que as “guerras das ciéncias” teriam acabado com concessio de der- rota por parte de Latour ~ assim como a Guerra Fria teria sido vencida pelos Estados Unidos com a queda do muro de Berlim. Mas a entrevista, ainda que “editada para maior clareza’, per mite entender que Latour se manteve fiel& critica da visio das, ciéncias como portadoras da verdade e da racionalidade, embora afirmando a necessidade de alianca de humanistas, cientistas e do “jornalismo cientifico decente com revisio dos pares": Isso se explica por que, para Latour, a alianca entre humanistas (ter- anos) ecientistas nao é ontol6gica ou epistemol6gica, esim uma acdo politica justificada por um estado de guerra. “Estamos de fato em guerra, Essa guerra é travada por uma mistura de mega- corporagées e alguns cientistas que negam amudancaclimatica ~ que tém fortes interesses na questo e que exercem uma grande influéncia na populagio" (Latour 2017:59). 5 Citamos:"O sociélogo francés Brune Latour, 7o, hé muito incomodaacién: cla. Mas, na época dos fatos alternativos, sai em sua defesa, Aposentado no més passado de suas obrigagdes oficial na Sciences Po [a faculdade de Cin clas Politicas de Pars), Latour celebrizou-se com o livro de 1979 intitulado Vida de laboratério: a producdo das fatos cientfcas, escrito em colaboracio com 0 socislogo britanico Steve Woolgar...J Uma nogdo central na obra de Latour é que ftos si construidos por comunidades de centistas e que no 1 distingio entre os componentes saciais«técnicos da cinciae. Latour fi clogiado por sua abordagem e por suas ideia inovadoras, mas suas concep: es relativistase seu construtivismo social desencadearam reages.[] 0 acirrado debate que se seguiu, conhecide como uerras das ciéneias’, drow vrios anos. Em publicagdes posteriores, Latour admitiu que a [sual critica da ciéncia forneceu uma base para um pensamento anticietifcae, em par- ticular, pavimentou ocaminho para a negacdo da mudanga climética~ tual ‘mente seu principal temade refiexio. Hoje eleesperareconstruiraconfianca naciéncia (Latour 2017), Sobrea “guerra das ciéncias’ ver Almeida 19993 6. Danowski& Viveiros de Castro 2014, Sobre. Antropoceno, ver Bonneuil & Fressoz 2015 sobre a crise climatica mundial, ver Marques 2015; sobre a alianga entre terranos e no humanos, ver Schmitz 196s. Anarguigme ontolagico e verdade no Antropoceno 317 Trata-se, entdo, segundo Latour, de uma alianca justificada pela existéncia de um inimigo comum ~ como na alianca de comunistase de cristdos na resisténcia contra ocupacio alema na Franca. Sob essa justificativa, Latour coloca como sua missio apoiar aciéncia na tarefa de “apresentar aciéncia como ciéneia em acao", deixando de lado a definicao de ciéncia como ativi- dade dirigida a busca de conhecimento? Masa “ciéncia em ago” €a ciéncia da incerteza, conforme diz Latour - pois a ciéncia lida com hipéteses e suas miltiplas consequéncias, e no com verdades absolutas. Diante do uso que “negacionistas climaticos” fazem da incerteza de afirmagées cientificas, cientistas e filéso- fosda ciéncia distinguema incerteza genérica sobre a realidade da incerteza de hipoteses que so postas a prova em experimen- tos ~ que testam sua verdade no sentido pragmatico. Mas Latour no recorrea esse critério e responde ao negacio- nismo climético com o seguinte programa de pesquisa: “Obser= varei geoquimicos, bioquimicos e geopoliticos e conversarei com pesquisadores diferentes, usando uma abordagem lovelockiana, pressupondo que a Terra funciona como um sistema autorregula- dor” (Latour 2017:159, grifo mew). Em Diante de Gaia, Latour afirma que hé uma “denegagao” a crise ecol6gica e sanitaria pelo governo Bolsonaro, ou seja, a"[..] fuga das condigées impostas pela terra L." (Latour [2015] 2020: 10). A recusa do conhecimento cientifico é equiparada por Latour ao “[..] desvio da religiaio crista, que se tornou uma fuga do mundo [..1” (Ibid: 10, grifo meu). Trata-se de recusa do ‘Antropoceno que afeta Gala: “[..] simplesmente a consequencia das sucessivas invengdes dos viventes que acabaram transfor~ ‘mando completamente as condicdes fisico-quimicas da terra .geol6gica inical [... Gaia sio todos 0s seres vivos e as transfor= maces materiais que eles submeteram a geologia, desviandoa energia do sol para beneficio proprio” (Ibid.:1). 