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Arts og ca
A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA:
antropologia e literatura no século XX

James CLIFFORD

srs
organização e

EE VPR Qin mira


revisão técnica
UFR)
cle
Reitor José Henrique Vilhena de Paiva
José REGINALDO SANTOS GONÇALVES
Coordenador do
Forum de Ciência
e Cultura Afonso Carlos Marques dos Santos
EDITORA UFR]
Diretora Yvonne Maggie
Editora Executiva Maria Teresa Kopschitz de Barros
Coordenadora
feno

de Produção Ana Carreiro


Cecília Moreira
Qu ec

Editora Assistente
EUR

12 reimpressão
Conselho Editorial Yvonne Maggie (presidente), Afonso Carlos Editora UFR]
ram aid

Marques dos Santos, Ana Cristina Zahar, 2002


Carlos Lessa, Hermano Vianna, Fernando
FP

Lobo Carneiro, Peter Fry, Silviano Santiago


na
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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

RORTY, R. Contingency, irony, and solidarity. Cambridge:


SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA
Cambridge University Press, 1989.
STOCKING Jr., G. W. Romantic motives: essays on anthropolo-
» gical sensibility. Madison: The University of Wisconsin
Press, 1989.
VELHO, O. Besta fera: a recriação do mundo. Rio de Janeiro: Clifford considera como seus nativos, assim como seus informantes
Relume Dumará, 1995. (...), os antropólogos (...) Estamos sendo observados e inscritos.
Paul Rabinow, Representations are social facts.
VILHENA, L.R. Projeto e missão: o movimento folclórico brasi-
leiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte, 1997.
WILLIAMS, R. Culture and society, 1780-1950. New York:
Harper and Row, 1966.

O frontispício de 1724 do livro Moeurs des sauvages


américains, do Padre Lafitau, retrata o etnógrafo como uma jovem
mulher sentada numa escrivaninha em meio a objetos do Novo
Mundo, da Grécia Clássica e do Egito. Ela está acompanhada por
dois querubins — que ajudam na tarefa de comparação — e pela
barbuda personagem do Tempo, que aponta para uma cena que
representa a fonte primordial da verdade brotando da pena do
escritor. A imagem para a qual a jovem mulher dirige seu olhar é a
de um conjunto de nuvens onde estão Adão, Eva e a serpente. Acima
deles estão o homem e a mulher redimidos do Apocalipse, de cada
lado de um triângulo que irradia luz e ostenta a inscrição Yahwen,
em alfabeto hebraico.
Já em Os argonautas do Pacífico Ocidental o frontispício
é uma fotografia com o título “Um ato cerimonial do kula”. Um
colar de conchas está sendo oferecido a um chefe trobriandês,
que está de pé na porta de sua casa. Atrás do homem que presenteia
o colar, está uma fileira de seis jovens, curvados em reverência,
um dos quais sopra uma concha. Todas as personagens estão de

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

perfil, com a atenção aparentemente concentrada no rito da troca,


provedor de conhecimento antropológico sobre o outro, tornou-se
um evento importante na vida melanésia. Mas a um olhar mais necessário imaginar um mundo de etnografia generalizada. Com a
atento parece que um dos trobriandeses que se curvam está olhando expansão da comunicação e da influência intercultural, as pessoas
para a câmera. interpretam os outros, e a si mesmas, numa desnorteante diversidade
A alegoria de Lafitau é menos familiar: seu autor transcreve, de idiomas — uma condição global que Mikhail Bakhtin (1953)
não cria. Diferentemente da foto de Malinowski, a gravura não faz chamou de “heteroglossia”.? Este mundo ambíguo, multivocal,
nenhuma referência à experiência etnográfica — apesar dos cinco torna cada vez mais difícil conceber a diversidade humana como
anos de pesquisa de Lafitau entre os mohawks, uma pesquisa que culturas independentes, delimitadas e inscritas. A diferençaé um
lhe granjeou um lugar de honra entre os pesquisadores de campo efeito de sincretismo inventivo. Recentemente, trabalhos como o
de qualquer geração. Seu relato é apresentado não como um produto de Edward Said — Orientalismo (1978) — e o de Paulin Hountondiji
de observação de primeira mão, mas como um produto da escrita — Sur la “philosophie” africaine (1977) — levantaram dúvidas.
em um gabinete repleto de objetos. O frontispício de Os argonautas, radicais sobre os procedimentos pelos quais grupos humanos
como toda fotografia, afirma uma presença — a da cena diante das estrangeiros podem ser representados, sem propor, de modo definido
lentes; e sugere também outra presença — a do etnógrafo elaborando e sistemático, novos métodos ou epistemologias. Tais estudos
ativamente esse fragmento da realidade trobriandesa. O sistema de sugerem que, se a escrita etnográfica não pode escapar inteiramente
troca kula, tema do livro de Malinowski, foi transformado em algo do uso reducionista de dicotomias e essências, ela pode ao menos
perfeitamente visível, centrado numa estrutura de percepção, lutar conscientemente para evitar representar “outros” abstratos e
enquanto o olhar de um dos participantes redireciona nossa atenção a-históricos. É mais do que nunca crucial para os diferentes povos f
para o ponto de vista do observador que, como leitores, partilhamos formar imagens complexas e concretas uns dos outros, assim como
com o etnógrafo e sua câmera. O modo predominante e moderno idas relações de poder e de conhecimento que os conectam; mas
de autoridade no trabalho de campo é assim expresso: “Você está “nenhum método científico soberano ou instância ética pode garantir
lá... porque eu estava lá”. a verdade de tais imagens. Elas são elaboradas — a crítica dos
Este estudo traça a formação e a desintegração da autoridade modos de representação colonial pelo menos demonstrou bemisso .
etnográfica na antropologia social do século XX. Não é uma —a partir de relações históricas específicas de dominação e diálogo. a
explicação completa, nem está baseada numa teoria plenamente Às experiências de escrita etnográfica analisadas neste texto
desenvolvida da interpretação e da textualidade etnográfica." Os não seguem nenhuma direção claramente reformista ou evolução.
contornos de tal teoria são problemáticos, uma vez que a prática Elas são invenções ad hoc, e não podem ser encaradas em termos
de representação intercultural está hoje mais do que nunca em de uma análise sistemática da representação pós-colonial. Elas são
cheque. O dilema atual está associado à desintegração e à talvez melhor compreendidas como componentes daquela “caixa
redistribuição do poder colonial nas décadas posteriores a 1950, e de ferramentas” da teoria engajada sugerida por Gilles Deleuze e
às repercussões das teorias culturais radicais dos anos 60 e 70. Michel Foucault:
Após a reversão do olhar europeu em decorrência do movimento
da “negritude”, após a crise de conscience da antropologia em A noção de teoria como uma espécie de caixa de ferra-
relação a seu status liberal no contexto da ordem imperialista, e mentas significa: (1) que a teoria a ser construída não é
agora que o Ocidente não pode mais se apresentar como o único um sistema, mas sim um instrumento, uma lógica da

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

especificidade das relações de poder e das lutas em torno intensivo, realizado por especialistas treinados na universidade,
delas; (ii) — que esta investigação só pode se desenvolver emergiu como uma fonte privilegiada e legitimada de dados sobre
passo a passo na base da reflexão (que será necessariamente
povos exóticos. Não se trata aqui da dominância de um único
histórica em alguns de seus aspectos) sobre determinadas
método de pesquisa. (Compare-se Griaule, 1957, com Malinowski,
situações. (Foucault, 1980:145; ver também 1977:208)
1922: cap. 1). Além disso, a hegemonia do trabalho de campo foi
Podemos contribuir para uma reflexão prática sobre a represen- estabelecida nos Estados Unidos e na Inglaterra antes e de forma
tação intercultural fazendo um inventário das melhores, ainda que mais difusa do que na França. Os exemplos pioneiros de Franz
imperfeitas, abordagens disponíveis. Destas, o trabalho de campo Boas e da expedição ao estreito de Torres foram seguidos apenas
etnográfico permanece como um método notavelmente sensível. bem mais tarde pela fundação do Institut dEthnologie em 1925 e
A observação participante obriga seus praticantes a experimentar, pela famosa Missão Dakar-Djibouti de 1932 (Karady, 1982; Jamin, .
tanto em termos físicos quanto intelectuais, as vicissitudes da 1982a; Stocking, 1983). Apesar disso, em meados da década de |
tradução. Ela requer um árduo aprendizado lingiístíco, algum 30 já se pode falar de um consenso internacional em desenvol-
grau de envolvimento direto e conversação, e fregientemente vimento: as abstrações antropológicas, para serem válidas, deviam
um “desarranjo” das expectativas pessoais e culturais. É claro estar baseadas, sempre que possível, em descrições culturais
que há um mito do trabalho de campo. A experiência real, cer- intensivas feitas por acadêmicos qualificados. Neste momento, o
cada como é pelas contingências, raramente sobrevive a esse novo estilo havia se tornado popular, sendo institucionalizado e
ideal; mas como meio de produzir conhecimento a partir de um materializado em práticas textuais específicas.
intenso envolvimento intersubjetivo, a prática da etnografia Recentemente, tornou-se possível identificar e assumir uma .
mantém um certo status exemplar. Além disso, se o trabalho de certa distância em relação a essas convenções." Se a etnografia.
campo foi durante algum tempo identificado com uma discipli- produz interpretações culturais através de intensas experiências
na singularmente ocidental e uma ciência totalizante, a “Antro- de pesquisa, como uma experiência incontrolável se transforma
pologia”, tais associações não são necessariamente perma- num relato escrito e legítimo? Como, exatamente, um encontro ”

nentes. Os atuais estilos de descrição cultural são historicamente intercultural loquaz e sobredeterminado, atravessado por relações
limitados e estão vivendo importantes metamorfoses. de poder e propósitos pessoais, pode ser circunscrito a uma versão
adequada de um “outro mundo” mais ou menos diferenciado,
O desenvolvimento da ciência etnográfica não pode, em
composta por um autor individual?
última análise, ser compreendido em separado de um debate
Analisando esta complexa transformação, deve-se ter em
político-epistemológico mais geral sobre a escrita e a representação
mente o fato de que a etnografia está, do começo ao fim, imersa
da alteridade. Nesta discussão, porém, mantive o foco na antro-
na escrita. Esta escrita incluí, no mínimo, uma tradução da,
pologia profissional, e especificamente na etnografia a partir da.
experiência para a forma textual. O processo é complicado Tela
década de 50 A atual crise - ou melhor, dispersão — da autoridade
ação de múltiplas subjetividades e constrangimentos políticos que
etnográfica torna possível marcar em linhas gerais um período,
nova
estão acima do controle do escritor. Em resposta a estas forças, a
limitado pelos anos de 1900 e 1960, durante o qual uma
escrita etnográfica encena uma estratégia específica de autoridade.
concepção de pesquisa de campo se estabeleceu como a norma
Essa estratégia tem classicamente envolvido uma afirmação, não
para a antropologia americana e européia. O trabalho de campo
questionada, no sentido de aparecer como a provedora da verdade

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A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

lembrar nesse sentido seus ataques à competência de seus com-


no texto. Uma complexa experiência cultural é enunciada por um
petidores no campo. Por exemplo, o magistrado colonial Alex
indivíduo: We the Tkopia, de Raymond Firth; Nous avons mangé
la forêt, de Georges Condominas; Coming of age in Samoa, de
Rentoul, que teve a temeridade de contradizer as descobertas da
ciência sobre as concepções trobriandesas de paternidade, foi
Margaret Mead; Os nuer, de E. E. Evans-Pritchard.
excomungado nas páginas da revista Man, por sua perspectiva
A discussão que se segue localiza, em primeiro lugar, esta
não- profissional, judiciária (police court perspective) (ver
autoridade historicamente, dentro do desenvolvimento de uma
Rentoul, 1931a,b; Malinowski, 1932). O ataque ao amadorismo
ciência da observação participante no século XX. A seguir, ela
no campo foi levado ainda mais longe por A. R. Radcliffe-Brown,
elabora uma crítica das suposições subjacentes a esta autoridade e
que, como lan Langham mostrou, passou a tipificar o profissional
uma resenha de práticas textuais emergentes. Estratégias alterna-
da ciência, descobrindo rigorosas leis sociais (Langham, 1981:
tivas de autoridade etnográfica podem ser visualizadas em recentes
cap. 7). O que emergiu durante a primeira metade do século XX
experiências feitas por etnógrafos que conscientemente rejeitam
com o sucesso do pesquisador de campo profissional foi uma nova
cenas de representação cultural ao estilo do frontispício do livro
fusão de teoria geral com pesquisa empírica, de análise cultural
de Malinowski. Diferentes versões seculares daquela repleta ofi-
com descrição etnográfica.
cina de escrita de Lafitau estão surgindo. Nos novos paradigmas
de autoridade o escritor não está mais fascinado por personagens O teórico-pesquisador de campo substituiu uma divisão mais
transcendentes — uma deidade hebraico-cristã, ou seus substitutos antiga entre o “man on the spot” (nas palavras de James Frazer) e
no século XX, o Homem e a Cultura. Nada permaneceu daquele o sociólogo ou antropólogo na metrópole. Esta divisão de trabalho
quadro celestial, a não ser a imagem desbotada do antropólogo variava em diferentes tradições nacionais. Nos Estados Unidos,
num espelho. O silêncio da oficina etnográfica foi quebrado — por exemplo, Morgan tinha conhecimento pessoal de ao menos
por insistentes vozes heteroglotas e pelo ruído da escrita de algumas das culturas que serviram como material para suas sínteses
“outras penas. sociológicas; e Boas foi pioneiro em fazer o trabalho de campo in-
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tensivo condição sine qua non de um discurso antropológico sério.
Em termos gerais, no entanto, antes de Malinowski, Radcliffe-
Ao fim do século XIX, nada garantia, a priori, o status do Brown e Mead terem estabelecido com sucesso a norma do scholar,
etnógrafo como o melhor intérprete da vida nativa — em oposição treinado na universidade, testando e fazendo teoria a partir de
ao viajante, e especialmente ao missionário e ao administrador, pesquisa de primeira mão, prevalecia uma economia bem diferente
alguns dos quais haviam estado no campo por muito mais tempo e do conhecimento etnográfico. Por exemplo, The melanesians
possuíam melhores contatos e mais habilidade na língua nativa. O (1891), de R. H. Codrington, é uma detalhada compilação de
desenvolvimento da imagem do pesquisador de campo na América, folclore e costumes, elaborada a partir de um período relativamente
de Frank Hamilton Cushing (um excêntrico) a Margaret Mead (uma longo de pesquisa como missionário e baseada em colaboração
figura nacional), é significativo. Durante este período, uma forma intensiva de tradutores e informantes nativos. O livro não está
particular de autoridade era criada — uma autoridade cientificamente organizado em torno de uma “experiência” de trabalho de campo,
validada, ao mesmo tempo que baseada numa singular experiência nem propõe uma hipótese interpretativa unificada, funcional,
pessoal. Durante a década de 20, Malinowski desempenhou um histórica ou quaisquer outras. Ele se limita a generalizações de
papel central na legitimação do pesquisador de campo, e devemos pequeno alcance e à compilação de um eclético conjunto de

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

informações. Codrington está agudamente consciente da cientistas naturais treinados na academia, definindo-se
incompletude de seu conhecimento, acreditando que a verdadeira a si mesmos como antropólogos, e envolvidos também
compreensão da vida nativa começa apenas depois de uma década, na formulação e na avaliação da teoria antropológica.
ou algo assim, de experiência e estudo (p. vi-vii). Esta compreensão (1983:74)
da dificuldade de se captar o mundo de outros povos — os muitos
anos de aprendizado e desaprendizado necessários, os problemas Com o pioneiro survey de Boas e a emergência, na década
para se adquirir uma competência lingiística suficientemente boa de 1890, de outros pesquisadores de campo que eram cientistas
— tendia a dominar os trabalhos da geração de Codrington. Tais naturais, como A. C. Haddon e Baldwin Spencer, o movimento em
suposições seriam em breve desafiadas pelo confiante relativismo direção à etnografia profissional estava a caminho. A expedição
cultural do modelo malinowskiano. Os novos pesquisadores de de 1899 ao estreito de Torres pode ser encarada como a culminância
campo se distinguiam nitidamente dos anteriores “men on the spo?” do trabalho desta “geração intermediária”, como Stocking a
— o missionário, o administrador, o comerciante e o viajante — cujo chamou. O novo estilo de pesquisa era claramente diferente daquele
conhecimento dos povos indígenas, argumentavam, não estava dos missionários e outros amadores no campo, e parte de uma
informado pelas melhores hipóteses científicas ou por uma suficiente tendência geral que vinha desde Tylor, de “elaborar de modo mais
neutralidade. articulado os componentes empíricos e teóricos da pesquisa
Antes do surgimento da etnografia profissional, escritores antropológica” (1983:72).
como J. F. McLennan, John Lubbock e E. B. Tylor haviam tentado No entanto, o estabelecimento da observação participante
controlar a qualidade dos relatos sobre os quais estavam baseadas intensiva como uma norma profissional teria de esperar as hostes
suas sínteses antropológicas. Eles o fizeram por meio do roteiro do malinowskianas. A “geração intermediária” de etnógrafos não vivia
Notes and queries, e, no caso de Tylor, através do cultivo de relações tipicamente num só local por um ano ou mais, dominando a língua
de trabalho prolongadas com pesquisadores sofisticados no campo, nativa e sofrendo uma experiência de aprendizado pessoal
tais como o missionário Lorimer Fison. Após 1883, como recém- comparável a uma iniciação. Eles não falavam como se fizessem
nomeado professor conferencista de Antropologia em Oxford, Tylor parte daquela cultura, mas mantinham a atitude documentária,
estimulou a coleta sistemática de dados etnográficos por profíssio- observadora, de um cientista natural. A principal exceção antes
nais qualificados. O United States Bureau of Ethnology, já devota- da terceira década do século XX, Frank Hamilton Cushing,
do a essa tarefa, forneceu um modelo. Tylor participou ativamente permaneceu um exemplo isolado. Como Curtis Hinsley sugeriu,
da fundação de um comitê sobre as tribos do noroeste do Canadá. a longa pesquisa de primeira mão sobre os zunis, realizada por
O primeiro agente do comitê na área foi E. F. Wilson, o veterano Cushing, sua quase absorção pelo modo de vida dos nativos,
missionário, com 19 anos de experiência entre os ojibwa. Ele foi “despertou problemas de verificação e explicação... Uma comu-
logo substituído por Boas, um físico em processo de mudança nidade de antropologia científica nos moldes das outras ciências
para a etnografia profissional. George Stocking argumentou, de requeria o uso de uma linguagem comum de discurso, canais de
forma convincente, que a substituição de Wilson por Boas comunicação regular, e pelo menos um consenso mínimo para
julgar um método” (1983:66). O conhecimento intuitivo e exces-
marca o início de uma importante fase no desenvolvimento sivamente pessoal de Cushing, a respeito dos zuni, não podia
do método etnográfico britânico: a coleta de dados por oferecer autoridade científica.

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

Em termos esquemáticos, antes do final do século XIX, o experiência dos nativos [pudesse] se tornar também a experiência
etnógrafo e o antropólogo, aquele que descrevia e traduzia os do leitor” (Stocking, 1983:106; ver também Payne, 1981). Os
costumes e aquele que era o construtor de teorias gerais sobre a problemas de verificação e explicação que haviam relegado
“humanidade, eram personagens distintos. (Uma percepção clara Cushing à margem da vida profissional rondavam as preocupações
“datensão entre etnografia e antropologia é importante para que se de Malinowski. Esta ansiedade se reflete na massa de dados contida
perceba corretamente a união recente; e talvez temporária, dos dois em Os argonautas, suas 66 ilustrações fotográficas, e a agora
projetos). Malinowski nos dá a imagem do novo “antropólogo”: curiosa “Lista cronológica dos eventos kula testemunhados pelo
acocorando-se junto à fogueira; olhando, ouvindo e perguntando; autor”, a constante alternância entre a descrição impessoal do
registrando e interpretando a vida trobriandesa. O estatuto literário comportamento típico e declarações do gênero “eu testemunhei...”
desta nova autoridade está no primeiro capítulo de Os argonautas, e “Nosso grupo, navegando a partir do norte...”.
com suas fotografias, ostensivamente dispostas, da tenda do
Os argonautas são uma complexa narrativa, simul-,
etnógrafo, armada entre as casas da aldeia de Kiriwina. A mais
taneamente sobre a vida trobriandesa e sobre o trabalho de campo |
aguda justificação metodológica para o novo modelo é encontrada
etnográfico. Ela é arquetípica do conjunto de etnografias que com
no Andaman islanders de Radeliffe-Brown (1922). Os dois livros
sucesso estabeleceu a validade científica da observação par-
foram publicados com a diferença de ym ano de um para outro. E
ticipante. A história da pesquisa construída em Os argonautas,
embora seus autores desenvolvam estilos de trabalho de campo e
no popular trabalho de Mead sobre Samoa e em We the Tikopia,
visões sobre a ciência cultural bem diferentes, ambos os textos
tornou-se uma narrativa implícita subjacente a todos os relatos
fommecem argumentos explícitos para a autoridade especial do
antropólogo-etnógrafo. profissionais sobre mundos exóticos. Se as etnografias subse-
quentes não precisavam incluir relatos de campo desenvolvidos,
Malinowski, como mostram suas notas para a crucial
foi porque tais relatos eram supostos, a partir de uma declaração
Introdução de Os argonautas, estava muito preocupado com o
inicial tal como, por exemplo, a simples frase de Godfrey
problema retórico de convencer seus leitores de que os fatos que
Leenhardt no início de Divinity and experience (1961 :vii): “Este
estava colocando diante deles eram objetivamente adquiridos, não
livro é baseado num trabalho de dois anos entre os dinka, no
criações subjetivas (Stocking, 1983:105). Além disso, ele estava
período entre 1947 e 1950”.
totalmente ciente de que “na etnografia, é frequentemente imensa
a distância entre a apresentação final dos resultados da pesquisa e Na década de 20, o novo teórico-pesquisador de campo
o material bruto das informações coletadas pelo pesquisador desenvolveu um novo e poderoso gênero científico e literário, a
através de suas próprias observações, das asserções dos nativos, etnografia, uma descrição cultural sintética baseada na observação
do caleidoscópio da vida tribal” (Malinowski, 1922:3-4). Stocking participante (Thornton, 1983). O novo estilo de representação
analisou de forma elegante os vários artifícios literários de Os dependia de inovações institucionais e metodológicas que con-
argonautas (suas construções narrativas envolventes, o uso da tornavam os obstáculos a um rápido conhecimento sobre outras
voz ativa no “presente etnográfico”, as dramatizações encenadas culturas que haviam preocupado os melhores representantes da
da participação do autor em cenas da vida trobriandesa), técnicas geração de Codrington. Essas inovações podem ser brevemente
que Malinowski usou para que “sua própria experiência quanto à resumidas.

