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Capítulo io
Literatura na educação
infantil: possibilidades
e ampliações
Patrícia Corsino*
Livro: a troca
Pra mim, livro é vida, desde que eu era muito pequena os livros
me deram casa e comida. Foi assim: eu brincava de construtora,
livro era tijolo; em pé, fazia parede; deitado, fazia degrau de escada;
inclinado, encostava num outro e fazia telhado. E quando a casi-
nha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar
em livro. De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto
olhar pras paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifran-
do palavras. Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça. Mas
fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntimas a
gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou
de construir novas casas. Sá por causa de uma razão: o livro agora
alimentava a minha imaginação.
Lygia Bojunga Nunes (1990, p. 7).
Literatura — Volume 20
guntas persistem: quanto daquela produção chega às crianças das
diferentes classes sociais? Das que chegam, quais as que podem ser
consideradas literatura e que parcela poderia ser classificada como
sendo de qualidade? Que políticas de acesso ao livro e à leitura tem
sido instituídas nas diferentes instâncias administrativas para que
maior número possível de crianças tenha acesso às produções de
qualidade? Como tem sido a mediação entre a criança e a literatura
infantil desde o início do processo educativo?
Da produção do autor, passando pelo editor e pelo livreiro que
distribui, até a recepção da criança, o livro percorre um longo ca-
minho. Darton (1995, p. 112) o denominou "ciclo de vida do livro".
Quem escreve e quem ilustra, ao conceber a obra, supõem leitores
potenciais e um gênero partilhado com outros autores. Por sua vez,
o tratamento gráfico que materializa a obra dirige leitores e leituras
o editor edita o que considera adequado e conveniente a seus
objetivos, daí a qualidade e os preços de seus produtos editoriais.
A distribuição e a divulgação também tem um papel importante
no ciclo, pois as estratégias de marketing direcionam as vendas
aos consumidores'. Em relação à aquisição, mesmo que as crianças
tenham alguma influência na escolha do livro — fato ainda pouco
2 A maioria dos catálogos de literatura infantil das editoras brasileiras se direciona
aos professores e tem as series/anos escolares como referência, como se pode
ler aqui no ensaio de Aparecida Paiva, Catálogos de editoras e escolhas docentes no
contexto escolar. 185
comum em nossa sociedade —, a composição de um acervo para as
crianças, seja na esfera doméstica, seja na pública das instituições,
exige critérios de escolha que passam por concepções, intenções e
condições as mais diversas. Quando o livro chega à criança, ainda
é preciso que alguém leia para ela. Geralmente, cabe aos pais, aos
familiares ou à professora a leitura em voz alta, com seus acentos
apreciativos e interpretações. As práticas de leitura e as formas de
ler, por sua vez, vão depender do tipo de livro, das intenções e
finalidades da leitura, das conversas e interações que antecedem,
que acompanhame que sucedem à leitura. Para se realizar a leitura
é preciso uma ambiência, um clima que garanta o espaço do leitor,
seus silêncios e suas falas. É preciso, ainda, que a criança estabeleça
relações entre o texto, as imagens, suas histórias e experiências pes-
soais. A mediação do adulto é o ponto-chave das primeiras leituras.
Coleção Explorando o Ensino
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que produz cultura e é também por ela produzida, pode receber e
acolher um texto literário provocativo, que amplia a margem de
significação da língua, que renova o seu olhar sobre o cotidiano, seja
pelo tratamento do tema, seja pela elaboração da linguagem, seja,
ainda, pelas ilustrações que dialogam polifonicamente com o verbal-.
Literatura que experimenta novos caminhos, que ousa novos arran-
jos, que não está necessariamente comprometida com o consenso.
Uma literatura que se abre a múltiplas leituras que, como arte da e
com a palavra, arte também das imagens provocadas por ilustrações
polifônicas, tem a finalidade de ampliar os referenciais de mundo
das crianças. Por sua vez, é o adulto quem faz escolhas, quem dá
voz às crianças durante a leitura, quem escuta e considera suas
produções, quem faz mediações instigadoras, quem coloca pontos
de vista em discussão, quem provoca argumentações e narrativas,
quem incita o diálogo entre os textos verbal e o não verbal, quem
abre e acolhe múltiplas leituras.
Concepções de infância, literatura e as mediações de leitura são
as três pontas da trança que tecem o trabalho de literatura junto
às crianças, não só na escola, mas nas diferentes esferas por onde
circulam. A literatura, por sua vez, é um dos fios das produções
culturais dirigidas ao público infantil. O cinema, a música, o tea-
tro, os programas de TV, os brinquedos e jogos compõem a ponta
da trança das produções culturais que hoje ganham a mídia e se
integram ao consumo de uma sociedade globalizada. Brinquedos 187
tornam-se personagens de histórias transformadas em filmes e/ou
em desenhos animados; personagens de histórias viram artistas de
filmes e transformam-se em brinquedos e games. Roteiros viram li-
vros e vice-versa, e as histórias, como qualquer produto, passam a
fazer parte de uma cultura de consumo e de massa partilhada por
um grande número de crianças do planeta.
Enquanto a mídia se encarrega de uma produção consumível e
rapidamente descartável, é longo o percurso da produção de uma
obra literária até a recepção das crianças e mais longo ainda quando
se pensa na qualidade do acervo que se disponibiliza a elas e das
mediações. Brito (1998) é enfático ao considerar que as crianças que
se submeteram durante anos à. leitura de textos típicos da cultura de
massa, que visam nichos de mercado, que são espelhos do universo
ideológico de senso comum da classe média, que tendem à banaliza-
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bons comportamentos, transmitir valores e conteúdos. O paradigma
da transmissão tem nas histórias um forte aliado. Não é à toa que
se observa uma extensa produção de livros infantis feitos para uso
escolar. Por sua vez, observa-se também o uso restrito de bons livros
de literatura no espaço escolar. O desafio de educar com a literatura
numa perspectiva libertadora exige do professor um olhar atento
para a qualidade das obras e para as possibilidades de leitura.