1. "Precisaremos recuperar parte da autoridade da ciéncia ~ os cientstas precisam reconquistar respeito. Mas a solucio é a mesma: vocé tem que ntar a cigncia come cigncia em ago" (Latour 2017) Latour combinou nessa afirmacao uma visio pragmética de Gaia (efeitos das transformagées fisico-quimicas da Terra), auma visdo agentiva de Gaia (“todos 0s seres vivos eas transformagées materiais que eles submeteram a geologia") ea uma visio termo- dinamica da ciéncia (“desviando a energia do sol para beneficio préprio”) (Latour 2017 e [2015] 2020). Essa visio de Gaia - geoqui- ‘mica, agencial, termodindmica e religiosa - parece ser destinada aobter a adesio de miltiplos povos. Mas resta dtivida sobre seu feito de convencimento como ontologia multitética comparti- Ihada por cientistas e pelos povos do planeta. Por isso, permanece a pergunta: ha um fundamento cogni- tivo e ético que justifique a coalizao entre cientistas, humanistas indigenas sobre mudanca climética, pandemias globais, diver- sidade biol6gica, multiplicidade cultural e desigualdade social e que, ao mesmo tempo, admita diferentes ontologias, como a de cientistas (realismo cientifico) e a de xamas amerindios? £ 0 que vamos explorar a seguir, em busca de horizontes para uma ciéncia antropol6gica que admita a variedade infinita de mundos vividos e a possibilidade de tradugao de critérios de verdadee da ética por meio de todos eles. Ontologias locais-universais Descendo desses habitantes da terra das nascentes dos rios, filhos ¢ genros de Omama, Sio as palavras dele, eas dos xapiri, surgidas no tempo do sonho, que desejo oferecer aqui aos bran- cos. Nossos antepassadlos possuiam desde o primeiry tempo. Depois, quando chegou 2 minha vez de me tornar xama, a ima- gem de Omama as colocou em meu peito. Desde entio, meu pensamento vai de uma para outra, em todas as diregdes; elas aumentam em mim sem fim (Kopenawa & Albert 2015: 65). Kopenawa é um sébio capaz de acessar mundos inacessiveis & experiéncia cotidiana. Essa descrigo aplica-se tambéma fisicos te6ricos que elaboram ontologias cujas consequéncias pragmé- ticas so vividas em laboratorios por experimentalistas. A posi- Anarquismo ontolégico e verdade ne Antropaceno 319 ‘cdo desses tiltimos cientistas pode ser comparada de Kopenawa: io corpos preparados (pela educacio, pelo treino experimental) para receber evidéncia de mundos que estdo além da experién- cia cotidiana. Kopenawa é também o cientista tedrico que ela- ‘bora uma cosmologia compativel com a evidéncia experimental. Passo a exemplos triviais desse procedimento. Malaria e agua Agentes de satide dizem que malaria (sindrome similar a da hepatite) é causada por mosquitos reproduzidos na agua. Moradores seringueiros do rio Tejo dizem que malaria (iden- tificada a sindrome de hepatite) é causada pela égua - contami: nada com oaca (vegetal cultivado que entorpece peixes) introdu: ziido na agua a montante por indfgenas ("caboclos") do rio Bagé. Como distinguir a explicagéo social da doenca (como acusa- cao contra indigenas que usam oaca nas cabeceiras) da explica: ¢4o causal (consumo da 4gua contaminada) ede outra explicagao causal (mosquitos transmissores reproduzidos na égua)? Na auséncia de laborat6rios locais equivalentes aos dos cientis- tas, que corroborariam o papel de mosquitos como vetores de entes invisiveis a olho nu, o laboratério-floresta, que confirma a associagio entre qualidade da agua e maléria - sob a hipétese de um vegetal venenoso para peixes (oaca) acrescentado & Agua A malaria /hepatite. Seriam necessérios novos testes em labo- rat6rios para distinguir a hipétese de “oaca” e de “mosquitos Uransmissores’, bem como a diferenga entre sintomas de hepar tite e de maléria, Nao se trata de irracionalidade dos moradores seringueiros,e sim de legitima divergéncia te6rica com base nos dados existentes, Pedras e vida Adio Cardoso, zoélogo da Unicamp, foi incansavel pesquisador ‘e amigo de indigenas e seringueiros na Reserva Extrativista do. Alto Jurua com o professor Keith Brown Jr. A investigacéo de 320 anfibios em colaboragao com Moisés Barbosa de Souza, da Uni- versidade Federal do Acre, resultou em um inventério de 120 espécies de anfibios (sapos eras) na bacia do rio Tejo,territ6rio 