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

Primeiro, a persona do pesquisador de campo foi legitimada, de Mead em relação ao “uso” da língua era amplamente
tanto pública quanto profissionalmente. No domínio popular, característica de uma geração etnográfica que podia, por exemplo,
figuras de proa, tais como Malinowski, Mead e Marcel Griaule, reconhecer como legítimo um estudo intitulado Os nuer, que era
transmitiram uma visão da etnografia como cientificamente baseado em apenas onze meses de difícil pesquisa. O artigo de
rigorosa ao mesmo tempo que heróica. O etnógrafo profissional Mead provocou uma aguda resposta de Robert Lowie (1940), que
era treinado nas mais modernas técnicas analíticas e modos de escrevia a partir da primeira tradição boasiana, mais filológica
explicação científica. Isto lhe conferia, no campo, uma vantagem em sua orientação. Mas sua ação era de retaguarda; de forma geral,
sobre os amadores: o profissional podia afirmar ter acesso ao cerne já havia consenso quanto ao ponto segundo o qual uma pesquisa
de uma cultura mais rapidamente, entendendo suas instituições e legítima poderia na prática ser realizada com base em um ou dois
estruturas essenciais. Uma atitude prescrita de relativismo cultural anos de familiaridade com uma língua estrangeira (muito embora,
distinguia o pesquisador de campo de missionários, adminis- como Lowie sugeria, ninguém daria crédito a uma tradução de
tradores e outros, cuja visão sobre os nativos era, presumivelmente, Proust que fosse baseada num conhecimento equivalente do
menos imparcial, e que estavam preocupados com os problemas francês).
político-administrativos ou com a conversão. Além da sofisticação Terceiro, a nova etnografia era marcada por uma acentuada
científica e da simpatia relativista, uma variedade de padrões ênfase no poder de observação. A cultura era pensada como um
normativos para a nova forma de pesquisa surgiu: o pesquisador conjunto de comportamentos, cerimônias e gestos característicos
de campo deveria viver na aldeia nativa, usar a língua nativa, ficar passíveis de registro e explicação por um observador treinado. Mcad
um período de tempo suficiente (mas raramente especificado), frisou bem este ponto (na verdade, seus próprios poderes de análise
investigar certos temas clássicos, e assim por diante. visual eram extraordinários). Como uma tendência geral, o
Segundo, era tacitamente aceito que o etnógrafo de novo observador-participante emergiu como uma norma de pesquisa. -
estilo, cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos, e Por certo o trabalho de campo bem-sucedido mobilizava a mais
mais frequentemente era bem mais curta, podia eficientemente completa variedade de interações, mas uma distinta primazia era
“usar” as línguas nativas mesmo sem dominá-las. Num signifi- dada ao visual: a interpretação dependia da descrição. Após
cativo artigo de 1939, Margaret Mead argumentava que o etnó- Malinowski, uma suspeita generalizada em relação aos “infor-
grafo, seguindo a prescrição de Malinowski de evitar os intérpretes mantes privilegiados” refletia esta preferência sistemática pelas
e conduzindo a pesquisa na língua nativa, na verdade não precisava observações (metódicas) do etnógrafo em detrimento das inter-
demonstrar fluência nessa língua, mas podia “usá-la” apenas para pretações (interessadas) das autoridades nativas.
fazer perguntas, manter contato e de forma geral participar da Quarto, algumas poderosas abstrações teóricas prometiam
outra cultura, enquanto obtinha bons resultados de pesquisa em auxiliar os etnógrafos acadêmicos a “chegar ao cerne” de uma
áreas particulares de concentração. Isto com efeito justificava a cultura mais rapidamente do que alguém, por exemplo, que
própria prática de Margaret Mead, que se realizava a partir empreendesse um inventário exaustivo de costumes e crenças. Sem
de estadias relativamente curtas e com um foco em domínios levar anos para conhecer os nativos, seus complexos hábitos e
específicos, tais como “infância” ou “personalidade”, focos estes língua, em íntimos detalhes, o pesquisador podia ir atrás de dados
que funcionariam como “tipos” para uma síntese cultural. À atitude selecionados que permitiriam a construção de um arcabouço central,

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

ou “estrutura”, do todo cultural. O “método genealógico” de


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Rivers, seguido pelo modelo de Radcliffe-Brown baseado na noção
de “estrutura social”, fornecia essa espécie de atalho. Era como Estas inovações serviram para validar uma etnografia
se alguém pudesse deduzir os termos de parentesco sem uma eficiente, baseada na observação participante científica. Seus
profunda compreensão da língua nativa e o necessário conhe- efeitos combinados podem ser vistos claramente no que pode ser
cimento contextual convenientemente limitado. considerado o tour de force da nova etnografia, Os nuer de Evans-
Quinto, uma vez que a cultura, vista como um todo com- Pritchard, publicado em 1940. Baseado em onze meses de pesquisa
plexo, estava sempre além do alcance numa pesquisa de curta realizada em condições quase impossíveis, Evans-Pritchard foi
duração, o novo etnógrafo pretendia focalizar tematicamente todavia capaz de compor um clássico. Ele chegou, como a notável
algumas instituições específicas. O objetivo não era contribuir introdução do livro nos informa, ao território nuer logo após uma
para um completo inventário ou descrição de costumes, mas sim expedição militar punitiva, respondendo a uma solicitação urgente
chegar ao todo através de uma ou mais de suas partes. Já mencionei do governo do Sudão anglo-egípcio, e foi o objeto de intensa e
o privilégio que se deu, por um certo tempo, à estrutura social. constante suspeição. Apenas nos poucos meses finais pôde
Um ciclo de vida individual, um complexo ritual como o circuito conversar efetivamente com os informantes que, conta ele, eram
do kula ou a cerimônia do naven poderiam também servir, assim mestres em esquivar-se de suas perguntas. Em tais circunstâncias,
como categorias de comportamento tais como economia, política, sua monografia é uma espécie de milagre.
e assim por diante. Na retórica da nova etnografia, predominan- Ao fazer proposições limitadas e sem fazer segredo das
temente fundada na sinédoque, as partes eram concebidas como dificuldades de sua pesquisa, Evans-Pritchard conseguiu apresentar
microcosmos ou analogias do todo. Na representação de um seu estudo como uma demonstração da eficácia da teoria. Ele
universo coerente, o cenário composto por instituições em primeiro focaliza a “estrutura” social e política dos nuer, analisada como
plano, situadas contra panos de fundo culturais, adequava-se a um conjunto abstrato de relações entre segmentos territoriais,
convenções literárias realistas. E linhagens, conjuntos etários e outros grupos mais fluidos. Este
Sexto, os todos assim representados tendiam a ser sin- conjunto analiticamente construído é representado contra um pano
crônicos, produtos de uma atividade de pesquisa de curta duração. de fundo “ecológico” composto por padrões migratórios, relações
O pesquisador de campo, operando de modo intensivo, poderia, com o gado, noções de tempo e espaço. Evans-Pritchard distingue
de forma plausível, traçar o perfil do que se convencionou chamar claramente seu método daquilo que ele chama de documentação
“presente etnográfico” — o ciclo de um ano, uma série de rituais, “fortuita” (malinowskiana). Os nuer não é um extenso compêndio
padrões de comportamento típico. Introduzir uma pesquisa de observações e textos em língua nativa ao estilo do Os argo-
histórica de longa duração teria complicado e tornado impos- nautas e do Coral gardens de Malinowski. Evans-Pritchard
- sívela tarefa do novo estilo de trabalho de campo. Assim, quando argumenta com rigor que “os fatos só podem ser selecionados e
>, Malinowski e Radcliffe-Brown estabeleceram sua crítica à articulados à luz da teoria”. A singela abstração de uma estrutura
“história conjectural” dos difusionistas, foi muito fácil excluir os político-social oferece o necessário enquadramento. Se eu for
processos diacrônicos como objetos do trabalho de campo, com acusado de descrever fatos como exemplificações de minha teoria,
consegiiências que têm sido suficientemente apontadas. ele então assinala, terei sido compreendido (1969:261).

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

Em Os nuer, Evans-Pritchard defende abertamente o poder final, apresentada como a descrição direta de um acontecimento
da abstração científica para direcionar a pesquisa e articular dados típico (que o leitor agora assimila do ponto de vista do observador-
complexos. O livro frequentemente se apresenta mais como um participante), evoca a cena por meio das metáforas nuer sobre
. argumento do que como uma descrição, mas não consistentemente: gado. Nas oito frases do parágrafo, um argumento sobre tradução
seu argumento teórico é cercado por evocações e interpretações transforma-se numa ficção de participação e em seguida numa
habilmente narradas e observadas sobre a vida dos nuer. Estas fusão metafórica de descrições culturais estrangeiras e nativas.
passagens funcionam retoricamente como mais do que apenas Realiza-se, assim, a união subjetiva de análise abstrata com
“exemplificações”, pois efetivamente envolvem o leitor na complexa experiência concreta. ”

subjetividade da observação participante. Isto pode ser visualizado Evans-Pritchard depois se afastaria da posição teórica
num parágrafo característico, que se desenvolve através de uma assumida em Os nuer, rejeitando sua defesa da “estrutura social”
série de posições discursivas descontínuas: como um enquadramento privilegiado. Na verdade, cada um dos .
“atalhos” do trabalho de campo que enumerei anteriormente era e
É difícil encontrar, em inglês, uma palavra que descreva E
continua sendo contestado. Ainda que, através de sua disposição
adequadamente a posição social dos die! numa tribo.
em diferentes combinações, a autoridade do teórico-pesquisador
Chamamo-nos aristocratas, mas não pretendemos dizer
que os nuer os consideram como de grau superior pois, de campo acadêmico tenha sido estabelecida entre os anos de 1920
como ressaltamos enfaticamente, a idéia de alguém e 1950. Esse amálgama peculiar de experiência pessoal intensa e
predominando sobre os demais lhes repugna. No conjunto análise científica (entendida nesse período tanto como “rito de
— explicaremos esta colocação mais adiante — os die! têm passagem” quanto como “laboratório”) emergiu como um método:
mais prestígio do que posição, e mais influência do que a observação participante. Ainda que entendido de formas variadas,
poder. Se você é um diel da tribo em que vive, você é e agora questionado em muitos lugares, esse método continua
mais do que um membro da tribo. É um dos donos da representando o principal traço distintivo da antropologia profis-
região, do terreno da aldeia, dos pastos, dos reservatórios
sional. Sua complexa subjetividade é rotineiramente reproduzida
de pesca e dos poços. Outras pessoas vivem ali em virtude
na escrita e na leitura das etnografias.
de casamentos feitos com membros de seu clã, da adoção
pela sua linhagem ou algum outro laço social. Você é um 4499
líder da tribo, e o nome-de-lança de seu clã é invocado
quando a tribo entra em guerra. Sempre que há um diel A observação participante serve como uma fórmula para
numa aldeia, esta se agrupa a seu redor assim como o
o contínuo vaivém entre o “interior” e o “exterior” dos aconteci-
gado se agrupa ao redor de seu touro.”
mentos: de um lado, captando o sentido de ocorrências e gestos
As primeiras três frases são apresentadas como um argu- específicos, através da empatia; de outro, dá um passo atrás, para
mento sobre tradução, mas de passagem elas atribuem aos nuer situar esses significados em contextos mais amplos. Aconteci-
um conjunto estável de atitudes. (Mais adiante comentarei mais mentos singulares, assim, adquirem uma significação mais pro-
esse estilo de atribuição). Em seguida, nas quatro frases que funda ou mais geral, regras estruturais, e assim por diante. -
começam por “Se você é um diel...”, a construção na segunda Entendida de modo literal, a observação-participante é uma fór-
pessoa une o leitor e o nativo numa participação textual. A frase mula paradoxal e enganosa, mas pode ser considerada seriamente

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

se reformulada em termos hermenêuticos, como uma dialética entre


povo ou de um lugar. Esse requisito é frequentemente explícito
experiência e interpretação. Assim é como os mais recentes e
nos textos dos primeiros observadores-participantes profissionais.
persuasivos defensores do método o reelaboraram, na tradição
A suposição de Margaret Mead de poder captar o princípio ou
que vem de Wihelm Dilthey, passa por Max Weber e chega até os
ethos subjacente a uma cultura através de uma sensibilidade
antropólogos dos “símbolos e dos significados”, como Clifford
aguçada à forma, tom, gesto e estilos de comportamento, e a ênfase -
Geertz. Experiência e interpretação têm recebido, no entanto,
de Malinowski em sua vida na aldeia e a compreensão derivada
ênfases diferentes quando apresentadas como estratégias de
dos “imponderáveis da vida real” são exemplos destacados. Muitas
autoridade. Em anos recentes, tem havido um notável desloca-
etnografias — por exemplo, a de Colin Turnbull, Forest people
mento de ênfase do primeiro para o segundo termo. Este e os
(1962) — ainda são apresentadas no modo experiencial, de-
próximos segmentos do texto vão explorar os diferentes usos da
fendendo, anteriormente a qualquer hipótese de pesquisa ou
experiência e da interpretação assim como o desdobramento de
método específicos, o “eu estava lá” do etnógrafo como membro
sua inter-relação.
integrante e participante.
O crescente prestígio do teórico-pesquisador de campo
Certamente é difícil dizer muita coisa a respeito de “expe-
colocou em segundo plano (sem eliminá-la) uma série de processos
riência”, Assim como “intuição”, ela é algo que alguém tem ou
e mediadores que haviam figurado de modo mais destacado nos
não tem, e sua invocação frequentemente cheira a mistificação.
métodos anteriores. Vimos como o domínio da língua foi definido
Todavia, pode-se resistir à tentação de transformar toda experiência
como um nível de uso adequado para reunir um conjunto pequeno
significativa em interpretação. Embora as duas estejam recipro-
de dados num limitado período de tempo. As tarefas da transcrição
camente relacionadas, não são idênticas. Faz sentido mantê-las
textual e da tradução, junto com o papel dialógico crucial de
separadas, quanto mais não seja porque apelos à experiência muitas
intérpretes e “informantes privilegiados”, foram relegadas a um
vezes funcionam como validações para a autoridade etnográfica.
status secundário, ou mesmo desprezadas. O trabalho de campo
estava centrado na experiência do scholar que observava- O argumento mais sério sobre o papel da experiência nas
ciências históricas e culturais está contido na noção geral de
participava. Uma nítida imagem, ou narrativa, surgiu — a de um
Verstehen.” Na influente visão de Dilthey (1914), o ato de com-
estranho entrando em uma cultura, sofrendo um tipo de iniciação
preender os outros inicialmente deriva do simples fato da coexis-
que levaria a um rapport (minimamente aceitação e empatia, mas
tência num mundo que é partilhado; mas esse mundo experiencial,
usualmente implicando algo próximo à amizade). A partir dessa
experiência emergia, de modos não especificados, um texto um terreno intersubjetivo para formas objetivas de conhecimento,
é precisamente o que falta, ou é problemático, para um etnógrafo
representacional, escrito pelo observador-participante. Como
ao penetrar uma cultura estrangeira. Assim, durante os primeiros
veremos, esta versão da produção textual obscurece tanto quanto
revela. Mas vale a pena considerar seriamente o seu pressuposto
meses no campo
(e na verdade durante toda a pesquisa), o que
acontece é um aprendizado da linguagem, em seu sentido mais
principal: o de que a experiência do pesquisador pode servir como
uma fonte unificadora da autoridade no campo. amplo. A “esfera comum” de Dilthey deve ser estabelecida e
restabelecida, a partir da construção de um mundo de experiên-
A. autoridade experiencial está baseada numa “sensibi-
cias partilhadas, em relação ao qual todos os “fatos”, “textos”,
lidade” para o contexto estrangeiro, uma espécie de conhecimento
“eventos” e suas interpretações serão construídos. Esse processo
tácito acumulado, e um sentido agudo em relação ao estilo de um
de se viver a entrada num universo expressivo estranhoé sempre
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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

subjetivo, por natureza, mas se torna rapidamente dependente do forma, o quadro, tão longe quanto pode ir, é totalmente
que Dilthey chama de “expressões permanentemente fixadas”, convincente para este resenhador, que admira sem reservas
formas estáveis às quais a compreensão pode sempre retornar. A a segurança dos insights e a eficiência do traço da autora
* exegese dessas formas fornece o conteúdo de todo conhecimento na descrição. (p. 248)
“sistemático histórico-cultural. Assim, a experiência está
Uma formulação diferente é fornecida por Maurice
intimamente ligada à interpretação. (Dilthey está entre os primeiros
Leenhardt em Do Kamo: la personne et le mythe dans le monde
teóricos modernos a comparar a compreensão de formas culturais
mélanésien (1937), um livro que, em seu por vezes enigmático
com a leitura de “textos”). Mas esse tipo de leitura ou exegese
modo de exposição, requer de seus leitores justamente o tipo de
não pode ocorrer sem uma intensa participação pessoal, um ativo
percepção estética e gestáltica, na qual distinguiam-se tanto
“sentir-se em casa” num universo comum.
Mead quanto Leenhardt. O endosso de Leenhardt a esse tipo de
Seguindo os passos de Dilthey, a “experiência” etnográfica
abordagem é significativo, uma vez que, dada sua experiência de
pode ser encarada como a construção de um mundo comum de
campo extremamente longa, e seu profundo cultivo de uma língua
significados, a partir de estilos intuitivos de sentimento, percepção melanésia, seu método não pode ser visto como uma racionalização
e inferências. Essa atividade faz uso de pistas, traços, gestos e
para uma etnografia de curto prazo:
restos de sentido antes de desenvolver interpretações estáveis. Tais
formas fragmentárias de experiência podem ser classificadas como Na verdade, nosso contato com o outro não é realizado
estéticas e/ou divinatórias. Há espaço aqui para apenas algumas através da análise. Antes, nós o apreendemos como um
palavras sobre tais estilos de compreensão em sua relação com a todo. Desde o início, podemos esboçar nossa visão dele a
etnografia. Uma evocação de um modo estético é convenientemente > partir de um detalhe simbólico, ou de um perfil, que
fornecido por A. L. Kroeber, em uma resenha de 1931 do Growing contém um todo em si mesmo e evoca a verdadeira forma
up in New Guinea de Mead: de seu modo de ser. Esta última é o que nos escapa se
abordamos nosso próximo usando apenas as categorias
Primeiro de tudo, está claro que ela possui em grau elevado de nosso intelecto.
as faculdades de apreender rapidamente as principais
Outro modo de levar a sérioa experiência como fonte de
tendências que uma cultura impinge aos indivíduos, e de
conhecimento etnográfico é fornecido pelos estudos de Carlo
delineá-las em retratos compactos de incrível agudeza. O
resultado é uma representação de extraordinária Ginzburg (1990:143-180) sobre a complexa tradição das práticas
vivacidade e semelhança em relação à vida. Obviamente, de adivinhação. Sua pesquisa abrange desde as primeiras inter-
algo de um sensacionalismo intelectualizado, ainda que pretações feitas por caçadores a partir de rastros dos animais,
forte, subjaz a essa capacidade; também obviamente, há passando pelas formas mesopotâmicas de predição, pelo deci-
um alto grau de intuição, no sentido da habilidade de framento de sintomas na medicina hipocrática, pela atenção aos
“compor um quadro convincente a partir de pistas, pois detalhes na identificação de falsificação no mundo da arte, até
pistas são tudo o que alguns de seus dados podem ser, Freud, Sherlock Holmes e Proust. Estes estilos de adivinhação,
com apenas seis meses para aprender uma língua e
que não passam pela experiência do transe, apreendem relações
penetrar no interior de toda uma cultura, além da
circunstanciais específicas de significado e estão baseadas em
especialização em comportamento infantil. De qualquer
palpites, na leitura de indícios aparentemente disparatados e em

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

ocorrências casuais. Ginzburg propõe seu modelo de 1981). A interpretação, baseada num modelo filológico de “leitura”
“conhecimento conjectural” como um modo disciplinado de textual, surgiu como uma alternativa sofisticada às afirmações hoje
compreensão, não-generalizante e abdutivo, que é de importância aparentemente ingênuas de autoridade experiencial. A antro-
central para as ciências culturais, embora isso não seja pologia interpretativa desmistifica muito do que anteriormente
reconhecido. Esse modelo pode se somar a um estoque de recursos passara sem questionamento na construção de narrativas, tipos,
que na verdadeé bem modesto, e que serve para entender com observações e descrições etnográficas. Ela contribui para uma
mais precisão como alguém se sente ao penetrar numa situação crescente visibilidade dos processos criativos (e, num sentido
etnográfica não-familiar. amplo, poéticos) pelos quais objetos “culturais” são inventados e
Precisamente porque é difícil pinçá-la, a “experiência” tem tratados como significativos.
servido como uma eficaz garantia de autoridade etnográfica. Há, O que está suposto no ato de se olhar a cultura como um
sem dúvida, uma reveladora ambigiidade no termo. A experiência conjunto de textos a serem interpretados? Um estudo clássico é
evoca uma presença participativa, um contato sensível com o mundo fornecido por Paul Ricoeur, em seu ensaio The model of text:
a ser compreendido, uma relação de afinidade emocional com seu meaningful action considered as a text (1971). Clifford Geertz,
povo, uma concretude de percepção. A palavra também sugere um numa série de estimulantes e sutis discussões, adaptou a teoria de
conhecimento cumulativo, que vai se aprofundando (“sua Ricoeur ao trabalho de campo antropológico (1973:cap.1). A
experiência de dez anos na Nova Guiné”). Os sentidos se juntam “textualização” é entendida como um pré-requisito para a
para legitimar o sentimento ou a ERinAÇãO real, ainda que interpretação, a constituição das “expressões fixadas” de Dilthey.
inexprimível, do etnógrafo agespeito do “seu” povo. Éi importante Trata-se do processo através do qual o comportamento, a fala, as
notar, porém, que esse “mundo”, quando concebido como uma crenças, a tradição oral e o ritual não escritos vêm a ser marcados
criação da experiência, é subjetivo, não dialógico ou intersubjetivo. como um corpus, um conjunto potencialmente significativo,
O etnógrafo acumula conhecimento pessoal sobre o campo (a forma separado de uma situação discursiva ou “performativa” imediata.
possessiva “meu povo” foi até recentemente bastante usada nos No momento da textualização, este corpus significativo assume
círculos antropológicos, mas a frase na verdade significa “minha uma relação mais ou menos estável com um contexto; e já
experiência”). conhecemos o resultado final desse processo em muito do que é
considerado como uma descrição etnográfica densa. Por exemplo,
994
dizemos que uma certa instituição ou segmento de comportamento
são típicos de, ou um elemento comunicativo em, uma cultura
É compreensível, dado seu caráter vago, que o critério
circundante, como a famosa briga de galos de Geertz (1973:cap.
experiencial da autoridade — crenças não problematizadas no
“método” da observação participante, no poder das relações de 15), que se torna um locus intensamente significativo da cultura
afinidade emocional, da empatia, etc. — tenha sido submetido a balinesa. São criadas áreas de sinédoques nas quais partes são
críticas por antropólogos hermeneuticamente sofisticados. O relacionadas a todos, e através das quais o todo — que usualmente
segundo momento na dialética entre experiência e intepretação tem chamamos de cultura — é constituído.
recebido atenção e elaboração crescentes (ver, por exemplo, Geertz, Ricoeur na verdade não privilegia as relações entre parte e
1973, 1976; Rabinow e Sullivan, 1979; Winner, 1976; Sperber, todo nem as formas específicas de analogia que constituem as