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assim:
céu tem três letras
sol tem três letras
inseto é maior.
que parecia um despropósito
Para nós não era despropósito (BARROS, 2003)
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do papel, técnica e cores empregadas, bem como a adequação e
dosagem de informações complementares ao texto literário para
contextualização da obra, funcionalidade de sumários, glossários
dados biobibliográficos dos atores e ilustradores, tudo isso faz
parte da contextualização, amplia a proposta da obra, devendo ser
considerado numa escolha de um livro de qualidade.
A seguir trazemos alguns eventos de pesquisa para compor
diálogo com as vozes de crianças e adultos em interação com a
literatura em diferentes espaços de educação infantil.
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dos livros, as crianças acomodavam-se deitadas ou recostadas so-
bre as almofadas, ora individualmente, Ora agrupadas em pares
ou em trincas. Nos tempos de leitura livre dos livros, as crianças
conversavam sozinhas ou entre elas, narravam histórias a partir das
ilustrações, inventavam, recriavam e também buscavam de memória
fragmentos do texto escrito.
Embora Walter Benjamin (1993) assegure que a arte de narrar
esteja em extinção, porque cada vez temos menos tempo para o
intercâmbio de experiências e até mesmo para viver a experiência,
observamos que na pequena infância a arte de narrar permanece
viva. As crianças gostam de ouvir histórias e também de contar.
Seria porque o tempo das crianças pequenas é muito mais intensi-
dade do que sucessão cronológica? Tempo que não é regido pela
sequência de um movimento numerado e que ainda permite esta
forma artesanal de comunicação?
As narrativas são registros que organizam o tempo, marcam sequ-
ências, provocam, aproXimam. Contar histórias para as pesquisadoras
foi uma forma de as crianças demonstrarem afeto e receptividade:
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José: Eu quero ir com você e vou desenhar a gente com a
minha lanterna na cabeça.
João: Essa é a formigona vermelhona. Ninguém é mais forte
do que ela e é ela quem manda nas outras formigas. As outras
têm que seguir ela, senão elas se perdem e levam a comida
pra outro lugar. Esse aqui é o formigueiro dela, onde ficam
todas as comidas do mundo. E ela tem uma coroa porque ela
é a rainha de todas as formigas.
José: Esse aqui é você e agora eu vou desenhar eu. A gente
está com a lanterna pra procurar as formigas.
Quando os meninos acabaram de desenhar, surgiu então a
ideia de procurar o livro do qual estavam falando para poder
levá-lo ao Jardim Botânico, mas a professora não permitiu e
disse que aquele seria um dia só pra passear e brincar, sem
livro. (El).
Gêneros e estilos
Duas meninas e um menino estavam deitados no chão da sala
de leitura com um livro dividindo o espaço entre eles. De repente o
menino se levanta, anda em direção à estante de livros e aí começa:
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Professora: Porque é a mesma ilustradora: Mariana Massa-
rani. (El).
Considerações finais
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serem vistos, manipulados, consultados, lidos, relidos, apre-
ciados. É importante que o ambiente seja confortável e acon-
chegante para convidar à leitura, que os leitores encontrem
almofadas no chão para se acomodar para ler, um tapete
ou uma esteira ou ainda mesas, cadeiras, poltronas, sofás.
Também precisa ter um espaço livre, flexível, que favoreça
a circulação, as leituras coletivas, a organização de cenas,
brincadeiras e dramatizações das histórias, interações diver-
sas entre o texto verbal e visual dos livros e as diferentes
linguagens. Mesmo que na biblioteca/sala ou canto de leitura
haja equipamentos como computador, televisão, aparelho
de som e outros, o livro deve ocupar lugar de destaque. A
mediação entre o livro e o leitor começa no ambiente, sua
organização, seu clima e as interações que favorece.
Acervos — a produção editorial destinada ao público infantil
é bastante extensa. O livro infantil, enquanto um portador
de texto, comporta muitos gêneros e estilos. Uma biblioteca
ou sala de leitura em creches e pré-escolas pode ter livros
de vários gêneros — dos informativos aos literários. Cabem
também gibis, revistas, filmes, desenhos animados, músicas
e cantigas, brinquedos, cenas e personagens de histórias,
pedaços de panos para se transformarem em roupas, ade-
reços (chapéus, coroas, sapatos, colares, entre outros). No
espaço da bibliõteca, a linguagem escrita pode desempenhar 201
diversas funções, tal como ocorre no nosso cotidiano. Di-
ferentes situações e objetivos suscitam diferentes leituras,
por exemplo: leitura informativa — para buscar mais conhe-
cimentos sobre um determinado assunto; leitura injuntiva
— para seguir uma orientação para a realização de alguma
ação, como instruções de jogos, manual de funcionamento
utilização de um aparelho, receitas culinárias etc.; leitura
literária — para fruição e prazer, para estimular a imaginação
reflexão, entre outras. Cabe ao professor organizar situa-
ções em que as crianças tenham a oportunidade de ler para
consultar, pesquisar, se divertir, ampliar suas experiências,
imaginar etc. É importante que todo o acervo seja catalogado
para se ter uma noção de conjunto, para facilitar a consulta
para controle dos empréstimos. A catalogação dos livros
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ampliam-se as possibilidades de perceber e de sentir.
Referências
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