4e:300000 hectares no interior do que é hoje a Reserva Extra- tivista do Alto Jurud, evidenciando a conservagao de altissima biodiversidade onde indigenas e seringueiros vivem ha séculos Barbosa de Souza 2005). Em 1995, Adio participou de um curso para os seringueiros eos indigenas no rio Jurua, encarregando- -se do ensino da biologia. Na primeira aula, ele introduziu a diferenca entre vida e néo vida, perguntando: “Pedras no tém vida, certo?” Em ver da resposta esperada, “sim recebeu uma enxurrada de contestagSes que ocuparam toda a aula e se prolongaram durante as conversas noturnas ¢ comprometeram a continui- dade do curso. Osmildo, indio Kuntanawa e seringueiro, argu- mentou: “Pedra cresce’. Osmildo se referia ao fato de que na bacia do rio Jurué pedra existe no lito dorio Jurué-Mirim, mina (brota) do leito doo, assim como a Agua mina da terra ecresce com base em argumentos empiricos que aparecerao a seguir. Anogdo de que pedra mina da terra, assim como a égua mina de fontes, corresponde & nocdo andina segundo a qual ouro e prata crescem no seio da mée-terra. Analogamente, no rio Jurué, pedras cresceriam no fundo do rio Jurud-Mirim. Adio argumentou: “Se vocé separar um pedago de pedra do fundo do rig colocé-lo na mesa, esse pedaco nao cresce, certo?”. Osmildo retrucou: “Se voeé cortar o brago de uma pessoa e colocé-to na ‘mesa, ele morre® Esse nao fol o ltimo argumento dos indigenas dos seringueiros em conversas continuadas ao longo da noite. Noleito do rio Jurud, nos barrancos e nas corredeiras, abundam 050s fossilizados de animais que séo verses ampliadas de ani- mais contemporaneos:ossos de tatus, de tamanduas, de tartaru- gas e de preguicas, ampliados desmesuradamente e com forma de pedira. Esse fato €apresentado pelos moradores como evidén- cia de que ossos se convertem em pedra ecrescem em tamanho quando submersos na égua. Cientistas equipados com métodos de datagao baseados na fisica moderna associam esses objetos a ‘Anarquismo ontolégico e verdade no Antropoceno 321 animais do fim do Pleistoceno ~ mas, sem acesso a esses méto- dos, a interpretacio local pode ser a melhor possivel. Formiga vira planta Em nossa experiéncia de pesquisa colaborativa junto a serin= gueiros e indigenas no Alto Rio Jurué, apareceu frequente- mente a seguinte afirmacao: formiga vira cipd. Essa afirmago nunca foi abalada por fotografias de bidlogos de nossa equipe que mostravam brotos de planta saindo de olhos de formigas Ao contrério, essas imagens eram usadas como evidéncia de que de fato “formiga vira cipé”, Essa afirmacio fenomenolégica & encontrada em relatos de Piro no Ucayali, de Maués do Solimées, de seringueiros e Kaxinawé do Jurua de ribeirinhos do valedo Xingu. Trata-se de fendmeno identificado em toda a bacia ama z6nica por diferentes povos. Hé uma ampla literatura sobre a afirmacio de povos amaz6nicos segundo a qual “insetos viram planta’, Em conversa com um morador do rio Jurua por volta de 2010, durante sua atividade em um campo de tabaco, aprendi ‘uma verso mais elaborada da teoria, na forma de variantes de “inseto vira cip6”. Ineoto Cip6 ‘Moradia do inseto Habito Formiga Ciné-ttica ~~ Noalto De cima para bala tucandeira fanhoto _Cipéambé No akto De cima para bao Gro: Timbs No ako De cima para bao -pema-dura Cigar Tracus No ato De cima para baie Caranguejeira Japecange Debsixe da terra De baixo pare dma ‘Quadro 1 inseto virecipé. Fonte: Agricultor de Mared em 2012, Thaumaturgo, (O quadro a seguir foi publicado em uma revista cientifica: 322 “inseto” “Cipé—bejuco Nome do vegetal forniga conga ‘bejuco yaré| Heteropsis exuosa tucandeira pésttica Blacrén/escorpiéo _—dajuco gio oubejuco Araceae om cde mareo (Araceae) mariposa Janabuyagi _bejuco Nedokio ‘Araceae = ou falvo bur jebaiycuma ‘bejuco Narao.ou Philedendron bejuco de flema hylacas, Araceae aranhal ‘mata palo, Virpiti___Oryctanthus alveolats, Loranthaceae Quadro 2 Inseto, fungo, cps. A formiga-conga (Paraponera clavate) & 3 formiga tucandeira e 0 bejuco de yaré 6 0 cipéttiea (Heteropeis lexuo- 8, Araceae). O fungo Cordyceps & 0 parasite associado as “formigas zumbi". Fonte: Vasco-Palacios eta. (2008) Aconcluséo dos autores do estudo é que “[..] a perda do conhe- cimento das etnias indfgenas leva a desaparicéo de umactimulo de