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

representações funcionalistas ou realistas. Ele simplesmente texto, diferentemente do discurso, pode viajar. Se muito da escrita
propõe uma relação necessária entre o texto e o “mundo”. Um etnográfica é produzido no campo, a real elaboração de uma
mundo não pode ser apreendido diretamente; ele é sempre inferido etnografia é feita em outro lugar. Os dados constituídos em con-
. a partir de suas partes, e as partes devem ser separadas conceitual dições discursivas, dialógicas, são apropriados apenas através de
e perceptualmente do fluxo da experiência. Desse modo, a formas textualizadas. Os eventos e os encontros da pesquisa se
textualização
gera sentido através de um movimento circular que tornam anotações de campo. As experiências tornam-se narrativas,
isola e depois contextualiza um fato ou evento em sua realidade ocorrências significativas ou exemplos.
englobante. Um modo familiar de autoridade é gerado a partir da Esta tradução da experiência da pesquisa num corpus textual
afirmação de que se estão representando mundos diferentes e separado de suas ocasiões discursivas de produção tem importantes
significativos. A etnografia é a interpretação das culturas. consegiiências para a autoridade etnográfica. Os dados assim
Um segundo passo fundamental na análise de Ricoeur é reformulados não precisam mais ser entendidos como a comu-
seu estudo do processo pelo qual o “discurso” se torna texto. O nicação de pessoas específicas. Uma explicação ou descrição de
discurso, na clássica discussão de Emile Benveniste (1971:217- um costume por um informante não precisa ser construída de uma
230), é um modo de comunicação no qual são intrínsecas as forma que inclua a mensagem “fulano e fulano disseram isso”.
presenças do sujeito que fala e da situação imediata da comu- Um ritual ou um evento textualizados não estão mais intimamente
«nicação. O discurso é marcado pelos pronomes (explícitos ou ligados à produção daquele evento por atores específicos. Em vez
implícitos) eu e você, e pelos dêiticos — este, aquele, agora, etc. — disso, estes textos se tornam evidências de um contexto englobante,
que assinalam o momento presente do discurso, ao invés de algo uma realidade “cultural”. Além disso, como os autores e atores -
além dele. O discurso não transcende a ocasião específica na qual específicos são separados de suas produções, um “autor” gene-
um sujeito se apropria dos recursos da linguagem para se ralizado deve ser inventado, para dar conta do mundo ou con-
comunicar dialogicamente. Ricoeur argumenta que o discurso não texto dentro do qual os textos são ficcionalmente realocados.
pode ser interpretado do modo aberto e potencialmente público Este “autor generalizado” aparece sob uma variedade de nomes:
Z
|. como um texto é “lido”. Para entender o discurso, “você tem de o ponto de vista nativo, “os trobriandeses”, “os nuer”, “os dogon”,
ter estado lá”, na presença do sujeito. Para o discurso se tornar como estas e outras expressões similares aparecem nas etnografias.
texto, ele deve se transformar em algo “autônomo”, nos termos “Os balineses” funcionam como os “autores” da briga de galos
de Ricoeur, separado de uma locução específica e de uma intenção textualizada por Geertz.
autoral. À interpretação não é uma interlocução. Ela não depende O etnógrafo, portanto, usufrui de uma relação especial com
-de estar na presença de alguém que fala. uma origem cultural ou um “sujeito absoluto” (Michel-Jones,
A relevância desta distinção para a etnografia é talvez óbvia 1978:14). É tentador comparar o etnógrafo com o intérprete literário
demais. Em última análise, o etnógrafo sempre vai embora, levando (e esta comparação é cada vez mais um lugar-comum) — mas mais
com ele textos para posterior interpretação (e entre estes “textos” especificamente com o crítico tradicional, que encara como sua a
que são levados podemos incluir as memórias — eventos padro- tarefa de organizar os significados não controlados em um texto
nizados, simplificados, retirados do contexto imediato para serem numa única intenção coerente. Ao representar os nuer, os trobrian-
interpretados numa reconstrução e num retrato posteriores). O deses ou os balineses como sujeitos totais, fontes de uma intenção

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SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

cheia de significados, o etnógrafo transforma as ambigiiidades e é paradigmático. Aqui ele faz uso de uma convenção estabelecida
diversidades de significado da situação de pesquisa num retrato para encenar a realização da autoridade etnográfica. Como
integrado. É importante, porém, assinalar o que foi deixado de resultado, raramente ficamos cientes do fato de que uma parte
lado. O processo de pesquisa é separado dos textos que ele gera e essencial da construção da briga de galos como texto é dialógica
do mundo fictício que lhes cabe evocar. A realidade das situações — a conversa do autor cara a cara com balineses específicos, e não
discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada. Mas os a leitura da cultura “por cima de seus ombros” (1973:452).
informantes — juntamente com as notas de campo — são
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intermediários cruciais, são tipicamente excluídos de etnografias
legítimas. Os aspectos dialógicos, situacionais, da interpretação A antropologia interpretativa, ao ver as culturas como
etnográfica tendem a ser banidos do texto representativo final. Não conjuntos de textos, frouxa e, por vezes, contraditoriamente unidos,
inteiramente banidos, claro; existem aítopoi aprovados para traçar e ao ressaltar a inventiva poética em funcionamento em toda
o retrato do processo de pesquisa. representação coletiva, contribuiu significativamente para o
Estamos cada vez mais familiarizados com o relato do estranhamento da autoridade etnográfica. Em seus principais
trabalho de campo feito em separado (um subgênero que ainda aspectos realistas, porém, não escapa aos limites gerais apontados
tende a ser classificado como subjetivo, “leve”, ou não-científico), por aqueles críticos da representação “colonial” que, desde 1950,
mas mesmo nas etnografias clássicas, “fábulas do contato” mais têm rejeitado discursos que retratem as realidades culturais de outros
ou menos estereotípicas narram a realização do pleno status de povos sem colocar sua própria realidade em questão. Nas pioneiras
observador-participante. Essas fábulas podem ser contadas de críticas de Michel Leiris, e nas de Jacques Maquet, Talal Asad e
forma elaborada ou resumidamente, ingênua ou ironicamente. Elas muitos outros, a qualidade de não-reciprocidade da interpretação
normalmente retratam a inicial ignorância do etnógrafo, os mal- etnográfica tem sido questionada (Leiris, 1950; Maquet, 1964;
entendidos, a falta de contatos — frequentemente, um tipo de status Asad, 1973). Consegiientemente, nem a experiência nem a atividade
semelhante ao da criança numa cultura. No Bildungsgeschichte interpretativa do pesquisador científico podem ser consideradas
da etnografia, estes estados de inocência ou confusão são subs- inocentes. Torna-se necessário conceber a etnografia não como a
tituídos por um conhecimento adulto, confiante e desabusado. experiência e a interpretação de uma “outra” realidade circunscrita,
Podemos citar novamente a briga de galos de Geertz, em que uma mas sim como uma negociação construtiva envolvendo pelo menos
inicial alienação em relação aos balineses, um confuso status de dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente
“não-pessoa”, é transformada pela atraente fábula da batida policial significativos. Paradigmas de experiência e interpretação estão
e sua demonstração de cumplicidade (1978:278-283). A anedota dando lugar a paradigmas discursivos de diálogo e polifonia. Até o
estabelece um pressuposto de conexão, que permite ao escritor final deste artigo, vamos resenhar esses emergentes modos de
funcionar em sua análise subsequente como um exegeta e um porta- autoridade.
voz onipresente e sábio. Este intérprete situa o esporte ritual como Um modelo discursivo de prática etnográfica traz para o
um texto num mundo contextual e brilhantemente “18” seus centro da cena a intersubjetividade de toda fala, juntamente com
significados culturais. O abrupto desaparecimento de Geertz em seu contexto performativo imediato. O trabalho de Benveniste sobre
sua relação — a quase-invisibilidade da observação participante — o papel constitutivo dos pronomes pessoais e demonstrativos

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43
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

ressalta justamente estas dimensões. Todo uso do pronome eu


neutra no campo de poder dos posicionamentos discursivos, numa
pressupõe um você, e cada instância do discurso é imediatamente
cambiante matriz de relacionamentos de eus e vocês.
ligada a uma situação específica, compartilhada; assim, não há
Uma série de recentes trabalhos tem escolhido apresentar
nenhum significado discursivo sem interlocução e contexto. A
os processos discursivos da etnografia sob a forma de um diá-
* relevância desta ênfase para a etnografia é evidente. O trabalho de
logo entre dois indivíduos. O texto de Camille Lacoste-Dujardin,
campo é significativamente composto de eventos de linguagem;
Dialogue des femmes en ethnologie (1977), o de Jean-Paul Dumont,
mas a linguagem, nas palavras de Bakhtin, “repousa nas margens
The headman and I (1978) e o de Marjorie Shostak, Nisa: the life
entre o eu e o outro. Metade de uma palavra, na linguagem, pertence
and words of a !kung woman (1981), são exemplos dignos de nota.
“a outra pessoa”.O crítico russo propõe que se repense a linguagem
O modo dialógico é representado com considerável sofisticação
| em termos
de situações discursivas específicas: “Não há”, escreve
em dois outros textos. O primeiro, as reflexões teóricas de Kevin
ele, “nenhuma palavra ou forma “neutra” — palavras e formas que
Dwyer sobre a “diálogica da etnologia”, nasce de uma série de
podem não pertencer a “ninguém”; a linguagem é completamente
entrevistas com um informante-chave e justifica a decisão de
: tomada, atravessada por intenções e sotaques”. As palavras da
Dwyer de estruturar sua etnografia na forma de um registro
escrita etnográfica, portanto, não podem ser pensadas como
bastante literal desses intercâmbios (1977, 1979, 1982). O segundo
monológicas, como a legítima declaração sobre, ou a interpretação
trabalho, mais complexo, é o de Vicent Crapanzano, Tuhami:
de uma realidade abstraída e textualizada. A linguagem da
portrait of a Moroccan, outro relato de uma série de entrevistas
etnografia é atravessada por outras subjetividades e nuances
que rejeita qualquer separação nítida entre um eu que interpreta e
contextuais específicas, pois toda linguagem, na visão de Bakhtin,
um outro textualizado (1980; ver também 1977). Tanto Dwyer
é uma “concreta concepção heteroglota do mundo” (1953:293).
quanto Crapanzano colocam a etnografia num processo de diálogo
As formas da escrita etnográfica que se apresentam no modo em que os interlocutores negociam ativamente uma visão
“discursivo” tendem a estar mais preocupadas com a representação compartilhada da realidade. Crapanzano argumenta que esta mútua
dos contextos de pesquisa e situações de interlocução. Portanto, construção está presente em qualquer encontro etnográfico, mas
um livro como o de Paul Rabinow, Reflections on fieldwork in que os participantes tendem a supor que eles simplesmente
Morocco (1977), se preocupa com a representação de uma específica aquiesceram em relação à realidade do outro interlocutor. Assim,
situação de pesquisa (uma série de tempos e lugares limitadores) e por exemplo, o etnógrafo das Ilhas Trobriand não elabora
(de uma forma algo ficcional) de uma segiiência de interlocutores abertamente uma versão da realidade em colaboração com seus
individuais. Na verdade todo um novo subgênero de “relatos sobre informantes, mas sim interpreta o “ponto de vista trobriandês”.
o trabalho de campo” (do qual o de Rabinow é um dos mais Crapanzano e Dwyer oferecem tentativas sofisticadas de romper
vigorosos) pode ser situado dentro do paradigma discursivo da com esta convenção literário-hermenêutica. Nesse processo, a
escrita etnográfica. O texto de Jeanne Favret-Saada, Les mots, la autoridade do etnógrafo como narrador e intérprete é alterada..
mort, les sorts (1977), é uma experiência incisiva e autoconsciente Dwyer propõe uma hermenêutica da “vulnerabilidade”, frisando
' de etnografia num modo discursivo. Ela afirma que o evento da as lacunas do trabalho de campo, a posição dividida e o controle
interlocução sempre destina ao etnógrafo uma posição específica imperfeito por parte do etnógrafo. Tanto Crapanzano quanto
numa teia de relações intersubjetivas. Não há nenhuma posição Dwyer buscam representar a experiência da pesquisa de uma forma

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

que expõe a tessitura textualizada do outro, e assim também do eu 494


que interpreta? (Aqui as etimologias são evocativas: a palavra
texto está relacionada, como se sabe, com tecelagem, e vulne- Dizer que uma etnografia é composta de discursos e que
rabilidade, com entrega ou com ferimento, significando, nesta seus diferentes componentes estão relacionados dialogicamente
instância, a abertura de uma autoridade até então fechada). não significa dizer que sua forma textual deva ser a de um diálo go
O modelo do diálogo ressalta precisamente aqueles literal. Na verdade, como Crapanzano reconhece em Tuhami, um
elementos discursivos — circunstanciais e intersubjetivos — que terceiro participante, real ou imaginado, funciona como mediador
Ricoeur teve de excluir de seu modelo de texto. Mas se a autoridade em qualquer encontro entre dois indivíduos (1980:147-151). a
interpretativa está baseada na exclusão do diálogo, o reverso diálogo ficcional é de fato uma condensação, uma representação
também é verdadeiro: uma autoridade puramente dialógica simplificada de complexos processos multivocais. Uma maneira
reprimiria o fato inescapável da textualização. Enquanto as alternativa de representar essa complexidade discursiva é entender
etnografias articuladas como encontros entre dois indivíduos o curso geral da pesquisa como uma negociação em andamento. O
podem com sucesso dramatizar o dar-e-receber intersubjetivo do caso de Marcel Griaule e os dogon é bem conhecido e particu-
trabalho de campo e introduzem um contraponto de vozes autorais, larmente esclarecedor. O relato de Griaule sobre seu aprendizado
da sabedoria cosmológica dogon, Dieu d'eau (1948a), foi um
elas permanecem representações do diálogo. Como textos, elas
podem não ser dialógicas em sua estrutura, pois, como Steven pioneiro exercício de narração etnográfica dialógica. Para além
Tyler (1981) assinala, embora Sócrates apareça como um desta situação interlocutória específica, porém, um processo EI
participante descentrado em seus encontros, Platão retém o pleno complexo estava em funcionamento, pois é claro que o conteúdo
controle do diálogo. Este deslocamento, mas não eliminação, da e o gradual ajustamento da longa pesquisa feita pela equipe de
autoridade monológica é característico de qualquer abordagem Griaule, que durou décadas, foram monitorados de perto e mo-
que retrate o etnógrafo como um personagem distinto na narrativa delados de forma significativa pelas autoridades tribais dogon (ver
do trabalho de campo. Além disso, há uma fregiiente tendência, discussão aprofundada em “Poder e diálogo na enem a
nas ficções de diálogo, a apresentar o interlocutor do etnógrafo iniciação de Marcel Griaule” neste volume). Isto não é mais
como o representante, ou a representante, de sua cultura — um novidade. Muitos etnógrafos comentaram as formas, ao mesmo
tipo, na linguagem do realismo tradicional — através do qual os tempo sutis e notórias, pelas quais suas pesquisas foram dire-
processos sociais gerais são revelados.'? Tal retrato restabelece a cionadas ou circunscritas por seus informantes. Em sua provo-
autoridade interpretativa fundada na sinédoque, através da qual o cativa discussão deste tema, loan Lewis (1973) chegou a chamar
etnógrafo Iê o texto em relação ao contexto, constituindo, desse a antropologia de uma forma de “plágio”.
modo, um “outro” mundo significativo. Se é difícil, para O processo de dar-e-receber da etnografia é claramente
representações dialógicas, escapar de procedimentos tipificantes, retratado em um estudo de 1980, notável por sua apresentação,
elas podem, num grau considerável, resistir ao impulso de numa única obra, tanto de uma realidade “outra” interpretada
representar o outro -de forma autolegitimadora. Isto depende de quanto do próprio processo de pesquisa: !longot headhunting, de
sua habilidade ficcional em manter a estranheza da outra voz e de Renato Rosaldo. Rosaldo chega às terras altas das Filipinas
não perder de vista as contingências específicas do intercâmbio. pretendendo escrever um estudo sincrônico de estrutura social; mas
recorrentemente, apesar de suas objeções, ele é forçado a escutar

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

as narrativas intermináveis dos ilongot sobre a história local. Por diretamente sua nítida perspectiva de interpretação. Nos muitos
obrigação, sem prestar muita atenção, numa espécie de transe mitos e nos encantamentos a ele ditados, e que enchem seus livros,
entediado, ele transcreve estas histórias, enchendo cadernos e mais
publicou muitos dados que ele, assumidamente, não havia com-
cadernos com o que ele considera textos dispensáveis. Só depois preendido. O resultado foi um texto aberto sujeito a múltiplas
de deixar o campo, e após um longo processo de reinterpretação reinterpretações. É importante comparar tais velhos compêndios
(processo manifesto na etnografia), ele se dá conta de que aqueles com o recente modelo de etnografia, que cita as evidências para
obscuros relatos forneciam na verdade seu tema final: o sentido sustentar uma interpretação centrada num foco temático, mas que
culturalmente distinto de narrativa e história dos ilongot. A expe- não vai muito além disso.'” Na moderna e legítima monografia,
riência de Rosaldo do que pode ser chamado de “escrita dire- não há, na verdade, quaisquer vozes fortes presentes, a não ser a
cionada” propõe incisivamente uma questão fundamental: quem do escritor; mas em Os argonautas (1922) e em Coral gardens
é na verdade o autor das anotações feitas no campo? (1935) lemos página após página sobre encantamentos mágicos,
O assunto é sutil e merece um estudo sistemático. Mas Já nenhum deles, em essência, expresso pelas palavras do etnógrafo.
foi dito o bastante para se poder afirmar que o controle nativo Estes textos ditados foram em tudo o mais, com exceção de sua
sobre o conhecimento adquirido no campo pode ser considerável, inscrição física, escritos por específicos e anônimos trobriandeses.
e mesmo determinante. A escrita etnográfica atual está procurando Na verdade, qualquer exposição etnográfica contínua incluí roti-
novos meios de representar adequadamente a autoridade dos| neiramente em si mesma uma diversidade de descrições, transcri-
“informantes. Há poucos modelos em que se basear, mas é impor- ções e interpretações feitas por uma variedade de “autores” indí-
tante reconsiderar as antigas compilações textuais de Boas, genas. Como essas presenças autorais devem ser manifestas?
Malinowski, Leenhardt e outros. Nesses trabalhos, o gênero etno-
gráfico não havia ainda se cristalizado na moderna monografia 094%

interpretacional, intimamente identificada com uma experiência


Uma posição útil - ainda que extrema — é trazida pela análise
de campo pessoal. Podemos contemplar neles um modo etno-
de Bakhtin sobre o romance “polifônico”. Uma condição funda-
gráfico que não se legitimou ainda naqueles modos específicos
mental do gênero, ele argumenta, é que ele representa sujeitos
que estão agora política e epistemologicamente sendo ques-
falantes num campo de múltiplos discursos. O romance luta com,
tionados. Essas compilações mais antigas incluem muito, ou tudo,
e encena, a heteroglossia. Para Bakhtin, preocupado com a
do que na verdadeé escrito pelos informantes. Pode-se pensar
representação de todos não-homogêneos, não há nenhum mundo
aqui no papel de George Hunt na etnografia de Franz Boas, ou
cultural ou linguagem integrados. Todas as tentativas de propor
dos quinze transcripteurs listados nos Documents néo-calédoniens
tais eres abstratas são constructos do poder monológico. Uma
de Leenhardt (1932).!
“cultura” é, concretamente, um diálogo em aberto, criativo, de
Malinowski é um complexo caso de transição. Suas etno-
sei de membros e não-membros, de diversas facções. Uma
grafias refletem uma coalescência ainda incompleta da moderna
“língua” é a interação e a luta de dialetos regionais, jargões
monografia. Se ele por um lado foi centralmente responsável pela
profissionais, lugares-comuns genéricos, a fala de diferentes grupos
fusão de teoria e descrição na autoridade do pesquisador de campo de idade, indivíduos, etc. Para Bakhtin, o romance polifônico não
profissional, por outro lado ele incluiu material que não sustentava
é um tour de force de totalização cultural ou histórica (como

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

críticos realistas como Georg Lukács e Erich Auerbach argu- análise de Sperber revela como frases tais como “os nuer pen-
mentaram) mas sim uma arena carnavalesca de diversidade. sam...” ou “o senso nuer de tempo” são fundamentalmente
Bakhtin descobre um espaço textual utópico no qual a com- diferentes de citações ou traduções do discurso nativo. Tais decla-
plexidade discursiva, a interação dialógica das vozes, pode ser rações não têm “nenhum falante específico” e são literalmente
acomodada. Nos romances de Dostoievski ou de Dickens ele equívocas, combinando de forma contínua as afirmações do etnó-
valoriza precisamente sua resistência à totalidade; seu romancista grafo com as do, ou dos informantes (1981:78). São abundantes.
ideal é um ventríloquo — no idioma do século XIX, um “poli- nas etnografias frases que não são atribuídas a ninguém, tais como:
fonista”. “Ele representa a polícia com várias vozes diferentes”, “Os espíritos retornam à aldeia durante a noite”, descrições de
exclama um ouvinte admirado, sobre o garoto Sloppy, que Iê em crenças nas quais o escritor assume na verdade a voz da cultura.
público um jornal, em Our mutual friend. Mas Dickens, o ator, Neste nível “cultural”, os etnógrafos aspiram à onisciência
performer oral e polifonista, deve ser comparado a Flaubert, o flaubertiana que se move livremente através de um mundo de
mestre do controle autoral, que se move como um deus entre os. sujeitos nativos. Sob a superfície, no entanto, seus textos são menos
pensamentos e os sentimentos de seus personagens. À etnografia, controlados e mais discordantes. O trabalho de Victor Turner
como o romance, debate-se entre essas alternativas. Será que o fornece um exemplo revelador, que vale a pena investigar mais de
escritor etnográfico retrata o que os nativos pensam à maneira do perto como um caso de interação entre a exposição monofônica e a
flaubertiano “estilo indireto livre”, um estilo que suprime a citação polifônica. As etnografias de Turner oferecem retratos sober-
direta em favor de um discurso controlador que é sempre, mais ou bamente complexos dos símbolos rituais e crenças ndembu; e ele
menos, o do autor? (Dan Sperber, 1981, tomando Evans-Pritchard forneceu também alguns vislumbres incomumente explícitos dos
como exemplo, mostrou de forma convincente que o estilo indireto bastidores. Em meio aos ensaios reunidos em The forest of symbols,
é sem dúvida o modo preferido da interpretação etnográfica.) Ou seu terceiro livro sobre os ndembu, Turner oferece um retrato de
será que o retrato de outras subjetividades requer uma versão seu melhor informante, “Muchona the Hornet, interpreter of
estilisticamente menos homogênea, cheia das “vozes diferentes” religion” (1967:131-150). Muchona, um curandeiro ritual, e Turner
de Dickens? se unem através do interesse compartilhado pelos símbolos
Um certo uso do estilo indireto é inevitável, a menos que a tradicionais, as etimologias e os significados esotéricos. Ambos
novela ou a etnografia seja composta inteiramente de citações, algo são “intelectuais”, intérpretes apaixonados das nuances e pro-
que é teoricamente possível mas raramente é tentado.” Na prática, fundezas dos costumes; ambos são scholars desenraizados par-
porém, a etnografia e o romance têm recorrido ao estilo indireto tilhando “a insaciável sede de conhecimento objetivo”. Turner
em diferentes níveis de abstração. Não precisamos nos perguntar compara Muchona a um professor universitário; seu relato desta
como Flaubert sabe o que Emma Bovary está pensando, mas a * colaboração inclui mais do que simples insinuações de que ele é
habilidade do pesquisador de campo em habitar as mentes nativas seu “duplo” psicológico.
suscita sempre dúvidas. Certamente isto é um problema permanente, Há, porém, uma terceira presença nesse diálogo, Windson
não resolvido, do método etnográfico. Os etnógrafos têm geralmente Kashinakaji, um veterano professor ndembu da escola missionária
evitado atribuir crenças, sentimentos e pensamentos aos indivíduos. local. Ele reúne Muchona e Turner e compartilha da paixão deles
Mas não têm hesitado em atribuir estados subjetivos a culturas. A pela interpretação da religião tradicional. Através de sua educação