informagées muito valiosas sobre a biologia ea ecologia de plantas, animais e fungos [..J" (Vasco-Palacios etal. 2008: 27) ¢ que a colaboracio pode contribuir ao conhecimento cientifico a0 fornecer informagdes sobre aspectos pouco conhecidos da floresta tropical timida, assim como sobre as interacdes eco- logicas entre organismos, nesse caso, entre fungos-plantas e fungos-animais, servindo de ponto de partida para a realiza- «lo de investigagoes clentificas que corroborem e aprofundem © conhecimento dessas relagdes (Vasco-Palacios et al. 2008). ‘Vasco-Palacios et al. (2008: 17) dizem que associacées entre insetos e plantas so uma pequena parte dos “[.] conhecimen tos sobre os fungos e as suas relacdes ecol6gicas com animais plantas [.J" dos indigenas. E que refletem, além disso, “LJ a capacidade integradora e descritiva que os indigenas possuem sobre o meio natural que os circunda [..J, incluinds (..] dados de besouros (Coleoptera) e larvas (Diptera), mamiferos, veados (Mazama americana e M. gouazoubira) ¢ esquilos (Microsciurus ‘Anarquismo ontolégico e verdad no Antropoceno 323 flaviventer), e tartarugas que incluem fungos nas suas dietas, assim como sobre espécies de fungos que parasitam plantas € insetos” (Vasco-Palacios etal. 2008: 17, grifo meu). O depoimento do morador de Thaumaturgo muitos outros testemunhos mostram que hé uma ciéncia fenomenolégica generalizada de indigenas e caboclos que acessa fendmenos bio- légicos relevantes, exemplificados pelas interagdes entre inse- tose vegetais. Trata-se de um exemplo de concordancia pragmé tica entre ontologias indigenas e ontologias cientificas. Mundos ressurgentes O programa de pesquisa de Anna Tsing é exemplo paradigmé- tico de uma alternativa de busca do conhecimento que envolve coletivos de cientistas, antropélogas, habitantes, fungos € instrumentos, sem fronteiras entre o que é natural e artifi- cial, pesquisadores e nativos, local e global ou humano e no humano, Essa antropologia generalizada inclui entes vegetais ce humanos deslocados na escala mundial em consequéncia do tréfico biolégico e de migragées pés-coloniais. Tsing trata de entes coproduzidos pela destruicéo da natureza no noroeste dos Estados Unidos e do ressurgimento de paisagens com fue gos transcontinentais, de migrantes asidticos e de mercados ‘modernos norte-americanos. Ressurgéncia é 0 conceito-chave de Tsing: contraposico & entropia cultural como ressurgéncia, Contraentropia: reorganizacao de paisagens e de povos nos escombros ecol6gicos e soclais produzidos pelo capitallsmo: 0 fendmeno da ressurgéncia - a proliferacéo de novos entes sociais e biolégicos a partir dos escombros das guerras colo niais e da destrui¢do capitalista de paisagens de Oregon - & ‘uma importante correcdo a visio entrépica da histéria formu= lada por Lévi-Strauss e pelo anjo da histéria que, segundo Ben= jamin, s6 vé atrés de si a destruigao (Almeida 1990b). Na versio de Tsing, nos escombros produzidos pelo capitalismo emergem espécies, comunidades e metafisicas imprevisiveis. A conch: sio €a proliferagao de mundos, que evoca o romance de Ursula 324 Le Guin intitulado erroneamente O tormento dos céus,* no qual apaisagem de Oregon é transformada aleatoriamente segundo os sonhos de um observador. Muitos mundos A oposicio entre “muitos mundos" de cosmologias locais e um ‘inico mundo do realismo cientifico pode ser representada como a correlagio entre muitos mundos e um tinico mundo do realismo cientifico. Ha uma maneira de expressar esse ponto de forma ainda mais clara. Seringueiros do rio Tejo criaram a primeira Reserva Extrativista do pafs, ou seja, unidade de conservagio destinada 0 uso sustentavel de comunidades tradicionais locais, Fran- cisco Barbosa de Melo, ou Chico Ginu, lider local que levou a esse resultado, sem nenhuma educagio formal, elaborou um mapa da regio usando recursos de um computador. Na figura 5, mostramos um mapa georreferenciado da Reserva Extrati- vista e o mapa de Chico Ginu. A primeira vista, os dois mapas parecem discordantes, mas, quando a orientagio alto-baixo invertida, o mapa de Chico Ginu mostra-se compativel com 0 mapa georreferenciado de Alan Monteiro. Essa discordancia nao é apenas a mudanca de referencial do “norte” para o “sul” (nos mapas locais, o“norte” esta “embaixo", sendo a direcéo para onde fluem os rios), Ha mais que isso, porque, na cosmografia dos seringueiros, todos 0s rios fluem de um unico “alto” para o “baixo" ~ ponto terminal que ¢ visto com um lago ou como o mar (Postigo 2010) Qual seria a resposta de um seringueiro ao visitar 0 mar de Sio Paulo, que nao coincide com o mar de Belém? Augusto Postigo ofereceu uma resposta possivel, formulada por um seringueiro apés visitar So Paulo eo litoral de Santos ~ salvando a ontografia de um mundo orientado do “alto (rio) ao 8, Sobreolugar de Oregon nacultura norte americana, ver Ursula Le Guin (i97i] 2004 (The Lathe of Heaven, iteralmente Otorno des céu). ‘Anarquismo ontolagico e verdade no Antropoceno 325 baixo (rio)’, na qual haveria varios rios divergentes levando “do alto ao baixo” em diferentes diregdes. O resultado é um modelo, de terra cnica ~ reformulagao de uma teoria de terra linear (um iinico rio e seus afluentes), incorporando novos fatos Prag- miticos (Postigo 2010). [> stontscatton so transformavel : Sy rs) cere aes Figura 5 Ontologias ncomensurdveis s30 compatives pragmaticamente, [No alto, & esquerda, Postigo 2016; 8 diceita, Ant&nio B. de Melo, Ginu); embaixo, &dieita, Francisco B. de Melo (Row), in Postigo 2016, Augusto Postigo e seus colaboradores seringueiros mostram que ontologias alternativas dio conta da experiéncia e podem se transformar em contato com a experiéncia, assim como teo- rias cientiicas. ‘Na década de 1980, havia um modelo de “extracio sustentée vel” que preconizava para cada espécie de animal (veados, pacas, queixada, porquinho) uma quantidade que poderia ser predada “otimamente” sem prejuizo para a continuidade da populaca Esse modelo levou a predigSes pragméticas que contradiziam os dados de pesquisa na Reserva Extrativista do Alto Jurué, Por outro lado, um modelo chamado de “fonte e sumidouro” (source ‘and sink) mostrou-se compativel com os dados emptricos obti- dos pelos seringueiros-pesquisadores. Esse modelo tomava 326 como variavel a proporgio do territério excluida da atividade de cagadores (Ramos 2005). E essa tese correspondia a tese dos moradores, segundo a qual a continuidade da populacao da fauna cinegética dependia da existéncia de refagios ~ na qual Caipora protege e cura animais visados pela caca. O desafio da antropologia Como articular antropologicamente o consenso cientifico sobre aquecimento, pandemias e agroindtistria na escala global coma incomensurabilidade de ontologias de diferentes povos e comu rnidades? Esse € 0 teste que contrasta 0 relativismo cultural de miltiplos mundos com a nova alianca com cientistas - cujo realismo cientifico afirma a existéncia de um mundo real em que existem fungos, virus e aquecimento global, enquanto ha ontologias que interpretam doenca e aquecimento global como indicios de crises césmicas.* Respondo a essa pergunta com a suposigio de que é possfvel preservar a distingdo entre verdade e falsidade em cada ontologia e manter uma ponte comunicativa pragmaticamente apoiada entre elas.” Essa posicio é justificada pela experiéncia de contato entre culturasa todo momento: por exemplo, povos indfgenas e observadores externos concordam com aexisténcia de intrusos em terras indigenas, com a degra- dagdo da Agua dos rios e com a destruigao de florestas, sem pre- juizo de diferentes explicagdes para esses fendmenos. Por essa razio, um livro como A queda do céu, de Davi Kopenawae Bruce Albert (2015), pode ser entenctido por cientistas e antropologos, apesar dos abismos metafisicos. A agenda das humanidades nao é a guerra contra a ciéncia. Em vez disso, deve dar conta da distingio entre pseudoverda: des (mentiras e fake news) e pseudoargumentos (falacias), pre- ‘9. Camargo (2020) ¢ Lagrou (2020) tratam de visdes indigenas do povo Ka xinawé sobre pandemia do "novo coronavirus’. 