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

bíblica, ele “adquiriu um faro apurado para elucidar questões intercambiáveis. A encenação do discurso nativo numa etnografia,
intrincadas”. Tendo se tornado cético a respeito dos dogmas cristãos o necessário grau de tradução e familiarização são complicados
e dos privilégios missionários, ele olha com simpatia para a religião problemas práticos e retóricos.'” Mas os trabalhos de Turner, ao
pagã. Kashinakaji, conta-nos Turner, “transpôs a distância cultural darem um lugar visível às interpretações nativas dos costumes,
entre Muchona e eu, transformando o jargão técnico do curandeiro expõem concretamente esses temas do dialogismo textual e da
e a picante gíria da aldeia numa prosa que eu pudesse entender polifonia.
melhor”. Os três intelectuais logo “estabeleceram uma espécie de À inclusão da descrição de Muchona feita por Turner em
seminário diário sobre religião”. Os relatos de Turner sobre esse The forest of symbols pode ser vista como sinal dos tempos. A
seminário são estilizados: “oito meses de estimulantes e ágeis coletânea de Casagrande na qual ela originalmente apareceu teve o
discussões entre nós três, principalmente sobre o ritual ndembu”. efeito de isolar o tema crucial das relações entre etnógrafos e seus
Eles revelam um extraordinário “colóquio” etnográfico; mas signi- colaboradores indígenas. A discussão desse tema ainda não tinha
ficativamente Turner não faz dessa colaboração a três o eixo de lugar nas etnografias científicas, mas a coletânea de Casagrande
seu ensaio. Ao invés disso, ele centra o foco em Muchona, trans- abalou o tabu profissional pós-malinowskiano sobre os “infor-
formando portanto um “triálogo” num diálogo, e transformando mantes privilegiados”. Raymond Firth sobre Pa Fenuatara, Robert
uma relação produtiva, complexa e sedutora no “retrato” de um Lowie sobre Jim Carpenter — uma longa lista de reconhecidos
“informante” (esta redução foi de alguma forma exigida pelo antropólogos descreveram os “etnógrafos” indígenas com quem
formato do livro no qual o ensaio primeiramente apareceu, a eles dividiram, em algum grau, uma visão distanciada, analítica e
importante coletânea editada em 1960 por Joseph Casagrande, mesmo irônica dos costumes. Esses indivíduos se tornaram
In the company of men: twenty portraits of anthropological informantes valorizados porque entenderam, muitas vezes com
informants).!* grande sutileza, o que implica uma atitude etnográfica diante da
Os trabalhos publicados de Turner variam consideravel- cultura. Na citação de Lowie de seu intérprete crow (e colega
mente em sua estrutura discursiva. Alguns são em grande parte “filólogo”), Jim Carpenter, percebe-se uma atitude comum:
compostos por citações diretas; em pelo menos um ensaio “Quando você escuta os velhos contando suas visões, você tem
Muchona é identificado como a principal fonte de toda a inter- de acreditar nelas” (Casagrande, 1960:428). E há bem mais do
pretação; em outra parte ele é invocado anonimamente, por que apenas uma piscadela e um assentimento cúmplice na história
exemplo, como “um especialista em ritual” (1975:40-42, 87, 154- recontada por Firth sobre seu melhor amigo e informante tikopiano:
156, 244). Windson Kashinakaji é identificado como assistente e
tradutor, ao invés de uma fonte de interpretações. De forma geral, Em outra ocasião, a conversa recaiu sobre as redes feitas
as etnografias de Turner são incomumente polifônicas, aber- para pegar trutas no lago. As redes estavam ficando
escuras, possivelmente com material orgânico, e tendiam
tamente construídas a partir de citações (“De acordo com um
a se romper facilmente. Pa Fenuatara então contou uma
adepto...” ou “Um informante acha...”). No entanto, ele não
i história ao pessoal reunido na casa sobre como, quando
representa os ndembu em diferentes vozes, e ouvimos poucas vezes estava certa vez no lago com suas redes, sentiu um espírito
a tal “picante gíria da aldeia”. Todas as vozes do campo foram envolto na rede, e tornando-a mais macia. Quando ele
suavizadas na prosa expositória de “informantes” mais ou menos puxou a rede pra fora do lago, ele a achou pegajosa. O

52 53
OA
AN

À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA


NES

espírito havia trabalhado ali. Perguntei a ele então se isso nhuma circunstância, falas de personagens inventados. Os infor-
era parte do conhecimento tradicional, a idéia de que mantes são indivíduos específicos com nomes próprios reais —
espíritos eram responsáveis pela deterioração das redes.
nomes que podem ser citados de forma modificada quando ne-
Ele respondeu: “Não, isso é uma idéia minha”. Então
cessário. As intenções dos informantes são sobredeterminadas,
acrescentou, rindo: “Conhecimento tradicional de minha
própria autoria”. (Casagrande, 1960:17-18) suas palavras, política e metaforicamente complexas. Se alocadas
num espaço textual autônomo e transcritas de forma suficien-
Todo o impacto metodológico da coletânea de Casagrande temente extensas, as declarações nativas fazem sentido em termos
permanece latente, especialmente quanto à importância de seus diferentes daqueles em que o etnógrafo as tenha organizado. A
relatos para a produção dialógica dos textos e interpretações etnografia é invadida pela heteroglossia.
etnográficos. Esta importância é obscurecida por uma tendência a Esta possibilidade sugere uma estratégia textual alternativa,
tomar o livro como um documento universalizante, humanista, que uma utopia da autoria plural que atribui aos colaboradores não
revela “uma sala de espelhos (...) numa grande variedade, a apenas o status de enunciadores independentes, mas de escritores.
interminável imagem refletida do ser humano” (Casagrande, Como uma forma de autoridade, ela deve ainda ser considerada
1960:xii). À luz da atual crise na autoridade etnográfica, no entanto, utópica por duas razões. Primeiro, os poucos experimentos recentes
estes reveladores retratos se imiscuem nas obras de seus autores, de trabalhos de múltiplos autores parecem requerer, como uma
alterando o modo como elas podem ser lidas. Se a etnografia é força instigadora, o interesse de pesquisa de um etnógrafo que no
parte do que Roy Wagner (1980) chama de “a invenção da cultura”, fim assume uma posição executiva, editorial. A estratégia de
sua atividade é plural e além do controle de qualquer indivíduo. autoridade de “dar voz” ao outro não é plenamente transcendida.
Segundo, a própria idéia de autoria plural desafia a profunda
909
identificação ocidental de qualquer organização de texto com a
Uma maneira cada vez mais comum de realizar a produção intenção de um único autor. Ainda que essa identificação fosse
colaborativa do conhecimento etnográfico é citar os informantes menos forte do que quando Lafitau escreveu seu Moeurs des
extensa e regularmente. (Um notável exemplo é We eat the Mines, sauvages américains, e a crítica recente a tenha colocado em
the Mines eat us [1979], de June Nash.) Mas esta tática apenas questão, ela ainda é uma poderosa imposição sobre a escrita
começa a romper a autoridade monofônica. As citações são sempre etnográfica. Todavia, há sinais de movimento nessa área. Os
colocadas pelo citador, e tendem a servir meramente como exemplos antropólogos terão cada vez mais de partilhar seus textos, e por
ou testemunhos confirmadores. Indo-se além da citação, pode-se vezes as folhas de rosto dos livros, com aqueles colaboradores
imaginar uma polifonia mais radical que “representaria os nativos nativos para os quais o termo informante não é mais adequado, se
e o etnógrafo com vozes diferentes”, mas isso também apenas é que um algum dia foi.
deslocaria a autoridade etnográfica, confirmando uma vez mais a O livro de Ralph Bulmer e Ian Majnep, Birds of my Kalam
orquestração final virtuosística feita por um só autor de todos os country (1977), é um importante protótipo. (Tipos de letra diferentes
discursos presentes no texto. Neste sentido, a polifonia de Bakhtin, distinguem as contribuições justapostas do etnógrafo e dos nativos
muito estreitamente identificada com o romance, é uma hetero- da Nova Guiné, resultado da colaboração de mais de uma década).
glossia domesticada. Os discursos etnográficos não são, em ne- Ainda mais significativo é o estudo de 1974, coletivamente pro-

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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

duzido, Piman shamanism and staying sickness (Ka:cim atentando para seu uso no ensino da língua piman, utilizando uma
Mumkidag), que lista em sua folha de rosto, sem distinção (embora ortografia que ele desenvolvera com este propósito. Assim, o livro
não, deve-se notar, em ordem alfabética): Donald M. Bahr, contribui para a invenção literária dos papago em relação à sua
antropólogo; Juan Gregorio, xamã; David I. Lopez, intérprete; e própria cultura. Esta leitura diferente, inserida em Piman
Albert Alvarez, editor. Três destes quatro são índios papago, e o shamanism, é de importância mais do que apenas local.
livro é conscientemente destinado a “transferir a um xamã, tanto
É intrínseco à ruptura da autoridade monológica que as
quanto possível, as funções normalmente associadas à autoria.
etnografias não mais se dirijam a um único tipo geral de leitor. A
Estas incluem a opção por um determinado estilo explanativo, a
multiplicação das leituras possíveis reflete o fato de que a
obrigação de fazer interpretações e explicações e o direito de julgar
consciência “etnográfica” não pode mais ser considerada como
as coisas que são importantes e as que não o são” (p. 7). Bahr, o
monopólio de certas culturas e classes sociais no Ocidente. Mesmo
iniciador e organizador do projeto, optou por partilhar a autoridade
nas etnografias em que faltem os textos em língua nativa, os leitores
tanto quanto possível. Gregorio, o xamã, aparece como a principal
indígenas irão decodificar diferentemente as interpretações e o
fonte da “teoria da doença” que é transcrita e traduzida, em dois
conhecimento nativo textualizados. Os trabalhos polifônicos são
níveis separados, por Lopez e Alvarez. Os textos de Gregorio em
especialmente abertos a leituras não especificamente intencionais.
língua nativa incluem explicações compactadas, muitas vezes
Os leitores trobriandeses podem achar as interpretações de
enigmáticas, que são elas mesmas interpretadas e contextualizadas
Malinowski cansativas, mas considerar seus exemplos e extensas
por um comentário em separado de Bahr. O livro é incomum em
transcrições evocativas. Os ndembu não irão glosar tão rapidamente
sua encenação textual da interpretação das interpretações.
quanto leitores europeus as diferentes vozes que existem nos textos
Em Piman shamanism, a transição das enunciações de Turner.
individuais para as generalizações culturais é sempre visível na
A recente teoria literária sugere que a eficácia de um texto
separação das vozes de Gregorio e de Bahr. A autoridade de Lopez,
em fazer sentido de uma forma coerente depende menos das
menos visível, é semelhante à de Windson Kashinakaji no trabalho
intenções pretendidas do autor do que da atividade criativa de um
de Tumer. Sua fluência nas duas línguas guia Bahr através das
leitor. Para citar Roland Barthes, se um texto é “a trama de citações
sutilezas da linguagem de Gregorio, permitindo assim ao xamã
retiradas de inumeráveis centros de cultura”, então “a unidade de
“falar extensivamente sobre tópicos teóricos”, Nem Lopez nem
um texto repousa não em sua origem mas em seu destino”
Alvarez aparecem como uma voz específica no texto, e sua
(1977:146, 148). A escrita da etnografia, uma atividade não-
contribuição à etnografia permanece em grande parte invisível, a
controlada e multissubjetiva, ganha coerência através de atos
não ser para qualificados papagos, capazes de avaliar a exatidão
específicos de leitura. Mas há sempre uma variedade de leituras
dos textos traduzidos e a nuance vernacular das interpretações de
possíveis (além das apropriações meramente individuais), leituras
Bahr. A autoridade de Alvarez reside no fato de que Piman
além do controle de qualquer autoridade única. Pode-se abordar
shamanism é um livro dirigido a públicos distintos. Para a maioria
uma etnografia clássica buscando simplesmente captar os
dos leitores interessados nas traduções e explicações que os textos
significados que o pesquisador deduz a partir dos fatos culturais
trazem em língua piman, ele será de pouco ou nenhum interesse. O
representados, Ou, como sugeri, pode-se também ler a contrapelo
lingiista Alvarez no entanto corrigiu as transcrições e traduções
da voz dominante no texto, procurando outras semi-ocultas

56 57
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

autoridades, reinterpretando as descrições, textos e citações de autoridade na medida em que se tornaram visíveis nas décadas
reunidas pelo escritor. Com o recente questionamento dos estilos recentes. Se a escrita etnográfica está viva, como acredito que este-
coloniais de representação, com a expansão da alfabetização e da ja, ela está em luta no limite dessas possibilidades, ao mesmo
consciência etnográfica, novas possibilidades de leitura (e portanto tempo que contra elas.
de escrita) das descrições culturais estão surgindo.!é
A concretização textual da autoridade é um problema
Notas
recorrente para os experimentos contemporâneos em etnografia.”
Um modo mais antigo, realista - representado pelo frontispício Apenas os exemplos ingleses, americanos e franceses são
de Os argonautas do Pacífico Ocidental e baseado na construção discutidos. Ainda que os modos de autoridade aqui analisados
de um tableau vivant cultural destinado a ser visto a partir de um possam, muito provavelmente, ser amplamente generalizados,
nenhuma tentativa foi feita no sentido de estendê-los a outras
único ponto de vista, aquele que une o escritor e o leitor —, pode
tradições nacionais. É suposto também, na tradição antipositivista
agora ser identificado como apenas um paradigma possível de
de Wilhelm Dilthey, que a etnografia é um processo de inter-
autoridade. Pressupostos políticos e epistemológicos estão em- pretação, não de explicação. Modos de autoridade baseados
butidos nestes e em outros estilos, pressupostos que o escritor em epistemologias das ciências naturais não são aqui discutidos.
etnográfico não pode mais se permitir ignorar. Os modos de Em virtude de sua ênfase sobre a observação participante como
autoridade resenhados aqui — o experiencial, o interpretativo, o um processo intersubjetivo é como traço definidor da etnografia
dialógico, o polifônico — estão disponíveis a todos os escritores do século XX, essa discussão deixa de lado uma série de fontes
de textos etnográficos, ocidentais e não-ocidentais. Nenhum é alternativas de autoridade: por exemplo, o peso do conhecimento
obsoleto, nenhum é puro: há lugar para invenção dentro de cada acumulado em “arquivos” sobre determinados grupos; ou a pers-
um destes paradigmas. Vimos como novas abordagens tendem a pectiva de comparação intercultural; ou o trabalho de levanta-
mento estatístico.
redescobrir práticas antes descartadas. A autoridade polifônica
A “heteroglossia” supõe que as “línguas não se excluem, mas

+92
olha com renovada simpatia para compêndios de textos em língua
sim têm interseções umas com as outras, de muitas formas
nativa — formas expositivas distintas da monografia centralizada
diferentes (a língua ucraniana, a linguagem do poema épico, do
num só tema e ligada à observação participante. Agora que aquelas
primeiro simbolismo, do estudante, de uma geração específica
ingênuas afirmações da autoridade experiencial foram subme- de crianças, do intelectual mediano, do nietzschiano, etc.).
tidas à suspeição hermenêutica, podemos antecipar uma atenção É possível mesmo que a própria palavra “linguagem” perca todo
renovada à interação sutil entre componentes pessoais e discipli- sentido nesse processo — pois aparentemente não há nenhum
nares na pesquisa etnográfica. plano único no qual todas estas “linguagens” possam se justa-
Os processos experiencial, interpretativo, dialógico e poli- por” (291). O que se diz das linguagens se aplica igualmente às
“culturas” e às “subculturas”. Ver também Volosinov (Bakhtin?),
fônico são encontrados, de forma discordante, em cada etnografia,
1953:291, especialmente capítulos 1-3; e Todorov, 1981:88-93.
mas a apresentação coerente pressupõe um modo controlador de
autoridade. Um argumento é que esta imposição de coerência a Não tentei investigar estilos de escrita etnográfica que possam
estar sendo gerados fora do Ocidente. Como Edward Said, Paulin
um processo textual sem controle é agora inevitavelmente uma
Hountondji e outros mostraram, um considerável esforço de “lim-
questão de escolha estratégica. Tentei distinguir importantes estilos
peza” ideológica, um trabalho crítico de oposição, é contínuo;

58 59
“À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRÁFICA

é a ele que os intelectuais não-ocidentais têm devotado grande Para uma primeira defesa da antropologia dialógica, ver também
parte de suas energias. Minha discussão se mantém nos limites Tedlock, 1979.
de um ciência cultural realista elaborada no Ocidente, embora 10 Sobre os “tipos” realistas, ver Luckács, 1964, passim. A tendência
em suas fronteiras experimentais. Mais ainda: ela não está a transformar um indivíduo num enunciador cultural pode ser
considerando aqui como áreas de inovação os gêneros “para-
observada em Dieu d'eau de Marcel Griaule (1948a). Isso ocorre
etnográficos” da história oral, do romance não-ficcional, o “novo ambivalentemente em Nisa de Shostak (1981). Para uma dis-
jornalismo”, a literatura de viagem e o filme documentário.
cussão desta ambivalência e da complexidade discursiva
Na atual crise de autoridade, a etnografia emergiu como tema resultante, ver discussão em “Sobre a alegoria etnográfica” neste
para o escrutínio histórico. Para novas abordagens críticas, ver livro.
Hartog, 1971; Asad, 1973; Burridge, 1973:cap. 1; Duchet, 1971; Para um estudo deste modo de produção textual, ver no presente
Boon, 1982; De Certeau, 1980; Said, 1978; Stocking, 1983; e livro “Trabalho de campo, reciprocidade e elaboração de textos
Rupp-Eisenreich, 1984. etnográficos”. Ver também neste contexto Fontana, 1975, a
Sobre a supressão do diálogo no frontispício do livro de Lafitau introdução a The Pima Indians de Frank Russell, sobre o oculto
e a constituição de uma “antropologia” textualizada, a-histórica co-autor do livro, o índio papago José Lewis; Leiris, 1948, discute
e visualmente orientada, ver a detalhada análise de Michel de a colaboração como co-autoria, tal como o faz Lewis, 1973. Para
Certeau (1980). uma defesa programática da ênfase de Boas nos textos vernáculos
6
Os nuer, São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 223. e sua colaboração com Hunt, ver Goldman, 1980.

O conceito é algumas vezes muito apressadamente associado à O elaborado Bwiti (1985) de James Fernandez é uma transgressão
intuição ou empatia, mas como uma descrição do conhecimento consciente da sintética forma monográfica, retornando à escala
etnográfico Verstehen envolve propriamente uma crítica da malinowskiana e revivendo as funções “arquivísticas” da
experiência empática. O significado exato do termo é assunto de etnografia.
debate entre os especialistas em Dilthey (Makreel, 1975:6-7). Tal projeto é anunciado por Evans-Pritchard em sua introdução
O livro de Favret-Saada foi traduzido em inglês como Deadly a Man and woman among the Azande (1974), um trabalho
words (1981); ver especialmente cap. 2. Sua experiência foi posterior que pode ser visto como uma reação contra a natureza
reescrita em outro nível ficional em Favret-Saada e Contreras, fechada, analítica de suas próprias etnografias anteriores. Sua
1981. inspiração é reconhecidamente Malinowski. (A noção de um livro
Seria errado passar por cima das diferenças entre as posições inteiramente composto de citações é um sonho modernista
teóricas de Dwyer e de Crapanzano. Dwyer, seguindo Georg associado a Walter Benjamin).

em ma
Luckács, traduz o diálogo para a dialética marxista-hegeliana, Para uma perspectiva tipo “dinâmica de grupo” na etnografia,
mantendo fora de alcance, portanto, a possibilidade de uma ver Yannopoulos e Martin, 1978. Para uma etnografia explicita-
restauração do sujeito humano, uma espécie de realização no e mente baseada em “seminários” nativos, ver Jones e Konner,

Ls
através do outro. Crapanzano recusa qualquer ancoragem numa 1976.
teoria englobante, sendo sua única autoridade a do escritor do O uso que faz Favret-Saada do dialeto e do tipo itálico em Les
diálogo, uma autoridade minada por uma narrativa inconclusiva mots, la mort, les sorts (1977) é uma solução entre muitas para
de encontro, ruptura e confusão. (É importante notar que o um problema que vem preocupando por muito tempo os roman-

pen
diálogo, tal como usado por Bakhtin, não é redutível à dialética). cistas realistas.

um
Os
60 61

O
SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO


mente chamada de modernista do que de moderna, considerando
como seu problema — e sua circunstância — a fragmentação e a
justaposição de valores culturais. Desse ponto de vista desencan-
tado, ordens estáveis de significado coletivo aparecem como
construídas, artificiais e, na verdade, frequentemente ideológicas
A junção de duas realidades, inconciliáveis em aparência, sobre um
ou repressivas. À espécie de normalidade ou senso comum em que

E
plano que aparentemente não combina com elas...
se pode colecionar impérios em surtos de alheamento, ou vagar

E
Max Ernst, "What is the mechanism of collage?”
rotineiramente em guerras mundiais, é vista como uma realidade

EMEA sá
contestada que deve ser subvertida, parodiadae transgredida. Sugiro
algumas razões para fazer essa conexão entre a atividade etno-

dE
gráfica e esse conjunto de atitudes críticas, disposições usualmente
associadas à vanguarda artística. Na França, particularmente, as

zm
modernas ciências humanas não perderam o contato com o mundo
da literatura e da arte, e na “estufa” que é o meio cultural parisiense,
nenhum campo de pesquisa social ou artística pode permanecer
por muito tempo indiferente às influências ou provocações de fora
André Breton sempre insistia em que o surrealismo não era de suas fronteiras disciplinares. Nas décadas de 20 e 30, como

E
um corpo de doutrinas ou uma idéia definível, mas sim uma veremos, a etnografia e o surrealismo desenvolviam-se em intensa
atividade. Este texto é um exame da atividade etnográfica situada, proximidade.