10, Sobre duas formas de relativismo, orelativismo cultural eo eativismo cstrutural, ver cap. 8. Anarquisme ontolégica e verdade ne Antropocen 327 servando, ao mesmo tempo, a validade de miiltiplas ontologias ede diferentes l6gicas. Verdade pragmatica é 0 chao comum de ‘iltiplas ontologias eo critério que permite distinguir falécias e mentiras de raciocinios consistentes e verdades de fato. Ver~ dade no sentido pragmatico significa que a afirmacao de um fato € acompanhada pela descrigdo das condigdes em que esse fato pode ser verificado em um experimento. Verdades pragmaticas so compativeis com diferentes ontologias. Mas permanece a exigéncia de verificagio pragmitica dessas ontologias. Ha uma ontologia em que existem espiritos desencarnadose ‘um mundo em que esses entes nao existem. Os relatos etnogré- ficos de uma antropdloga umbandista, Maria, serao os mesmos que os de outra aluna agnéstica - se seguirem os protocolos da etnografia, que incluem registros em diarios de campo, gravador, fotografias, documentos, censos, mapas e orgamentos domésti- s protocolos deveriam ser os mesmos para Mariae para Jodo, antropélogo materialista. Esses registros pragméticos podem ser compativeis, corroborando a ontologia em que ha espiritos e a ontologia agnéstica em que nao existem espiritos. Nao preciso impor & minha aluna uma dessas ontologias para reconhecer a veracidade da etnografia produzida por ela. ‘Moral da hist6ria: critérios pragmaticos de verdade sio com- pativeis com miiltiplas ontologias. O interesse para a antropé- loga é que a noc de quase-verdade (ou verdade parcial, ouver- dade pragmatica) da consisténcia e historicidade ao predicado de verdade, permitindo que seja compativel com a multiplici= dade de ontologias. A concordancia pragmatica éaconcordancla sobre verdades locais - porque séo compativeis com miltiplas ontologias. No exemplo anterior, significa minha concordéncia com a antropéloga umbandista, porque ela segue os protocolos dda pesquisa cientifica, embora interprete os resultados segundo ‘uma ontologia diferente da minha. Enfatizo esse ponto para dizer que a nogéo de “concordéncia pragmatica” nada tem a ver com “acordos para fins préticos” = co em que alguém finge concordar para obter vantagens sobre o outro. Nesse caso, trata-se de substi= os. Ess um faz de conta ci 328 tuir a nogio de verdade pelo critério de vantagem pratica. Em vez disso, trata-se do reconhecimento de que existem critérios pragmaticos de verdade que sao validos em diferentes vis de mundo: o reconhecimento da diferenca entre vida e morte, entre dor e prazer. Como Frege observou, a estrela-d'alva e a estrela vésper se referem ao mesmo planeta, mas tém sentidos diferentes; o sete-estrelo de camponeses e as pléiades da mito- logia europeia, assim como o subaru da tradicio japonesa (com seis estrelas) se referem 4 mesma constelagio dos astrénomos, embora sejam entes ontologicamente diferentes. Mas observa- dores Tukano e astronomos ocidentais podem dialogar sobre a poca do ano em que essa constelacao ¢ visivel no céu em certa latitude." Hé cientistas espiritas, umbandistas, taoistas, cristaos eateus, que concordam sobre aexisténcia da estrela denominada diferentemente. Newton Freire Maia, geneticista de populacées, 6 exemplo de cristo cuja visio de compatibilidade entre sua ontologia e a pratica cientifica esta documentada em livro pés- tumo com prefiicio de Newton da Costa (Freire-Maia 2008). Mas, assim como pode haver concordancia pragmatica entre ontologias diversas, ocorrem também conflitos ontolégicos cuja consequéncia é a guerra de aniquilagio ontologica, como quando colonizadores tém o intuito de exterminar o mundo dos xamas matando os portadores das metafisicas locais, destruindo 0s locais de culto e os objetos e as substancias sagradas que ser- vem de mediagio entre o mundo cotidiano e o mundo invisivel de espiritos. Uma variante atenuada dessas guerras de aniqui: lacao ontolégica é um sistema escolar que reprime visdes de mundo e sabedorias locais. Nos dois casos, trata-se de invasoes ontol6gicas de cunho missionario (coma implantaco de igrejas locais como cabecas de ponte da cosmologia evangélica) ou de invasdes pseudocientificas em que dogmas escolares so incul- cados emcriangas indigenas como se fossem verdades absolutas. nn, Stephen Hugh-Jones (2012) investigou etnograficamente uma hipdtese de Lévi-Strauss sobre esse ponto, Anarquisme ontolégico e verdade ne Antropoceno 329 mo e multirrealismo Formulamos acima um dilema: ou hé um tinico mundo do rea- lismo cientffico ocidental moderno, ou hé varios mundos cor respondentes a cada cultura e a cada povo. Hé uma resposta a esse dilema que consiste em afirmar que vivernos em um mundo ‘énico composto de varios mundos locais - e, conforme essa tese, 0 mundo do realismo cientifico é pressuposto, mas acomoda uma variedade de pseudomundos locais, que sao representa- des admitidas caridosamente como versdes aproximadas do ‘mundo real inico. Mas nao queremos essa atitude, na qual o realismo cien- tifico adota a posicao tolerante de uma ontologia filtrante que recupera de visdes locais tracos que a corroboram. Nao queremos essa atitude, porque ela equivale a legitimar a ocupacao ontoldgica da ciéncia e da teologia ocidental na escala da ocupagio colonial - ou, em outros termos, equivalea efetivacao do colonialismo ontol6gico em pele de cordeiro. Nao ha tradugao ontolégica inocente, porque é impossivel traduzir ontologias a nao ser como ocupacao ~ cabeca de ponte em guerras ontol6gicas.E aalternativaa isso ja foi indicada,a saber: em vez de imposigio de ontologias, ressaltar a convergéncia pragmatica e racional de miiltiplas visdes de mundo. A ada pragmitica da Antropologia A posicao defendida acima supde uma virada pragmatica na antropologia como complemento necessério da chamada virada ontol6gica. Essa virada pragmética significa reconhecer o con- tato entre ontologias por meio de encontros pragmiticos que 12. Deborah Lima apontou para mim o titulo do livro de Mario Blaser com relacdo a pressuposigio nelecontida de um mundo tinico,“.] composto de vrios mundos’. Em apoio & posigio de Blaser, devemos conferir La Compo: sition des mondes,livro de entrevistas com Philippe Descola no qual uma: “composigio de mundos” nfo implica um tnico mundo resultante desea com: posigio (Descola 2014) 330 transpéem fronteiras ontolégicas. Por exemplo, a evidéncia do aquecimento global, conforme a ontologia da ciéncia climatica, se apoia em intimeros sensores dispostos ao redor do planeta, cujos dados so agregados em modelos mateméticos que geram indicadores médios estendidos a escala global. Quando desce- ‘mos & escala local, a comunidade ashaninca aponta o fendmeno de animais-mestres que perdem a capacidade de indicar fidedig- namente mudancas sazonais ~ como se fossem sensores sujei: tos eles mesmos & entropia que afeta o ambiente que deveriam monitorar. Os Ashaninca mais velhos evocavam como explica- cio para a mudanca o retorno do Inca‘$ol 4 Terra, tendo como, consequéncia o aquecimento (Mesquita 2012 e 2013).Na mesma regio do Alto Jurud acreano, descendente de migrantes nor: destinos interpretavam as mudancas ambientais percebidas nos quadros das visdes apocalipticas difundidas em folhetos populares das décadas de 1960 e de 1970, nos quais previsdes climaticas anunciavam 0 aumento progressivo do calor e da intensidade de secas, ao mesmo tempo que relacionavam essa progressio & crise moral e sexual como indicadores da iminén- ciado fim do mundo. Um poeta nordestino explicou esse “fim do, mundo” como o tempo em que “a roda grande passaré dentro da roda menor" ~ a realizado de uma impossibilidade logico-empi- rrica, como culminagao de uma crise crescente do mundo natu: rale do mundo social, que era claramente a metafora para uma transformacio social e césmica (Almeida 1979). Finalmente: em um seminario na Universidade Federal de Pernambuco, uma social da seca’ cont wuigdo estudantil tratou da “constr: no sertéo paraibano como efeito progressivo de politicas que estimulam substituigao da paisagem da caatinga por paisagens inrigadas para produgao comercial, em combinacio com efeitos do EI Nifio, Tudo se passa como se a visdo ashaninca, 0 milena- rrismo camponés teorias climaticas convergissem em suas con- sequéncias observaveis, embora com ontologias divergentes, Nos exemplos acima, a verdade local (dados de hidrémetros, decamponeses leitores da umidade edo halo lunar, de indigenas ensinados por péssaros e plantas), embora convergente com pre ‘Anarquisme ontolégico e verdade no Antropoceno 331 visdes cientificas, é estendida de modo a se compatibilizar com ontologias que vao além da experiéncia. Por exemplo, previs6es climéticas so estendidas para se tornar compativeis com cosme- Jogias que preveem o fim do mundo ao longo de secas sucessivas ecrescentes, ou para confirmar a eficécia do Cacique Cobra Coral ‘como agente metafisico capaz de manipular o clima em