PRO
como deve sempre ser, em circunstâncias históricas e culturais Estou usando o termo surrealismo num sentido obviamente
específicas. Focalizarei a etnografia e o surrealismo na França, expandido, para circunscrever uma estética que valoriza fragmen-

Pa
entre as duas guerras mundiais. Discutir estas duas atividades tos, coleções curiosas, inesperadas justaposições — que funciona

a
conjuntamente — e às vezes, na verdade, permitir que elas se fundam para provocar a manifestação de realidades extraordinárias com

sa
— é questionar uma série de distinções e unidades comuns. Estou base nos domínios do erótico, do exótico e do inconsciente. Esse

4
menos preocupado em mapear tradições artísticas ou intelectuais, conjunto de atitudes não pode estar, é claro, limitado ao grupo de

Pa
do que em seguir alguns dos atalhos do que acredito ser uma Breton; e o movimento surrealista estreitamente definido — com

Pa
orientação ou atitude moderna crucial em relação à ordem cultural. seus manifestos, cismas e excomunhões — não é nossa preocupação

e
Se algumas vezes uso termos familiares a contrapelo, é que meu aqui. Na verdade, os personagens que estarei discutindo foram, no

e,
objetivo é ir além de definições estabelecidas e recapturar, se possí- melhor dos casos, companheiros de viagem, ou dissidentes, que

—,
vel, uma situação na qual a etnografia é, de novo, algo incomum, e romperam com Breton. Eles partilhavam, todavia, a atitude geral
o surrealismo, não ainda uma província bem definida da arte e da que chamo de surrealista,! uma complicada disposição aqui

-
literatura modernas. resumida numa tentativa de destacar sua dimensão etnográfica. A

es
Essa orientação ou atitude em relação à ordem cultural a etnografia e o surrealismo não são unidades estáveis; meu objetivo
que me refiro não pode ser claramente definida. É mais apropriada- não é, portanto, sobrepor duas tradições claramente distinguíveis.?

o
Além disso, tentei não pensar no tópico deste trabalho como uma

—,
133

L"
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

conjuntura restrita à cultura francesa das décadas de 20 e 30. As


mesa de dissecação, de uma máquina de costura e um guarda-
fronteiras da arte e da ciência (especialmente as ciências humanas)
chuva”. Ver a cultura e suas normas — beleza, verdade, realidade =
são ideológicas e mutáveis, e a própria história intelectual está en-
volvida nestas mudanças. Seus gêneros não permanecem firmemente como arranjos artificiais suscetíveis a uma análise distanciada ea
uma comparação com outros arranjos possíveis é crucial para uma
ancorados. Definições mutáveis de arte ou de ciência devem pro-
atitude etnográfica.
vocar novas unidades retrospectivas, novos tipos ideais para a
descrição histórica. Neste sentido, o surrealismo etnográfico é uma Em sua clássica History of surrealism (1965), Maurice
construção utópica, uma declaração tanto sobre as possibilidades Nadeau frisou o impacto das experiências na guerra na formação
passadas quanto futuras da análise cultural. dos fundadores do movimento surrealista— Breton, Éluard, Aragon,
Péret, Soupault. Após a queda da Europa na barbárie e a manifesta
bancarrota da ideologia do progresso, após uma profunda fissura
O surreal etnográfico do
aberta entre a experiência das trincheiras e a linguagem pu
Em “O narrador”, Walter Benjamin descreve a transição de heroísmo e da vitória, e após as convençõ es retóricas romântic as
um modo tradicional de comunicação baseado numa narrativa oral do século XIX terem provado serem incapazes de representar a
contínua e na experiência compartilhada para um estilo cultural realidade da guerra, o mundo se tornava permanentemente surrea-
caracterizado por explosões de “informação” — a fotografia, a lista, Recém-chegado da experiência nas trincheiras, E
notícia de jornal, os choques de percepção de uma cidade moderna. Apollinaire cunhou o termo numa carta de 1917. sao Caligram mes
Benjamin começa seu ensaio com a Primeira Guerra Mundial: (1918:341), com sua forma fraturada e a forte ênfase no mundo
percebido, anunciavam a estética do pós-guerra:
Uma geração que havia ido à escola em carroças ou
carruagens puxadas por cavalos agora se encontrava a A Vitória acima de tudo será
céu aberto, num campo no qual nada continuava como Ver claramente à distância
era a não ser as nuvens; e entre as nuvens, num campo de Ver cada coisa
força de explosões e correntes destrutivas, estava O frágil Ao alcance da mão
e franzino corpo humano. (1969:84) e que todas as coisas ganhem um novo nome.

A realidade não era mais um dado, um ambiente natural e Enquanto que, para Fernand Léger:
familiar. O self, solto de suas amarras, deve descobrir O sentido
onde for possível — um dilema, evocado em sua forma mais niilista, A guerra havia me projetado, como soldado, no coração
de uma atmosfera mecânica. Ali descobri a beleza do
e que está subjacente tanto no surrealismo quanto na etnografia
fragmento. Senti uma nova realidade no detalhe ne uma
moderna. As primeiras refrações literárias e artísticas do mundo
máquina, no objeto comum. Tentei achar o valor plástico
moderno de Benjamin são bem conhecidas: a experiência doflâneur destes fragmentos de nossa vida moderna.”
urbano de Baudelaire, os sistemáticos desarranjos sensuais de
Rimbaud, a decomposição analítica da realidade iniciada por Antes da guerra, Apollinaire havia decorado seu studio com
Cézanne e completada pelos cubistas, e especialmente a famosa “fetiches” africanos e em seu longo poema Zone estes abietos
definição de beleza feita por Lautréamont: “o encontro casual, numa seriam invocados como “des Christs d'une autre forme et d'une

134
135
A
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

DS
autre croyance”. Para a vanguarda parisiense, a África (e emmenor incluíam uma certa Paris. Sua atitude, embora comparável aquela

E
grau a Oceania e a América) fornecia uma reserva de outras formas do pesquisador no campo, que tenta tornar compreensível o não-

A
e outras crenças. Isto sugere um segundo elemento da atitude familiar, tendia a trabalhar no sentido inverso, fazendo o familiar

E
etnográfica surrealista, a crença de que o outro, seja ele acessível se tornar estranho. O contraste é de fato gerado por um jogo contínuo

E
através dos sonhos, dos fetiches ou damentalité primitive de Lévy- entre o familiar e o estranho, do qual a etnografia e o surrealismo
Bruhl, era um objeto crucial da pesquisa moderna. Diferentemente eram dois elementos. Este jogo é constitutivo da moderna situação

A
do exotismo do século XIX, que partia de uma ordem cultural cultural que estou tomando como base de meu estudo.

E
mais ou menos confiante em busca de um frisson temporário, de O mundo da cidade, para Louis Aragon, em Le paysan de

ED
uma experiência circunscrita do bizarro, o surrealismo moderno é
Paris, ou para Breton, em Nadja, era uma fonte do inesperado e
a etnografia partiam de uma realidade profundamente questionada.

E
do significativo — significativo por sugerir, para além da veneração
Os outros apareciam agora como alternativas humanas sérias; o

A
tediosa do real, a possibilidade de outro mundo mais miraculoso,
moderno relativismo cultural tornou-se possível. E como artistas e
baseado em princípios radicalmente diferentes de classificação e

MAS
escritores se dedicavam, após a guerra, a juntar “pedaços” de cultura
ordem. Os surrealistas fregiientavam o Marché aux puces, o grande
de novas maneiras, seu campo de seleção expandiu-se dramati- mercado das pulgas de Paris, onde se podia redescobrir os artefatos
camente. As sociedades “primitivas” do planeta estavam cada vez da cultura, remexidos e rearranjados. Com sorte se podia trazer
mais disponíveis como fontes estéticas, cosmológicas e científicas.
para casa algum objeto bizarro ou inesperado, uma obra de arte

E
Essas possibilidades baseavam-se em algo mais que um velho
sem lugar definido — ready-mades, tais como a prateleira de garrafas
“orientalismo”; elas requeriam a etnografia moderna. O contexto
de Marcel Duchamp, e objets sauvages, como esculturas africanas

ps
do pós-guerra estava estruturado por uma experiência basicamente
ou da Oceania. Esses objetos — retirados de seu contexto funcional
irônica da cultura. Para cada costume ou verdade locais havia — eram peças necessárias para o studio da vanguarda.
sempre uma alternativa exótica, uma possível justaposição ou
É melhor suspender a descrença ao considerar as práticas —
incongruência. Abaixo (psicologicamente) e além (geograficamente)
da realidade ordinária existia outra realidade. O surrealismo parti- e os excessos — dos “etnógrafos” surrealistas. E é importante enten-
der sua forma de levar a cultura a sério, como uma realidade contes-
lhava essa situação irônica com a etnografia relativista.
tada — uma forma que incluía a ridicularização e o embaralhamento
O termo etnografia, tal como o estou usando aqui, é diferente, de suas ordens. Isto é muito necessário se se quer penetrar no meio
evidentemente, da técnica de pesquisa empírica de uma ciência que gerou e orientou a tradição acadêmica francesa emergente. De
humana que na França foi chamada de etnologia, na Inglaterra de forma mais geral, é mais aconselhável não descartar o surrealismo
antropologia social, e na América de antropologia cultural. Estou muito rapidamente, tomando-o como frívolo, em contraste com a
me referindo a uma predisposição cultural mais geral, que atravessa sérieuse ciência etnográfica. As conexões entre a pesquisa antro-
a antropologia moderna e que esta ciência partilha com a arte e a pológica e a pesquisa em literatura e na arte, sempre fortes neste
escrita do século XX. O rótulo etnográfico sugere uma característica século, precisavam ser exploradas de forma mais completa.
atitude de observação participante entre os artefatos de uma O surrealismo é o cúmplice secreto da etnografia— para o bem ou

o RR
realidade cultural tornada estranha. Os surrealistas estavam para o mal — na descrição, na análise e na extensão das bases da
intensamente interessados em mundos exóticos, entre os quais eles expressão e do sentido do século XX.

A
136 137
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

Mauss, Bataille, Métraux expedição francesa, a Missão Dakar-Djibouti, de 1931-1933. A


etnografia científica, ou pelo menos a acadêmica, não havia ainda
Paris, 1925: a Revue nêgre faz grande sucesso em sua
amadurecido. Seu desenvolvimento, no início da década de 30,
: temporada no Théâtre des Champs-Elysées, seguindo os passos da
através de sucessos tais como a tão divulgada expedição Dakar-
Southern Syncopated Orchestra de W. H. Wellmon. Os spirituals
Djibouti, era contínuo ao do surrealismo dos anos 20. As energias
eo jazz arrebatam a burguesia de vanguarda, que toma de assalto
organizacionais de Rivet e o ensino de Mauss eram fatores domi-
os bares dos negros, vibra com os novos ritmos em busca de algo
nantes. Discutirei as realizações institucionais de Rivet mais tarde,
primitivo, selvagem... e completamente moderno. A Paris da moda
especialmente sua criação do Musée de 1" Homme. A influência
é levada pelo som pulsante dos banjos e pela sensual Josephine
difusa de Mauss é mais difícil de definir, já que tomava a forma de
Baker, “a se abandonar ao ritmo do charleston” (Leiris, 1968:33).
uma inspiração oral, através de sua atividade de professor na École
Paris, 1925: um núcleo de acadêmicos — Paul Rivet, Lucien Pratique des Hautes Études e no Institut dEthnologie.
Lévy-Bruhl e Marcel Mauss — cria o Institut de” Ethnologie. Pela
Aproximadamente cada um dos principais etnógrafos
primeira vez na França existe uma organização cuja preocupação
franceses antes de meados da década de 50 — com a notável exceção
principal é o treinamento de pesquisadores de campo profissionais
de Lévi-Strauss — beneficiou-se do estímulo direto de Mauss. Na
e a publicação de estudos etnográficos.
perspectiva do regime intelectual de hoje, quando a publicação é
Paris, 1925: quando do Primeiro Manifesto Surrealista, o feita tendo em vista um prêmio, e quando qualquer idéia de valor
movimento começa a se tornar conhecido. A França está engajada
tende a ser guardada para o próximo artigo ou monografia, é
numa guerra menor, com rebeldes anticoloniais do Marrocos;
notável, e sem dúvida comovente, perceber a enorme energia que
Breton e companhia se solidarizam com os insurgentes. Num
Mauss colocava em suas aulas na Hautes Études. Uma olhada no
banquete em homenagem ao poeta simbolista Saint-Pol-Roux, um Annuaire da École, onde os resumos dos cursos eram registrados,
tumulto irrompe entre os surrealistas e os patriotas conservadores.
revela a extraordinária riqueza de erudição e análise disponíveis
Acusações são lançadas, eclode um “Vive "Allemagne!”; Philippe para uns poucos estudantes, em anos alternados, sem repetição,
Soupault se balança, segurado num lustre, chutando garrafas e
muitos dos quais nunca foram publicados. Mauss oferecia cursos
copos. Michel Leiris logo está diante de uma janela aberta, sobre tópicos que iam desde o xamanismo siberiano à poesia oral
denunciando a França para uma multidão crescente. Segue-se um
australiana, passando pelo ritual polinésio e da costa oeste da Índia,
tumulto; Leiris, quase linchado, é preso e algemado pela polícia
imprimindo seu profundo conhecimento sobre as religiões orientais
(Nadeau, 1965:112-114). e sobre a Antiguidade Clássica. Os leitores dos ensaios de Mauss
Os três eventos estão conectados por mais do que uma — as páginas quase que totalmente ocupadas pelas notas de pé de
coincidência de datas. Por exemplo, quando Leiris, cuja evocação página — reconhecerão a amplitude das referências; perderão, no
de Josephine Baker acabei de citar, rompe com o movimento entanto, sua presença de espírito e sua verve, o dar-e-receber de
surrealista, no final da década de 20, em busca de uma aplicação suas performances orais.
mais concreta para seu talento literário subversivo, pareceu natural
Mauss era um pesquisador. Ele treinou um seleto grupo. Na
para ele estudar com Mauss no Institut de" Ethnologie e se tornar década de 1930, um grupo de devotos, alguns deles amantes do
um etnógrafo na África — um participante da primeira grande
exótico então em moda, outros, etnógrafos que se preparavam para

138 139
RARAOBMRA
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

ir para o campo (alguns dos primeiros em vias de se transformarem inspirada”. Numa entrevista, perguntaram a ele sobre o que
nos segundos), seguiria Mauss de sala em sala. Na Hautes Études, lembrava da fala de seu professor:
no Institut dEthnologie e posteriormente no Collêge de France,
eles se deleitavam com seus tours eruditos, loquazes e sempre Seus silêncios, se posso colocar dessa forma. Não posso
provocativos, através das diversidades culturais do mundo. As aulas fornecer uma imitação; tantos anos se passaram e tenho
uma imagem idealizada de Mauss; mas ele construía suas

ASA
de Mauss não eram demonstrações teóricas. Elas enfatizavam, na
frases de um modo que sugeria coisas sem declará-las
sua forma divagadora, o fato etnográfico concreto; Mauss tinha
inflexivelmente. Seu discurso era todo ele articulações e
um olhar acurado para o detalhe significativo. Ainda que ele próprio
elasticidade. A maior parte de suas frases soavam vazias,
nunca tenha feito trabalho de campo, Mauss era eficiente em levar mas era um vazio que te convidava a preenchê-lo. Eis
seus alunos a fazerem pesquisa de primeira mão (veja Condominas, por que digo que as coisas mais características eram seus

PD
1972a, b; Mauss, 1947). silêncios.

O
Seu ensaio “As técnicas corporais” (1934) dá algumas pistas surpreendente quando fazia
Ele era especialmente
do estilo oral de Mauss. Eis aqui algumas linhas do que é explicações textuais sobre autores que haviam trabalhado
essencialmente uma longa lista de coisas que pessoas em diferentes na Sibéria com os giliaks ou goldies. Lembro de sessões
partes do mundo fazem com seus corpos: na Hautes Études — não havia nunca mais de dez de nós —

MNA
e mesmo assim! Nós nos juntávamos em volta de uma
À criança acocora-se normalmente, Nós não sabemos mais mesa igual a essa, não por muito tempo; Mauss traduzia
nos acocorar. Considero isso um absurdo e uma inferio- do alemão para O francês com comentários que faziam
ridade de nossas raças, civilizações, sociedades. (p. 219- comparações com qualquer canto do planeta. Sua erudição
220, ed. bras.) era fantástica, e nós absorvíamos tudo aquilo sem
realmente sermos capazes de dizer no fim das contas como
Não há nada mais vertiginoso do que ver um kabile descer
ele tinha conseguido ser tão cativante. (1982:32)
com babuchas. Como pode equilibrar-se sem perder as
babuchas? Tentei ver, fazer, não compreendo. Tampouco Mauss não escreveu livros. Suas Oeuvres (1968-69) são
compreendo como as senhoras conseguem andar com
compostas de ensaios, artigos acadêmicos, intervenções feitas em
saltos altos, (p. 225)
encontros, incontáveis resenhas de livros. Clássicos condensados

PS
Higiene das necessidades naturais. Poderia aqui enumerar tais como “Ensaio sobre a dádiva” e “Esboço de uma teoria geral
inúmeros fatos. (p. 229) da magia” foram publicadas no Année Sociologique. Sua obra

A
magna, uma dissertação sobre a prece, permaneceu uma coleção
Enfim, é preciso saber que a dança enlaçada é um produto
de rascunhos, ensaios, fragmentos e notas. Assim também outras

-—
da civilização moderna da Europa. O que demonstra que
coisas inteiramente naturais são para nós históricas. Aliás, obras sintéticas sobre o dinheiro e a nação. Talvez porque tantas


elas são objeto de horror para o mundo inteiro, exceto coisas estivessem conectadas em sua cabeça, Mauss pudesse
facilmente ter sua atenção desviada; e era bastante disperso em

PN
para nós. (p. 228)
relação a compromissos e lealdades. Ele dava aulas constante-

PH
André Leroi-Gourhan, historiador especializado na pré- mente e levou anos concluindo trabalhos de colegas já falecidos

a
história, lembra de seu professor como um homem de “confusão (Durkheim, Robert Herz, Henri Hubert). Pró-Dreyfus e socialista,

140 141

e

À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO


1

na tradição de Jaurês, escreveu para L'Humanité * e participou de etnográfico era usado pelos primeiros surrealistas. Ele devotou sua
greves, eleições e do movimento pela universidade popular. Ao vida à pesquisa em primeira mão, tornando-se, nas palavras de
contrário de Durkheim, seu tio, mais austero, Mauss era gregário, Sidney Mintz (1972:2), “o pesquisador de campo dos pesquisadores
* boêmio, algo assim como um bon vivant. de campo”. Mas ele permaneceu em contato com a vanguarda.
Alguns lembram de Mauss como um leal durkheimiano. Ou- Enquanto estudante na École des Chartres, Métraux havia estabe-
tros o vêem como um precursor do estruturalismo. Alguns o vêem lecido uma duradoura amizade com Georges Bataille, o idiossin-
principalmente como um antropólogo, outros, como um historiador. crático acadêmico, ensaísta e pornógrafo, cuja influência tem sido
Outros, ainda, citando suas raízes rabínicas, seu treinamento em tão difusa na presente geração de críticos radicais e escritores em
sânscrito e seu etemo interesse em ritual, o alinham com os estudio- Paris. A obra dos dois amigos não podia ser mais diferente: um,
sos da religião, tais como seus amigos Marcel Granet, Hubert e contido, quase puritano em tom, embora com um faro para isolar o
Leenhardt. Uns enfatizam a iconoclastia de Mauss, outros, sua detalhe significativo; o outró, provocativo, arrojado, nietzscheano.
coerente visão socialista-numanista. Alguns o vêem como um No entanto, de uma forma curiosa e compulsória, os dois eram
brilhante teórico de gabinete. Outros lembram do agudo observador complementares: enquanto Bataille era respaldado pela erudição
empírico. As diferentes versões sobre Mauss não sãó irrecon- de Métraux, Métraux via sua paixão pela etnografia confirmada
ciliáveis, mas não se somam. As pessoas que o lêem e que dele se pelo desejo de seu amigo de expressar o que, de acordo com Leiris,
recordam sempre parecem achar nele alguma coisa delas mesmas eles tinham em comum — “um violento ardor pela vida combinado
(de Leroi-Gourhan, 1982:32-33): com uma consciência impiedosa de seu absurdo” (Leiris, 1966a:
252; ver também Bataille, 1957:14, e Métraux, 1963:677-684).
Por um período de dois anos, quando eu fazia quase todos A associação que durou a vida inteira entre Bataille e Métraux
os seus cursos, ficou acertado que uma colega e eu — uma pode ser vista como emblemática da contigiiidade duradoura, se
judia russa, Deborah Lifchitz, que morreu na deportação
não mesmo da similaridade, que manteve a etnografia francesa
nazista — tomaríamos notas alternadamente e de um modo
em diálogo com a vanguarda.
que nos deixasse compará-las para determinar o conteúdo
real das aulas de Mauss. Nunca tentamos construir algo O mais influente livro de Bataille foi seu último tratado,
coerente porque o material era tão rico que sempre Lérotisme (1957). Sua orientação, e da obra de Bataille de modo
terminava num horizonte aberto. Mais tarde, um registro geral, pode remontar a Mauss através do que Métraux conta sobre
de seu curso foi publicado por um grupo de estudantes uma palestra por volta de 1925. Em L'érotisme, Bataille introduz
mais antigos. Bem, havia uma total divergência entre o o capítulo-chave do livro, sobre a transgressão, com a frase: “A
que eles anotaram e o que Deborah e eu tínhamos escrito!
transgressão não nega uma interdição, ela a transcende e completa”.
Este é o segredo, acredito, do real encanto que ele produzia
em seus seguidores.
Métraux especifica que sua fórmula característica é apenas uma
paráfrase de “um daqueles profundos aforismos, muitas vezes
Um exemplo de como o tipo peculiar de estímulo intelectual obscuros, que Marcel Mauss lançava sem se preocupar com a
de Mauss se espalhava é dado pelo grande pesquisador de campo confusão de seus alunos”. Métraux escutara Mauss dizer, numa
Alfred Métraux, que foi seu aluno em meados da década de 20 palestra, que “os tabus foram feitos para serem violados”. Este
(Bing, 1964:20-25). Sendo um temperamento cuidadoso e empírico, tema, que Bataille frequentemente repetiria, tornou-se uma chave
Métraux logo desconfiou da maneira descuidada com que o fato

142 143
50 demça
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

IO
SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

AI
para seu pensamento. A cultura é ambivalente em estrutura. É nuou a se basear intensamente em Mauss — La part maudite (1949)
possível reprimir o assassinato, ou ir para a guerra; ambos os atos É
é uma extrapolação elaborada do Ensaio sobre a dádiva — e

NINA
RS

são, para Bataille, gerados pela interdição de matar. A ordem posteriormente em Lévi-Strauss. A lógica desenvolvida por Bataille,
cultural incluí tanto a regra quanto a transgressão. Esta lógica se que não poderei explanar aqui, forneceu uma continuidade
aplica a todas as formas de regras e liberdades — por exemplo, à importante na relação entre a análise cultural e o primeiro surrea-
normalidade sexual e sua parceira, as perversões. Nas palavras de lismo na França. Ela liga o contexto dos anos 20 a uma geração
Métraux, “a proposição de Mauss, no aparente absurdo de sua posterior de críticos radicais, incluindo Michel Foucault, Roland
forma, manifesta a conexão inevitável de emoções conflitantes: Barthes, Jacques Derrida e o grupo Tel Quel.º

O
[citando Bataille] “Sob o impacto de uma emoção negativa, devemos
Vale ressaltar que a coleção de ensaios na qual Métraux,
obedecer à interdição. Nós a violamos se a emoção for positiva”.

A
Rivet e Bataille colaboraram era parte da primeira exposição
(Métraux, 1963:682-683; Bataille, 1957:72-73).
popular de arte pré-colombiana na França. A exibição havia sido
O projeto de Bataille, durante toda a sua vida, foi desmis- organizada por Georges-Henri Riviêre, um estudante de música e
tificar e valorizar esta “emoção positiva” da transgressão em tódas músico amador de jazz, que se tornaria o mais vigoroso museólogo
as suas variadas formas, e nisto ele foi coerente com seu passado etnográfico francês. Riviêre era bem relacionado socialmente, e
surrealista. (Nos anos 20, Bataille foi primeiro um associado e Rivet o era politicamente. Este último compreendia perfeitamente
depois um crítico do grupo de Breton). Um de seus primeiros textos que a criação de instituições de pesquisa antropológica requeria
publicados era parte de uma coletânea sobre arte pré-colombiana, uma onda de entusiasmo por coisas exóticas. Tal moda podia ser
na qual ele colaborou com Métraux e Rivet. Sua apreciação do explorada financeiramente e canalizada no interesse da ciência e
sacrifício humano (“Para os astecas a morte não era nada”) justapõe da educação do público. Rivet, impressionado com o sucesso da
de modo surrealista o belo e o feio, o normal e o repugnante. Assim, mostra pré-colombiana de Riviêre, contratou-o imediatamente para
Tenochtitlán é simultaneamente um “matadouro humano” e uma reorganizar o Trocadéro, cujas coleções estavam maltratadas e em
maravilhosa “Veneza” de canais e flores. As vítimas sacrificiais total estado de desorganização e abandono. Isto era o começo de
dançam com guirlandas perfumadas; os enxames de moscas que uma produtiva colaboração entre os dois principais animateurs de
se juntavam por causa do sangue que escorria são belos (Bataille, instituições etnográficas francesas, e que iria resultar no Musée de
1930:13). “Toda escrita é o lixo”, disse Antonin Artaud, outro "Homme, e no Musée des Arts et des Traditions Populaires de
renegado surrealista, que deixaria a França para ir ao encontro de Riviêre (veja Riviêre, 1968, 1969).
seu próprio sonho de México — cortejando a loucura entre os índios
Antes do pleno desenvolvimento destas instituições, nos
tarahumara (Artaud, 1976). O exótico era o principal tribunal de
primeiros anos do Institut d'Ethnologie, os cursos de Mauss
apelação contra o racional, o belo, o normal do Ocidente. Mas o
continuavam a ser o fórum crucial para uma emergente etnografia.
interesse de Bataille pelos sistemas culturais do mundo, afinal, foi
Este ensino era um curioso instrumento acadêmico, não
bem além do mero deleite ou escapismo. Ao contrário da maioria
fundamentalmente distinto do surrealismo, e capaz de estimular os
dos surrealistas, ele trabalhou em direção a uma teoria mais rigorosa
gostos tanto de Métraux quanto de Bataille. É revelador considerar
da ordem coletiva, baseada na dupla lógica da interdição. Sempre
des ones

sob esse prisma uma conhecida evocação de Mauss:


a par do que se estava fazendo na etnografia acadêmica, ele conti-

144 145
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

Em sua obra, e ainda mais em suas aulas, comparações Taxonomias


impensáveis afloravam. Embora ele fosse muitas vezes
obscuro por seu constante uso de antíteses, atalhos e Não é surpreendente encontrar, em uma “Homenagem a
aparentes paradoxos, que, mais tarde, provavam ser o Picasso”, publicada num periódico de vanguarda, uma declaração
resultado de profundo insight, gratificava seu ouvinte, de de Mauss (1930). A publicação em questão, Documents, era uma
repente, com intuições fulgurantes, fornecendo a requintada revista editada por Georges Bataille. Ela nos apresenta
substância para meses de pensamento frutífero. Em tais
um exemplo revelador da colaboração etnográfica surrealista.
casos, sente-se que se alcançou o fundo do fenômeno social
Bataille havia deixado o movimento surrealista de Breton,
e que se havia, como ele disse em algum lugar, “touché le
roc”, Este constante esforço em direção ao fundamental,
juntamente com Robert Desnos, Leiris, Artaud, Raymond Queneau ”
esta vontade de decantar, uma e mais vezes, uma enorme e vários outros, durante os cismas de 1929, e sua revista funcionava
massa de dados até que apenas o mais puro material ' como um fórum para as visões dissidentes. Além disso, ela tinha
MS

permanecesse, explica a preferência de Mauss pelo ensaio um cunho marcadamente etnográfico que a diferenciava e que
em vez do livro, e o limitado tamanho de sua obra atrairia a colaboração de futuros pesquisadores de campo tais como
publicada. (Lévi-Strauss, 1945:527) 3 Griaule, André Schaeffner e Leiris, assim como Riviêre e Rivet.
Griaule, André Schaeffner e Leiris partiriam para a África na
Este relato, vindo de Lévi-Strauss, sofre talvez de uma
Missão Dakar-Djibouti logo depois do fim de Documents, em 1930.
tendência, em suas frases finais, em retratar Mauss como um proto-
Se Documents parece hoje um estranho contexto para se difundir
estruturalista.? A compulsão de alcançar o fundo, de apreender
conhecimento etnográfico, no final da década 20 ela era um fórum
apenas o material mais puro, é uma aspiração mais característica
perfeitamente apropriado — isto é, outré.
de Lévi-Strauss do que de Mauss, que publicou relativamente pouco
não porque ele destilava verdades elementares, mas porque estava Sem dúvida, é preciso um esforço de imaginação para
preocupado em ensinar, editar e fazer política, e porque, sabendo resgatar o sentido, ou os sentidos, da palavra etnografia, tal como
tanto, achava que a verdade havia se tornado muito complexa. era usada nos surrealistas anos 20, Uma ciência social definida,
Como lembra Louis Dumont, “ele tinha idéias demais para ser com um método discernível, um conjunto de textos clássicos e
capaz de dar completa expressão a qualquer delas” (1972:12). A cátedras universitárias, não estava ainda totalmente formada.
descrição de Lévi-Strauss do uso provocativo pelo grande professor Examinando os usos da palavra numa publicação como Documents,
da antítese e do paradoxo na apresentação do conhecimento vemos como a evidência etnográfica e uma atitude etnográfica
etnográfico soa verdadeira, no entanto, no contexto que venho podiam funcionar a serviço de uma crítica cultural subversiva. No
discutindo. A verdade etnográfica, para Mauss, era incansavelmente subtítulo de Documents — Archéologie, Beaux Arts, Ethnographie,
subversiva em relação às realidades superficiais. Sua principal Variétés — o que destoava era a palavra ethnographie. Ela denotava
tarefa era descobrir, em sua famosa frase, as várias “lunes mortes”, um questionamento radical das normas e um apelo ao exótico, ao
pálidas luas, no “firmamento da razão” (1924:309). Não há melhor paradoxal, ao insolite. Ela implicava também num nivelamento e
sumário da tarefa do surrealismo etnográfico, uma vez que a “razão” numa reclassificação de categorias familiares. A “Arte”, com “A”
referida não é a paroquial racionalidade ocidental, mas o pleno maiúsculo, havia praticamente sucumbido à pesada artilharia do
potencial humano de expressão cultural. dadaísmo. A “Cultura”, tendo mal e mal sobrevivido a esta “avalan-
che” do pós-guerra, era agora resolutamente escrita com “c” minús-
66,03
Pa

146 147
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

culo, encarada como um princípio de ordem relativa no qual o psicologia mítica como “totêmica”. Para perceber a importância
sublime e o vulgar eram tratados como símbolos de igual impor- das metamorfoses e das inesperadas combinações de animal e ser
tância. Uma vez que a cultura era percebida pelos colaboradores humano em Masson, “basta lembrar das máscaras primitivas que
de Documents como um sistema de hierarquias morais e estéticas, incitam identificações com animais, ancestrais, etc.” (p. 102). Uma
a tarefa do crítico radical era a decodificação semiótica, com o casual alusão de Einstein a máscaras (africanas? da Oceania? do
objetivo de desautenticar e assim expandir ou deslocar as categorias Alaska? Seu público sabia o que ele queria dizer) sugere um
comuns. A ruptura cubista com os cânones do realismo havia aberto contexto no qual possibilidades exóticas ou arcaicas nunca estão
o terreno para um assalto geral ao normal. A etnografia, que muito longe da superfície da consciência, sempre prontas a oferecer
compartilha com o surrealismo o abandono da distinção entre a confirmação a toda e qualquer ruptura com a ordem das coisas
“alta” e a “baixa” culturas, fornecia tanto uma fonte de alternativas ocidental. No ensaio de Einstejn, notam-se dois elementos-chave
não-ocidentais quanto uma predominante atitude de irônica do surrealismo etnográfico: primeiro, a corrosiva análise de uma
observação participante entre as hierarquias e os significados da realidade agora identificada como local e artificial; e segundo, a
vida coletiva. oferta de alternativas exóticas.
É instrutivo tentar fazer um inventário das perspectivas Há um terceiro aspecto desta atitude que chama a atenção
etnográficas reveladas por seu uso em Documents. Antes de se assim que se folheiam as páginas de Documents. Marcel Griaule
entrar no clima da revista, fica-se surpreso, por exemplo, ao fornece uma clara formulação deste ponto num ensaio em que
encontrar um artigo de Carl Einstein — autor do Negerplastik (1915), ridiculariza as teses estéticas dos amantes de arte primitiva que
um relato pioneiro sobre a escultura africana vista à luz do cubismo duvidam da pureza de um tambor baoule porque a personagem
— intitulado “André Masson, étude ethnologique”. O que significava esculpida nele carrega um rifle. O surrealista etnográfico,
estudar em 1929 um pintor de vanguarda “etnologicamente””? Desde diferentemente tanto do típico crítico de arte quanto do antropólogo
o início do texto, Einstein faz ecoar o grito de batalha cubista- da época, se delicia com as impurezas culturais e com os
surrealista: perturbadores sincretismos. Griaule equaciona o deleite europeu
com a arte africana ao gosto africano por tecidos, latas de gasolina,
Uma coisa é importante: abalar o que é chamado de
álcool e armas de fogo. Se os africanos preferem não imitar nossos
realidade através de alucinações não adaptadas, assim
produtos da alta cultura, tant pis! E conclui:
como alterar as hierarquias de valor do real. As forças
alucinatórias abrem uma brecha na ordem dos processos
A etnografia — é cansativo ter de ficar repetindo isso —
mecânicos; eles introduzem blocos de “a-causalidade”
está interessada no belo e no feio, no sentido europeu
nesta realidade que tinha sido absurdamente dada como
destas palavras absurdas. Ela tem, contudo, uma tendência
tal. O tecido ininterrupto desta realidade é rasgado, e
a suspeitar do belo, que quase sempre é uma rara = ou
habita-se a tensão dos dualismos. (1929:95)
seja, monstruosa — ocorrência numa civilização. A
As “forças alucinatórias” da pintura de Masson representam, etnografia suspeita também de si mesma — porque ela é
de acordo com Einstein, “o retorno da criação mitológica, o retorno uma “ciência branca”, isto é, marcada por preconceitos —
e não recusará valor estético a um objeto por ele ser da
de um arcaísmo psicológico como algo oposto a um arcaísmo
moda ou produzido em massa. (1930:46)
puramente imitativo das formas” (p. 100). Einstein descreve esta

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À EXPERIÊNCIA EFNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

André Schaeffner defende algo semelhante numa pesquisa conhecimento cultural em “citações” justapostas, é um pressuposto
acadêmica sobre “Les instruments de musique dans un musée de Documents. O título da revista é certamente sintomático. À
d'ethnographie”. Suas críticas são hoje em dia lugar-comum antro- cultura se torna algo a ser coletado, e a própria Documents é uma
pológico. Lidas, porém, no contexto de Documents, readquirem espécie de exibição etnográfica de imagens, textos, objetos, rótulos,
seu pleno efeito subversivo. um divertido museu que simultaneamente coleta e reclassifica seus
espécimes.
Seja lá quem for que diga “etnografia” admite necessaria-
O método básico da revista é a justaposição — a colagem
mente que nenhum objeto concebido para produzir som
ou música, por mais “primitivo” ou “informe” que possa fortuita ou irônica. O arranjo adequado dos símbolos e artefatos
parecer, nenhum instrumento musical — seja sua existência culturais é constantemente posto em dúvida. A “alta” arte é combi-
acidental ou essencial — deverá ser excluído de uma nada com fotografias repulsivamente ampliadas de enormes dedos
metódica classificação. Para esse propósito, qualquer ; dos pés; artesanato popular; cópias de Fantômas (uma série de
procedimento percussivo, numa caixa de madeira ou na mistério muito conhecida); cenários de Hollywood; máscaras afri-
própria terra, está no mesmo plano de importância que canas, melanésias, pré-colombianas e também máscaras de carnaval
os meios melódicos ou polifônicos de um violino ou úm francesas; relatos de apresentações de music halls; descrições dos
violão. (1929:248) à
matadouros de Paris. Documents revela, para a cultura da cidade
Schaeffner, uma autoridade pioneira em Stravinsky, viria, moderna, o problema que enfrenta qualquer organizador de um
através do jazz, estudar a música dos dogon e depois fundar a museu etnográfico: o que vai junto com o quê? Obras-primas da
seção de etnomusicologia do Musée de |" Homme. escultura devem ser isoladas como tais ou exibidas ao lado de potes
de cozinha e lâminas de machado? (ver Leiris, 1966b). A atitude
À atitude “etnográfica” proporcionava um estilo de nivela-
etnográfica deve continuamente propor esse tipo de questões, com-
mento cultural cientificamente validado, a redistribuição de catego-
pondo e decompondo as hierarquias e relações “naturais” da cultura.
rias carregadas de valor, tais como “música”, “arte”, “beleza”,
Uma vez que tudo numa cultura é, em princípio, considerado valioso
“sofisticação”, “limpeza”, etc. O extremo relativismo, e mesmo o
para coleção e exibição, questões fundamentais de classificação e
niilismo, latente na abordagem etnográfica não ficou inexplorado
valor se apresentam.
pelos colaboradores mais radicais de Documents. Sua visão de
cultura não expressava concepções de estrutura orgânica, de inte- Em Documenis observamos o uso da justaposição etno-
gração funcional, totalidade ou continuidade histórica. Sua conce- gráfica com o propósito de perturbar os símbolos estabelecidos.
pção de cultura pode ser chamada, sem anacronismo, de semiótica. Uma seção regular da revista é um assim chamado dicionário de
A realidade cultural era composta de códigos artificiais, identidades definições inesperadas. O verbete da palavra “homem” é caracte-
ideológicas e objetos suscetíveis de recombinações e justaposições rístico. Ele narra a análise química de um pesquisador sobre a
inventivas: o guarda-chuva e a máquina de costura de Lautréamont, composição de um corpo humano: ferro o-bastante para fazer uma
um violino e um par de mãos batendo no solo africano. unha, açúcar o bastante para uma xícara de café, magnésio sufi-
qe,

cierite para tirar uma fotografia, e assim vai — valor de mercado:


A concepção, ressaltada no título de Schaeffner, de um “mu-
25 francos. O corpo, uma imagem privilegiada de ordem, é um
a

seu etnográfico” é mais importante do que parece. A fragmentação


alvo favorito. Junto com uma variedade de outras entidades “natu-
Lo

da cultura modema percebida por Benjamin, a dissociação do


e
Pan

150 151
E
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

aaa
rais”, ele é recodificado, e nessse processo é posto em dúvida. Robert uma exibição de escultura africana proporciona um maior desloca-
Desnos contribui com um desconcertante inventário das formas mento visual do corpo “natural”, tal como concebido de forma
retóricas existentes a respeito do olho, e seu verbete para o variável realista no Ocidente. O corpo, como uma cultura semioticamente
símbolo “rouxinol” começa assim: “Exceto em casos especiais, imaginada, não é uma totalidade contínua, mas uma montagem de

PN
isto não tem nada a ver com um pássaro” (Desnos, 1929:117). símbolos e códigos convencionais.
Crachat, “cuspe”, é redefinido por Griaule através de dados Documents, particularmente em seu uso de fotografias, cria
africanos e islâmicos, com o resultado de que o cuspir vem a ser a ordem de uma inconclusa colagem, mais do que a de um organismo
associado à alma, e tanto a maus quanto a bons espíritos. Na unificado. Suas imagens, com seu brilho equalizador e seu efeito
Europa, naturalmente, cuspir na cara de alguém é absolutamente de distanciamento, apresentam no mesmo plano o anúncio de um
desonroso; na África Ocidental pode ser uma forma de bênção. “O show no Châtelet, uma cena de um filme de Hollywood, um Picasso,
cuspe funciona como a alma: bálsamo ou lixo” (Griaule, 1929). um Giacometti, uma foto documental da Nova Caledônia colonial,
Ao etnógrafo, como ao surrealista, é permitido chocar. Leiris toma um recorte de jornal, uma máscara esquimó, um Old Master, um
a definição de Griaule e vai além: o cuspe, semelhante ao espeíma, instrumento musical — a iconografia e as formas culturais do mundo
conspurca de forma permanente a nobreza da boca, um órgão apresentadas como evidências ou dados. Evidências do quê?
associado no Ocidente à inteligência e à linguagem. O cuspir, assim Evidências, pode-se apenas dizer, de surpreendentes ordens culturais
ressimbolizado, denota uma condição de sacrilégio incontornável desclassificadas e de uma extensa gama de invenção artística
(Leiris, 1929). Nestá definição, novamente recomposta, falar ou humana, Esse estranho museu meramente documenta, justapõe,
pensar é também ejacular. relativiza uma perversa coleção.
Uma abordagem da representação por meio de justaposição O museu do surrealismo etnográfico seria melhorado e adap-
ou colagem era um recurso surrealista usual (Matthews, 1977). tado a instituições mais estáveis e contínuas. Em 1930, Documents,
Seu propósito era romper os “corpos” convencionais — objetos, que se tornara cada vez menos reconhecível como uma revista de
identidades — que se combinavam para produzir o que Barthes arte, foi abandonada pelo seu principal patrocinador. Três anos
chamaria depois de “Ieffet du réel” (1968). Em Documents, a depois, uma categoria reconstituída, facilmente identificável hoje
justaposição das contribuições, e especialmente de suas ilustrações como arte moderna, seria encarnada na lendária Minotaure.
fotográficas, era destinada a provocar essa desfamiliarização. O Dedicada à beleza, Minotaure não publicava nenhuma fotografia
primeiro número de 1929 começa, por exemplo, com um artigo de de matadouros, Movietone Follies ou dedões do pé entre suas
Leiris, “As recentes-telas de Picasso”, profusamente ilustrado com exuberantes reproduções de Picasso, Dali ou Masson. Após
fotografias. (Esses eram os anos em que Picasso parecia estar que- substituir seu segundo número dedicado à equipe da expedição
brando e entortando, de maneira quase selvagem, a forma normal Dakar-Djibouti por reportagem belamente ilustrada sobre sua
da estrutura humana). Essas imagens deformadas são seguidas por pesquisa na África (Griaule, 1934b), Minotaure subsequentemente
“Os párias da natureza”, de Bataille, uma característica apreciação não reservou mais qualquer espaço importante para dados
de seres humanos com alguma anormalidade física, ilustrada por etnográficos. Os artefatos de alteridade foram substituídos, em
gravuras do século XVIII, em página inteira, mostrando gêmeos geral, pela categoria “surreal” de Breton — alocado no inconsciente
siameses. Próximo a este artigo, uma resenha com ilustração de mítico ou psicanalítico e muito facilmente incorporado por noções

152 153
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MNARNARAMRRãEA

À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

românticas de gênio artístico ou de inspiração. O concreto artefato influência, tanto prática como ideológica, no curso da pesquisa e
cultural não era mais chamado a desempenhar um papel disruptivo, na compreensão de seus resultados. Se o “Troca” dos anos 20,
iluminador. A arte moderna e a etnografia haviam emergido como com seus objetos de arte mal classificados e mal rotulados, corres-
posições totalmente distintas, em contato, é certo, mas distantes. pondia à estética do surrealismo etnográfico, o Palais de Chaillot,
Focalizei mais extensamente Documents porque ela completamente moderno, encarnava o emergente paradigma acadê-
exemplifica com clareza ímpar as principais áreas de convergência mico do humanismo etnográfico. Os ganhos científicos represen-
entre etnografia e surrealismo durante a década de 20, e porque tados pelo Musée de 1º Homme eram consideráveis. Ele proporcio-
vários de seus colaboradores se tornaram influentes pesquisadores nava tanto facilidades técnicas necessárias quanto o igualmente
de campo e organizadores de museus. Documents revela também, necessário delineamento de um campo de estudos — o “humano”,
em sua subversiva e quase anárquica atitude documentária, um em todas as suas manifestações físicas, arqueológicas e etnográ-
A

horizonte epistemológico para os estudos culturais do século XX. ficas. O amadurecimento de-um paradigma de pesquisa cria a
Se Documents era, como lembra Leiris, “impossível”, ;seria possibilidade de uma acumulação de conhecimento e consequien-
precipitado descartá-la como uma aberração, uma criação pessoal temente o fato do progresso acadêmico. O que é menos reconhecido,
do “impossível” Georges Bataille (Leiris, 1963). Ela-atraía a ao menos nas ciências humanas, é que qualquer consolidação de
participação de muitos acadêmicos e artistas sérios para ser um paradigma depende da exclusão ou da subordinação ao status
descartada como meramente auto-indulgente ou niilista. Ela, na de “arte” daqueles elementos da disciplina em transformação que
verdade, exemplifica uma extrema sensibilidade (mais característica questionam as credenciais da própria disciplina, aquelas práticas
da tradição etnográfica francesa do que tem sido na maioria das de pesquisa que, tal como Documents, operam nos limites da
vezes reconhecido) ao caráter sobredeterminado do que Mauss havia desordem.
a

chamado de “fatos sociais totais” (1924:76-77). A realidade, após Antes de 1930, o Trocadéro era uma confusa coleção de
—,

os surrealistas anos 20, não poderia jamais ser vista novamente objetos exóticos. Seus arranjos enfatizavam a “cor local”, ou a
Po 9

como simples ou contínua, descritível empiricamente ou através evocação de cenários estrangeiros: manequins vestidos, panóplias,
da indução. Foi Mauss quem inelhor exemplificou essa atitude dioramas, espécimes amontoados. Um jornalista podia escrever
——

subjacente quando observou, como gostava de fazer: “A etnologia que uma visita ao museu era como “un voyage en pleine barbarie”
—,

é como o oceano. Tudo o que você precisa é de uma rede, qualquer (Dias, 1985:378). Uma vez que a coleção se ressentia de uma visão
e

espécie de rede; e aí, se você entrar no mar e jogar sua rede, você pedagógica, científica, mais de acordo com sua época, sua
pode estar certo de que vai pegar algum tipo de peixe” (Fortes, desordem fazia do museu um lugar aonde se podia ir para encontrar
EN

1973:284). curiosidades, objetos fetichizados. Foi lá que Picasso, por volta de


EN ES EN

1908, começou a pesquisar seriamente /'art nêgre.