colabore: ‘cdo com cientistas (Taddei 2017), Ha outras narrativas, Hé cientistas espiritas, umbandistas e taoistas, sem falar dos cristéos. Essas orientagdes pressupdem ontologias distintas, ¢ todas elas sao incompativeis com a ontologia minimalistae “unitaria do empirismo antirrealista da ciéncia. Porque a episte- mologia antagénica ao pluralismo ontolégico nao ¢ 0 realismo cientifico - que, quando olhado seriamente, se multiplica em miltiplas ontologias compativeis com experimentos -, esimo. instrumentalismo antirrealista segundo o qual a tarefa tnicada_ ciéncia é prever resultados de experimentos, e no falar sobre arealidade. Entre as visdes realistas, as cosmologias indigenas tém lugar, Lévi-Strauss reabilitou os mitos indigenas sul-americanos, tra- tados como produto de pensamento coletivo que reflete sobre problemas cosmolégicos e humanos. Eduardo Viveiros de Cas trodestacoua contribuicio filoséfica desse pensamento-em-rede a0 oferecer ao cogito cartesiano, “Penso, logo existo’, a alter- nativa amerindia, "Penso em outro, logo existe um outro que pensa sobre mim’ ~ do que decorre que esse outro é, por suave, pensado por um outro. De onde a existéncia subjetiva-objetiva remete a uma relagaoem rede de sujeitos-objetus de pensamento ede aco, sempre aberta para admitir mais parceiros, Concluséo Formulamos acima um dilema antropolégico: ou ha um tinico mundo do realismo cientifico ocidental moderno, ou hé varios mundbs correspondentes a cada cultura e a cada povo. Uma primeira resposta: ha um mundo (global) composto de varios mundos (locais). Essa tese permite tomar o mundo do realismo 332 Cientifico como o mundo global ea composigdo de mundos como ‘oconjunto de mundos locaisfiltrados pela compatibilidade com ‘omundo global. Mas nao queremos impor esse filtro aos conhecimentos € mundos locais, em que a ontologia global é a ontologia filtrante que recupera de cada ontologia local os tragos que a corroboram. A atitude antropologica recomendada pela “virada ontol gica’ éa suspensio de ontologias (conscientes ou inconscientes) do antropélogo. A tarefa seguinte é a reconstruc das ontolo- gias locais que dao conta dos fendmenos. A dificuldade - eviden- ciada por Roy Wagner ({1981] 2017) como “mal-entendido” e qua- lificada por Viveiros de Castro como “equivocacio controlada” (Viveiros de Castro 2018) ~ esté no fato de que, nessa recons- trucdo, imiscui-se inevitavelmente a interacao de pressupostos “ontolégicos do pesquisador com as ontologias locas, Essa inte- ago implica a modificacéo da ontologia do etndgrafo por efeito da experiéncia de campo e a modificacio das ontologias locais como efeito da atuacio do etnégrafo. Nao apenas isso: ao salvar objetos da cultura local da desapariao, esses objetos mudam de estatuto ontolégico. Ou ainda, na formula¢ao de Manuela Car neiro da Cunha (2017), cultura e “cultura” nao tém o mestno esta- tuto ontolégico e politico. Temos que conviver com a multiplic dade ontolégica: como zonas de conflito e de comunicacaoentre ovos, como espagos de diferenca no interior de uma mesma sociedade e como multiplicidade subjetiva de multi-individuos. E possivel conciliar a luta contra a destruicdo planetéria da Aiversidade bioldgica e cultural com a autonomia ontol6gica de culturas. Ontologias do mundo inteiro podem unir-se sob a bandeira da verdade pragmética eda racionalidade. Isso ocorre porque ontologias dizem respeito a visdes de mundos que estio além da experiéncia, mas que sao indispenséveis para guiar a agdo para além dos dados da experiéncia anterior. Miltiplas ontologias associadas as ciéncias e as visdes de mundo locais podem, portanto, se aliar contra a destrui¢do de um mundo comum, que € 0 mundo acessivel pragmaticamente por efeitos como a poluigao de rios, a irregularidade dos ritmos naturais, 0 ‘Anarquismo ontolégico e verdade no Antropoceno 333 aquecimento inusitado e as inundagées e secas extraordindrias bem como os fendmenos sociais a sociados, como fomes, desemprego e mortalidade. Diante desses fendmenos cabe & antropologia afirmar critérios de prudéncia e de justica como “nao deixar pessoas para tras’, ou seja, sustentar direitos minimos a vidae ahumanos. ‘bem-estar para todo ente humano e simi

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