PN A

No Musée de |! Homme Quando fui pela primeira vez, por insistência de Derain,
NAN

ao Museu Trocadéro, o cheiro de umidade e de mofo de


A história da etnografia francesa entre as duas guerras
lá me impregnou a garganta. Isso me deprimiu tanto que
mundiais pode ser narrada como a história de dois museus. O velho
ENE

quis sair logo, mas continuei e fiquei estudando. (Gilot,


Trocadéro e o novo Musée de "Homme exerceram importante 1964:266)

154 155
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

“Le Troca” era uma curiosa estrutura bizantino-mourisca, que Edward Said chamou de “orientalismo” — uma bem articulada
sem calefação ou iluminação. Sua falta de contextualização representação coletiva expressando um mundo geográfica e -
científica coerente encorajava a apreciação de seus objetos como historicamente vago, mas, em termos simbólicos, nitidamente
obras de arte isoladas, ao invés de artefatos culturais. Após a exótico (1978a).º Se a noção do “fetiche” africano teve algum
Primeira Guerra Mundial, quando o entusiasmo pelas coisas primi- significado nos anos 20, ela descrevia não uma modalidade de
tivas floresceu, o escandaloso museu se tornou temporariamente crença africana, mas sim o modo pelo qual artefatos exóticos eram

MN
um museu de “arte”. consumidos pelos aficcionados europeus. Uma máscara ou uma

MNA MA
À medida que os melhoramentos de Riviêre, no início da estátua ou qualquer traço de cultura negra podia efetivamente
década de 30, iam se efetuando, o museu começou a apresentar resumir um mundo de sonhos e possibilidades — apaixonado,
uma série de exposições de arte africana, esquimó e da Oceania. A rítmico, concreto, místico, incontido: “África”.
mostra dos objetos coletados pela expedição Dakar-Djibouti cairia, Na época da expedição Dákar-Djibouti, esse interesse pela
em larga medida, nessa categoria. Um devotado grupo” de África tinha se tornado um exotisme no sentido pleno do termo. O

os
voluntários — futuros etnógrafos, como Denise Paulme, e senhoras público e os museus estavam ansiosos por mais aquela mercadoria
elegantes do 16 *** arrondissement, amantes do exótico — ajudaram estetizada, e foi nesse clima que os legisladores franceses foram
a renovação. O museu estava se tornando chique. Na inauguração levados a promulgar uma lei especial oficializando uma expedição

PR
da sala dedicada à Oceania, modelos das grandes casas de moda cuja tarefa principal e oficial era enriquecer as coleções da nação.
de Paris desfilaram vestidas exótica e sedutoramente. A expedição A Missão Dakar-Djibouti satifez essa demanda; trouxe dados que
Dakar-Djibouti obteve seus recursos, além das subvenções do podiam ser contados e mostrados (Jamin, 1982a).!º

pm
govemo e da Fundação Rockefeller, junto a empresários privados, Os etnógrafos partiram em 1931 com uma estética estrutura-
mecenas das artes (entre eles, Raymond Roussel, o rico proto- da na cabeça, uma visão da África e uma certa concepção (essencial-
surrealista autor de Impressions d"Afrique). Antes da partida da mente fetichista) de como “ela” deveria ser coletada e representada.
equipe de Griaule para sua viagem de vinte meses, uma festa para Eles não viajaram, ao modo dos pesquisadores de campo ingleses
angariar fundos foi organizada por Riviêre no Cirque d' Hiver, com e americanos da época, com o propósito de experienciar e interpretar
uma luta de boxe apresentando o campeão dos pesos-pena, o totalidades culturais distintas. O rapport estabelecido no trabalho
“africano” Al Brown, coma presença de le tout Paris em trajes de de campo, na versão de Leiris (1934), emerge como pouco mais do
gala. De acordo com a lenda, o campeão simulou uma luta com que uma fantasia romântica; e no relato de Griaule (1933) a etno-
Marcel Mauss — lenda não totalmente improvável (o grande teórico grafia é retratada como um processo atravessado por dramatizações
era um bom atleta e praticante de savate).? e manipulação de papéis, no qual o poder é uma questão central
Essas histórias dão idéia do ambiente extra-científico do (Ver cap. 5 deste livro e Clifford, 1988, cap. 6). Mesmo no trabalho
Trocadéro por volta de 1930. O museu se apoiava na onda de posterior de Griaule e seus colaboradores, que vai além do colecio-
entusiasmo pelaart nêgre.º Durante a década de 20, o termo nêgre namento museológico que dominou os primeiros tempos da missão,
podia abranger o moderno jazz americano, as máscaras tribais há pouco esforço no sentido de apresentar uma versão unificada
africanas, o ritual do vodu, as esculturas da Oceania, e até mesmo de uma realidade africana (Griaule enfatizou fortemente a pes-
artefatos pré-colombianos. Ele tinha alcançado as proporções do quisa em grupo, incorporando múltiplas perspectivas) livre dos

156 157
Mm

À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

intervalos e descontinuidades de uma apresentação documentária Naturelle e o Institut d'Ethnologie, anteriormente abrigado na
e exegética. Sorbonne. O museu compunha uma imagem liberal e sintética do
O processo de pesquisa que começou com a Missão Dakar- “homem”, uma visão concebida por Rivet, que articulava num
Djibouti produziu uma das mais completas descrições de um grupo poderoso conjunto simbólico várias das tendências ideológicas que
tribal (os dogon e seus vizinhos) jamais registrada. Ainda assim, venho descrevendo. Rivet juntou um talentoso grupo de etnólogos,
«como assinala Mary Douglas (1967), o quadro está curiosamente incluindo Métraux, Leroi-Gourhan, Leenhardt, Griaule, Leiris,
“distorcido”. Não podemos nunca perceber, por exemplo, como a Schaeffner, Dieterlen, Paulme, Louis Dumont e Jacques Soustelle.
vida cotidiana é conduzida, como as decisões políticas circuns- Ele proporcionou o apoio institucional que, juntamente com os
tanciais são realmente tomadas.!! Há uma ênfase exagerada nas ensinamentos de Mauss, formaram o centro para uma emergente
elaboradas e mútuas referências das teorias nativas sobre o modo tradição de trabalho de campo. Para a maioria desses pesquisadores,
como as coisas são ou deveriam ser — uma concepção mítica da a conexão entre arte e etnografia era crucial.
ordem cósmica que aspira a abarcar todo gesto e detalhe do mundo A modalidade de humanismo de Mauss e Rivet visualizava
profano. À extraordinária beleza e poder conceitual da sabedoria uma expansão e uma abertura de concepções locais da natureza
dogon, conhecida em toda a sua amplitude apenas por um pequeno humana. Nenhum período histórico ou cultural poderia afirmar
grupo de pessoas mais velhas, nunca satisfaz a incômoda pergunta: que encarnava a humanidade em exposição no Musée de 1" Homme.
como são realmente os dogon? A tradição de Griaule nos dá um A espécie em sua totalidade seria representada ali, começando com
conjunto de documentos escrupulosamente explicados, dos quais o a evolução biológica, passando pelas relíquias arqueológicas de
mais importante, o mito cosmogônico, é manifestamente construído antigas civilizações e terminando com um completo contingente de
PR

pelos dogon. Poucos esforços são feitos no sentido de um relato alternativas culturais reais. As diferentes raças e culturas do planeta
AN

naturalista, à maneira, digamos, de Os argonautas de Malinowski; deveriam ser exibidas em sucessão, dispostas em galerias
PR

na verdade, no despertar da fragmentação surrealista, qual seria a organizadas sinteticamente, de um lado, e analiticamente, de outro.
utilidade disso? O homme total de Mauss seria pela primeira vez composto para à
Se a Missão Dakar-Djibouti trouxe uma quantidade edificação do público. Também para a instrução do cientista, o
considerável de “arte” para expor no Trocadéro, seus objetos Musée de 1" Homme conteria extensos laboratórios de pesquisa e
VN

encontraram seu verdadeiro lar num museu bem diferente. Nem coleções científicas. Menos de 10% dessa coleção total estaria em
a

bem Riviêre completava suas restaurações, em 1934, Rivet exibição permanente (ver Riviêre, 1968, 979; Rivet, 1948:110-
aa 9

anunciava a aprovação de um novo plano grandioso. A velha 118).


estrutura bizantina seria demolida para abrir caminho a um prédio O casamento da ciência com a educação do público na pers-
de sonho, que sublimaria o anárquico cosmopolitismo dos anos 20 pectiva de um humanismo progressista adequava-se perfeitamente
EV

numa monumental unidade: a “humanidade”. O Musée de 1 Homme, à visão de mundo de Rivet. Ele era um socialista com visão e
um nome que apenas recentemente se tornou multiplamente irônico, conexões políticas e sociais necessárias para realizá-la. O Musée
era, na metade da década de 30, um ideal admirável, de significação de 1" Homme foi concebido como parte da Exposição Internacional
ao mesmo tempo científica e política. A nova instituição combinava de 1937, um símbolo dos ideais da Frente Popular. Rivet, cuja
DS

sob um só teto os laboratórios técnicos do Musée d'Histoire especialidade era arqueologia americana e pré-história, tendia a
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À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

ver a humanidade sob uma perspectiva evolucionária e difusionista, em contextos reconstituídos e facilmente interpretáveis. Isto acarre-
enfatizando o desenvolvimento biocultural de longa duração e a tou perdas, tanto quanto ganhos. Na verdade, é possível imaginar
reconstrução de sequências históricas através do colecionamento uma crítica surrealista etnográfica do Musée de 1" Homme que
extensivo e da comparação de traços. Num antigo artigo sobre apontasse tentativamente para uma forma — ou, antes, para uma
método, publicado em Documents, ele anunciou os temas atividade — de um humanismo mais flexível e menos autoritário.
subjacentes do museu dos seus sonhos (Rivet, 1929). No estudo do
As esculturas africanas do Musée de 1" Homme estavam
homem, escreve, as fronteiras entre etnografia, arqueologia e pré-
dispostas regionalmente, com objetos a elas relacionados, sua
história são “absolutamente artificiais”. (Numa versão posterior,
significação funcionalmente interpretada. Elas não encontravam
ele acrescentaria a antropologia física ao conjunto). Igualmente
um lugar ao lado dos Picasso do Musée dº Art Moderne, localizado

e
artificiais são as classificações das realidades humanas de acordo
poucas ruas adiante. Como vimos, os domínios emergentes da arte
com as divisões da geografia política. “A humanidade é um todo
moderna e da etnologia estavamá mais separados em 1937 do que
indivisível, no espaço e no tempo.” “A ciência do homem” não
uma década antes.!* Não é apenas um capricho questionar estas
precisa mais ser dividida arbitrariamente. “É o momento de romper
classificações aparentemente naturais. O que está em questão é a
as barreiras. E é isso que o Musée de 1" Homme tentou fazer” (Rivet,
perda de um jogo disruptivo e criativo de categorias e diferenças
1948:113). A mensagem política para 1937 era clara. humanas, uma atividade que não simplesmente exibe e compreende
O Musée de 1 Homme forneceu um ambiente liberal é a diversidade de ordens culturais, mas que espera abertamente,
produtivo para o crescimento da ciência etnográfica francesa. Seus permite e na verdade deseja sua própria desorientação.
valores principais eram cosmopolitas, progressistas e democráticos;
Tal atividade se perde na consolidação e na exibição de um
uma das primeiras células da Resistência se formou dentro de seus
conhecimento etnográfico estável. Nos anos 20, o conhecimento
muros, em 1940 (Blumenson, 1977). O museu estimulou a com- ostentado por uma etnografia mais jovem aliada ao surrealismo
preensão intemacional e os valores globais, uma orientação que
era mais excêntrico, mais informe, e disposto a deslocar as ordens
continuaria após a Segunda Guerra Mundial com o envolvimento
de sua própria cultura — a cultura que construiu grandes museus
de Riviêre, Rivet, Griaule, Leiris, Métraux e outros etnólogos na
de ciência etnográfica e de arte moderna.
UNESCO." Sua tradição era cosmopolita, e havia permanecido con-
O Musée de 1" Homme abriu suas portas ao público em junho
gruente, em importantes aspectos, com o surrealismo etnográfico
de 1938. Durante o verão anterior, uma curiosa alternativa havia
dos anos 20. Deve-se lembrar que o surrealismo tinha sido um fe-
sido criada por Bataille, Leiris, Roger Caillois e um grupo informal
nômeno genuinamente internacional, com manifestações em cada

1
de intelectuais de vanguarda (alguns deles alunos de Mauss) que
continente. Ele forjou a articulação menos das diferenças culturais
se autodenominavam o Collêge de Sociologie. Embora o nome
do que das diferenças humanas. O mesmo pode ser dito em geral

CN
sugira a tradição de Durkheim, o renovado interesse do grupo no
da etnografia francesa." Mas embora partilhasse o escopo do
Année Sociologique envolvia um grau considerável de reinvenção.
surrealismo, o humanismo etnográfico do Musée de 1" Homme não
Sua inclinação para a sociologia (menos agudamente distinta da
adotou aquela atitude corrosiva e de estranhamento do primeiro
etnologia que na Inglaterra ou nos Estados Unidos) sinalizava a
-surrealismo diante da realidade cultural. O objetivo da ciência era,
rejeição do que eles viam como uma excessiva identificação do
ao contrário, colecionar dados e artefatos etnográficos e exibi-los
surrealismo com a literatura e a arte, seu excessivo subjetivismo e

us
160 161

e
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

preocupação com a escrita automática, com a experiência É difícil generalizar a respeito do Collêge, um grupo tão
individual do sonho e com a psicologia profunda. O Collêge de idiossincrático e de curta duração. Leiris, por exemplo, estava
Sociologie — que se reuniu, durante dois anos, na sala de jantar de preocupado não com ritos coletivos, mas sim com aqueles momentos
um café do Quartier Latin, acabou por causa da dissensão interna autobiográficos nos quais a articulação entre selfe sociedade pode
e da irrupção da guerra — foi uma tentativa de reintegrar o rigor ser trazida à consciência. Para este fim ele cultivava uma espécie
+

científico à experiência pessoal no estudo dos processos culturais. de metódica gaucherie, uma inabilidade permanente para se ajustar.
Como o autor das Formas elementares da vida religiosa, os fun- Sua principal contribuição ao Collêge (antes de -se desligar por
dadores do Collêge estavam preocupados com aqueles momentos causa de escrúpulos quanto a padrões pouco rigorosos de evidência
rituais em que as experiências fora do curso normal da existência e o perigo de se estar fundando uma “panelinha”) foi um ensaio
podiam encontrar expressão coletiva, momentos em que a ordem intitulado “O sagrado na vida cotidiana” (1938b). Nesse texto,
cultural é tanto transgredida quanto rejuvenescida. Eles adotaram uma ponte entre a etnografia e q auto-retrato, Leiris esboçou muitos
o conceito durkheimiano do sagrado para circunscrever esse dos tópicos que mais tarde desenvolveria em La rêgle du jeu (1948-
domínio de recriação. ? 1976). Objetos de uma atração incomum (o revólver de seu pai),
Se Durkheim havia descoberto as raízes da solidariedade zonas perigosas (pistas de corrida), locais tabu (o quarto dos pais),
social em exemplos etnográficos deslocados, tais como à “eferves- locais secretos (o banheiro), palavras e frases com uma ressonância
cência coletiva” dos ritos aborígenes, Bataille visualizava as especial e mágica — essa espécie de dados evocariam “aquela atitude
expressões coletivas de transgressão e excesso na Paris contem- ambígua ligada à abordagem de algo tanto atrativo quanto perigoso,
porânea. Ele estava obcecado pelo poder do sacrifício e pela Place prestigioso e rejeitado, aquela mistura de respeito, desejo e terror
de la Concorde, que ele esperava reivindicar como um espaço para que pode ser considerada como a marca psicológica do sagrado”
os atos rituais organizados pelo Collêge. Caillois, mais moderado, (Leiris, 1938b:60).
estava envolvido na pesquisa que resultaria em L'homme et le sacré Em L'Afrique fantôme (1934), Leiris questionou agudamente
(1939). Ele daria palestras no Collêge durante “la fête”, um tour certas distinções científicas entre práticas “subjetivas” e “objetivas”.
das culturas mundiais, baseando-se em seus professores, Mauss, Por que, ele se perguntava, minhas próprias reações (meus sonhos,
Georges Dumézil e Marcel Granet, assim como nos etnógrafos A. reações corporais, etc) não são parte importante dos “dados” produ-
P. Elkin, Daryll Forde e Maurice Leenhardt. O diferente sentido do zidos pelo trabalho de campo? No Collêge de Sociologie ele vislum-
sacré de Caillois incluía expressões rituais do caos primordial, brou a possibilidade de uma espécie de etnografia analiticamente
excesso, cosmogonia, fertilidade, depravação, incesto, sacrilégio e rigorosa e poética, centrada não no outro, mas no self, em seu pe-
paródias de todo tipo. Embora compartilhassem o interesse de culiar sistema de símbolos, rituais e topografias sociais. A exceção
Durkheim na constituição da ordem coletiva, os membros do Collêge seria feita para iluminar a regra sem confirmá-la. Baseando-se no
de Sociologie tendiam a focalizar os processos regenerativos de trabalho de Robert Hertz, Leiris e seus colegas cultivavam um
(O,

desordem e as necessárias irrupções do sagrado na vida cotidiana. sentido gauche do sagrado. No caso de Leiris, esta atitude gerou
Desse ponto de vista, as atividades críticas subversivas da vanguar- uma extensa obra de auto-retrato, um desajeitado e sempre
da podiam ser vistas como essenciais para a vida da sociedade; a imperfeito processo de socialização, cujo título, La rêgie du jeu,
posição circunscrita da “arte” na cultura moderna poderia ser trans- expressaria a ambígua ambidestria que o Collêge se preocupava
cendida, ao menos programaticamente. em investigar. Desde o fim da década de 30, no entanto, Leiris

162 163
4
LM
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

em
SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICA

DD
manteve seu trabalho literário e etnográfico rigorosamente em experiência, provavelmente constitui o aspecto mais

e
separado, Seu provocativo diário de campo, L'Afrique fantôme, original do Collêge. (1980:16)

e
permanece como um exemplo isolado de etnografia surrealista.!º O Collêge de Sociologie, em sua concepção de uma ciência
: O Collêge de Sociologie era frequentado por um público ativista e de vanguarda, em sua dedicação em transpassar o verniz
diverso, que incluía Jean Wahl, Pierre Klossowski, Alexandre do profano, em sua gaucherie e em suas por vezes grandiosas

AM
Kojêve, Jean Paulhan, Jules Monnerot e Walter Benjamin. Por muito ambições, era um tardio eco dos anos 20 marcados pelo surrealismo.

A
tempo tema de lendas e informações truncadas, o Collêge pode

NIRO
Ele oferece um exemplo particularmente notável daquela dimen-

A
agora ser discutido com algum grau de segurança graças ao trabalho são do surrealismo que lutou contra a corrente da arte e da ciência

OR
de Denis Hollier (1979), que reuniu virtualmente cada vestígio modernas para desenvolver uma crítica cultural assumidamente

EN
documental que restou de sua existência.!é O quadro é complexo etnográfica.
e, de vários modos, ainda misterioso; é suficiente aqui enumerar as
Se o Collêge era instável, ad hoc, e amadorístico, o Musée
preocupações do Collêge que repercutem os temas do que chamei
de "Homme carregava todas as marcas de um saber oficialmente
de surrealismo etnográfico — preocupações que ainda ocupam as
sancionado, científico e monumental. Num ambivalente relato
margens das ciências humanas. 4
sobre a inauguração da instituição onde ele trabalharia pelas pró-
Os membros do Collêge lutavam de forma exemplar contra ximas três décadas, Leiris refletiu sobre o paradoxo de um museu

O
a oposição entre conhecimento individual e social (Duvignaud, dedicado às artes da vida. O perigo, escreveu, era que, “a serviço da-
1979:91). Embora nunca tenham conseguido resolver satisfatoria- quelas duas abstrações chamadas arte e ciência, tudo aquilo que
mente a tensão entre o rigor científico e as reivindicações do ativis- é fermentação vital” seja “sistematicamente excluído”. Embora lou-
mo, eles no entanto resistiram a qualquer compromisso fácil com vando os objetivos progressistas e humanistas da nova museologia
um lado ou outro. O Collêge tinha em vista uma “etnologia do co- etnográfica, Leiris se permitiu um olhar pesaroso para trás, para O
tidiano” crítica, na formulação de Jean Jamin, que podia repercutir velho Museu Trocadéro, com seu ambiente distinto e um “certo ar
simultaneamente na sociedade e num grupo de pesquisadores familiar (em que faltava a rigidez didática)” (1938a:344).
ativistas constituídos como uma espécie de vanguarda, ou corpo
Na fachada do Musée de 1" Homme, em letras douradas,
iniciatório. No resumo de Jamin:
estão gravadas palavras de Paul Valéry (mais abaixo está a
As noções de distanciamento, exotismo, representação do estátua de um homem musculoso subjugando um búfalo):
outro e diferença são infletidas, retrabalhadas, reajustadas
Todo homem cria sem que se dê conta disso, assim como
em função de critérios não mais geográficos ou culturais,
respira. Mas o artista está ciente de seu próprio ato de cria-
mas de natureza metodológica e mesmo epistemológica:
ção. Seu ato envolve todo o seu ser. Ele se fortalece atra-
tornar estranho o que parece familiar; estudar os rituais e

Ls,
vés de sua bem-amada dor.
os locais sagrados de instituições contemporâneas com a í

a
minuciosa atenção de um etnógrafo “exótico”, e usando A arte, agora uma essência universal, é exposta e aprovada
seus métodos; tornar-se observador observando aqueles por um bom senso idealista e confiante. Uma versão particular de

LS
outros que são nós mesmos — e, no limite, esse outro que é autenticidade humana, representando interioridade pessoal e ago-

L—
cada um para si mesmo... A irrupção do sociólogo no
nia romântica, é projetada para o resto do planeta. Todas as pessoas

Ps
campo de sua pesquisa, o interesse devotado à sua

o
164 165

ps
A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA
SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

criam, amam, trabalham, cultuam. Uma “humanidade” completa


intercomunicação humana, embora signifique questionar qualquer
e estável é confirmada." Tal totalidade pressupõe uma omissão, a
fundamento estável ou essencial de similaridade humana. O
excluída fonte da projeção. O que não estava exposto no Musée
humanismo antropológico e o surrealismo etnográfico não precisam
de |" Homme era o Ocidente moderno, sua arte, suas instituições e
ser vistos como mutuamente exclusivos; eles são talvez melhor
técnicas. Assim, as ordens do Ocidente estavam presentes por toda entendidos como antinomias no interior de uma problemática e
parte no Musée de 1" Homme, exceto nas exposições. Um impacto transitória situação histórica e cultural. Apresentando esquemati-
importante foi perdido nas bem classificadas salas, pois o museu camente o contraste, podemos dizer que o humanismo antropológico
estimulava a contemplação da humanidade como um todo, vista, parte do diferente e o faz— através do ato de nomeá-lo, de classificá-
como se fosse, à distância, plácida e tolerantemente. A identidade lo, de descrevê-lo e de interpretá-lo - compreensível. Ele o familia-
entre o Ocidente e seu “humanismo” nunca foi exibida ou riza. Uma prática etnográfica surrealista, ao contrário, ataca o
analisada, nunca foi assunto em pauta. ! familiar, provocando a irrupção da alteridade — o inesperado. Cada
Falar do “homem” e do “humano” é correr o risco de' reduzir uma dessas atitudes pressupõe outra; ambas são elementos no
diferenças contingentes a um sistema de essências universais. Mais interior de um complexo processo que gera significados culturais,
ainda, a autoridade a que se arroga o humanista ráramente é definições de nós mesmos e do outro. Esse processo — um jogo per-
questionada. Como Maurice Merleau-Ponty indicaria: “A nossos manente e irônico de similaridade e diferença, do familiar e do
próprios olhos, o humanismo ocidental é o amor pela humanidade, estranho, do próximo e do distante — é, como venho argumentando,
mas para outros ele é meramente o costume e a instituição de um característico da modernidade global.
grupo de homens, sua senha, e algumas vezes seu grito de guerra” Ao explorar essa situação me detive na prática do surrealismo
(1947:182). Os problemas associados a uma visão humanista (ou etnográfico, prestando menos atenção ao seu inverso, a etnografia
antropológica) se tornaram mais tarde bastante visíveis. Vozes do surrealista, Aqui vão algumas hipóteses sobre esta última. Não há
Terceiro Mundo agora quêstionam o direito de qualquer tradição exemplos puros, exceto talvez L'Afrique fantôme, de Leiris; mas
intelectual local construir um museu da humanidade (ver, por gostaria de sugerir que procedimentos surrealistas sempre estão
exemplo, Adotevi, 1972-73); ena França críticos culturais radicais presentes em trabalhos etnográficos, ainda que raras vezes explici-
anunciaram com equanimidade a morte do homem. Não posso me tamente reconhecidos. (Ver, por exemplo, o adendo ao final deste
deter aqui nas ambigiiidades de tais análises do Ocidente humanista texto). Notei alguns deles na perspectiva documentária de Griaule.
e seus discursos globais. Deveríamos ser mais prudentes, em todo Em termos mais gerais, o mecanismo da collage pode servir como
caso, e não abandonar de maneira muito rápida a visão de um um útil paradigma. Em todo curso introdutório de antropologia, e
Mauss ou de um Rivet — um humanismo que ainda oferece espaço na maioria das etnografias, são produzidos momentos nos quais
para a resistência à opressão e uma necessária recomendação de distintas realidades culturais são retiradas de seus contextos e
tolerância, compreensão e generosidade. submetidas a uma perturbadora proximidade. Por exemplo, nas
Ilhas Trobriand de Malinowski, o comportamento que rotulamos
como economia ou comércio é identificado com a mágica e o
Cultura/collage
E»,

mito da canoa. Bens de troca ritual, os vaygu "a (colares de conchas)


Y

Enfatizar, como fiz, a natureza paradoxal do conhecimento são colocados lado a lado com as jóias da Coroa britânica. Mesmo
V%

etnográfico não é necessariamente abandonar a tese de uma o ato de traduzir um sistema estrangeiro de parentesco para o
NR

166
167
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA - SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

domínio conceitual do casamento ocidental é provocar um efeito Os elementos surrealistas da etnografia moderna tendem a
de estranhamento; mas é essencial distinguir esse momento de passar desapercebidos por uma ciência que se vê engajada na re-
justaposição metonímica de sua sequência usual, um movimento dução das incongruências mais do que, simultaneamente, em sua
de comparação metafórica no qual fundamentos consistentes produção. Mas todo etnográfo não é um pouco surrealista, um
para similaridade e diferença são elaborados. reinventor e um “recombinador” de realidades? A etnografia, a
O momento surrealista em etnografia é aquele no qual a ciência do risco cultural, pressupõe um constante desejo de ser
possibilidade de comparação existe numa tensão não-mediada com surpreendido, de desfazer sínteses interpretativas, e valorizar —

SD
a mera incongruência. Este momento é repetidamente produzido quando surge — o inclassificável, o inesperado outro.
e suavizado no processo da compreensão etnográfica. Mas ver esta O surrealismo etnográfico e a etnografia surrealista são
atividade nos termos de uma collage é manter à vista o momento construções utópicas; eles misturam e zombam das definições
surrealista — a alarmante co-presença na mesa de dissecação de institucionais de arte e ciência. Pensar o surrealismo como etnogra-
Lautréamont. A collage traz para o trabalho (aqui, o texto etno- fia é questionar o papel central do “artista” criativo, o gênio-xamã

eE
gráfico) elementos que continuamente proclamam sua cóndição descobrindo realidades mais profundas no domínio psíquico dos
estrangeira ao contexto da apresentação. Esses elementos — como sonhos, mitos, alucinações e escrita automática. Esse papel é bem
um recorte de jornal, ou uma pena — são marcados como reais, diferente daquele do analista cultural, interessado em montar e des-
como coletados, ao invés de inventados pelo escritor-artista. Os montar os códigos e convenções comuns. O surrealismo unido à

o
procedimentos de a) recortar e b) montar são com certeza básicos etnografia resgata sua antiga vocação de política cultural crítica,
em qualquer mensagem semiótica; aqui eles são a mensagem. Os uma vocação perdida em desenvolvimentos ulteriores (Max Emst
cortes e suturas do processo de pesquisa são deixados à mostra; devotando suas energias para desenhar uma onírica cama de casal
não há nenhuma suavização ou fusão dos dados crus do trabalho para Nelson e Happy Rockefeller, a produção geral de “arte” para
em uma representação homogênea. Escrever etnografias a partir o “mundo da arte”).
do modelo da collage seria evitar a representação de culturas como À etnografia, combinada com o surrealismo, não pode mais
todos orgânicos ou como mundos unificados e realistas, sujeitos a ser vista como a dimensão empírica, descritiva da antropologia,
um discurso explanatório contínuo. (Naven, de Gregory Bateson, uma ciência geral do humano. Tampouco é a interpretação das

rs
é pioneiro nesse sentido, e, no gênero, um inclassificável exemplo culturas, pois o planeta não pode ser visto como dividido em
distintos e textualizados modos de vida. A etnografia mesclada de

ee
do que estou sugerindo aqui. Sobre Naven, como um experimento
de escrita etnográfica, ver Marcus 1980:509 e 1985). A etnografia surrealismo emerge como a teoria e a prática da justaposição. Ela
como collage deixaria manifestos os procedimentos construtivistas estuda, ao mesmo tempo em que é parte da invenção e da interrupção
do conhecimento etnográfico; ela seria uma montagem contendo de totalidades significativas em trabalhos de importação-exportação

Le
outras vozes além da do etnógrafo, assim como exemplos de evi- cultural.
dências “encontradas”, dados não totalmente integrados na inter- Dois exemplos finais (parábolas) de justaposição e invenção
pretação organizadora do trabalho. Finalmente, ela não ignoraria no moderno sistema mundial; ambos evocam uma atitude
aqueles elementos da outra cultura que transformam a própria etnográfica surrealista. O primeiro é talvez muito familiar. Por
cultura do investigador distintamente incompreensível. volta de 1905, Picasso adquire uma máscara da África ocidental.

168 169
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

Ela é bonita, toda planos e cilindros. Ele descobre o cubismo. foi elaborado a partir de elementos da tradição, com base no jogo
(Outras versões da história localizam a epifania no velho “Troca”. dos missionários, que virou uma “bobagem”, trabalhando com
Muita tinta foi gasta para tentar dar conta do papel da escultura símbolos retirados da ocupação militar das ilhas durante a Segunda
africana na emergência do cubismo. Terá Picasso reconhecido Guerra Mundial. O filme nos leva a um estonteante cenário de
>

primeiramente uma afinidade formal? L'art nêgre era essencial- corpos brilhantes de pintura, enfeitados com penas, bolas e bastões.
mente raisonnable, tal como ele uma vez afirmou? Ou ele foi No meio de tudo isso, numa cadeira, senta-se o juiz, calmamente
ds

movido — como ele próprio sugeriu bem depois — por uma “mágica” influenciando o jogo com seus encantamentos mágicos. Ele está
"FR

quase religiosa sentida em relação à arte africana? O debate continua mascando noz-de-areca, que retira de um recipiente em seu colo.
(ver Rubin, 1984b:268-336; Foster, 1985:181-208). Sejam quais É uma sacola Adidas, de plástico azul brilhante. É bonita.
forem as inspirações e afinidades que possam ser retrospectivamente Talvez alguma familiaridade com o surrealismo etnográfico
construídas por ou para Picasso, parece claro que os exóticos possa nos ajudar a ver a sacola de plástico azul Adidas como parte
Aff

objetos que ele coletou eram instrumentos talhados para realizar do mesmo tipo de processo cultural inventivo, como as máscaras
tarefas específicas: os projetados olhos cilíndricos de uma máscara africanas que em 1907 de repente apareceram junto aos corpos
Grebo, por exemplo, sugerindo a boca de uma guitarra de metal. cor-de-rosa das Demoiselles d'Avignon.
EN

Uma solução cubista para vários problemas de composição, sem


dúvida, teriam surgido mesmo sem as máscaras; mas o fato de que
PINI

Dados dadá — Um adendo


Picasso, Derain e outros notaram e apreciaram os artefatos africanos
naquele momento histórico é significativo. Algo novo estava “Era-se livre para ir e ocupar a sombra de outro homem.”
ocorrendo na presença de algo exótico. É um processo comum;
por exemplo, a casa de Monet em Giverny estava repleta de gravuras (Extraídos de Headhunters about themselves: an ethnographic report from
japonesas. Por volta de 1920, quando /ºart nêgre estava em voga, Irian Java. Indonésia, de J. H. M. C. Boelaars. The Hague: Martinus
um inquérito seria patrocinado sobre o tema. Picasso replicou com Nijoff, 1981, p. 67-69).
uma tirada famosa: “L”art nêgre? Connais pas!”. Sem dúvida ele Aqui vai uma lista de notas sobre as várias partes do corpo
tinha pouco interesse na África per se. Não havia nada essencial- humano.
——

mente nêgre nas máscaras que ele achara poderosas e instrutivas


1.0 cabelo, muku-rumb, chamava a atenção quando alguém
EN

quinze anos antes. Elas vieram a propósito para fazer uma diferença.
estava doente e durante a cerimônia de iniciação das crianças. Em
IN

Meu segundo exemplo vem das Ilhas Trobriand. Ele ocorre ambos os casos o cabelo era raspado, mas no último caso era
no clássico filme etnográfico feito por Jerry Leach e Gary Kildea
ANEN PNPA FS

substituído por ornamentos. O cabelo de uma cabeça capturada


NE

com a colaboração de um movimento político local de Trobriand: era usado para decorar lanças e fazer cintos, gowa, para os grandes
Trobriand cricket: an ingenious response to colonialism. Este jogo caçadores de cabeças.
de cavalheiros, trazido por missionários ingleses no tempo em 2. O rosto pode ser pintado para as celebrações. Eles faziam
que Malinowski estava em cena, foi apropriado e reinventado. uso de um padrão borboleta, rur-dokdák. Pintando as partes em
Ele agora é uma guerra lúdica, uma exibição sexual extravagante,
volta dos olhos em cores brilhantes, estes ficavam parecendo os
competição e aliança políticas, uma paródia. Algo surpreendente
pontos negros das asas de uma borboleta.

170 171
A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

3. Os olhos, kind, podem representar uma pessoa, tal como sofrem qualquer dor para terem aquelas marcas. Os homens são
está enfatizado no conselho: “O sagu do casamento deve ser dado interessadíssimos nos seios, abur, e no tamanho dos genitais
sob os olhos do sol, tapag-kind-kan”. femininos, jo. As mulheres, por sua vez, fofocam sobre as barrigas,
4 A orelha está associada ao ato de se usar o cérebro. Uma kandôm, e os ânus, mo, dos homens. Estas partes do corpo sempre
pessoa estúpida é uma pessoa sem orelhas, mono-ain-mbék. A apareciam na minha lista de palavras ofensivas.
expressão mono-koame, há uma orelha, significa “nós também 11, As crianças não podem tocar a parte de dentro das coxas
somos capazes de pensar”. de suas mães. A “parte de dentro das coxas de sua esposa” era o
5. O nariz, tamangk, era especialmente adornado com lugar onde o ancestral Kapagait pegou as sementes para plantar
pedaços de concha e garras de pássaros. Tamangk gana, nariz vegetais. Os pelos púbicos das mulheres e as fibras de seus períneos
duro, é um rosto sombrio e determinado. eram fumadas no cachimbo da paz. Eles falavam que o hímen
deveria permanecer intocado até o fim da primeira menstruação.
6. A boca, mém, está sempre associada ao ato de comer.
O esperma e a urina podiam ser usados como remédios. O mito de
Mem rênggêmbak, boca grande, não se refere a uma pessoa
Ujogot conta como ele criou o ser humano bezuntando um coco
despudorada mas a um glutão. A boca tem uma função especial no
com seu esperma,
costume de encher a boca de água e espargi-la sobre a face de uma
12. O ânus, mo, tinha uma cobertura especial, uma cauda,
pessoa que perdeu a consciência. Os gestos de mostrar a língua ou

su
êk, feita de fibras. Quando um homem ficava doente, sempre
de cuspir no chão aos pés de alguém são insultos que levam a
perguntava se ele estava se deitando decentemente. Tocar o ânus
brigas. A língua é também considerada uma fina iguaria (tal como
de um homem era tanto um apelo à sua força como um insulto.
é a parte arredondada do polegar) para os canibais.

E
seriíssimo. Soltar gases provava que alguém havia comido demais.

sm
7. Dar de ombros não é uma expressão de ignorância, mas Se isso acontecesse na presença de homens, apenas, não tinha
sim de medo. Na presença dos homens, as mulheres podem ficar problema; mas na presença de mulheres, especialmente na presença

A
juntas com os ombros encolhidos, como um sinal de decência, mas da própria esposa, podia ser perigoso para eles ou para ela. As
os homens são mais sabidos que elas. Eles dizem: “se elas estivessem mulheres corriam o risco de serem mortas se olhassem para os

o
sozinhas com um homem, elas todas gostariam de fazer sexo”. excrementos de seus maridos. Os maridos temiam suas reclamações

mem
8. Esfregar o queixo ou o nariz, tal como entre os asmat, intermináveis sobre comer demais.
não é um costume jagai de saudação. Eles costumam pousar a mão 13. O pênis, pagadi, ou os pelos púbicos de um homem,
direita na mão esquerda do outro, que então apertava os dedos do despertavam menos atenção. Eles não usavam nada para cobri-lo.

Eq
primeiro. Os homens se beijam nas bochechas mas não beijam O termo pagadi, pênis, era sempre ouvido como expletivo. A coisa

LM
nenhuma mulher, nem mesmo suas próprias esposas. As mulheres mais boba que uma pessoa podia fazer, diziam, era ferir seu próprio

re
usualmente não se beijam. ânus ou pênis.

O
9. A respiração não está associada com a noção de espírito. 14. O fluido que escorria de um cadáver não era usado para
Respirar prova que alguém ainda está vivo. qualquer propósito especial. A única coisa que acontecia após um
corpo entrar em decomposição era que se dizia às crianças para
10. As mulheres enfeitam a parte superior de seus braços e

O
pisar fortemente o chão onde a plataforma de cremação havia ficado.
o espaço entre os seios com escarificações. As garotas alegremente
Dessa forma, elas se tornariam os verdadeiros sucessores do morto.

Pa
172

Ea
173
PODER E DIÁLOGO NA ETNOGRAFIA
À EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA

As etnografias geram múltiplas leituras. Por exemplo, os tro-


15. Acreditava-se que o odor do corpo, especialmente o briandeses estão livres para ler os relatos de Malinowski sobre
dos sovacos, tinha um poder defensivo especial contra os espíritos. sua cultura como paródias. Selecionando frases individuais de
A sombra de uma pessoa não merecia qualquer atenção. Era-se qualquer descrição cultural, pode-se facilmente produzir séries
* livre para ir e ocupar a sombra de outro homem. como a de Boelaars.
Quando o “coeficiente de esquisitice” se descola do “coefi-
ciente de realidade”, o resultado é um novo tipo de exotismo.
Notas A estranheza que é produzida não é inerente à cultura ou ao
Sou grato a Renato Rosaldo por me chamar a atenção para a mundo das pessoas representadas. Esse exotismo é diferente
lista de Boelaars. “Borges”, disse ele, “não poderia melhorá-la”.
de modalidades anteriores — romântica, orientalista e poética
— pois o que se tornou irredutivelmente curioso é não mais o
Malinowski estava interessado pelo que chamava de “coeficiente
outro, mas a própria descrição cultural.
de esquisitice” nas descrições de outras culturas. Este deveria
sempre ser contrabalançado, no entanto, pelo “coeficiente de “As dez eu fui para Tegava, onde tirei fotos de uma casa, de
realidade”. Outros modos de vida deveriam se tornar reais e um grupo de garotas e do wasi, e estudei a construção de
compreensíveis, preservando ao mesmo tempo unt sentido de uma nova casa” (O diário em trobriand de Malinowski).
sua estranheza e diferença. Um modo de preservar esta estranheza O que se precisa, portanto, é de uma etno(GRrÁFICA) poética...
era incluir dados não totalmente contextualizados — fatos casuais,
esquisitos, imponderabilia. Etnografias realistas, pensava Notas
Malinowski, deveriam manter um equilíbrio produtivo entre os
coeficientes de excentricidade e de realidade, deixando os leitores O uso amplo que faço desse termo coincide grosseiramente
estabelecerem um círculo hermenêutico (e feliz) entre plausibi- com a visão de Susan Sontag (1977) sobre o surrealismo como
lidade e surpresa, coerência e pequenos fragmentos de dados. uma difusa — e talvez dominante — sensibilidade moderna. Para
Mas o equilíbrio interpretativo às vezes escapa; e quando isso um tratamento que distingue a tradição específica que estou
ocorre, a imagem do outro se desintegra em coleções parciais de discutindo do movimento de Breton, ver Jamin, 1980. Uma
fatos e declarações justapostas de fontes heterogêneas. Os proces- “correção” para O presente texto, reafirmando definições estritas
sos de listar, selecionar e agrupar pelos quais certos tipos de tanto do surrealismo quanto da etnografia, pode ser encontrada
informação emergem como significativos se tornam repenti- em Jamin, 1986.
namente visíveis. A pesquisa sobre o terreno: comum da ciência social e da van-


As listas etnográficas tendem a induzir a devaneios, como o fazem guarda no século XX ainda está num estágio bastante acanha-
do. Desse modo, minha discussão é bem preliminar. Sobre o
EN

os “hotéis”, “hábitats” e “museus” de Joseph Cornell: pássaros e


relógios, mapas estelares, rolamentos, cachimbos, partes do cor- contexto francês, ver Boon, 1972: Duvignaud, 1979; Hollier,
EN

po... Uma beleza inesperada pode ser encontrada em classifi- 1979; Jamin, 1979, 1980; Lorau, 1974; e Tiryakian, 1979.
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cações ou frases tais como “o fluido que escorria de um cadáver Citado em Sontag (1977:204). O incisivo estudo de Paul Fussell,
em decomposição não era usado para qualquer propósito The Great War and modern memory, também enfatiza a Pri-
EPNANFNAESN

especial”, ou “tocar o ânus de um homem era tanto um apelo à meira Guerra como a iniciação de uma geração num mundo
sua força como um seriíssimo insulto”. fragmentário, “modernista”.
Boelaars foi missionário-etnógrafo e linguista (Padre do Sagrado
Coração) por cerca de dez anos na parte indonésia da Nova Guiné.
ANN

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A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA SOBRE O SURREALISMO ETNOGRÁFICO

Jornal do então Partido Socialista (N. Org.). Este relato deverá servir como uma correção à tendência de
Esta tradição é visível na Hommage à Georges Bataille, publicada Douglas a retratar Griaule e a tradição francesa geralmente como
em 1963 por Critique, que inclui ensaios de Alfred Métraux, formalistas e enamorados de sistemas abstratos. E deve reforçar
Michel Leiris, Raymond Queneau, André Masson e Jean Wahl, também sua sugestiva aproximação entre a cultura dogon e o sur-
da geração pré-guerra, e de Michel Foucault, Roland Barthes e realismo. Sobre essa correspondência ver também a imaginativa
Philippe Sollers, da emergente tradição crítica. (Outra conse- alocação dos dogon ao lado de Charles Fourier na Paris de 1920
guência do surrealismo etnográfico que não pode ser mais expla- por Guy Davenport (1979). Davenport, Guy, 1979, Au tombeau
nada aqui é a sua conexão com o modernismo do Terceiro Mundo de Charles Fourier. In: Da Vincis's Bicycle. Baltimore: Johns
e com o nascente discurso anticolonial. É suficiente mencionar Hopkins University Press.
alguns nomes famosos, como Aimé Cesaire (grande amigo de Duas publicações típicas da UNESCO são Interrelations of cultu-
Leiris), Octavio Paz e Alejo Carpentier, que foi colaborador do res (Inter-relações de culturas, 1953), com colaborações de Griaule
jornal Documents). e Leeiris, e Race and history (Raça e história), de Claude Lévi-
6 A tentativa mais elaborada de Lévi-Strauss nesta linha está em Strauss (1952).
sua brilhante Introduction à ['oeuvre de Marcel Mauss (1950). Uma concepção implicitamente surrealista (“antropológica”) da
Para uma correção dessa abordagem, veja Maurice Legnhardt, mente como uma fonte criativa, capaz de gerar toda a gama de
1950. expressões humanas — tanto existentes quanto potenciais, tanto

di
Meu relato está baseado em grande medida em comunicações míticas quanto racionais — encontra talvez sua maior expressão
pessoais de Georges-Henri Riviêre e em seus dois depoimentos programática no ésprit humain estruturalista de Lévi-Strauss,
(1968, 1979). Ver também Paulme, 1977, e Jamin, 1982a. A separação não era conseguida sem um esforço consciente. De

EE
Sobre essa négrophilie, ver Laude, 1968:528-539; e também acordo com Michel Leiris (em comunicação pessoal), no Musée
Leiris, 1968 e Blachêre, 1981. Para um exemplo particularmente de "Homme Rivet impôs uma injunção formal contra o trata-
revelador, ver Le nêgre, de Philippe Soupault (1927). O nêgre mento estético dos artefatos. A nova instituição tinha de purgar
de Soupault é um tipo de força destrutivo-regeneradora, mais *O legado do Trocadéro e dos anos 20, um período em que os
nietzscheana que afro-americana. contextos da ciência e da arte se misturavam. O tabu de Rivet

e
Said minimiza as avaliações positivas do exótico, frequentemente permaneceu em vigor até os anos 60.
associadas a tais projeções (ver Said, 1978, e Clifford, 1988, Um ensaio que ressalta as dimensões “etnográficas” da carreira

EN
cap.11). de Leiris é Clifford, 1986c, do qual partes desta discussão foram
De acordo com os cálculos orgulhosos de Rivet e Riviêre no adaptadas. Chaney e Ickering (1986a,b) oferecem um rico relato

IN
segundo número de Minotaure (1933), 3.500 “objetos etnográ- de outro possível exemplo de “etnografia surrealista”: Mass

FR
ficos” foram coletados, juntamente com 6 mil fotografias, uma observation, o projeto britânico de documentário social de 1937-
grande coleção de pinturas abissínias, 300 manuscritos e amu-

AR
1943. Instigado por Charles Madge, um jornalista e escritor
letos, notações de 30 línguas e dialetos, e centenas de registros, surrealista, Tom Harrison, um etnógrafo e omnitólogo, e Humphrey

LN
“observações etnográficas”, espécimes de plantas, etc. Este Jennings, um cineasta de filmes documentários e pintor surrealista,
“butim” da expedição, nas palavras de Rivet e Rivigre, era a Mass observation focaliza uma ampla etnografia da cultura

Dq O
expressão pública de uma missão bem-sucedida. Barthes popular britânica, concebida como um mundo não-familiar e
(1957:140) disseca a palavra missão; chama-a de um “termo exótico. Seu objetivo era mobilizar etnógrafos de todas as classes
mana” imperial, que pode ser aplicado a qualquer empreendimento numa democrática expansão da consciência social e um constante
colonial, dando-lhe uma aura redentora e heróica.

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